ARTIGOS
A ética como método no encontro entre psicanálise e socioeducação
Ethics as a method in the encounter between psychoanalysis and socioeducation
Ética como método en el encuentro entre psicoanálisis y socioeducación
Rose GurskiI; Stéphanie StrzykalskiII; Miriam Debieux RosaIII
IDocente. Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica USP . Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7392-1463
IIMestre. Programa de Pós-graduação em Psicanálise: clínica e cultura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-8958-0387
IIIDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9518-0424
RESUMO
Neste escrito, partimos de uma experiência de pesquisa-extensão com adolescentes internados no sistema socioeducativo. Nele, sublinhamos algumas das particularidades metodológicas de uma pesquisa em psicanálise no âmbito da socioeducação. Essa prática na instituição, a um só tempo, amplia as bordas da intervenção clínica tradicional e nos coloca frente a narrativas pautadas por um excesso de real, sobretudo tributário de vivências dos jovens que vivem em situação de violência e vulnerabilidade. Com este estudo, pretendemos dar seguimento às produções que temos desenvolvido sustentadas na ideia de a ética psicanalítica configurar-se como método.
Palavras-chave: Psicanálise; Socioeducação; Adolescência.
ABSTRACT
In this writing, we start from a research-extension experience with adolescents interned in the socio-educational system. In it, we underline some of the methodological particularities of a research in psychoanalysis within the scope of socio-education. This practice in the institution, at the same time, widens the borders of the traditional office and puts us in front of narratives guided by an excess of reality, mainly due to the experiences of young people who live in situations of violence and vulnerability. With this study, we intend to continue the productions that we have developed based on the idea that psychoanalytic ethics is configured as a method.
Keywords: Psychoanalysis; Socioeducation; Adolescence.
RESUMEN
En este escrito, partimos de una experiencia de investigación-extensión con adolescentes internados en el sistema socioeducativo. En él, subrayamos algunas de las particularidades metodológicas de una investigación en psicoanálisis en el ámbito de la socioeducación. Esta práctica en la institución, al mismo tiempo, amplía las fronteras del oficio tradicional y nos sitúa frente a narrativas guiadas por un exceso de realidad, principalmente por las vivencias de jóvenes que viven situaciones de violencia y vulnerabilidad. Con este estudio pretendemos dar continuidad a las producciones que hemos desarrollado a partir de la idea de que la ética psicoanalítica se configura como método.
Palabras clave: Psicoanálisis; Socioeducación; Adolescencia.
"Dona, ver dois homens juntos é como se fosse uma facada no coração, dá vontade de bater até virar macho de novo"1
Como pode aquilo que nos é estranho despertar tanto ódio a ponto de ser comparado a um modo de assassinato: levar uma facada no coração? O que a dimensão de insuportável face ao que não é compartilhado com o semelhante revela de nosso tempo social?
Segundo Pereira e Gurski (2014), nosso laço tem produzido discursos de intolerância em relação às diferenças de modo cada vez mais intenso e generalizado em função de uma certa falha na transmissão da alteridade. Soma-se a isso outras nuances atuais: as novas tecnologias, o consumismo desenfreado e o achatamento do tempo através dos imediatismos. Tais condições parecem nos situar frente ao que alguns autores vêm chamando de esvaziamento da dimensão da experiência e de sua transmissão (Kehl, 2009; Gurski, 2012; Gurski & Pereira, 2016).
Frequentemente, este retrato da atualidade é evocado quando se discute a sintomatologia juvenil. Isso se dá porque, durante a passagem adolescente, o sujeito tem como tarefa principal a construção de um novo lugar psíquico e social a partir daquilo que lhe foi ofertado pela cultura familiar e social. É claro que, apesar das condições do laço social participarem expressivamente no processo de constituição, não se pode desprezar que, por questões próprias a esse momento de passagem, os adolescentes apresentam dificuldades para encontrar um lugar de representação no espaço social. É assim que, muitas vezes, a violência e os atos infracionais dos jovens acabam funcionando como uma forma de expressão do mal-estar que os acomete (Gurski, 2018).
Vemos que uma parte da população, marginalizada e impotente diante de um laço social que insiste em barrar qualquer acesso à condição de uma lógica fálica e desejante, frequentemente, silencia (Rosa, 2016). Nesse diapasão, as manifestações violentas protagonizadas pelos jovens poderiam estar funcionando, muitas vezes, como um movimento que busca resistir e romper com o emudecimento em ato. Nesses casos, inverter-se-iam os lugares, isto é, "de passivos à violência, passam a ser ativos em uma produção fantasmática na qual a violência se torna a modalidade normatizada de laço social" (Catroli & Rosa, 2013, p. 298).
Em muitas situações, é justamente aí, quando se dá o encontro entre adolescência e transgressão, que alguns sujeitos inauguram suas trajetórias no sistema socioeducativo2. Tais atos, ao serem enquadrados como análogos à contravenção penal, segundo o código de leis brasileiro, são caracterizados pelo Estado como delitos, infrações ou atos infracionais. São eles que justificam a aplicação de uma medida socioeducativa como resposta ao adolescente que é dito em conflito com a lei. A partir da constatação da dimensão infracional do ato do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990), de acordo com a gravidade do delito, reconhece seis medidas passíveis de serem aplicadas: a advertência verbal, a obrigação de reparação de danos, a prestação de serviços à comunidade, a liberdade assistida, a inserção em regime de semiliberdade e, por fim, a internação em estabelecimento educacional.
A socioeducação, assim como o sistema prisional, costuma circunscrever um recorte populacional bastante evidente: são meninos negros oriundos de famílias pobres que moram em zonas periféricas com altos índices de vulnerabilidade e violência e, em geral, com baixa escolaridade. Nesse sentido, parece-nos que é realmente apenas em alguns casos que um ato juvenil se transforma em ato infracional e recebe uma das medidas socioeducativas acima citadas - especialmente quando tomamos o universo das medidas de restrição e privação de liberdade3, ou seja, aquelas medidas em que o adolescente fica restrito à circulação na Instituição Socioeducativa.
Para adensarmos tal retrato, tomemos alguns dados recolhidos de um relatório técnico emitido por uma Instituição Socioeducativa de nosso estado referente ao trabalho que realizaram em 2015 (FASE, 2015). Nesse período, consta que foram atendidos cerca de 3.913 adolescentes, na faixa de 12 a 20 anos de idade. Por um lado, registra-se que mais da metade dos internos (55,6%) tinha entre 16 e 17 anos, faixa etária considerada compatível com a frequência no Ensino Médio. Por outro lado, apenas 10% do total de adolescentes acautelados cursava tal nível de ensino, sendo que grande parte deles sequer havia completado o Ensino Fundamental. Além disso, no período de outubro a dezembro de 2015, 81,9% dos adolescentes que ingressaram em uma das Unidades de internação provisória (IP) da instituição estavam afastados da escola antes de ingressarem no sistema socioeducativo.
No que concerne ao gênero, podemos afirmar que os meninos representam a maioria esmagadora, correspondendo a 97,20% das internações. Em relação às questões étnico-raciais, temos que 60,29% dos jovens foram identificados como brancos. Tal dado, entretanto, não pode ser considerado isoladamente, uma vez que, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, 5,6% dos habitantes do Rio Grande do Sul eram pretos e 10,6% eram pardos, enquanto os brancos representavam 83,2%. Ao tensionarmos essas duas perspectivas estatísticas, podemos inferir que os índices de internação de adolescentes pretos e pardos ainda são significativamente superiores quando comparados aos índices da população em geral do Rio Grande do Sul. Por fim, sublinhamos ainda que o levantamento apontou para o fato de que, se tomarmos o período de 2010 a 2015, observamos um crescimento do número de adolescentes privados de liberdade em todas as faixas de idade.
Quando falamos de socioeducação, portanto, estamos nos lançando à tarefa de refletir sobre algumas das facetas que surgem como efeito no e do encontro entre o que é ser um adolescente em situação de vulnerabilidade social no contexto brasileiro. Precisamos nos perguntar quais são os discursos hegemônicos do laço social que, atravessados por estigmas ligados às questões raciais, de gênero e de classe, tem selecionado somente alguns, daqueles que transgridem, para ingressar no sistema socioeducativo.
É justamente nesse contexto que temos problematizado os modos de interação com o sistema socioeducativo4: de que forma propor o encontro da psicanálise com a socioeducação de maneira em que, a um só tempo, ambos os campos saiam afetados pela experiência? Como promover tais encontros sem cairmos na formulação - em nada psicanalítica! - de Um5 discurso pronto sobre a socioeducação e sobre os adolescentes que por ela passam? Como fazer para que, neste encontro, ao invés do protagonismo das nominações técnicas, possamos privilegiar o sujeito e o saber da experiência construído por ele?
Temos observado que não existem muitos espaços que se ocupem de problematizar o que pode estar cifrado acerca da posição do sujeito e do laço social nos episódios de transgressão, sejam esses atos praticados pelos jovens ou pelos trabalhadores da socioeducação. Diante de tal panorama e acreditando na potência de um encontro através do qual a psicanálise e a socioeducação saiam mutuamente afetadas, demos início, em meados de 2014, a uma aproximação com uma instituição socioeducativa através de um trabalho de pesquisa-extensão.
Na época, iniciamos pela oferta de um espaço de circulação da palavra com adolescentes acautelados em internação com possibilidade de atividade externa (ICPAE)6. Em caráter semanal, e com duração de aproximadamente quatro meses, os grupos foram acompanhados por duas bolsistas-pesquisadoras ligadas ao NUPPEC e composto por uma média de dez adolescentes. Essa intervenção se delineou na forma de um grupo de fala livre, sem temáticas pré-estabelecidas e fortemente inspirada na livre-associação, através do qual foi possível escutar questões caras aos jovens para além dos delitos praticados.
Ao final de 2015, passamos a um outro momento da pesquisa. Nesta nova etapa, foi criado o dispositivo das Rodas de R.A.P. - aproveitamos o efeito equívoco que se forja com as iniciais do gênero musical rap (rhythm'n'poetry) para formar as Rodas de Ritmos, Adolescência e Poesia - com adolescentes em IP. Inicialmente, nomeávamos esse dispositivo de "oficinas" e não de "rodas". A decisão de modificar o nome da intervenção sustentou-se em uma questão institucional, já que se costumava chamar de oficinas todas as atividades realizadas pelos agentes socioeducativos com os adolescentes. Isso começou a gerar mal-estar, pois era como se o nosso trabalho estivesse competindo com aqueles que já eram feitos antes de nossa chegada e que tem, em sua maioria, um caráter pedagógico. Nesse sentido, escolhemos o termo "rodas", pois ele parece remeter mais à noção de um espaço de escuta pelo movimento da palavra que circula nas conversas em que o espaço tem o formato de roda, um espaço outro que não se confunde, portanto, com as Oficinas Socioeducativas de caráter pedagógico.
Através das rodas, seguimos com o mesmo dispositivo de escuta baseado na livre circulação da palavra, mas, desta vez, em conjugação com narrativas musicais. Importa dizer que a introdução dessa materialidade de forma mais sistemática se configurou como um efeito das primeiras rodas, pois os meninos demandavam um espaço para escutarmos as músicas "deles", especialmente o rap e o funk.
Às bolsistas-pesquisadoras que os acompanhavam coube articular e problematizar aquilo que ia se produzindo no discurso dos jovens a partir do encontro com as narrativas musicais e os mais variados aspectos de suas vidas. Tal materialidade funcionou tanto como um potente catalisador de questões, como também como um meio de oferecer aos adolescentes a possibilidade de operar em uma outra temporalidade, baseada no ritmo distendido da arte e da poesia, que faz um contraponto à experiência que eles vivenciam na rua (como eles se referem à vida fora da Instituição Socioeducativa) - isto é, de que "não dá tempo de parar e pensar, é matar ou morrer".
Durante o ano de 2017, seguimos com as Rodas de R.A.P. através de dois grupos, um deles com adolescentes da IP e outro no âmbito da internação sem possibilidade de atividade externa (ISPAE)7. Por meio da palavra compartilhada entre os jovens e as pesquisadoras e sustentando nossas intervenções nos pressupostos da ética do bem-dizer, conceito que discutiremos em seguida, procurávamos abrir pequenas brechas para a possibilidade de construção de outros sentidos para questões já cristalizadas, estranhando algumas certezas que se repetiam e eram, até então, rígidas em suas falas (Gurski & Strzykalski, 2018b).
Ainda que a intervenção tivesse como lócus a própria instituição socioeducativa, sublinhamos que não houve qualquer vinculação direta entre essa e os processos jurídicos dos adolescentes. No que se refere ao tratamento das questões transferenciais, garantimos o sigilo, esclarecendo aos meninos que nada do que fosse falado no espaço das Rodas iria constar em relatórios ou documentos oficiais que pudessem vir a ter algum impacto em suas medidas socioeducativas. Além disso, não tivemos como prática o controle de presenças/faltas, uma vez que nossa metodologia pressupõe um compromisso do sujeito com o espaço de fala e não um protocolo agendado.
De todo modo, importa sublinhar que, nestes trabalhos institucionais, não deixamos de ser afetados pelas condições do local. Inicialmente, o critério de escolha dos jovens na IP baseou-se no tempo de acautelamento, privilegiando-se, assim, aqueles que haviam ingressado mais recentemente na medida e/ou que se tinha, segundo a equipe técnica, uma perspectiva de permanência maior em função dos desdobramentos das audiências. Todavia, tal condição acabou sofrendo algumas modificações, pois, na medida em que as questões transferenciais iam se armando, os adolescentes começaram, espontaneamente, a fazer indicações de nomes de outros meninos. Eles diziam que eram colegas que iam se beneficiar das conversas nas rodas.
Também importa lembrar que mesmo que enfatizássemos o caráter de convite aos jovens, não podemos desconsiderar os atravessamentos percebidos em relação à lógica institucional que parecia deixar pouco espaço para as escolhas deles. Mesmo cientes do nosso posicionamento, os agentes costumavam convocar os adolescentes a comparecerem ao atendimento - nomenclatura utilizada pelos agentes socioeducadores e adolescentes para se referirem, sem distinção, aos atendimentos realizados por algum profissional da equipe técnica (assistente social, psicóloga, advogado, educador físico etc.).
Pensamos que tal ato, operado pelos agentes, repetia algo que, seja de forma mais sutil, seja de forma mais escancarada, é muito presente no cotidiano da instituição: a massificação dos sujeitos em detrimento de um olhar e de uma escuta capaz de captar minimamente as singularidades de cada um. Pensamos que, ao não se reconhecer a dimensão do sujeito quando há possibilidade de fazê-lo no cotidiano institucional, corre-se o risco de reduzir os adolescentes a puros corpos passíveis de serem organizados, manejados, distribuídos e ordenados apenas de acordo com aquilo que a instituição socioeducativa julga ser mais proveitoso/interessante a eles.
Os efeitos de um discurso como esse, ainda que pautado nos propósitos socioeducativos, acaba tendo, muitas vezes, um efeito de despersonalização e dessubjetivação da vida desses meninos. Gurski (2017) compara esses efeitos àquilo que é narrado por Primo Levi (1988) quando esse diz que, nos campos de concentração nazistas, os soldados tiravam de seus prisioneiros absolutamente tudo: não só as roupas, sapatos e cabelos, mas também o próprio nome e a identidade que os constituía.
No que se refere ao Brasil, país em que a escravidão se perpetuou por mais de 300 anos (1550-1888), podemos pensar no povo negro como sendo aquele que ocupou - e ainda ocupa - um lugar semelhante a este narrado por Primo Levi. Atualmente, discute-se sobre a legitimidade do uso da expressão genocídio para referir-se às mortes de jovens negros no Brasil. Analisando alguns dados do Mapa da Violência, o advogado Leonardo Queiroz (2015) observa que, no período de 2002 a 2012,
há uma significativa queda no número de homicídios de jovens brancos, ao passo que aumenta o morticínio de jovens negros. Enquanto em 2002 morriam 10.072 jovens brancos para cada 100 mil habitantes, esse número decai para 6.823 em 2012. Não obstante, o número de homicídios de jovens negros saltou de 17.499 para 23.160 no mesmo período. Houve um decréscimo de 32,3% na morte de jovens brancos ao passo que os jovens negros vitimados aumentaram 32,4%, é dizer que para cada branco morto, morrem 2,7 negros.
A fim de argumentar a legitimidade do uso da expressão genocídio para referir-se às mortes de jovens negros no Brasil, Queiroz (2015) retoma dois marcos históricos situados após a queda do Nazismo, regime totalitário que tinha entre os seus objetivos destruir uma raça dita inferior, personificada, sobretudo, na figura dos judeus. Além da constituição do Tribunal de Exceção de Nuremberg em 1948 para julgar o homicídio em massa protagonizado pelos alemães, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Mesmo entrando em vigor na ordem internacional em 1951, a letra da lei não foi capaz de barrar vários casos de morticínio de grupos específicos em terras estrangeiras, como, por exemplo, em Ruanda, Camboja, Chechênia e Timor-Leste.
Se articularmos os dados do Mapa da Violência com a aparente falta de força das leis internacionais para impedir que aconteçam morticínios, podemos afirmar que, atualmente, o Brasil assiste ao genocídio de seus jovens, especialmente os de pele negra e em situação de vulnerabilidade. Se não estão sendo exterminados, inclusive entre eles próprios, estão sendo encarcerados em massa pelo Estado, seja no sistema prisional, seja no sistema socioeducativo.
Frente a tais considerações, retomemos a frase atribuída ao filósofo Michel de Montaigne: "a palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a escuta". No contexto dos campos de concentração, da escravatura e do morticínio contemporâneo dos jovens negros e periféricos, há uma experiência que se repete: a existência de sujeitos que são vistos apenas como corpos de carne e osso, cascas desnudas de desejo e humanidade. Para esses, é como se as trocas da linguagem não fossem autorizadas na medida em que não são reconhecidos como semelhantes, mas como criaturas sem direito à palavra e à existência simbólica.
Em certo ponto da pesquisa-extensão, passamos a nos perguntar: o que, afinal, estava se produzindo nesse movimento transferencial dos meninos com as Rodas? Percebemos, no "só-depois" da experiência com a atividade, que esse modo de construção do dispositivo com os meninos foi muito mais potente do que estabelecer critérios anteriores de ingresso conforme demanda inicial da Instituição. Ao mesmo tempo em que indicavam nomes dizendo apenas que algum colega achara "legal" a proposta de ouvir música, também surgiram outras razões, como o caso de um menino que foi indicado por alguns acharem que ele estava "meio mal da cabeça, sem nem conseguir comer direito". Isso nos parece relevante na medida em que os adolescentes passaram a identificar, cada vez mais, as Rodas como um espaço de acolhimento tanto para aqueles que lhes pareciam bem, quanto para aqueles que lhes pareciam mal, isto é, que seria interessante, em ambos os casos, poder ter um espaço de fala e de escuta.
Recordemos que a psicanálise, conforme os ensinamentos freudianos é, para além de uma modalidade de atendimento que se desdobra em um setting específico, um método de investigação que convoca e propicia condições para a emergência das manifestações do sujeito do inconsciente (Gurski & Strzykalski, 2018a). Conforme Freud (1926/2010) coloca em "A Questão da Análise Leiga", o emprego da terapia das neuroses seria apenas uma das aplicações da psicanálise, ainda que, naquela época, essa fosse sua atividade preponderante.
Em "Caminhos da Terapia Psicanalítica", Freud (1919/2010) discorre sobre o desejo de levar a escuta do inconsciente também às camadas mais populares da sociedade, visto que, em seu início, a análise costumava ser experimentada apenas pelos que pertenciam à elite em razão do investimento financeiro. Neste escrito, ele discorre, por exemplo, sobre a possibilidade futura de consultórios com psicanalistas que ofereceriam tratamentos gratuitos através do apoio do Estado, algo que podemos aproximar, talvez, da escuta no âmbito das políticas públicas de saúde mental.
Na medida em que, assim, abrir-se-iam novas possibilidades, qual sejam, estender a escuta aos sujeitos em situação de vulnerabilidade, não surgiriam também novos impasses? Em termos metodológicos, ficaria a psicanálise incólume às mudanças operadas no setting? Apesar de não trabalhar especificamente os possíveis efeitos do dispositivo dos consultórios com tratamentos gratuitos, Freud é contundente ao afirmar que, nesses contextos que ampliam a clínica tradicionalmente constituída, "haverá para nós a tarefa de adaptar nossa técnica às novas condições" (Freud, 1919/2010, p. 292). É nessa via que temos buscado trilhar o caminho deste encontro entre Psicanálise e Socioeducação.
As Rodas de R.A.P. e a ética da psicanálise: questões sobre o método
Importa dizer que as Rodas de R.A.P. foram construídas desde o enlace entre a metodologia psicanalítica e os efeitos ético-metodológicos recolhidos do estudo sobre o tema da experiência em Walter Benjamin (1933/1994). Benjamin, filósofo, ensaísta e pensador alemão, nos acompanha há bastante tempo na pesquisa (Gurski, 2008; 2012; 2014; Gurski & Strzykalski, 2018a; 2018c) e tem se mostrado muito potente para pensarmos em modos de intervenção possíveis no campo das políticas de saúde mental e de educação.
Temos apostado na ampliação das condições da escuta fora da clínica padrão, buscando reinventar a teoria através de novas práticas a fim de promover diálogos e tensionamentos com as novas exigências da experiência analítica contemporânea em cenários que nos demandam um alargamento das bordas, como parece ser o caso das unidades de execução de medidas socioeducativas (Gurski & Strzykalski, 2018b).
No caso das Rodas de R.A.P., podemos citar alguns dos desafios e exigências que se colocaram ao nosso trabalho: cancelamento das Rodas em cima da hora por questões institucionais, gerando, por vezes, a impossibilidade de realizar a atividade naquela semana sem que se pudesse falar com os adolescentes acerca do acontecimento; rotatividade dos jovens em função da peculiaridade da IP; agentes socioeducadores que entravam na sala e interrompiam o fluxo da atividade; adolescentes com os quais não conseguíamos fazer um momento de fechamento em razão do recebimento da medida ou do desligamento antes do dia das Rodas; além destas, podemos dizer que também trabalhávamos com nossa dificuldade em suportar a escuta de histórias nas quais os adolescentes vivenciavam situações de violência extrema, como protagonistas ou como vítimas, bem como outras ações que pareciam fazer resistência à nossa presença na instituição.
Sobre esse último ponto, lembremos que, certa vez, ao final de uma das Rodas, um menino ia em direção à porta de ferro da pequena sala em que estávamos para voltar ao seu dormitório, quando, de súbito, virou para um dos pesquisadores em tom chistoso e disse: "é, Dona... Deus cria e 'nóis' mata". Temos de nos questionar afinal o que faz com que um adolescente faça uma fala tão dogmática? Seria tal forma um modo de responder à demanda do laço social que não o reconhece senão por seus atos violentos? Foram vários os recortes discursivos inquietantes que revelavam um certo descompasso entre o real excessivo de suas vidas e os recursos simbólicos que possuem. Esses são fragmentos que nos remetem à dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016), pois se caracterizam como discursos atravessados fortemente pela impossibilidade de acesso simbólico às insígnias fálicas, aos modos de gozo de nosso tempo, como efeito da exclusão social e econômica, bem como dos discursos criminalizadores e racistas, promovidos pela sociedade e pelo Estado.
De modo geral, temos compreendido que a melhor estratégia para lidar com esses impasses seria apostar na construção de parcerias - não com os adolescentes e tampouco com os profissionais que os acompanham diariamente, mas, sim, com a escuta do sujeito que emerge nessas situações. Em vez de nos paralisarmos por acontecimentos ou narrativas, tomando-os pela via da raiva, pela impotência ou ainda pelo horror, temos buscado nos emparceirar com a escuta do sujeito do ponto de vista do sofrimento psíquico. Nesse sentido, importa a circulação da palavra no laço com o adolescente, e também com os profissionais, formando uma rede transferencial implicada com as questões e discursos dos sujeitos. Precisamos pontuar a responsabilização do adolescente por sua condição de sujeito, assim como pontuar, para a instituição, os pontos cegos que dificultam esse processo, pois é dessa forma que se consegue construir propostas de transformação naquilo que se repete como fragilidade nas políticas de assistência.
Ao adentrarmos o tema da escuta do sujeito e evocar os tensionamentos que se dão no encontro entre Psicanálise e Socioeducação, acabamos tratando também de uma questão de método. Partindo dessa perspectiva, fica claro que não se trata de avaliar se estávamos, ou não, situados desde a ética da psicanálise a cada intervenção ou cena que compartilhamos aqui. Trata-se muito mais de nomearmos os impasses e potências de um método que se desdobra em uma ética possível de sustentar a posição do pesquisador-psicanalista em outros âmbitos que não somente o consultório.
Conforme discutimos em outra ocasião (Gurski & Strzykalski, 2018b), para fazer um contraponto à ética psicanalítica, Lacan (1959-1960/1992) retoma a noção aristotélica da existência de um Bem Supremo, conceito que busca dar conta de designar aquilo que é almejado por si próprio e não em vista de outros bens, uma finalidade última para a qual convergiria toda a ação humana. Este postulado, universal e incondicional, está intimamente ligado à busca pela felicidade, dimensão alcançável por ações concretas e práticas. A partir da excelência e aperfeiçoamento do exercício de persuasão da racionalidade, sendo essa entendida como a dimensão capaz de domar os excessos ligados aos impulsos, paixões e desejos irracionais, o sujeito ascenderia ao encontro com sua verdade, o seu Bem (Martins & Darriba, 2011).
Segundo Lacan (1959-1960/1992, p. 23), esta problemática é radicalmente diferente em Freud, uma vez que, para esse, a felicidade plena e universal é da ordem do impossível, dimensão para a qual "não há absolutamente nada preparado, nem no macrossomo nem no microssomo", sendo, portanto, uma construção a ser feita singularmente. É neste ponto em que o universo mórbido da falta se apresenta radicalmente, uma vez que a psicanálise não dispõe de uma solução harmônica que dê conta de todos os impasses e conflitos. Muito antes pelo contrário, ao sublinhar a inscrição do sujeito no campo da linguagem, ela toma o mal-estar advindo do desamparo em relação à falta-a-ser do sujeito como sua própria dimensão fundante.
Freud subverte a racionalidade de Aristóteles ao postular um sujeito dividido em uma realidade inconsciente que o transcende, um-mais-além que "governa, no sentido mais amplo, o conjunto de nossa relação com o mundo" (Lacan, 1959-1960/1992, p. 31). Como foi muito bem apontado por Martins e Darriba (2011), é justamente diante deste mais-além conflituoso que não cessa de atormentar o sujeito em seu Bem que a reflexão de Aristóteles parece pouco se questionar:
Trata-se de uma conformação do sujeito a algo que não é sequer contestado. Se essa é uma ética universal, um hábito a que tendem a maior parte dos seres vivos, como é que a maioria, conforme o próprio Aristóteles a situa, se dirige na direção inversa, que é a do desejo? (p. 215).
Na esteira dessas discussões sobre o Bem, Lacan (1973/2003) formula algo inovador e próprio à Psicanálise ao dizer que, se há um Bem que rege a ética - e indissociavelmente a prática - da Psicanálise, este é o Bem-dizer, um claro contraponto ao Bem-viver de Aristóteles e sua concepção da existência de um Bem Supremo. Ao brincar com as palavras, Lacan sustenta que, no fazer psicanalítico, aquele que escuta deve se preocupar apenas em oferecer condições para que o sujeito do inconsciente possa advir nas brechas do discurso, lançando um convite àquele que fala no sentido de poder surpreender-se, estranhar-se e construir novos sentidos. Nessa direção, o Bem-dizer reforça a ideia de que, quando se põe em jogo a fala e sua função simbólica, as palavras são capazes de dar borda ao impossível estrutural de falta, funcionando como um certo delimitador, organizador do gozo.
Tomando as reflexões de Lacan, pensamos que cabe ao pesquisador em psicanálise convidar o sujeito a falar livremente sem nenhum apontamento de um lugar onde chegar. Nesse sentido, ressaltamos que, mesmo no trabalho das Rodas, é a condição da livre associação do lado de quem fala, e da atenção flutuante do lado de quem escuta, que pode criar a experiência de surpresa com o que é dito (Gurski, 2019a; 2019b).
Acreditamos que é possível relançar a dimensão do singular, mesmo quando se trata de um espaço de escuta em grupo, justamente pela posição do pesquisador-psicanalista que, com sua ética, desdobra um método, isso tanto em relação ao campo propriamente dito, quanto aos processos que orientam a análise da experiência. Entendemos com Sato, Martins, Guedes e Rosa (2017) que "a intervenção em grupo pode ser um dispositivo clínico-político de resistência à lógica de individualização e à cultura de homogeneização, nos contextos marcados por conflitos políticos e culturais". As autoras destacam ainda "a possibilidade de enodamento do grupo para além da identificação, por meio da reunião em torno de um objetivo comum que ressignifica a condição de cada um como uma condição de todos e não apenas da população considerada marginalizada, permitindo uma inscrição e um tratamento simbólico para o horror" (p. 496). Como elas atestam, nosso trabalho exemplifica a invenção e a criatividade possíveis com dispositivos grupais.
Mas, a questão insiste: como fazer a palavra circular do modo mais próximo possível da associação livre e da ética psicanalítica em contextos que subvertem o setting, tal como é o caso da socioeducação (Gurski & Strzykalski, 2018b)? Como produzir condições de fala solta em contextos tão adversos às condições da transferência (Gurski, 2017)? Referimo-nos aqui às falas dos adolescentes em que se apaga a dimensão do sujeito e se privilegia a tentativa de corresponder unicamente àquilo que imaginariamente o Outro espera deles - em alguns momentos, os discursos de arrependimento sobre os atos infracionais e a vontade de sair do crime e retornar à escola nos pareceram exemplos disso.
Ao longo do trabalho com as Rodas, fomos percebendo que a música opera distintas funções, dentre elas, a de um elemento que facilita aos adolescentes a possibilidade de uma fala mais solta acerca de suas questões e sofrimentos, deixando-os também mais propensos ao aparecimento das equivocidades da linguagem. Em várias ocasiões, as bolsistas-pesquisadoras chegavam nas Rodas e já eram interpeladas por alguns meninos com o pedido de que colocassem para tocar logo as músicas. O interessante é que esses que pediam ansiosamente pelas músicas pouco ou nada paravam para escutá-las, mas engatavam quase que imediatamente em falas sobre temáticas diversas que iam lhes ocorrendo.
Nesses e em outros contextos, parece que os adolescentes puderam construir narrativas permeadas por algo muito próximo à associação livre. Frente a esses ditos, qual é a posição do pesquisador? De que modo ele opera com a transferência que lhe é endereçada? Sobre isso, é preciso que lembremos que cabe ao analista suportar a transferência, quer dizer, permitir que o analisando o coloque em uma posição de suposto saber. Operando desde este lugar, o analista precisa ofertar condições para que o sujeito, acreditando falar para quem supostamente sabe sobre o seu sofrimento, possa narrar-se e escutar-se, apropriando-se de seu discurso.
Sublinhamos que se trata de uma posição de saber sempre suposta, pois ao analista cabe responder não com seu ser ou com aquilo que ele é, mas, justamente, com sua falta-a-ser (Lacan, 1958/1998). É por ser atravessado pela experiência da falta que o pesquisador-psicanalista se apresenta com o desejo intransitivo: desejo de que o outro deseje. Ao falar, na medida em que vai articulando os significantes da cadeia inconsciente, o sujeito pode acabar deparando-se com a sua própria falta-a-ser, aquilo que lhe aparece enquanto alteridade inconsciente. Frente a essa hiância, o analista será convocado a responder, desde o lugar de Outro, oferecendo um complemento que poderia tamponar essa falta. Ao se apresentar castrado, dá espaço para que emerja o sujeito do desejo, entendido enquanto "metonímia da falta-a-ser" (Lacan, 1958/1998, p. 629), isto é, a capacidade do sujeito produzir diversos e múltiplos sentidos singulares acerca de si e do mundo.
De outro modo, caso aquele que escuta responda não como suposto, mas como detentor do saber, não será possível ao analisando formular algo seu, produzindo, assim, fechamento de sentidos em vez de polissemia. Sustentar uma posição ética que vai na contramão desse uso perverso da transferência é algo que nos exige um trabalho constante de estudo, análise e supervisão.
Tal estratégia configura-se como uma tentativa de nos distanciar dos discursos prontos que, frequentemente, apenas criminalizam os meninos, apagando qualquer outra dimensão que possa vir a constituí-los subjetivamente. Sobre a escuta que é ensurdecida pelo imaginário que nos habita e produz a confusão de línguas (Ferenczi, 1933/1992), evocamos uma cena das Rodas em que, ao final de um encontro, um dos meninos havia pedido às bolsistas-pesquisadoras que trouxessem bala na semana seguinte. Elas acharam que o adolescente se referia à munição ou à droga, quando, na verdade, o que ele queria mesmo era uma guloseima para adoçar a vida. Aí reside a questão da potência polissêmica, um mesmo significante pode remeter a diferentes e múltiplos sentidos, o que nos coloca como imperativo ético interrogar sem ter como referente da escuta o lugar comum de moralismos ou regramentos.
Voltando à epígrafe - "ver dois homens juntos é como se fosse uma facada no coração, dá vontade de bater até virar macho de novo" - e à nossa pergunta inicial - como pode aquilo que nos é estranho despertar tanto ódio? -, entendemos que o encontro da psicanálise com a socioeducação ressoa aos adolescentes como uma possibilidade de operar em outra temporalidade, baseada em um ritmo distendido que faz um contraponto à experiência que eles vivenciam na rua - isto é, de que "não dá tempo de parar e pensar, é matar ou morrer". Isso, desde que a fala da música não seja tomada em sua literalidade e com a finalidade de indicar o adolescente violento, mas, sim, como uma fala endereçada transferencialmente a quem pode escutar o processo de sujeito ali implicado. Isto é, um processo em que considerar o ódio e falar dele, cantar o ódio, pode vir a permitir uma separação no tempo e no desejo (Rosa, Alencar & Martins, 2018).
Assim, se nos colocamos em sintonia com a noção de que a posição ética que sustenta a prática do pesquisador em psicanálise refere-se ao bem-dizer, é preciso ainda sublinhar que não se pode esperar que os adolescentes dos contextos socioeducativos sejam restaurados ou salvos. Primeiro, porque estaríamos nos colocando na posição de mestres que negam a realidade do país, das políticas públicas e das diversas circunstâncias sociais, familiares e educacionais às quais os adolescentes estiveram submetidos. E, depois, porque acabaríamos com qualquer possibilidade de efetivamente escutá-los, sem podermos conhecer as significações que permeiam e atravessam suas vidas.
Afinal, o que roda nas Rodas?
É importante sublinhar que, com as Rodas de R.A.P., não temos a pretensão de que os adolescentes possam operar uma mudança subjetiva radical ou tampouco extraordinária. Nesses espaços, nosso intuito é tão somente o de oferecer condições para que surjam efeitos de sujeito em suas falas. Temos nomeado assim os momentos em que se suspendem as certezas dos discursos unívocos na mesma medida em que se abrem algumas brechas não só para o surgimento daquilo que aparece como alteridade em seus ditos, mas, também para a possibilidade de escutar tais manifestações como algo que lhes diz respeito.
Ao encontrar-se com o inusitado da linguagem, talvez seja possível aos adolescentes produzirem outras voltas em suas reflexões, emprestando sentidos múltiplos ao que lhes acomete no lugar de simplesmente tomarem tais momentos como construções aleatórias que não causam inquietação ou simples equívocos discursivos sem valor. Em suma, miramos esses momentos potentes, ainda que pontuais e efêmeros, nos quais se pode constituir outro modo de relação com os tropeços do discurso e daquilo que insiste em se repetir enquanto cristalizações da fala.
Nessa direção, não nos cabe tentarmos compreender as vivências dos adolescentes (Gurski & Strzykalski, 2018b) que, sem dúvidas, condensam, em poucos anos de vida, uma quantidade exorbitante de histórias que nos são, por vezes, extremamente difíceis de conseguir escutar. Desde a Psicanálise, apostamos na posição da falta-a-ser de quem escuta, até porque, muitas vezes, a empatia imaginária, ao produzir identificações com os jovens e suas histórias, nos aproxima do risco de apagar a dose de distância necessária para que seja possível fazer uma escuta daquilo que surge nas Rodas como alteridade. Lembremos que, "muitas vezes, mais vale não compreender para pensar, e é possível percorrer léguas compreendendo sem que disso resulte o menor pensamento" (Lacan, 1958/1998, p. 621).
Nossa trajetória de pesquisa e extensão na socioeducação com os adolescentes, contada aqui de maneira bastante resumida, revela, entre outras questões, que procuramos não nos antecipar à experiência com o campo (Gurski, 2017) como premissa ética de trabalho. Isso fica bastante presente no caminho que trilhamos das oficinas de circulação da palavra às Rodas de R.A.P. Quando trabalhamos o contrato com o segundo grupo de adolescentes, a quem ofertamos as Rodas, a questão da escuta das músicas não foi colocada como uma imposição ou como um modelo anterior que deveria ser seguido, uma técnica cunhada a priori, mas, sim, como um convite que oferecia um modo possível de construirmos conjuntamente aquele espaço.
Com o tempo, percebemos que transgredir o dito enquadre tradicional - analista e analisando, divã e poltrona - através da construção do dispositivo das Rodas de R.A.P. no âmbito da socioeducação não nos afastava, necessariamente, dos fundamentos que sustentam a psicanálise. A constituição das Rodas de R.A.P., antes mesmo de ser um dispositivo levado ao campo, foi um efeito que decantou do que estamos chamando de experiência de encontro entre Psicanálise e Socioeducação (Gurski, 2019a; 2019b).
Do consultório particular à socioeducação, novos impasses e especificidades se apresentam. Ora, sabemos que vivências de violação de direitos em decorrência do racismo e da exclusão social e econômica não são uma exclusividade dos adolescentes do sistema socioeducativo, podendo, sim, aparecer como questão na fala de um paciente de consultório. Contudo, é inegável que os jovens marginalizados se deparam com tais situações de uma maneira tão mais frequente e cotidiana quanto violenta. É nesse sentido que, ao levarmos a psicanálise para o campo socioeducativo, não podemos fazê-lo sem reconhecer a dimensão sociopolítica do sofrimento (Rosa, 2016) que atravessa as narrativas de vida desses jovens.
Em suma, acreditamos que os referidos impasses não devem fazer com que nos resignemos a uma posição de impotência (Gurski, 2014; Gurski & Strzykalski, 2018b) frente aos contextos de vulnerabilidade e violência. Muito mais interessante do que isso é que eles funcionem como provocações que nos convoquem ao trabalho de pensar o novo que surge da discussão acerca dos limites e (im) possibilidades de operar uma escuta psicanalítica frente a outras condições diferentes do setting padrão. Se tomarmos as Rodas-, e mesmo antes delas através de outras intervenções com adolescentes -, não deixávamos de fazer psicanálise, pois a ética da escuta nunca nos abandonou. A diferença desse momento de nossas pesquisas em relação aos anteriores talvez seja que, ao narrarmos a experiência com os meninos na socioeducação, nos foi possível nomear e dar mais densidade àquilo que já vínhamos transmitindo em nossas intervenções: fazemos da ética a nossa própria técnica, aquilo que sustenta a posição do pesquisador em psicanálise no campo. Ao tomarmos a ética como método, em um espaço como o da socioeducação, valorizamos a tradição através do rigor dos fundamentos e, simultaneamente, como disse Lacan (citado em Gurski, 2018) em "Função e Campo da Palavra" (1953), aceitamos o risco de evocar a autenticidade da experiência na pesquisa sem deixarmos que a prudência dócil delimite os riscos de apostar na construção de novas práticas da Psicanálise em nosso tempo.
Referências
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Endereço para correspondência:
Rose Gurski
rosegurski@ufrgs.br
Stéphanie Strzykalski
stephanie.strzykalski@hotmail.com
Miriam Debieux Rosa
debieux@terra.com.br
Submetido em: 29/12/2018
Aceito em: 26/10/2019
1 Fala de um adolescente escutado nas Rodas de R.A.P. realizadas na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). O leitor encontrará um detalhamento sobre os aspectos metodológicos do dispositivo de escuta Rodas de R.A.P. ao longo do artigo.
2 O sistema socioeducativo configura-se enquanto uma política pública resultante da conjunção entre Estado e sociedade civil. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), seu público-alvo são os adolescentes autores de atos infracionais que, através do poder judicial, recebem uma medida socioeducativa.
3 São elas: a semiliberdade, a internação com possibilidade de atividade externa (ICPAE) e a internação sem possibilidade de atividade externa (ISPAE). A internação provisória (IP), ainda que se dê em um contexto de privação de liberdade, não é considerada uma medida socioeducativa, uma vez que o adolescente em IP segue aguardando as audiências de seu processo. Da IP, o adolescente pode tanto ser desligado, quanto receber uma medida de meio aberto, de restrição de liberdade ou ainda de sua privação.
4 Referimo-nos ao eixo Psicanálise, Educação, Intervenções Sociopolíticas e Teoria Crítica do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPPEC/UFRGS). O Núcleo é uma ação conjunta de docentes do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFRGS. Participam do Núcleo professores, pesquisadores e bolsistas. Para mais informações: www.ufrgs.br/nuppec e www.facebook.com/nuppec. Referimos também o Laboratório Psicanálise Sociedade e Política do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) - https://psicanalisepolitica.wordpress.com/; https://m.facebook.com/PSOPOL/.
5 Aludimos à noção de fazer Um do Outro que Gurski (2019b) retira do ensino de Lacan (2003/1953), isto é, refere-se a todo gozo que se apresenta como empuxo em direção à totalidade, que se coloca como um saber que evoca uma dimensão de totalidade.
6 A medida de ICPAE tem por objetivo elaborar, junto da família, da rede pública e da equipe de profissionais da Unidade, a preparação do adolescente para o seu reingresso na sociedade "de forma parcial, gradual, planejada e monitorada" (Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul [FASE], 2014, p. 21).
7 A IP caracteriza-se enquanto uma espécie de porta de entrada da Instituição Socioeducativa, acolhendo os adolescentes suspeitos de terem cometido algum ato infracional e que, por alguma razão judicial, não puderam aguardar as audiências do seu processo em liberdade (FASE, 2014, p. 19). Por sua vez, ao receber uma medida de ISPAE em sentença condenatória, é expressamente vedado ao adolescente a realização de atividades, tais como escolarização, profissionalização, atendimentos individuais, atendimentos em grupos e oficinas, fora do espaço físico da Unidade Socioeducativa (FASE, 2014).