ARTIGOS

 

Trabalho, gestão e subjetividade

 

Working, management and subjectivity

 

 

Tania Mara Galli Fonseca

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As atuais práticas sociais de trabalho e de gestão articulam-se ao conceito de trabalho imaterial e à perspectiva de uma subjetividade descentrada da soberania do eu psicológico e assumida em sua processualidade coletiva. Objetiva-se, a partir desta articulação, dar a ver o potencial de afetação dos métodos administrativos na vida dos trabalhadores das empresas. Trata-se de considerar a história do trabalho como um processo incessantemente revirado pelo fazer experimental coletivo e pela reinvenção das práticas produtivas.

Palavras-chave: Subjetividade; Trabalho; Gestão.


ABSTRACT

The social practices of working and management are articuled with the concept of immaterial working and also to the perspective of a subjectivity outcentered of the psychological ego and assumed in its collective processuality. From this articulation, we try to discern and reveal the potencial of the mobilized affects on the workers by the various administrative methods employed. In this article, we propose considering the working history as a process continually influenced by the collective experimental performances and also by the reinvention of the productive practices themselves.

Keywords: Subjectivity; Working; Management.


 

 

I. SITUANDO A PERSPECTIVA DE NOSSO OLHAR

Nosso propósito ao articular Trabalho, Gestão e Subjetividade sustenta-se no pressuposto de que a vida psicossocial constitui-se como uma trama complexa e instável, sendo composta por conexões dispostas em rede que, por sua vez, não para de se produzir. Colocar em análise questões relativas aos modos de trabalhar e gerir o trabalho humano implica, seguramente, associá-los ao conjunto heterogêneo de elementos cujas relações entre si e com seu exterior podem nos auxiliar a problematizar a produção do humano no contexto sociolaboral. Acreditamos que, para além de produzir mercadorias, bens e serviços, o modo de produção capitalístico1 incide sobre os corpos dos indivíduos buscando conformá-los aos padrões e valores hegemônicos. O capitalismo é considerado, aqui, para além de uma instância de regulação econômica. Refere-se a um operador semiótico que age no registro coletivo de formação e socialização. O Capitalismo Mundial Integrado (CMI) possui uma configuração diagramática e, de acordo com Guattari (1987)

"o exercício do poder por meio das semióticas do capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a partir de um controle dos segmentos sociais e pela sujeição de todos os instantes de cada indivíduo. Se bem que sua enunciação seja individuada, nada menos individual que a subjetividade capitalística. A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particulares de subjetivação" (p. 201).

Como se vê, a subjetividade, desde este ponto de vista, é processual e resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas heterogêneas e não se refere a uma interioridade pertencente aos indivíduos, embora seja assumida e vivida por estes em suas existências particulares. Tratamos, pois, aqui, de nos inserir em uma perspectiva que ao dessubjetivar o social e o humano, dá a ver uma processualidade de forças em ação, descentrada da soberania do eu psicológico.

Necessitamos explicitar que o foco de nosso olhar opera uma torção nos modos tradicionais de análise, não recaindo sobre o trabalhador e o gestor tomados de forma individualizada. Interessa-nos examinar os processos de trabalho e de gestão como dispositivos de subjetivação, produzidos no contexto de regimes históricos e sociopolíticos particulares dos quais se fazem espécies de dobragens e efeitos. Produtos e produtores, tais processos podem nos lançar acima dos "fatos" para nos fazer interrogar sobre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciação de que eles são os enunciados, sobre o magma de vida e de significação do qual eles surgem. Não se trata de ir em busca de suas origens, mas de remetê-los aos acontecimentos de sua gênese e posterior evolução.

Trabalhar, Administrar e Subjetivar referem-se a práticas sociais que podem ser olhadas como vestígios de uma herança que "não é uma aquisição, um bem que se acumula e solidifica: é antes um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável, e do interior ou debaixo, ameaçam o frágil herdeiro" (VEYNE, 1988: 21). Nelas se acumula uma memória social e coletiva, que as inscreve na ordem do tempo da duração, entendido não como um instante que substitui outro instante, mas como "progresso contínuo do passado que rói o futuro e incha avançando" (BERGSON, 1964: 44). Nesta perspectiva, o passado - que incessantemente cresce -, também se conserva indefinidamente. Acompanha-nos por inteiro a cada instante e acomoda-se como um revestimento colado no avesso de nosso corpo, que olha tanto para o seu dentro como para o fora, fronteira sensível em constante atividade para resolver-se em relação aos sucessivos estados de forças em correlação que lhes são imanentes. Referimo-nos a um plano de composição - impessoal e pré-individual - do qual não basta conhecer-lhe as proveniências herdadas das vivências, enfim daquilo que fomos e que está sempre ali, inclinado sobre o presente que se lhe vai juntar. é preciso que se considere também o afrontamento de suas marcas, seu estado de luta no jogo casual das dominações de umas sobre as outras.

Outro ponto privilegiado em nossa abordagem concerne a reconhecermos que a contínua erosão das formas sociais não se dá necessariamente por guerras espetaculares de Estado, mas por práticas microbianas de resistência e criação engendradas no embate das forças correlacionadas. Interessa-nos a perspectiva da processualidade complexa que nos introduz em uma espécie de labirinto do tempo, de muitas entradas, muitos feixes e bifurcações, onde somos impulsionadas por um modo rizomático de expansão e conexão regido pela lógica do e, e, e e da fuga.

Nosso intento é acontecimentalizar as atuais práticas sociais de trabalho e de gestão, considerando-as como dispositivos de subjetivação. Para tanto, ocupamos uma posição teórico-política de desnaturalização, pois, juntamente com Michel Foucault (2003), consideramos que acontecimentalizar consiste em "reencontrar as conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, etc. que, em dado momento, formaram o que, em seguida funcionará como evidência, universalidade, necessidade" (p. 342). Nosso procedimento de desmultiplicação causal nos permite analisar as práticas desde os múltiplos processos que concorreram para criar as condições de sua emergência. Assim, somos levadas a situar as práticas em exame como emergentes de uma certa correlação de forças em um dado espaço-tempo social. Tratamos de romper com a tendência de atribuição de causalidade única para construir um "poliedro de inteligibilidade", cujo número de faces não é previamente definido e nunca pode ser concluído.

Este modo de operar nossa problematização, segundo nos ensina Veyne (1988), faz-nos ver que "o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito" (p. 257). Desta maneira, em uma certa época, "o conjunto de práticas engendra (...) um rosto histórico singular (...); mas, em outra época, será um rosto particular muito diferente que se formará no mesmo ponto, e, inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto vagamente semelhante ao precedente" (VEYNE: 268-269). Não há, através do tempo, evolução ou modificação de um mesmo objeto que brotasse sempre no mesmo lugar.

As práticas não são, portanto, as coisas, mas estão nas coisas, apresentam-se sempre sob amplos drapeados e neles se ocultam como a parte imersa do iceberg, situando-se abaixo da linha de visibilidade. Pesquisá-las implica desprendê-las das formas e dos objetos que constituem. Conferir-lhes existência a partir daquilo que está feito e que dobra em si o que foi seu próprio fazer-se. Neste ponto incide e ativa-se o olhar observador para, em uma operação de desdobragem, rachadura ou estiramento, dar a ver naquele organismo - então desdobrado e exposto - as multiplicidades que lhes são imanentes e que se encontram ali, tecidas tal como uma trama tão bem urdida a ponto de ser confundida com uma espécie de estrutura natural. O que importa em nossa abordagem genealógica é evidenciar que extrair o fazer do feito, a evolução do evoluído, as virtualidades do atualizado, requer operações cognitivas que não se assentam tão somente em modos racionais. A razão fala sobre o que ignora, sobre objetivações que desconhece e atua sobre a forma desde o seu exterior, tomando-a como um conjunto de relações entre os elementos da matéria bruta. é próprio da razão, portanto, uma relação externa com o objeto do qual tende a apreender o descontínuo e o imóvel.

"A inteligência não é feita para pensar a evolução, no sentido próprio da palavra, isto é, a continuidade duma mudança que seja pura continuidade. (...) A inteligência tem a representação do devir como série de estados, cada um dos quais é homogêneo com ele próprio e por conseqüência não muda. (...) A inteligência deixa fugir o que há de novo em cada momento da história. Não admite o imprevisível ... não seria difícil descobrir que sua origem está na obstinação em tratar o vivo como se fosse inerte, e em pensar toda a realidade, por mais fluída que seja, sob a forma de sólido definitivamente fixado. (...) A inteligência é caracterizada por uma natural incompreensão da vida" (BERGSON, 1964: 175-177).

A torção a que nos referimos anteriormente inclui também a nossa escolha do locus de nossa análise o qual recai no ponto de encontro entre modos de trabalhar, de gerir e subjetivar, colocados em relação de intercessão e interferência recíproca. Interessa-nos o cruzamento, a hibridização, os contágios entre estas ações para que possamos, a partir daí, registrar as perturbações efetuadas de umas sobre as outras. Estamos cientes que neste modo de conhecer a realidade experimentamos um processo de permanente caotização que, em sua afirmação criativa e inventiva, transforma cada um dos termos colocados em relação. Acreditamos que análises de cunho interacionista não se mostram suficientes para dar a ver o coengendramento trabalho/trabalhador/gestão, e, portanto, propomos inscrever nossa discussão como tributária de acoplamentos, cujos efeitos não se situam como previsíveis e tampouco antecipáveis. Somos levadas a afirmar, que as relações entre trabalho/sujeitos e gestão se desdobram em um plano de multiplicidades que ultrapassa os intentos da lógica adaptacionista, uma vez que operam por procedimentos de encontro e produção de ressonâncias, atuando no entre das diversas ações, provocando, num jogo de intermináveis interferências mútuas, transmutações em todos os termos, no campo e nos sujeitos das ações.

 

II. DE QUE TRABALHO FALAMOS?

Torna-se importante dizer que procedemos a um redirecionamento conceitual da categoria trabalho para trabalho imaterial conforme nos indicam Lazzaratto & Negri (2001). Não há dúvida de que tal redirecionamento implica-se diretamente ao modo de pensar a gestão trabalho e seu respectivo modo de subjetivação.

Para os autores, o trabalho imaterial corresponde a um efeito das transformações sofridas na matriz "industrial" da produção e que, a par das rupturas e crises de estabilidade que está a produzir nos próprios modos de existir dos trabalhadores, também introduz uma novidade radical na vida produtiva: "o mais importante capital fixo, aquele que determina os diferenciais de produtividade, doravante está no cérebro das pessoas que trabalham: é a máquina-ferramenta que cada um de nós traz em si" (NEGRI, 2001: 26). Trata-se de um fenômeno essencial, porque nos revela que o capital, através de sua renovação, de sua mudança interna, através da revolução neoliberal, da redefinição do Estado-providência e do advento das novas tecnologias, "devora" a força de trabalho. Resguardando-nos de pecar por otimismo e cientes de que o capital antecipou-se em organizar as novas formas de cooperação produtiva em curso e a potência política das mesmas, queremos, contudo, dizer que houve também uma emancipação do trabalho. Este emancipou-se por sua capacidade de tornar-se intelectual, afetivo, imaterial. Emancipou-se da disciplina da fábrica e do regime de controle que lhe era concernente. Podemos afirmar que a máquina-ferramenta foi arrancada do capital pelo operário, para que ficasse com ele para toda a sua vida e que o operário encarnou essa potência de produção dentro de seu próprio cérebro. Assim, se concebermos que a ferramenta de trabalho está encarnada no trabalhador, queremos dizer que ela, por sua vez, se refere ao seu todo como sujeito, ao que pertence ao seu sentir, à sua razão prática e à cultivada, à sua vontade de potência, enfim à sua própria vida. é a própria vida que hoje está sendo posta em jogo. Nos autores consultados encontramos a classificação três tipos de trabalho imaterial: o primeiro, está envolvido numa produção industrial que foi informatizada e incorporou tecnologias de modo a transformar o próprio processo de produção industrial. O segundo é o trabalho imaterial de tarefas analíticas e simbólicas e um terceiro, que envolve a produção e manipulação de desejos e afetos e requer, de forma virtual ou atual, contato humano e proximidade. Estes três tipos de trabalho dirigem a pós-modernização ou informatização da economia global.

é preciso dizer, contudo, que não cabe considerar as alterações na economia global em termos de estágios de desenvolvimento - como se hoje os países dominantes fossem economias informacionais e de serviços, e os outros, segundo seu grau na hierarquia econômica mundial, economias industriais ou mesmo agrícolas. Não é preciso traçar uma progressão histórica entre essas formas; ao contrário, o que se percebe como mais freqüente é que elas coexistam e se mesclem. Todas as formas de produção existem na rede do mercado mundial e, no momento, se encontram sob a dominação da produção informacional de serviços, como se pode perceber nos casos em que a produção artesanal venha a ser computadorizada e em que telefones celulares sejam instalados em remotas vilas de pescadores.

A passagem para uma economia informacional envolve necessariamente uma transformação na qualidade e na natureza dos processos de trabalho. Informação, comunicação, conhecimento e afeto passam a desempenhar um papel estrutural nos processos produtivos. Ao determos nosso olhar nos processos de trabalho que atuam sobre o trabalhador, também os consideramos como "fabricações" de um dado tempo social, e como nos alerta Yves Schwartz, a história do trabalho não se trata de uma "pequena história" que contempla o acaso das vidas individuais:

"Nenhuma situação humana, sem dúvida, concentra, "carrega" com ela, tantos sedimentos, condensações, marcas dos debates de história das sociedades humanas com elas mesmas, quanto as situações de trabalho; os conhecimentos colocados em obra, os sistemas produtivos, as tecnologias utilizadas, as formas de organização, os procedimentos escolhidos, os valores de uso selecionados e, por trás, as relações sociais que se entrelaçam e opõem os homens entre eles, tudo isto cristaliza produtos da história anterior da humanidade e dos povos" (SCHWARTZ, 2003).

Contudo, mesmo concebendo que toda a forma de trabalho se encontra saturada de normas de vida, de formas de exploração da natureza e dos homens uns pelos outros, que se encontra, enfim, regrada e normatizada por saberes concentrados da história passada, não podemos atribuir a tal peso histórico uma função prescritiva unívoca que se torna capaz de determinar por si só o que vai se passar na atividade de trabalho. Consideramos que esta história, com seus constrangimentos e recursos, é uma "parte inacabada", incapaz de nos fazer compreender por ela mesma como nós produzimos a vida na atividade de trabalho. Desta forma, tomamos como referência que, se este concentrado de histórias vividas é sempre inacabado, algo continua a reescrever a história do trabalho, renormalizando constantemente o processo de produzir. Há recriação, reinvenção das práticas que, por sua vez, traçam novas marcas na história, apontando-nos para um processo histórico incessantemente revirado por este fazer experimental coletivo. Trabalhar, assim, refere-se também a um fazer a história desde a ótica de sua recriação permanente, abrindo-a para os fluxos do fora.

Nesta atividade de trabalho e criação de normas para fazer o processo andar, supõe-se que o trabalho não se refere a uma simples aplicação de procedimentos pensados alhures. Consideramos que mesmo a aplicação de princípios técnico-científicos é sempre parte de uma reinvenção e que toda atividade de trabalho é sempre, mais ou menos, uma "dramática do uso de si" (SCHWARTZ, 2000: 39). Reinventar as normas, trabalhar de um outro modo diferentemente do que está determinado e prescrito, significa, sobretudo, considerar que tal produção de saber começa nas profundezas do corpo, com o que lhe é mais singular, com este impalpável da vida se fazendo no curso do tempo. Reinventar o modo de trabalhar supõe sua contrapartida inexorável: a reinvenção de si.

é neste sentido que articular o trabalhar à subjetivação remete às questões do tempo/ história e corpo, que, como conceitos, operam como intercessores em nosso próprio modo de produzir nossas análises. Conceitos-ferramentas, através dos quais encontramos a possibilidade de dar a ver sujeito e mundo do trabalho mergulhados nos processos de caosmose dos quais figuram como efeitos finitos mas ilimitadamente reconfiguráveis. Alicerces de uma abordagem teórico-metodológica que formula o encontro entre trabalhador e trabalho para além da lógica adaptativa, focalizando-a através dos parâmetros da potencialidade autopoiética dos corpos.

Tal enfoque vitalista e criacionista da individuação permite-nos focalizar o sujeito e o mundo do trabalho como fulgurações fugidias de uma constelação de fatores humanos e inumanos em conexão. Processos que acoplam história e acontecer, regidos pelo condicional "se" e que investem na noção de corpo e tempo. O mundo é registrado para além de seu empírico, para além da linha de visibilidade de suas aparências, sendo concebido como transversalizado por uma reserva infinita que o transforma em trans-mundo, sem hierarquia de complexidade e da qual devém os seus entes que, como suas dobras, dele se estendem e redobram, produzindo individuações únicas e incomparáveis do plano finito-ilimitado. Referimo-nos, aqui, a um todo que é da ordem do tempo e que atravessa as formas instituídas e os modos de produzi-las, impedindo-as de se considerarem como obra acabada e fechadas em si mesmas. "Bergson não cessará de dizer: o Tempo é o aberto, é o que muda e não pára de mudar de natureza a cada instante. é o todo, que não é um conjunto, mas a passagem perpétua de um conjunto a outro, a transformação de um conjunto num outro" (DELEUZE, 1992: 73).

No âmbito desta complexa e heterogênea dinâmica, engendram-se os modos de gestão, próximo e último item de nossa abordagem.

 

III. O TRABALHO COMO USOS DE SI E AS PRÁTICAS DE GESTÃO

Temos tido a preocupação em demarcar as práticas sociais do trabalho, da gestão e da subjetivação como composições dinâmicas. Sujeito-mundo são considerados planos que se implicam e contaminam e não apenas pólos que se relacionam e interagem. Produção de dupla captura - trabalhador e trabalho animam as artes do fazer através de recombinações das experiências e dos saberes e de seu avançar incessante.

Neste particular, buscaremos associar saúde e trabalho uma vez que aquela depende da possibilidade de ultrapassamento da norma que define o normal momentâneo, tolerando as infrações à norma habitual e instituindo novas regulações para novas situações. Saúde, portanto, associa-se às práticas de gestão do trabalho que se orientam para expandir a vida em sua multiplicidade; situa-se no âmbito coletivo e político e não se contrapõe à doença. Saúde afirma um processo de análise crítica que age sobre as forças que barram e constrangem a vida, significando, portanto, a afirmação do processo de trabalho como biopolítico, como superação da noção de simples cumprimento de uma tarefa. O trabalhar implica nas ações do sujeito, tomadas como atividade criadora e corresponde ao que deve ser reajustado, imaginado, inventado na realização de algo que não poderia ser obtido pela execução estrita da organização prescrita. Experimentar os desafios desta equilibração instável implica usos de si, uma vez que o trabalho não existe isolado de um modo de extraí-lo do próprio corpo daquele que trabalha. Focalizando, portanto, os modos de subjetivar praticados no processo de trabalho vemos que a distância entre aquilo que se deve fazer e o trabalho real, efetivamente realizado pelo trabalhador, nos coloca em franca ruptura tanto com o modelo solipsista que se volta para o sujeito e supervaloriza as relações interpessoais, quanto com os pressupostos fisicalistas, cuja concepção reduz o ser humano a um operador, cujo comportamento é concebido como submetido a leis naturais imutáveis e a causas identificáveis. Acreditamos que sem a atividade do sujeito, não existe trabalho e que é impossível que os indivíduos se retenham ao que lhes é prescrito. Permanecer no prescrito é considerado "invivível", segundo Schwartz (2003) e o sujeito da atividade é colocado à prova em sua competência para fazer história que, sempre "inacabada", é reescrita ao mesmo tempo em que se desdobra em outramento do sujeito e do mundo. Saberes do corpo, situados no plano não-lingüístico, defrontados aos saberes acumulados de uma história coletiva operam o engendramento de um trabalhador que não pode ser considerado como uma massa mole em que se inscreve passivamente a memória dos atos a se reproduzirem. Sendo uso de si, o trabalho passa ao lugar de um problema, de uma tensão, de um espaço de possíveis, sempre a ser negociado. Não há execução, mas uso. O que é convocado no trabalho são recursos, capacidades vastas, competências, o que não se identifica com capacidade para realizar a tarefa. A competência diz o grau de apropriação dos saberes conceituais, mas fala também do grau de apreensão das dimensões históricas e do debate dos valores que se vê convocado num meio de trabalho. Portanto, a competência não se separa das condições que, no dia-a-dia, dão conta da nossa capacidade de viver, referindo-se a esta capacidade industriosa, essa combinatória problemática de ingredientes heterogêneos que não podem ser avaliados de forma objetiva e genérica (FONSECA & BARROS DE BARROS, 2004).

O trabalho efetivamente realizado, portanto, não pode ser reduzido a aspectos operatórios, pois inclui equívocos, limitações, variabilidade, criação, transgressões e também mobilização subjetiva. é ato de transformação do mundo e do sujeito. Nossa pesquisa e estudo têm como categoria essencial o seu próprio processo, o seu acontecer, o que nos conduz a problematizá-lo desde o campo operatório em que se inscreve, considerando o seu desenrolar no dia-a-dia, através de uma análise micropolítica que nos permita visibilizar e escutar as manobras criativas alojadas no seio das práticas, as quais, ao mesmo tempo que garantem a realização da obra, a impregnam com a poeira do tempo, situam sujeitos e objetos como processualidade em devir.

A gestão, os gestores e os trabalhadores, embora não exclusivamente, configuram a rede histórica e social, podendo ser tomados tanto como produtores quanto como consumidores de modos de vida e a gestão pode ser considerada, nos termos postos por Gaulejac (2005), "como um sistema de organização do poder, que sob sua neutralidade aparente nos faz compreender as próprias características desse poder que tem evoluído no tempo" (p. 59). Na atual configuração da economia informacional e globalizada, diferenças em cada contexto nacional deverão revelar que o processo não tem uma via única. Há especifidades resultantes da articulação dos segmentos sociais, da representação de seus interesses no aparato do Estado e de sua capacidade de garantir sua defesa na definição das políticas econômicas e sociais.

Retomando a definição de Gaulejac, podemos considerar que a problemática da gestão advém, portanto, por toda a parte, sobretudo onde a variabilidade obstaculiza a realização de procedimentos estereotipados. Toda gestão supõe escolhas, arbitragens, valores em nome dos quais as decisões se elaboram e concretizam. Ora, o trabalho nunca é totalmente expectativa do mesmo e repetição. Em nosso enfoque, o gestor não representa necessariamente uma categoria profissional específica e tampouco se associa exclusivamente às estruturas hierárquicas de gestão ou à idéia de rigorosa execução de tarefas de controle e observação direcionada a terceiros. Parece-nos necessário recusar a tese de que não há gestão senão a dos especialistas habilitados. Entendemos, segundo os aportes de Schwartz (2000), que gerir desloca-se sobre uma multiplicidade de registros: gestão de eventualidades específicas ao ofício, ao objeto da atividade, gestão das interfaces (estoques, prazos, abastecimentos, diversas relações clientes/fornecedores, qualidade, normas ISO, etc.) gestão na acepção dos orçamentos e tempos, dos indicadores econômicos de desempenho, das relações internas à equipe, cujos registros ela própria deve gerir, refletindo-os sobre si mesma: como fazer-se disponível para tornar compatíveis estas gestões heterogêneas? Como fazer uso de si?

Se todo o trabalho é sempre uso de si, e se podemos visualizar esta operação simultaneamente como uso de si por outros e uso de si por si, parece-nos que esta formulação tem a particular vantagem de sugerir modulações tendenciais que afetam o engajamento dos sujeitos e do psiquismo nas transformações do trabalho, assim como as formas patológicas tendencialmente ligadas a estas modulações. Ela nos auxilia a compreender que um processo de delegação progressiva das instruções operacionais ao uso de si por si pode vir a redefinir certas funções do domínio do fazer, levando-nos a reconhecer que a atividade industriosa sempre é um "destino a viver". Quando se fala em gestão, não se trata de negar as exigências e os constrangimentos específicos a cada atividade, sendo que o que queremos enfatizar aqui é que qualquer gestão só pode existir no confronto de gestões, o que remete ao alargamento da chamada esfera dos decisores. Neste sentido, podemos enfocar a questão da gestão como própria à esfera do agenciamento coletivo de enunciação, sendo este que explica todas as vozes presentes em uma só voz, não se remetendo à distinção dos sujeitos. Operando como uma palavra de ordem, com tendência aglutinadora e sobrecodificadora, a gestão enquanto agenciamento coletivo de enunciação não remete aos comandos, mas aos atos que estão ligados aos enunciados. Opera como palavra de ordem levando-nos a indagar se seria possível, desde a composição rizomática e bifurcante do agenciamento-gestão, marcar pontos de criação e passagem, em que das composições de ordem sejam extraídos componentes de passagem e fuga inventiva (DELEUZE & GUATTARI, 1995).

Prosseguindo em nossa elaboração, queremos também chamar a atenção para a problemática do social enquanto imbricada aos modos de exercício do poder. Se hoje vivemos a chamada sociedade de controle, cujo modo de controle não se restringe aos espaços confinados, tal como evidenciado por Foucault (1996), notadamente em Vigiar e punir, mas que se expande de modo contínuo a céu aberto, e se hoje a captura dos sujeitos independe, portanto, de sua imobilidade no espaço pois conta com o controle dos bancos de dados que extrapola os limites espaciais, temos de reconhecer que, com o advento das novas tecnologias, tornou-se possível um novo modo de exercício do poder chamado Sinóptico. Para Bauman (1999), "o sinóptico não precisa de coerção - ele seduz as pessoas à vigilância" (p. 48). A sociedade de controle passa, assim, a potencializar a invisibilidade do poder que se dilui por meio de fronteiras tênues e redes flexíveis, despertando uma sensação de aparente liberdade como se o corpo, o ritmo, o desejo não se submetessem a uma modulação contínua. Os aparatos disciplinares adquiriram sofisticação, sutileza e invisibilidade. São vistos para além dos objetivos de tornar dóceis os corpos e apropriar-se dos saberes. Precisam agora governar as almas, controlar as vontades, as potências de criação e a autonomia. Como efetivar tal tarefa senão fazendo dos sujeitos seus próprios gestores? Do controle ao autocontrole, quem sobrecarrega-se de prejuízos é o próprio trabalhador a quem o neomanagement outorga uma margem de liberdade a ser retribuída em forma de disponibilidade irrestrita ao trabalho, mobilidade, criatividade e cordalidade, condizentes com a noção de trabalho imaterial que anteriormente desenvolvemos. Para Lazzarato (1997), a economia da informação é a nova máquina de captura das forças e dos signos e determina os novos agenciamentos coletivos de produção de subjetividade.

Em que pese não termos, neste espaço, nos expandido no exame de casos empíricos, gostaríamos de assinalar o fundamental papel que cabe aos modos de trabalhar e gerir na produção de modos de vida e existir das populações. Segundo as contribuições de Sennett (2003), a flexibilidade exigida pela economia moderna se sustenta sobre três pilares: a reinvenção descontínua das instituições, a especialização flexível da produção e a concentração sem centralização. Essa reinvenção pode ser visualizada nas constantes reengenharias, redesenho e reestruturações tão em voga atualmente. Consiste numa mudança irreversível, num rompimento com o passado e com o futuro, o que torna tudo presente, referente ao aqui e agora. As instituições que passam por mudanças obtêm, não raro, conseqüências trágicas, como a falência ou processos de demissão em massa. Decorrente da volatilidade da demanda do consumidor, a especialização flexível tenta colocar mais rapidamente produtos no mercado e devido à sua ânsia de responder à demanda, as mutações do mundo externo acabam por determinar o seu ambiente interno, fato que colabora para o surgimento da reinvenção descontínua das instituições. A concentração sem centralização, aparentemente uma contradição, diz respeito aos procedimentos de descentralização que distribui o poder para os níveis mais baixos da hierarquia, enquanto o concentra no topo. Esta nova forma de exercício da gestão no contexto das organizações desburocratizadas implica novos modos de subjetivação, revelando-se também como tecnologias de si. No âmbito do trabalho material da atual economia informatizada, emerge um novo tipo de trabalhador - gestor e trabalhador - diferente do "operário massa" do modelo taylorista-fordista, que se caracterizava como "duplamente massificado: pelos contingentes da força de trabalho concentrados nas grandes fábricas e pela tendencial indistinção, do ponto de vista da divisão técnica do trabalho, de suas características pessoais, subjetivas" (COCCO, 2000: 78). A nova configuração do trabalho demanda que o trabalhador seja mobilizado não apenas como objeto, adjunto das máquinas. O capital simbólico que o constitui, seus saberes e competências adquiridos ou não na escola, são considerados como elementos diferenciais na corrida concorrencial das empresas. Seus modos de pensar, agir e sentir, modos de afetar e ser afetado integram a própria produção, uma vez que a produção da economia imaterial implica o investimento dos atributos imateriais de uma economia libidinal e desejante.

Face às caracterizações do trabalho imaterial, (re)organizam-se teorias e práticas de gestão, uma vez que o modo de produção capitalista global requer de quem trabalha, além de qualificação, performance. Os métodos de gestão são, portanto, os fios condutores das organizações e, por conseqüência, afetam a vida daqueles que nelas trabalham. Segundo Chanlat (2000), "por modo ou método de gestão entende-se o conjunto de práticas administrativas colocadas em execução pela direção de uma empresa para atingir os objetivos que ela se tenha fixado" (p. 81). Neste sentido, como apontamos anteriormente, trata-se de um processo complexo de gestões compreendendo o estabelecimento das condições de trabalho, a organização do seu processo, os sistemas hierárquicos e de comando, de avaliação, qualificação e controle de resultados, políticas de gestão de pessoas, dentre tantas outras instâncias e elementos.

A problemática da gestão contemporânea se insere na lógica da flexibilidade em todos os campos da vida dos sujeitos, sendo que o que importa é a interface entre os diferentes níveis hierárquicos e as diferentes funções e equipes. Trata-se da própria arte de viver no labirinto com as conseqüências decorrentes. Para Chanlat (2000) observa-se atualmente uma racionalização acelerada dos modos de gestão, que se configura através de fusões e aquisições, reestruturações em massa e utilização de técnicas que buscam reduzir o tempo de resposta e os custos operacionais. Da racionalização das práticas de gestão, decorrem, segundo o autor, desigualdades crescentes, declínio da seguridade social, endividamento, reestruturações ineficazes, economia cada vez mais dominada pelos imperativos das finanças e conseqüências humanas muito visíveis. Entre estas tem-se que

"o nível de stress profissional aumenta, que a confiança degrada-se, que o cinismo desenvolve-se, que a angústia econômica estrangula cada vez mais as pessoas, que o sindicalismo retoma e reformula sua posição e que as pessoas ligadas à economia do mercado e aos princípios democráticos inquietam-se, a despeito de todos os discursos triunfalistas sobre os contornos da situação atual" (CHANLAT: 59).

Nos termos de suas exigências atuais, gerir o processo de trabalho corresponde a um empreendimento biopolítico, ou seja, implica a articulação ponto por ponto das capacidades produtivas de um dado contexto social-laboral. Os gestores, desta forma, passam a ser considerados como empreendedores ontológicos, organizadores do conjunto das condições de reprodução da vida e da sociedade e não somente da "economia".

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. (1999) Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

BERGSON, H. A. (1964) Evolução Criadora. Rio de Janeiro: Delta.

CHANLAT, J. F. (2000) Ciências Sociais e management: reconciliando o econômico e o social. São Paulo: Atlas.

COCCO, G. (2000) Trabalho e cidadania: produção de direitos na era da globalização. São Paulo: Cortez.

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Endereço para correspondência

E-mail: tfonseca@via-rs.net

Recebido em: 24/08/05
Revisado em: 15/10/05
Aprovado em: 11/10/05

 

 

1O termo capitalístico foi forjado por Félix Guattari para designar um modo de subjetivação que não se acha apenas ligado às sociedades ditas capitalistas, mas que também caracteriza as sociedades, até aquele momento, consideradas socialistas, bem como as dos países do terceiro Mundo, já que todas elas vivem numa espécie de dependência e contra-dependência do modelo capitalista. Do ponto de vista de uma economia subjetiva, não há diferença entre essas sociedades, pois elas reproduzem um mesmo tipo de investimento do desejo no campo social.