ARTIGOS
Direito da favela e política de exceção em territórios favelados
Favela law and politics of exception in favela territories
Ley de favela y política de excepción en territorios de favela
Roberta Brasilino BarbosaI; Camila Clipes GarciaII; Ellen das NevesIII; João Pedro SimõesIV; Laíza da Silva SardinhaV
IPesquisadora
visitante em Pós-Doutorado. Programa de Pós-Graduação
em Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro.
Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0943-916X
IIPsicóloga. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil.
https://orcid.org/0000-0003-2810-3346
IIIMestranda. Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio
de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-2859-1127
IVPsicólogo. Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil.
https://orcid.org/0000-0003-3218-0790
VDiscente. Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-4322-5333
RESUMO
Esta pesquisa objetivou discutir situações em que grupos armados atuam como reguladores de relações sociais entre moradoras e moradores do Complexo da Maré. A partir de uma análise documental no banco de dados do Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania (Programa de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro), constatamos tal prática nos enunciados de usuários atendidos pelo programa. Usamos os relatos com a proposta de complexificar essa realidade em que grupos civis armados, majoritariamente ligados ao comércio de psicoativos no território, assumem o papel de promotores de justiça, garantindo direitos por vezes não acessados pela população pelas vias formais, quase sempre "classistas", sexistas e racistas. Colocamos em questão a produção da favela como território de exceção, uma das forças que sustentam a criminalização desta lógica resolutiva informal, contribuindo na manutenção da desigualdade social brasileira.
Palavras-chave: Favela; Justiça; Território; Política de Exceção.
ABSTRACT
This research aimed to discuss situations in which armed groups act as regulators of social relations among residents of the Complexo da Maré. Based on a documentary analysis of the database of the Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania (Extension Program of the Federal University of Rio de Janeiro), we verified this practice in the statements of users served by the program. We use the reports with the proposal to make a complexification of this reality in which armed civilian groups, mostly linked to the psychoactive drug trade in the territory, assume the role of promoters of justice, guaranteeing rights sometimes not accessed by the population through formal channels, almost always "classist", sexist and racist. We call into question the production of the favela as a territory of exception, one of the forces that sustain the criminalization of this informal solution logic, contributing to the maintenance of Brazilian social inequality.
Keywords: Favela; Justice; Territory; Politics of exception.
RESUMEN
Esta investigación objetivó a abordar situaciones en que grupos armados actúan como reguladores de relaciones sociales entre los habitantes del Complejo da Maré. A partir de un análisis documental en el banco de datos del Núcleo Interdisciplinario de Acciones para la Ciudadanía (Programa de Extensión de la Universidad Federal de Río de Janeiro), constatamos tal práctica en las declaraciones de los usuarios atendidos por el programa. Utilizamos los informes con la propuesta de describir esa realidad en que grupos civiles armados, en su mayoría vinculados al comercio de psicoactivos en el territorio, asumen el rol de fiscales, garantizando derechos a veces no accedidos por la población por vías formales, casi siempre" clasistas", sexistas y racistas. Ponemos en cuestión la producción de la favela como territorio de excepción, una de las fuerzas que apoyan la criminalización de esta lógica resolutiva informal, contribuyendo para el mantenimiento de la desigualdad social brasileña.
Palabras clave: Favela; Justicia; Territorio; Política de Excepción.
Ao longo dos mais de dez anos de funcionamento do programa de extensão Núcleo Interdisciplinar de Ações para Cidadania da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIAC/UFRJ) - no qual atuaram equipes de bolsistas das áreas de Psicologia, Direito e Serviço Social promovendo atendimentos psicossociais e sociojurídicos - e dos mais de 1.000 casos atendidos, um enunciado em comum entre seus diversos usuários emerge como analisador1 para esta pesquisa: do acionamento, por parte das usuárias e dos usuários - em sua grande maioria moradoras e moradores da Maré2 -, de grupos civis armados para o exercício da função de reguladores de relações de conflito no território. Motivados(as) também pela descrença generalizada nos meios oficiais de justiça e pela constatação da negligência do Estado em reconhecer e/ou efetivar seus direitos, essas pessoas relataram buscar os chamados "donos do morro/favela" - função que, na Maré, é majoritariamente exercida por pessoas armadas atuantes no comércio de psicoativos considerados ilícitos - para resolução de conflitos diversos e obtenção de direitos e do que se considera justiça, nos âmbitos, por exemplo, da regularização de pagamentos de pensão, de guarda de filhos, de violência doméstica, de quitação de dívidas etc.
Como metodologia da pesquisa que segue aqui relatada, procedemos a análise das Fichas de Primeiro Atendimento - documentos em que constam breves resumos das demandas iniciais trazidas pelas usuárias do serviço - das pastas ativas e arquivadas referentes aos casos 1 ao 1.100 do banco de dados do NIAC. O critério de escolha das fichas estava pautado na observação da associação entre exercícios de Justiça e práticas de vingança, tendo em vista um estudo teórico que estava sendo feito pela equipe. Ao elencarmos as fichas que apresentavam demandas associadas às discussões sobre justiça e vingança, constatamos a premência do acionamento de grupos civis armados na regulação de relações sociais no território das favelas da Maré. E nesse contexto, tomamos os enunciados dos usuários como agenciamentos coletivos de enunciação, conceito co-elaborado na obra de Deleuze e Guattari (1995; 2010), em que:
[...] o enunciado é o produto de um agenciamento, sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós, as populações, as multiplicidades, os territórios, os devires, os afetos, os acontecimentos. O nome próprio não designa um sujeito, mas qualquer coisa que se passa, pelo menos entre dois termos que não são sujeitos, mas agentes, elementos. (Deleuze & Parnet, 19961998, p. 65).
Reconhecermos estes enunciados como co-instituídos na forma de agenciamentos é uma aposta ético-estético-política, direcionada para a desindividualização de muitos questionamentos trazidos pelos usuários. Sugerimos, por conseguinte, não uma dessubjetivação ordinária das relações, mas a própria emergência do social/coletivo na singularização dos agenciamentos, isto é, na assunção de que os enunciados trazidos pelas pessoas que acessaram o NIAC, ainda que de forma "individual", dizem respeito ao contexto social em que estão inseridos, na prevalência da indissociação entre indivíduo/sociedade, eu/outro, micro/macropolítica, como forma autêntica de constituição subjetiva.
Nesse sentido, defendemos aqui a importância de análises outras acerca da regulação das relações sociais que ocorrem nos espaços das favelas. Aqueles que procuram pelos serviços do NIAC apontam o fato, por exemplo, de que os oficiais de justiça, responsáveis pela efetivação da entrega de ofícios de intimação na cidade, não acessam os devidos destinatários na Maré, alegando a periculosidade da região como uma justificativa para o não cumprimento de suas funções. Essa ocorrência de não entrega de mandados se tornou algo tão comum que a própria Corregedoria-Geral da Justiça fez um levantamento de agosto de 2016 a agosto de 2017, verificando 17.081 mandados negativo em cinco das 81 comarcas do estado do Rio de Janeiro, por estarem localizadas em áreas denominadas como "de risco"3. Alia-se a esse tipo de prerrogativa legitimada a impotência dos órgãos reguladores e fiscalizadores de direitos e das forças policiais e temos como resultado um território produzido como apartado do restante da cidade, com leis e regras próprias, encaminhamentos sustentados pela postura de omissão estatal à garantia de direitos e cidadania e que, por sua vez, servem como justificativa para a demarcação de territórios de exceção. Um ciclo a serviço da gestão e manutenção da desigualdade social que nos constitui enquanto país.
Frente à demanda urgente de literatura científica correspondente, nosso objetivo com esta pesquisa foi o de complexificar a regulação das relações sociais em favelas por grupos civis armados. Isto é, a partir dos excertos, propomos aqui ressaltar alguns emaranhados de forças e interesses que constituem a manutenção dessas práticas informais de legislação e garantia de direitos que, para muitas pessoas que habitam as favelas, são os meios possíveis para obter aquilo que entendem como justiça. Entre o medo e a legitimidade de recorrer aos "meninos do tráfico", e a impossibilidade ou extrema dificuldade de acessar os meios oficiais de justiça, moradoras e moradores de favelas se veem diferenciados em relação aos demais habitantes da cidade no que tange o acesso a direitos e consequentemente à cidadania, potencializando angústias e descrenças nas instituições e no Estado. Contudo, consideramos importante aqui ressaltar que é uma preocupação nossa - autoras e autor deste texto - não gerar uma dicotomização vulgar, lugar-comum, de "bom" e "mau", "certo" e "errado", que amputa e invisibiliza as complexas discussões a respeito do tema e que está tão presente na maneira como o assunto é tratado - pela via da criminalização4 - na grande mídia, a partir do uso de termos como "poder paralelo" e "tribunal do tráfico"5.
Trata-se [...] de captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e o delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violentos (Foucault, 1979, p. 182).
Políticas de exceção em territórios: interesses na "cisão" favela-cidade
Entre os discursos a respeito das favelas, predomina a concepção apartada de que elas constituem territórios não integrantes à cidade. Fazendo um paralelo com a biologia, a favela surge como uma espécie de corpo estranho que penetra o interior do tecido da cidade na condição de um organismo invasor, ou seja, um corpo estranho nocivo ao desempenho biológico do organismo saudável, entre os quais não deveria haver qualquer relação. Ou então como uma espécie de câncer, proliferação de células com mutações malignas ao organismo como um todo, muitas vezes acarretando grande impacto na saúde e qualidade de vida do corpo em questão.
Segundo Silva e Barbosa (2005), o discurso higienista, parte do projeto de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, embasou a derrubada de cortiços por serem considerados insalubres e focos de doenças, não conferindo outra opção à população pobre e negra que aumentava diariamente, se não subir os morros, intensificando o processo de favelização da cidade. A reação que se sucedeu a esse fato, uma denúncia de que o Estado não agiu rápido o suficiente no processo de favelização quando ele ainda estava no início, indica uma falsa questão, já que esse "não agir" foi pensado justamente enquanto uma forma de intervenção em que a primazia dos interesses vigentes da época tendia a esvaziar as áreas centrais sem se preocupar em proporcionar novas moradias a essa população desamparada e até hoje marginalizada. Segundo os autores, a restritiva legislação da época que proibia reformas, construções de prédios e construções de madeira nas ruas centrais abria uma exceção para as construções em morros, contanto que estes ainda não tivessem habitações licenciadas.
Se, por um lado, permitia-se as construções em morros, desde que a população negra e mais pobre ficasse longe dos espaços de interesses do capital e, consequentemente, da burguesia; por outro lado, as pessoas que começaram a habitar as favelas não eram vistas enquanto sujeitos de direitos. Com isso, estereotipar a favela como sendo "outra cidade" ou "terra sem lei" (Barbosa & Silva, 2005), configurou-se ferramenta para fazer valer intervenções autoritárias, já que a produção de territórios de exceção nas favelas justificava-se pelo extermínio de um "mal maior".
Ao longo dos anos, diferentes estratégias foram utilizadas nesse sentido e, mais recentemente, contornos têm sido dados a partir da política proibicionista seletiva de combate ao uso e comércio de alguns psicoativos tornados ilícitos. Sobre essa perspectiva, avaliamos como absolutamente necessária uma análise acerca da funcionalidade e o impacto da proibição dessas substâncias na vida e nas relações sociais da população moradora de favelas, que em sua maioria é negra e pobre, configurando, portanto, uma prática de racismo institucional (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017).
Segundo Barbosa e Bicalho (2014), a quase totalidade das intervenções que ocorrem no espaço das favelas no âmbito das políticas sobre drogas apresenta-se pela via da repressão na forma de combate ao uso e a comercialização de alguns psicoativos. A discussão sobre drogas está constantemente atravessada pela busca de um indivíduo saudável, que é aquele que não consome e nem tem acesso a certos psicoativos, sendo justamente a partir dessa busca que o elemento segurança surge e ganha legitimidade. Em nome da garantia de segurança, o Estado precisa manter sua população saudável e livre desse "mal maior" que são os psicoativos. A lógica de manutenção do indivíduo saudável a fim de que se defenda a saúde pública passa a ser então o que justifica a intitulada "guerra ao tráfico", em que é instaurado um "estado de guerra" que permite que medidas de exceção sejam tomadas dentro das favelas (Barbosa, 2017).
Para Coimbra (2001) a utilização da terminologia "guerra" é funcional à implementação dessas medidas violadoras de direitos que transformam o criminoso em inimigo. O Estado, atuante segundo um modelo de "estado de guerra", elabora sua política de segurança de forma altamente militarizada6 e transforma sua função de prender e julgar os criminosos - comerciantes varejistas de psicoativos nas favelas -, na função de executar inimigos. "O 'criminoso' é transformado em alguém mau, portador de uma essência maléfica, podendo-lhe até mesmo ser retirado o status de 'humano'" (Coimbra, 2003, p. 11). E a esse movimento, intimamente relacionado à instituição de territórios de exceção, Mbembe (2016) denominou como exercício do necropoder, a partir do qual
o cotidiano é militarizado. É outorgada liberdade aos comandantes militares locais para utilizarem seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar. O deslocamento entre células territoriais requer autorizações formais. Instituições civis locais são sistematicamente destruídas. A população sitiada é privada de seus meios de renda. Às execuções a céu aberto somam-se matanças invisíveis (p. 138).
A construção no imaginário social das favelas, enquanto espaço propenso à formação de criminosos, testifica não só o comerciante varejista de psicoativos como inimigo do Estado, alguém que precisa ser eliminado, mas, igualmente, opera em relação a toda e qualquer pessoa daquela área. A ação violenta, instituída pelo Estado, passa a ser defendida inclusive pela população geral, pautando-se nesse imaginário em que o favelado negro e pobre é compreendido como sinônimo de traficante, fomentando a criminalização da favela, da negritude e da pobreza.
Assim, favelas tornam-se regiões da cidade com especificidades em diferentes aspectos, territórios de exceção, inclusive no campo da segurança pública, gerando impactos até mesmo no que tange à democracia. Conforme afirma Renato Cinco, vereador da cidade do Rio de Janeiro, eleito pelo Partido Socialismo e Liberdade
a democracia conquistada no final dos anos 80 no Brasil ainda não foi experimentada por moradoras e moradores dessas áreas, tendo em vista, por exemplo, a violência física e simbólica praticada nesses espaços por agentes do Estado. Afinal, tudo é pretexto quando se fala em combate ao tráfico: a utilização de tropas das Forças Armadas, a expedição de mandados de busca coletivos, a legitimação de verdadeiros massacres7.
Contudo, não podemos esquecer de que todas essas particularidades no trato com as favelas e sua população são extremamente funcionais à maneira como Estado e capital exercem a administração da desigualdade social nos aglomerados urbanos brasileiros. Historicamente, as favelas foram construídas e ainda hoje são mantidas em virtude do não enfrentamento (e até mesmo impulsionamento) estratégico da desigualdade social que nos estrutura enquanto país8. E o crescimento nos últimos anos da lógica de cidade-negócio exerce papel central nesse cenário (Martins, Pereira, Salem, Matos & Barbosa, 2017).
Romper com a cisão Favela-Cidade é um processo que não consiste somente na afirmativa de um enquanto parte relacional e necessária do outro, ou seja, da favela enquanto necessária e integrada à dinâmica da cidade9. É importante entendermos, antes de mais nada, que essa dicotomia visa preservar privilégios. Privilégios como aqueles que se instituem a partir da criação de espaços de exceção, da desvalorização da mão de obra, da dificuldade no acesso a direitos, que resultam no mantenimento da desigualdade racial, impossibilitando ainda mais a ascensão social e culminando no extermínio (histórico e estatístico) da população negra.
E, no que tange especificamente os efeitos que a cisão Favela-Cidade opera na (e também é operada pela) lógica de territórios de exceção - em que são permitidas práticas pelo Estado distintas daquelas permitidas em outras áreas da cidade -, destacamos adiante o campo das regulações das relações sociais. Essa cisão e seus efeitos se constroem e se legitimam também a partir da criminalização da maneira como ocorrem as regulações das relações sociais no espaço das favelas. Regulações que se instituem, inclusive, a partir da própria negligência - deliberada ou não - do Estado, em especial em nome de uma garantia de segurança.
O direito que se constrói nas regulações das relações sociais nas favelas
As favelas são parte do cenário do Rio de Janeiro e de uma série de outras capitais brasileiras. Surgem com as primeiras tentativas de expulsar a população mais pobre de áreas nobres da cidade e hoje se encontram visíveis por todo o relevo carioca. Elas se tornaram uma alternativa para a população mais marginalizada diante da diminuição e até inexistência de ofertas de moradia e dos altos custos de sobrevivência nas cidades.
As favelas representam um horizonte em que há a quase completa recusa do Estado na garantia dos direitos dos trabalhadores subalternizados (Silva & Barbosa, 2005) dos centros urbanos, eximindo-se de políticas que assegurem condições suficientes de habitação e para a sobrevivência humana, como saneamento básico ou hospitais. Reconhecemos que nos últimos anos houve investimentos em alguns serviços e políticas públicas nos espaços das favelas, porém, ainda não são correspondentes às necessidades do contingente populacional e demandam manutenção e modernização na maioria das vezes (Silva, 2015).
Uma das consequências dessa citada ausência do poder público nesses espaços (a partir de outras políticas que não exclusivamente orientadas à segurança pública) surge com força avassaladora nos anos 1980, de acordo com pesquisa realizada por Caco Barcellos (2003), que deu origem ao livro Abusado (obra em que é feita uma discussão sobre o processo de ocupação populacional do morro Dona Marta, localizado em Botafogo, bairro nobre do Rio de Janeiro). Trata-se do comércio, que é varejista, de alguns psicoativos ilícitos, as "drogas da favela"10. Esse comércio se intensificou e ganhou notoriedade quando associado com a expansão do uso da cocaína (Barcellos, 2003), "droga da favela", que trouxe grande lucratividade para alguns dos envolvidos, distinguindo aqui, que, na hierarquia do empreendimento de comercialização, não são todos os trabalhadores que desfrutam dos grandes lucros gerados pelo negócio11.
Aliado a esse contexto, revela-se como fator significativo o reconhecimento social de que o exercício de uma atividade relacionada ao comércio varejista de "drogas da favela" oferece a jovens que sempre tiveram seus direitos negados, despontando, como um dos atravessamentos desse processo, o êxito da implantação de organizações do chamado "poder paralelo" nesse espaço (Barcellos, 2003). Os agentes desse "poder"12 foram desenvolvendo práticas de resistência, enfrentamento e negociações nos territórios, passando a ter legitimidade para conduzir também, de maneira local, questões relativas ao cotidiano das favelas que por vezes não eram possíveis de serem acessadas via poder público.
Referimo-nos aqui a construções e à manutenção de espaços comuns, e até à resolução de impasses familiares. Nessas condições, os grupos armados foram ganhando status de autoridade entre os demais moradores, tal qual pode ser observado no trecho abaixo, retirado do livro O dono do morro, de Misha Glenny, em que é contada a história de ocupação populacional da Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina:
Nem também quer prosseguir na tradição do assistencialismo de Lulu e Bem-Te-Vi, fornecendo mantimentos, gêneros de primeira necessidade, remédios e empréstimos aos moradores da favela, como maneira de assegurar a boa vontade deles. Durante seu período no poder, Nem constrói um campinho de futebol para a comunidade, paga viagens de moradores ao Nordeste para reverem a família, banca tratamentos médicos e providencia cestas básicas que são distribuídas aos mais carentes. [...] Nem não tem horário fixo para atender aos moradores que querem auxílio financeiro, favores ou mesmo audiências de tipo judicial (Glenny, 2016, p. 170).
Salientamos que os agentes que praticam tais regulações das relações sociais em favelas não são exclusivamente aqueles integrantes de grupos civis armados. Esse papel também é exercido por outras esferas como as próprias Associações de Moradores das favelas, que estabelecem variadas normativas, intermediando por exemplo, a compra e venda de imóveis dentro destes espaços. Como relata Magalhães (2009), as Associações atuam numa interveniência entre o vendedor do imóvel e o comprador, lavrando e subscrevendo um documento que o proprietário e comprador usarão como instrumento de legitimidade do negócio realizado e com base no qual é possível saber quem, para as Associações, é o proprietário de cada imóvel da favela. Ainda que para a legislação do consumidor ou para o Sistema Nacional de Habitação em vigor tal interveniência não possua nenhum caráter obrigatório ou legítimo, tendo em vista que as Associações de Moradores não são investidas de qualquer função pública, apesar de muitas vezes o Estado delegar tal função a ela.
Ressaltamos também, que as intervenções de grupos em deliberações acerca da convivência coletiva nos territórios de favelas não se estabelecem exclusivamente como consequência da negligência estatal, ainda que esta assuma um caráter preponderante. Pretende-se aqui declinar da ideia de favela como espaço homogeneizado de falta e evidenciá-la como espaço de ocorrências de múltiplas contradições e inventividades.
Em vários momentos, nos atendimentos realizados no NIAC, moradoras e moradores da Maré compartilharam a experiência de buscar um terceiro dentro do território para sanar impasses, como explicitamos neste excerto retirado da ficha de primeiro atendimento do caso número 885:
A usuária admite que já chegou a procurar os "meninos do tráfico" para que eles fossem chamar a atenção de A. de forma que ele contribuísse com alguma quantia para as despesas das filhas. Nesse episódio, o ex-companheiro teria então dado R$150,00 a usuária. No mês seguinte ela voltou a procurar os meninos do tráfico para procurarem A. novamente, porém, o menino que havia lhe ajudado teria falecido e assim, A. nunca mais havia contribuído com nenhuma quantia para as filhas.
A usuária só utilizou o serviço do NIAC depois de recorrer aos "meninos do tráfico"13, o que descortina uma variante de justiça que se estabelece nas favelas, a partir do compartilhamento de um código de conduta. O conceito do "direito da favela" de Magalhães (2009) contribui na compreensão dessa realidade.
De acordo com o autor, tal nuance do direito se desenvolve como estratégia no exercício da cidadania pelos segmentos sociais favelizados. Dessa maneira, pela apropriação fragmentária das instituições do Estado, moradoras e moradores buscariam legitimar, interna e externamente, as suas próprias instituições. Portanto, ao se valer de grupos armados para obter o pagamento da pensão de suas filhas, a usuária do NIAC também estaria empregando um mecanismo do exercício do direito nesse território. Essa experiência jurídica em curso na favela estabelece normas de convívio social que, por vezes, recorrem à incorporação de elementos originários do Estado.
Essa apropriação se evidencia no excerto exposto quando a usuária em questão tem a noção de que o pai de suas filhas é obrigado a contribuir mensalmente com alguma quantia para o sustento delas, ainda que antes ela não tenha tido acesso formal a informações jurídicas sobre os artigos do Código Civil que estabelecem tal dever a seu ex-companheiro ou mesmo consultado algum advogado anteriormente a ida ao NIAC. Da mesma forma, o "menino do tráfico" a quem ela recorreu também sabe, sem que para isso precise de qualquer instrução jurídica formal, que o pai das crianças precisa assumir esse compromisso, caso contrário ele não se disponibilizaria a realizar a cobrança. A usuária estaria atuando similarmente a uma cidadã que apela a um órgão judicial para ter acesso a uma ação de alimentos para suas filhas e assim esse caso contribui no argumento de que residentes em favelas modelam à sua própria peculiaridade o uso da justiça. Dessa forma, entende-se que o Direito da favela não se move de forma avessa às práticas de justiça formal, mas sim, que se constrói numa intercorrência, como é apontado a seguir:
Pode-se afirmar, portanto, que estamos diante de uma juridificação híbrida, isto é, trata-se não de uma outra ordem, inteiramente diversa e apartada da oficial - ou ainda, de uma ordem necessariamente em déficit perante a oficial - mas de uma ordem jurídica construída no embate, no diálogo, na contradição com aquela posta pelo Estado (Magalhães, 2009, p. 100).
Na função de moderadores das relações nas favelas, os grupos armados tomam para si os mais diferentes tipos de demandas e dão a elas as mais diversas soluções. No entanto, o mais notório dos processos de resolução de conflitos é exibido pelos meios de comunicação na forma de "tribunais do tráfico", nos quais são enfatizadas exclusivamente as práticas violentas predominantes nesta resolução. O excerto a seguir referente a ficha de primeiro atendimento do caso 936 exemplifica esse acontecimento:
O ex-companheiro da usuária afirma que por vezes ela ameaçou "chamar um bandido para que ele levasse um corretivo do tráfico". Por curiosidade do professor de Direito que estava no atendimento, foi perguntado o que seria esse "corretivo", ao que foi informado ser "uma surra", mas "o erro, sendo muito grave, a pena era de morte.
Definir essa conduta dos grupos armados meramente de forma demonizante como a mídia, e consequentemente, boa parte da sociedade interpretam é deixar de lado um debate mais aprofundado sobre a complexa dinâmica cotidiana dos processos informais e sua resolutividade jurídica prática. Como aponta Silva (2015), as formas desumanas e bárbaras de decidir impasses são naturalizadas nas favelas pelo próprio Estado e por toda uma população que defende iniciativas centradas no uso da violência massiva pelos aparatos policiais sob a justificativa, por exemplo, de uma guerra às drogas que se confirma por si mesma. Ou seja, as reverberações da violência sistêmica que acometem esse território se concretizam também na maneira de exercer o direito da favela pelos grupos armados, porém, é importante ressaltar que não são exclusivamente nos moldes violentos que são ditadas as resoluções.
A discussão que propomos aqui aponta para basicamente três mecanismos de operacionalização do Direito das favelas. Aquele em que não são os grupos armados os responsáveis pela legitimidade do exercício de regulamentação, ressaltando aí o papel das Associações de Moradores; aquele em que a regulação ocorre sem um pedido direto por uma ação a ser realizada, conforme observado nos casos citados de garantias de direito ao lazer e à alimentação; e, mais detidamente, em virtude das reincidências observadas nos excertos dos casos acompanhados pelas equipes do NIAC, o mecanismo de operacionalização do Direito das favelas que é chamado de "desenrolo".
O "desenrolo" implica a aquisição de uma dívida com os reguladores pelo serviço prestado de regulação. Dívida cujo assentimento é motivado pelo medo e pela falta de opção, tendo em vista que o acionamento de instâncias externas à favela ou é mal-visto internamente (por trazer a polícia para dentro do território) ou é prática inviabilizada pelas características dos próprios mecanismos de Justiça do Estado (Santiago, Peregrín & Gonçalves, 2017).
No âmbito dessa discussão, argumentamos que a prática do "desenrolo" é caracterizada como uma experiência jurídica desenvolvida pelas moradoras e moradores de favelas, na medida em que adquire uma dimensão de dispositivo de mediação retórica de conflitos e regulação da violência. Essa habilidade argumentativa para o trato em diversas situações do dia a dia não abarca apenas um princípio de cobrança entre os envolvidos (sem querer negar que uma cobrança exista e que possa adquirir uma dimensão bastante violenta, restritiva e pautada na coação), mas também uma noção de coletivização dos problemas do território entre as pessoas que nele convivem. Nas favelas, talvez mais do que em outras regiões da cidade, essa coletivização precisa estar presente de maneira acentuada, no que o caráter das políticas proibicionistas sobre drogas direcionadas a esses espaços certamente exerce grande influência (Misse, 2003). O "desenrolo", por esse prisma, apresenta-se como necessário para a organização local, atuando numa perspectiva de permutação no convívio.
De um modo geral, estas regulações praticadas nas favelas não representam apenas o resultado de uma postura de omissão total de políticas do Estado, uma vez que este está presente no território, mas não tanto para garantir saúde, saneamento, educação, segurança, cultura, lazer, por exemplo, quanto para sustentar a lógica de guerra às drogas e de território violento e de exceção. Embora estas regulações sejam marcadas com o estigma da violência, ao analisarmos mais de perto as histórias de vida nestes "territórios de exceção", observamos que existe, em virtude inclusive das negações de direitos que aí se operam, uma demanda que se coloca como regular de um tipo de liderança que exerce, entre outras coisas, o papel de juiz em situações de conflito ou desvio de normas. Exercendo controle local, os "donos dos morros"14 (antes relacionados ao jogo do bicho e agora ao comércio no varejo de "drogas da favela"), os milicianos e até mesmo as Associações de Moradores aparecem como figuras importantes para a organização das favelas (e da cidade como um todo), muitas vezes tendo seu trabalho reconhecido por seus moradores (e até mesmo gestores da cidade, agentes públicos e membros do mercado imobiliário) para a garantia da segurança, da ordem, de direitos, do lucro e da desigualdade (Glenny, 2016).
Para alguns "donos", é importante ser uma figura respeitada e até amada pela favela, obtendo, com isto, inclusive, maiores lucros para os negócios e mais estabilidade no território. Alguns garantiram longos períodos de paz em favelas marcadas por conflitos, outros se mostraram ditadores perversos (Glenny, 2016), mas o fato é que, para muitas pessoas que moram nas favelas, pedir aos "donos" ou aos "meninos" uma intervenção é o único modo de garantir alguns direitos básicos. Se trata de uma questão complexa, principalmente considerando que a justiça formal, do modo como está configurada no Brasil, não atende ou não serve para a população das favelas, não lhes dá garantias e muitas vezes gera mais problemas ao desconsiderar o complexo contexto em que vivem.
Direitos, vingança e violência
A análise dos excertos também nos permitiu a observação de dois mecanismos cuja presença se destaca nas práticas de regulação das relações sociais nos territórios de favelas por grupos armados: violência e vingança. Contudo, violência e vingança não estão presentes apenas na justiça que se opera no território das favelas, de modo que tal justiça tampouco possa ser resumida a esses dois aspectos. Não podem, portanto, serem essas as justificativas para refutarmos o argumento de que se encontra em operação um Direito das favelas. Ao contrário do que apontam os grandes meios de comunicação, no que diz respeito à representação da favela sob o estigma do território regido por práticas de violência e vingança, observamos que essas estão há muito inseridas no funcionamento e nas articulações da justiça formal, conforme defendido por Reis (2013).
A ontologia jurídica admite a violência como uma potência coletiva de autoconservação que foi empregada pelo próprio Direito ao ser instituído, reconhecendo-a como um estado da natureza humana (Zaccone, 2015). Aspectos que atualmente são tão valorizados em termos de conquistas civilizatórias foram atingidos de forma bárbara - com violência, mortes e padecimentos -, não sendo diferente com Estado e o Direito, em que a violência comparece como elemento institucional importante (Reis, 2013). Também se faz importante lembrar, de acordo com Zaccone (2015), que o Direito estabelece atos de coação, designadamente a privação coercitiva da vida, da liberdade, dos bens econômicos e outros, como consequência de seus pressupostos.
Analisando dessa forma as raízes do Direito, percebe-se que a justiça, ao se tornar uma força comum dos cidadãos, ainda assim continua associada à violência, pois se volta contra qualquer indivíduo que lhe resista como ordem coativa. E nesse sentido, Lisboa (2018) lembra que as leis que respaldam os atos jurídicos, ainda que pretensamente estejam a serviço do bem comum, representam interesses de grupos distintos da sociedade, aqueles cujo poder econômico e racial é usado para manter seus privilégios.
Na tentativa de se deslegitimar a regulação das relações sociais por grupos civis armados em favelas e criminalizar a população que recorre a esse tipo de ferramenta, apela-se frequentemente à figura monstruosa daqueles que estão inseridos em tais grupos, com o argumento de que o acionamento de tais regulações faz emergir dívidas cruéis e impagáveis. Mais uma vez, as relações que se estabelecem nas favelas são reduzidas ao estigma da barbárie e se negligencia a essência violenta que compõe também o Direito formal, priorizando enfatizar sua faceta cordial e racional em detrimento da faceta cruel e angustiante, como se os últimos fossem elementos exclusivos de indivíduos em territórios específicos. Porém, no sistema formal, "a violência é a verdade que esconde a 'sublimidade' das relações jurídicas sob a roupagem do progresso e da paz social" (Sorel citado por Zaccone, 2015, p. 55) e assim pouco se fala a respeito das dívidas presentes na justiça dita formal.
De acordo com Reis (2013), com a criação do Estado, forma-se o espírito de vingança entre os indivíduos, e, em paralelo, a ideia de dívida infinita, sendo os sistemas formais de justiça aqueles que mais reafirmam esse espírito de vingança na sociedade. Essa reafirmação se dá através de um processo pautado em opressões e constrangimentos, por um lado, e promessas de reparações e compensações àqueles que possuem o privilégio de se adequarem melhor ao funcionamento do sistema de justiça formal, por outro lado. Isso tudo se mantém, porque, apesar da insatisfação com o mal funcionamento já conhecido de tais sistemas, as pessoas "acabam encontrando justificativas morais e utilitárias para muitos dos horrores e atrocidades cometidos pelos aparelhos do Estado" (Reis, 2013, p. 161).
Foucault (2002), em "A verdade e as formas jurídicas", mostra que as práticas sociais produzem saberes e, consequentemente, subjetividades, existências. Sobre as práticas sociais cuja análise histórica permite observar a emergência de subjetividades outras, o autor destaca as práticas jurídicas como sendo uma das mais importantes. Dessa forma,
a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual, na história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas (Foucault, 2002, p. 11).
A justiça formal se consolidou pelo discurso do pressuposto de que há apenas um princípio geral que responde e dá conta dos conflitos de interesse humano, princípio este guiado por um conjunto de regras a serem respeitadas. Ou seja, o Direito instituiu um padrão de resoluções nas relações sociais que se defende mais intelectualizado e não violento, em que qualquer outra forma de deliberação que não passe pelo crivo rigoroso das leis passa a ser sem valor social. Esse processo se coloca como fruto de um trabalho de policiamento do homem consigo mesmo através da vigilância de suas práticas, na criação de uma eticidade de costumes para fins de uma conservação comunitária (Reis, 2013). Tal padronização passou a desprezar e criminalizar inúmeras outras maneiras que existem e sempre vão existir de reinvenções das regulações sociais na história.
Por fim, concordando com Silva e Leite (2007), é importante lembrar que:
a literatura pós-colonial questionou a compreensão do Estado com base no que conformaria o modo específico de constituição e desenvolvimento dos Estados-nação europeus (centralização do poder, monopolização da violência, afirmação do princípio da territorialidade da obrigação política, universalização da cidadania), que é tomado explicita ou implicitamente como modelo para outros países, outras culturas, outras temporalidades. (pp. 552-553)
Ainda segundo esses autores, na exploração das "margens do Estado" (p. 553) - territórios, populações, práticas que são produzidos pela dinâmica do próprio Estado moderno -, observa-se um funcionamento do Estado vinculado
aos critérios efetivos de cidadania e às diferentes modalidades de aplicação da lei em casos específicos, às relações estabelecidas no tempo e no espaço - portanto sempre datadas e situadas - entre as instituições estatais e seus agentes com os diferentes segmentos da população que habita o território nacional, bem como à percepção destes acerca do funcionamento institucional (p. 553).
Impera na sociedade brasileira um abandono da univocidade da cidadania, e esse modo de integração entre Estado e sociedade reproduz uma brutal desigualdade social e política (idem). Portanto, argumentos pautados no uso da violência e na lógica da vingança não podem ser suficientes para negar uma outra experiência de Estado com a qual se convive no Brasil.
Nas favelas em "estado de exceção", encontram-se as mais diversas formas de exercer poder e controle local. Um olhar um pouco mais disponível ao encontro permite observar a operação de diferentes governos ou dispositivos de governamentalidade nos distintos espaços e em diferentes momentos, cada um com suas leis e regras mais ou menos instituídas, bem como diferentes tecnologias de poder mais ou menos organizadas, o que está para muito além do padrão "bem" e "mal".
Considerações finais
A pesquisa aqui relatada chamou atenção para a complexidade das regulações de relações sociais em territórios de favelas por grupos armados, regulações que deixam indícios acerca da existência de um "direito das favelas", regulações se operam a partir de lógicas também presentes no "direito formal", como a violência e a vingança. Não se trata apenas de os mecanismos próprios da justiça formal, como os oficiais de justiça, por exemplo, adentrarem ou não o território das favelas. A pesquisa desenvolvida nos permitiu afirmar que a maneira como ocorrem as regulações das relações sociais nesses territórios aponta para uma juridificação híbrida, o que é desconsiderado em prol de práticas (discursivas e não discursivas) que insistem em criminalizar a favela enquanto "terra sem lei" ou com leis próprias, sintetizadas nos termos "poder paralelo" e "tribunal do tráfico".
Outra discussão central propiciada a partir da pesquisa abarcou a importância da juridificação híbrida contribuindo para a problematização da produção de territórios de exceção. Mesmo que, segundo Magalhães (2009), a não vigência do Estado Legal e as ambiguidades de funcionamento do sistema legal não estejam restritas às favelas, tal fato não é considerado no momento em que, usando esses argumentos, afirma-se tratar-se a favela de um território de exceção. Dessa forma, alertamos aqui para a funcionalidade da construção e manutenção dessa prática denominativa, que serve à legitimação e permanência de tratamento estatal diferenciado, em especial no campo da segurança, com fortes alianças com a lógica neoliberal que constrói uma cidade-negócio.
E finalmente, essas reflexões somente foram possíveis a partir da adoção de outra perspectiva de construção de conhecimento, o pesquisarCOM moradoras e moradores da Maré. O pesquisarCOM se fundamenta na permissão de afetar-se, surpreender-se, disponibilizar-se à experiência com o outro. Opondo-se ao "saber sobre", o "saber com" é fruto de um agenciamento (Alvarez & Passos, 2009), o que ressalta a dimensão coletiva dessa forma de pesquisar (Barros & Kastrup, 2009) que visa sempre o estabelecimento de um plano comum. "A dissolução do ponto de vista do observador [...] permite ao pesquisador abrir-se para os diversos pontos de vista que habitam uma mesma experiência de realidade, sem que ele se deixe dominar por aqueles que parecerem ser verdadeiros" (Passos & Eirado, 2009, p. 110). Afinal, o próprio ato de conhecer é criador de realidades, que são sempre múltiplas, segundo Moraes (2010).
Ressaltamos que, com esse mesmo propósito de construção de uma pesquisaCOM, reunimos as escolhas das principais referências que embasam este texto, entendendo que essa perspectiva de construção de conhecimento, em especial no que tange a discussão aqui proposta, é fundamental para a prática psicológica. Constitui nossa responsabilidade, enquanto universidade pública, espaço de formação de psicólogas e psicólogos a atuarem nesse país tão desigual que é o Brasil, estranharmos a utilização tão frequente da Psicologia na cientifização da criminalização de territórios e de pessoas pobres e negras. Essa exclusão que se opera a partir de nossas práticas em diferentes campos de atuação (jurídico, escolar, hospitalar etc.) precisa ser questionada e o lugar ocupado por um programa de extensão universitária pode ser bastante potente nesse sentido.
Precisamos apostar nestes dispositivos e espaços como importantes produtores de subjetivações outras, apostar nas diferenças que são produzidas nestes encontros. E assim irmos em direção do que defendia o filósofo Cornelius Castoriadis, quando afirmava que a democracia era uma espécie de gérmen grego que, embora nascido numa sociedade escravocrata e cindida de várias formas com seus muros invisíveis, aponta para o fato de que "o sentido e as potencialidades desta criação [a democracia] não estão esgotados" (Castoriadis, 1986, p. 271), destacando o aspecto de criação instituinte da nossa história, de mudança e transformação.
Referências
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Endereço para correspondência:
Roberta Brasilino Barbosa
robertabrasilino@gmail.com
Camila Clipes Garcia
camilaclipesgarcia@gmail.com
Ellen das Neves
pstagy@gmail.com
João Pedro
Simões
joaopedromagasimo@gmail.com
Laíza da
Silva Sardinha
laiza.sardinha@gmail.com
Submetido em: 04/07/2018
Aceito em: 08/07/2019
1
Para Guattari (2004, p. 109), analisador é "um dado significante que
se torna operatório no nível do conjunto da estrutura".
2 A Maré, com seus mais
de 130.000 moradores (IBGE, 2010) é, desde a década de 1990, um
bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Ele é composto por
16 favelas (Silva, 2015). Cabe aqui uma breve manifestação de
aquiescência com Itamar Silva em fala publicada por Silva e Barbosa (2005).
O fato de uma favela tornar-se formalmente um bairro, tal qual aconteceu com
a Maré e com a Rocinha, não transformou a visão do poder
público em relação àquele espaço. Não
basta a mudança de nome para mudar as relações que imperam
há décadas na cidade.
3 Disponível em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-08-07/em-cinco-comarcas-17-mil-mandados-tem-atestado-de-area-de-risco-em-um-ano.html
Acesso: 25.set.2017.
4 Barbosa (2017) trata criminalização
e incriminação como processos distintos. O primeiro refere-se
a normas não positivadas em leis, que ditam maneiras de ser e existir
em determinada sociedade. O rompimento dessas normas causam impactos para o
sujeito, ainda que não signifique estar infringindo uma lei. O processo
de incriminação é, justamente, o ato de infringir leis
oficiais, que pode levar à privação de liberdade do sujeito.
5 Disponível em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-07-09/bandidos-castigam-moradores-segundo-suas-proprias-regras-nas-comunidades.html.
Acesso: 09.jul.2017. Disponível em: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/segurancapublica/panfleto-assinado-por-faccoes-criminosas-proibe-jogar-lixo-na-rua-em-fortaleza/amp/
Acesso: 28.jul.2017
6 Não poderíamos
deixar de mencionar a recente escalada da militarização nos territórios
de favelas, ao longo do ano de 2018, no Rio de Janeiro. O estado fluminense
tornou-se uma espécie de "laboratório" para o resto do país
deste tipo de política de intervenção militar em conjunto
com as forças policiais, em operações de guerra deflagradas
contra certos grupos, os identificados como traficantes e milicianos. Não
é a primeira vez que o exército ocupa favelas no Rio, como no
caso das Olimpíadas de 2016, mas nunca antes havia sido aplicado o artigo
34 da Constituição Federal de 1988, na qual o governo federal
intervém na autonomia dos estados, neste caso, para "pôr termo
a grave comprometimento da ordem pública", justificando ainda, em plano
nacional, a criação de mais um ministério, o Ministério
Extraordinário de Segurança Pública, que tem por objetivo
coordenar o combate ao crime organizado junto aos estados.
7 Disponível em: http://renatocinco.com/teste/?p=7570.
Acesso: 14.dez.2017.
8 Disponível em: https://psolcarioca.com.br/2017/08/02/manifesto-do-setorial-de-favelas-do-psol-carioca/
Acesso: 15.dez.2017.
9 Disponível em: http://of.org.br/acervo/artigos/adeus-cidade-partida/
Acesso: 26.out.2017.
10 Escolhemos utilizar o termo
"drogas da favela" por compreender e querer ressaltar que existe uma distinção
no tratamento ofertado pelo Estado, no âmbito da segurança pública,
entre os diferentes psicoativos ilícitos e em especial para com aqueles
que são comercializados no varejo nas favelas - majoritariamente maconha
e crack, um derivado de baixo custo da cocaína. Entendemos que
tal distinção de tratamento é importante na produção
e demarcação de territórios de exceção e
utilizando esse termo pretendemos enfatizar a dimensão territorial que
está atrelada às políticas públicas proibicionistas.
11 Segundo o Fundo Monetário
Internacional, 500 bilhões de dólares são gerados pelo
"narcotráfico", mas a população carcerária que responde
por esse crime no Brasil é formada quase exclusivamente por pessoas negras,
extremamente pobres e com baixa escolaridade, detidas com drogas e sem armas,
na maioria das vezes. Para Glenny (2016), o comércio no atacado no Brasil
é exercido por pessoas brancas das classes média e alta, que têm
negócios legítimos operando nas áreas de transporte e agricultura
e cujos lucros que obtêm a partir da exportação da droga
em nada se comparam com aqueles gerados pelo comércio doméstico,
em especial o varejista.
12 Sendo aqui importante ressaltar
que a função de regulação das relações
sociais não é exercida apenas por integrantes dos altos cargos
na hierarquia do comércio varejista de "drogas da favela".
13 O uso das aspas se justifica
aqui por ser justamente o termo escolhido pela usuária do serviço
para se referir aos integrantes do grupo civil armado que regula as relações
sociais no território onde ela reside. Optamos por não fazer uso
deste mesmo termo ao longo do texto por entender que ele é carregado
de estigmas, além de reduzir a diversidade de grupos que operam estas
regulações, os quais não abarcam apenas os varejistas do
comércio de psicoativos ilícitos.
14 Embora moradores de outras
regiões da cidade identifiquem como "donos do morro" qualquer integrante
do comércio varejista de "drogas da favela" (fogueteiro, segurança,
aviãozinho), o que inclusive é usado para criminalizar e demonizar
essa prática e seus praticantes, para moradores de favelas, dono do morro
é o chefe máximo, que muitas vezes pode nem morar na localidade.