ARTIGOS
As cidades de Escher
The Escher's cities
Andréia Machado Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Grupo de pesquisa "Modos de trabalhar, modos de subjetivar"
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RESUMO
Este artigo pretende pensar sobre as constituições do corpo da cidade com foco nas configurações dos seus lugares, nos espaços possíveis de habitação que desnaturalizam os lugares regidos por estruturas determinantes; visualizar vivências espaciais e temporais que subvertam estruturas lineares e dicotômicas através de formas de ocupação do espaço construídas na multiplicidade. Tal visualização incidirá a partir das obras do artista plástico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972), com aproximações a alguns conceitos trabalhados por Gilles Deleuze (1925-1995). Considera-se que o encontro desses referenciais, provindos da Arte e da Filosofia, contribui para a tessitura de percursos para a problematização de outros modos de subjetivação. A obra de Escher é um questionar sobre a realidade através dos seus próprios elementos, configurados de formas surpreendentes e inconcebíveis, uma vez que desarticulam o estabelecido.
Palavras-chave: Cidade e subjetivação; Multiplicidade plástica; Jogos de ilusão; Coexistência de realidades.
ABSTRACT
This article intends to think on the constitutions of the body of the city with focus about the configurations of its places, in the possible spaces of habitation that disnaturalize the places conducted for determinative structures. To visualize space and time experiences that subvertam linear and dicotômicas structures through forms of constructed occupation of the space in the multiplicity. Such visualization will happen from the art work of the plastic artist dutch Maurits Cornelis Escher (1898-1972) with approaches of some concepts worked for Gilles Deleuze (1925-1995). It is considered that the meeting of these referenciais come from the Art and the Philosophy contributes for the construction of passages for the questioning in other ways of subjectivity. The art works of Escher is one to question on the reality through its proper surprising and inconceivable configured elements of form, a time that disarticulates the established one.
Keywords: City and subjectivity; Plastic multiplicity; Games of illusion; Coexistence of realities.
As cidades construídas por Escher abrigam jogos de ilusão que suportam o impensado, a diferença e o paradoxo. Estas configurações constituem corpos que formam cidades, bem como cidades que contornam corpos: jogos que Escher propõe gerando um corpo-cidade que inquire outros modos de subjetivação. Um corpo-cidade onde a vida se trama e o tempo se imprime por meio de inscrições dos fluxos e densidades das forças. Estes sutis registros corporais mapeiam cidades que explicitam os tempos em que se desdobram, as forças que as atravessam, as relações que as determinam e os seres que as habitam.
Deste modo, este corpo, constituído como lugar de habitação, apresenta-se aberto a um jogo de realidades plásticas que incita ao deslocamento e aos percursos inusitados das cidades. As construções de Escher nos fazem indagar que relações estão potencializadas naquelas cidades que causam vertigens e que outros modos possíveis de ocupação e circulação elas desafiam. Questionam a veracidade do lugar que o sujeito ocupa, investigando o instante do olhar que abre à perspectiva do paradoxo e aos múltiplos trajetos possíveis de percorrer. Exploram como se dão os encontros, as misturas, as passagens das realidades nestas cidades que não convergem ao mesmo ponto nem comportam posições polarizadas e binarizadas.
Escher cria cidades que nos causam estranhamento, sobretudo sobre as cidades que nós próprios habitamos, uma vez que estas se mostram tão rígidas, unidirecionais e autoritárias perante as alternativas propostas por ele. Ao trabalhar com a técnica de gravura, Escher não grava estas cidades apenas sobre as matrizes, mas sobre o nosso imaginário carente de representações que permitam o lúdico, os jogos sem hierarquias nem dominações fixas. O modo de objetivação do mundo reflete-se no próprio modo de subjetivação como seu avesso e duplo, adquirindo ambos uma espessura plástica contraposta a um modelo dominante.
Nestas composições, todos os termos são valorizados no seu alto grau de potência, bem como o meio. O entorno faz parte da composição, uma vez que implica uma conexão tensa entre percepção e ação, estabelecendo-se um agenciamento, um acoplamento. Escher estabelece relações de composição a partir de um paradigma ético-estético, já que cria estratégias de produção de conhecimento em que coexistem o ser, o tempo e o espaço, formados no mesmo processo e produzindo modos de subjetivação que não dizem respeito ao sujeito em si e não pré-existem a ele como verdades universais.
A porta pela qual entramos nas cidades de Escher é o prazer da descoberta. Segundo Bruno Ernst, em O espelho mágico de M. C. Escher, sua obra é embrionada e movida pela descoberta que o fascinava: "Para um primeiro conhecimento basta só conseguir que cada observador se convença de que a "compreensão" da obra, está ligada ao prazer duma descoberta. Este prazer é o centro da própria inspiração de Escher - transmiti-lo foi objetivo e fim de sua arte" (ERNST, 1991: 16).
Como o próprio Escher nos diz:
"Nunca quis representar nada místico; o que muitos chamam de misterioso, não é mais do que uma ilusão consciente ou inconsciente! Joguei um jogo, senti gozo em pensar imagens sem nenhuma outra intenção do que a de investigar a possibilidade da sua representação. Tudo o que ofereço nas minhas gravuras são relatórios das minhas descobertas" (ERNST, 1991: 14).
A descoberta é a chave do jogo que Escher propõe a partir da ilusão, como se ele brincasse com espelhos e colocasse as ilusões umas sobre as outras, fazendo com que uma ilusão somente possa ser desvendada a partir da outra; ou seja, a ilusão serve como fresta de passagem para seus mundos não imagináveis.
Estas ilusões atreladas à realidade nos remetem a construções surrealistas. Porém não se trata de um surrealismo que nos prende a um enigma; ao contrário, nos explicita a sua solução. Escher cria mundos não-existentes de forma inusitada, nos mostra "outra coisa", o próprio não pensado a partir do estranhamento ao familiar. Desta maneira, não silencia a razão, mas a utiliza para intervir na construção de mundos que atentam para outros modos de subjetivar o olhar - um olhar que admite inúmeros mundos coexistindo ao mesmo tempo e num só lugar, num só plano de representação; um olhar perspectivo que abrange multiplicidade de realidades possíveis e não definidas.
Escher nos faz ver o impossível que habita o possível. Não tem mais a ver com a representação fiel da realidade como uma unidade coerente, mas sim com ilusão óptica, com percepção de realidades múltiplas e simultâneas. Segundo Bruno Ernst:
"Os mundos impossíveis de Escher são de outra espécie. Escher mostra-nos como uma coisa pode ser simultaneamente côncava e convexa; que as suas figuras podem andar no mesmo momento e no mesmo lugar, tanto escadas acima como escadas abaixo. Ele torna-nos claro que uma coisa pode estar ao mesmo tempo tanto dentro como fora, ou quando ele usa escalas diferentes num desenho, existe uma lógica de composição que faz desta coexistência a coisa mais natural do mundo. Escher não é nenhum surrealista que, como por encanto, nos apresenta uma miragem. Ele é um construtor de mundos impossíveis. Ele constrói o impossível rigorosamente segundo as leis e de tal forma, que qualquer um pode compreender; e nas suas gravuras não mostra só o resultado final, mas também o sistema de construção" (ERNST, 1991: 66).
As imagens de Escher nos causam uma sensação de magia através de combinações não pensadas entre elementos habituais. Coisas, lugares, situações completamente impossíveis são retratadas com relatividade, lógica e clareza, de tal modo nos causando desacomodação e desconforto: o que é real ou não.
Em suas cidades, pode-se observar a quebra com a idéia de unidade coerente e totalizadora, sugerindo a existência de "eus" admissíveis, conforme haja realidades vivenciadas, ou seja, inúmeras realidades possíveis de acordo com domínios de validação que se tenha. Concebe cidades descentralizadas por uma multiplicidade formadora que ousa aceitar a fragmentalidade, o desencaixe, as contrariedades e os paradoxos. Ajuda-nos a pensar a questão da segmentaridade que constitui o ser, segmentaridade esta também investigada por Deleuze. Conforme vemos a seguir, nas próprias palavras do filósofo:
"Somos segmentarizados por todos os lados e em todas as direções. O homem é um animal segmentário. A segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar: o vivido é segmentarizado espacial e socialmente. A casa é segmentarizada conforme a destinação de seus cômodos; as ruas, conforme a ordem da cidade; a fábrica, conforme a natureza dos trabalhos e das operações. (1996: 84) [...] Certamente, o centralizado não se opõe ao segmentário [...] A segmentaridade torna-se dura, na medida em que todos os centros ressoam, todos os buracos negros caem num ponto de acumulação [...]" (Deleuze e Guattari, 1996: 87).
A unidade e a segmentaridade são colocadas, de acordo com as propostas dos autores aqui correlacionados, de forma não binária nem excludente, já que uma sempre se encontra presente na outra. Todavia, ao incluírem a segmentaridade, rompem com uma unidade autoritária e castradora. Apontam a inexistência de apenas um modo de composição dos elementos formadores da realidade, demonstrando incontáveis formas de realidades. Explicitam que as realidades pertencem aos seus lugares espaciais e temporais e, deste modo, que os sujeitos somente podem ser vistos com sua historicidade, uma vez que esta os constitui. Afirmam uma condição histórica do ser: composições de recortes transversalizados por tempos distintos.
Este plano de composição aberto e mutável permite que cada estrutura se atualize em um recorte histórico admissível. De acordo com Deleuze e Guattari, no livro Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia (1995), as estruturas são vistas como efeito de captura de forças que lhes são contemporâneas e que constituem a sua atualidade. Discorrer sobre as estruturas na perspectiva do "acontecimentalizar" demanda pensar a partir de uma rede de acontecimentos com alcances diferentes, com capacidades de produzir efeitos distintos em tempos distintos pertencentes a um plano de coexistência. Este plano se configura por um recorte feito no caos pelo tempo e não pelo espaço, o qual Deleuze e Guattari chamam de plano de imanência. O plano, como a própria palavra define, se estende na superfície e se constitui pelas forças, pelas virtualidades que concernem ao acontecimento e que em determinados momentos se configuram em materialidades gerando formas, como as cidades de Escher.
Escher delata a limitação da nossa percepção de realidade diante da impossibilidade de apreender a coexistência da multiplicidade em um mesmo plano, ou seja, o que nos parece estranho em suas cidades é a existência simultânea do diferente; sem hierarquias, sem verdade e mentira, como ele próprio nos diz: "Vejam, eu mostro-vos algo que vocês não consideram possível" (ERNST, 1991: 6). Nas litografias Relatividade1, 1953, e Em cima e em baixo2, 1947, Escher joga com a perspectiva, forma de representação espacial inquestionável (exceto pelo Cubismo) desde o Renascimento. Para Bruno Ernst, na litografia Relatividade, observam-se três pontos de fuga, três realidades simultâneas, sendo que cada um destes três pontos tem três significações diferentes:
"as 16 figurinhas que aparecem na gravura podem ser divididas em três grupos, nos quais cada uma delas vive no seu próprio mundo. Para cada grupo, o seu mundo é tudo o que aparece na estampa; só que se apercebem das coisas de forma diferente e lhes dão nomes diferentes. O que é para um grupo um tcto, é para o outro uma parede; o que para uma comunidade é uma porta, é para a outra um buraco no chão" (ERNST, 1991:.47).
Outro exemplo de pontos de vista diferentes no mesmo espaço é a obra Um outro mundo II3, 1946: o ponto nadir (cima para baixo), o ponto zênite (baixo para cima) e o ponto de distância (frontal) estão colocados simultaneamente no mesmo espaço. Sobre esta gravura, Bruno Ernst comenta que:
"encontramo-nos num espaço estranho, onde se pode a bel-prazer confundir em cima com em baixo, direita com esquerda, frente com trás, conforme quisermos olhar por uma ou outra janela. E concebeu uma solução muito hábil para o problema como a de se poder sugerir a função tripla do único ponto de fuga: dando ao edifício três pares de janelas quase iguais" (ERNST,1991: 46).
Escher oferece, com os jogos de perspectiva, um meio de visualização do perspectivismo que se contrapõe ao absoluto. Conceitos do cotidiano como em cima e em baixo, dentro e fora, são relativos e alterados; relações absolutamente novas a partir de elementos habituais apresentam mundos ao mesmo tempo estranhos e possíveis.
As cidades de Escher, segmentarizadas e a-centradas, nos remetem ao plano rizomático concebido por Deleuze e Guattari. Um rizoma, segundo eles, constitui-se de:
Trata-se de planos nos quais qualquer ponto pode conectar com outro, configurando-se uma rede promíscua que se alastra, sem ponto fixo, sem castas, sem origem. São cidades constituídas por um princípio de multiplicidade, que não buscam unidade nem no sujeito nem no objeto, mas nos movimentos dos fluxos das redes que se configuram pelos agenciamentos entre sujeitos/objetos/lugares.
Estes sistemas a-centrados não visam a negar a existência do centro como configurador da unidade, mas auxiliam a pensar o centro incluso em um espaço composto por diversos centros ressonantes ordenados de forma descontínua. As cidades de Escher nos oferecem a visualização deste espaço a-centrado que tem múltiplos caminhos com diversas entradas e saídas; que provoca rupturas a-significantes e que se move em saltos consentindo desterritorializações da visão. Estas cidades sem estrutura central permitem construções desmontáveis e conectáveis que abrem ao finito ilimitado e às estruturas fractais, bem como ao descentramento tanto do espaço quanto do sujeito que se dimensiona em um perspectivismo.
Outra característica do rizoma, que se aproxima das construções de Escher, é a lógica do "e", que corresponde ao tecido de conjunção do rizoma. Esta lógica implica a coexistência do diferente e no acesso ao intermezzo, ao 'entre' as coisas. Ela nos remete a um elemento fundamental das composições de Escher: a dualidade. Conforme Escher diz:
"O Bem não pode existir sem o Mal e quando se aceita um Deus, então tem de se dar, por outro lado, um lugar equivalente ao Demônio. Isto é o equilíbrio. Vivo desta dualidade. Mas isso também não parece ser permitido. As pessoas tornam-se logo tão profundas sobre estas coisas, que em breve deixo completamente de perceber. Na realidade, porém, é muito simples: branco e preto, dia e noite - o gravador vive disso" (ERNST, 1991: 17).
Este dualismo não deve ser visto como algo excludente, construído no ou/ou, mas como exigência para a existência de ambos de maneira complementar. Por exemplo, nas xilogravuras Limite Circular IV4,1960, Dia e Noite5, 1938, e Encontro6, 1944, visualiza-se essa relação de complementaridade fundamentada na simultaneidade de opostos e na mistura de mundos diferentes: a existência de uma figura é dada na ausência da outra. A existência de uma pressupõe a presença da outra, produzida pela sua ausência. O outro só existe na ausência, ou seja, para que o outro tenha existência é necessário o intervalo entre os corpos, a existência do não lugar habitado. Pode-se dizer que, através do dualismo, um jogo se arma e somos lançados nas ilusões fractais: movemo-nos em um espaço sem determinação a priori, tal como Alice no País das Maravilhas do filme Labirinto, de David Bowie. Para compreender a obra de Escher é imprescindível um outro olhar, sem conotação moral sobre a vida e aberto aos riscos dos devaneios. Um olhar plástico, apenas um olhar.
A repetição também é um elemento gerador na obra de Escher: repetição que provoca o diferente e não reproduz o semelhante. Observa-se na obra Metamorphose7, 1939-1967, que as figuras, em cada repetição, sofrem pequenas mudanças, em um contexto próximo, alterações insignificantes na sua estrutura. Entretanto, com um olhar mais distanciado, nota-se que se transmutam em outras figuras. Os pequenos detalhes sem validez, por isso imperceptíveis nas experiências, vão delineando a diferença. Nestas obras, percebe-se que a repetição é anulada quando o olhar se detém em instantes estáticos e não apreende as nuances dos movimentos constantes presentes na duração: na dura ação de durar a ação de nos diferenciarmos de nós mesmos. Escher nos desperta a atenção aos detalhes da repetição e nos remete às sutilizas da subjetivação, que não se atam em determinações estanques, mas se levam pelos fluxos do devir que não cessa de invocar outras configurações.
Como já foi colocado anteriormente, se constata outro elemento construtor nas imagens de Escher: o paradoxo. A partir do laço de Moebius (Augustus Ferdinand Möbius, 1790-1868), ele investigou a temática do dentro e do fora em várias obras: Cavaleiros (1946), Laço de Moebius I (1961), Laço de Moebius II (1963), e Nós (1965). Estas xilogravuras demonstram o paradoxo do exterior/interior, do dentro/fora, nos fazendo questionar: como se demarca o dentro e o fora? Como se separa a figura e o espaço, o sujeito e o social? Imagens sem início e fim mostram a impossibilidade de construir o dentro e o fora separadamente, uma vez que quando se pensa que se está dentro, já se está fora e vice-versa. Afirmando o mesmo, René Schérer afirma que não existem separadamente o fora e o dentro. Não há o ser de fora e o ser de dentro: é com o fora que o ser se forma, se interioriza e se dobra sobre si.
Este paradoxo também constitui o conceito de dobra, explorado por Deleuze, e que proporciona uma visão contínua do dentro e do fora, do sujeito e do social. A subjetivação diz respeito aos diferentes modos de subjetividade no território social, não se limitando ao sujeito, mas aos acontecimentos que envolvem ou não os sujeitos, de forma singular e múltipla. Refere-se a um processo de transformação simultâneo do fora e do dentro que abole com um interior pessoal separado do social. Ao contrário, a interioridade se produz como um dobramento das forças do exterior. Na obra Galeria de Arte8, 1956, Escher constrói uma dobra espacial, localizando o sujeito de maneira que ele habita o dentro e o fora simultaneamente, assim permitindo questionar os limites entre mundo interior e exterior.
Deste modo, as construções de Escher sucessivamente resultam em um jogo inevitável entre realidade e ilusão, uma vez que a própria representação gráfica já se apresenta como uma ilusão ao sugerir três dimensões, embora lá estejam somente duas. A ilusão surge como princípio de uma situação espacial sobre uma superfície plana, na qual ele pretendia investigar a tensão a partir das regularidades, das estruturas matemáticas, da idéia de continuidade e infinito e outras. Estas questões despertaram grande interesse dos matemáticos, físicos e cristalógrafos, uma vez que identificavam estruturas semelhantes em suas teorias.
As obras de Escher sugerem um fazer que nos reporta ao movimento do seguir, delineado por Deleuze. Para ele, o seguir se diferencia do reproduzir: enquanto o reproduzir afirma somente o conhecido, o seguir busca singularidades escapando de pré-determinações subjugadas; exige entrega ao mover-se pelas intensidades dos encontros, pelas intensões autopoiéticas e não pelas intenções particularizadas do sujeito. Ocorre nos agenciamentos, nos acoplamentos de ações, tempos e espaços. Está nos acontecimentos sem certezas a priori, sem separação entre produtor e produto nem sujeito e objeto. Escher nos incita a nos lançarmos e nos movermos pelos múltiplos trajetos das suas cidades, persuadidos e guiados pelo seguir. Como Bruno Ernest comenta: "A sua arte consiste em princípios descobertos. No momento em que está no rasto de alguma coisa tem de o seguir com precaução, até mesmo com obediência" (ERNST, 1991:72).
Finalizando, pode-se pensar Escher com a luz de Merleau Ponty, ao colocar que uma obra por fazer exige uma determinada vida por viver. Suas obras são testemunhas e cúmplices de sua busca, que, segundo ele, tinha uma dimensão indemonstrável: "Se soubessem só o que eu vi na escuridão da noite [...] fiquei por vezes louco de mágoa por o não poder representar. Em comparação com isso, é cada estampa um malogro que nem sequer reproduz uma fracção daquilo que deveria ser" (ERNST, 1991:16). O mergulho que Escher realiza na escuridão de cada noite e na procura de cada obra nos evidencia um processo construcionista que potencializa a vida pela imersão ao caos, pelas intensidades pulsantes nos acontecimentos, em lugar das representações.
Neste sentido, Deleuze afirma que, quando se busca uma objetivação a partir da noção do acontecimento, torna-se impossível não se ter uma subjetivação, uma vez que o sujeito também pertence ao acontecimento. Não há como separar o sujeito do objeto, pois o mergulho do sujeito se dá na exterioridade do objeto que constitui o próprio sujeito. Assim, os processos de objetivação e subjetivação são construídos simultaneamente e, como diz Nietzsche, o conhecimento é a faísca do encontro do objeto e do sujeito. Escher, com sua obra, afirma a inseparabilidade dos processos de objetivação e subjetivação.
Em Escher, as configurações das cidades, as perspectivas, as repetições, os paradoxos, as divisões de superfícies, as metamorfoses, são registros de sua vida. Vida esta conduzida pela paixão, como ele nos relata:
"Enquanto estou ocupado com alguma coisa, penso que estou a fazer a coisa mais linda do mundo. Quando tenho êxito nalguma coisa, então à noite, sento-me em frente dela enamorado. E essa paixão é maior do que qualquer paixão por pessoa. No dia seguinte, os olhos abrem-se de novo..." (ERNST, 1991: 18).
Remetendo-se aos conceitos de Deleuze, Escher se apresenta como um artista da fuga que se move pelos fluxos da paixão, criando outros trajetos no plano vivido e produzindo modos de subjetivação abrigados na multiplicidade e na diferença.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1995) Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 1.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1996) Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 3.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1997) Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, vol. 5.
ERNST, B. (1991) O espelho mágico de M. C. Escher. Singapore: Taschen.
ESCHER, M. C. (1989) M. C. Escher, gravuras e desenhos. Singapore: Taschen.
E-mail: andreiao@cpovo.net
Recebido em: 09/09/05
Revisado em: 08/09/05
Aprovado em: 11/10/05
1"Relatividade, litografia, 1953, 28 x 29cm. Três planos de gravitação agem aqui verticalmente uns sobre os outros. Três superfícies terrestres, vivendo em cada uma delas seres humanos, intersectam-se em ângulo recto. Dois habitantes de mundos diferentes não podem andar, sentar-se ou ficar em pé no mesmo solo, pois sua concepção de horizontal e vertical não se conjuga. Eles podem, contudo, usar a mesma escada. Na escada mais alta das aqui representadas, movem-se, lado a lado, duas pessoas na mesma direcção. Todavia, uma desce e a outra sobe. é claramente impossível um contacto entre ambas, pois vivem em mundos diferentes e não sabem, portanto, da existência uma da outra" (ESCHER, 1989:15).
2Em cima e em baixo, litografia, 1947, 50,5 x 20,5 cm. Nesta estampa reproduz-se duas vezes a mesma representação, cada uma delas dum ponto de vista diferente. A metade superior mostra a vista de um observador que se encontre pela altura do segundo andar. A metade inferior, pelo contrário, mostra o cenário que ele veria do rés-do-chão. Se ele daqui dirigir o olhar para cima, verá o ladrilho, sobre o qual se encontra, no centro da composição, repetido como tecto (ESCHER, 1989: 15).
3"Um outro mundo II, entalhe em madeira, prova de três matrizes, 1947, 31,5 x 26cm. O interior duma construção em forma de cubo. Aberturas nas cinco paredes visíveis oferecem uma vista sobre cinco cenários diferentes. Pelas duas em cima vê-se o solo em baixo quase perpendicularmente; as duas do meio estão situadas à altura dos olhos e deixam ver para o horizonte; pelas duas de baixo vê-se a direito para cima, para as estrelas. Cada parede desta construção, que une de forma lógica o nadir, o horizonte e o zênite, possui uma função tripla. O plano de trás, no centro, por exemplo, é uma parede em relação ao horizonte, é chão em relação à vista superior e, relativamente, à vista sobre o céu estrelado, é um tecto" (ESCHER, 1989: 15).
4"Limite circular IV (Céu e Inferno), xilogravura, prova de duas matrizes, 1960, com diâmetro de 41,5cm. Também aqui, as componentes se reduzem de dentro para fora. As seis maiores, três anjos brancos e três dmônios pretos, estão ordenadas radialmente em volta do centro. O disco está dividido em seis sectores, onde dominam os anjos, frente a um fundo preto e os demônios, frente a um branco. Céu e Inferno aparecem alternadamente seis vezes. Nos estádios "terrestres" intermédios são equivalentes" (ESCHER, 1989: 10).
5"Dia e Noite, xilogravura, prova de duas matrizes, 1938, 39 x x68cm. Campos cinzentos rectangulares evoluem para cima, em silhuetas de aves brancas e pretas. Como duas formações de sentido contrário, voam as pretas para a esquerda e as brancas para a direita. No lado esquerdo fundem-se as brancas umas nas outras e formam céu e paisagem de dia. Do lado direito, unem-se as pretas na noite. A paisagem do dia e da noite são imagens refletidas uma de outra, ligadas por campos cinzentos, dos quais de novo evoluem aves" (ESCHER, 1989: 9).
6"Encontro, litografia, 1944, 34 x 46,5 cm. A partir dos limites cinzentos duma parede traseira, desenvolve-se um complicado padrão de figuras humanas brancas e pretas. Como seres vivos que são,precisam, pelo menos, dum chão sobre o qual se possam mover. Foi para eles desenhado um, tendo no meio um buraco circular, de maneira a poder ver-se ainda, tanto quanto possível, a parede traseira. Assim, são obrigados a moverem-se em círculo e ao mesmo tempo a encontrarem-se no plano de frente: um optimista branco e um pessimista preto apertam as mãos" (ESCHER, 1989: 11).
7"Metamorfose, xilogravura, prova de 29 matrizes, 1939-40 e 1967-68, 19,5 x 700 cm. Uma longa seqüência de metamorfoses. [...] A torre que está na água é ao mesmo tempo uma figura de xadrez cujo tabuleiro, com seus quadrados claros e escuros, conduz às letras da palavra 'metamorphose'"(ESCHER, 1989: 11).
8Galeria de arte, litografia, 1956, 32 x 32 cm. Como variação do tema da estampa "Varanda", produz-se aqui um alargamento circular em volta do centro vazio, no sentido dos ponteiros do relógio. [...] O jovem vê todas estas coisas como pormenores bidimensionais dum quadro que observa. Se o seu olhar ainda continuar a vaguear um pouco, ver-se-á ele próprio como parte do quadro (ESCHER, 1989: 16).
Nota:
Este artigo, resultado de apresentação realizada no VI Encontro Clio-Psyché, foi gentilmente cedido pelo Programa de estudos e pesquisas em História da Psicologia - Clio-Psyché, da UERJ, para publicação nos Arquivos Brasileiros de Psicologia.