EDITORIAL

 

Privatização de publicações acadêmicas seriadas sob o suposto caráter público da internet

 

 

Francisco Teixeira PortugalI; Fernando Gastal de CastroII; Mônica Botelho AlvimIII

IEditor-chefe da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0001-6481-6509
IIEditor-associado da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0003-0200-9175
IIIEditora-associada da Arquivos Brasileiros de Psicologia. Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). https://orcid.org/0000-0003-3522-4154

 

 

A explosão do acesso à internet no início do milênio, pouco mais de 20 anos passados, indicava a criação de um mundo virtual a aparentemente efetivar o sonho anárquico de liberdade por meio de equipamentos técnicos com acesso a uma rede de trocas de arquivos digitais. Uma vez garantido o acesso à internet, imaginávamos, ingenuamente, que poderíamos, em tese, acessar todo o conteúdo ali disponível. Essa era a ilusão de um novo mundo de livre acesso que, em lugar do novo mundo da experiência colonial feito pelo desbravamento, extermínio e destruição ecológica, estava sendo criado por meio de novas tecnologias sofisticadas acessíveis, já nesses inícios, a um conjunto bastante limitado de pessoas.

Nossas relações com os objetos técnicos, nós usuários de smartphones, computadores, tablets, tem sido codificadas na lógica do consumo: produtos tecnológicos elaborados de modo "intuitivo", em que a "usabilidade" se torna cada vez maior, sem que tenhamos que fazer um curso para operar algo nessa seara. Afinal, o tempo foi se tornando cada vez mais escasso. A facilitação e agilização das comunicações deveriam otimizar nosso tempo gerando mais tempo livre, mas tem nos dragado nas espirais sedutoras da exibição e do consumo. Tal desconhecimento do usuário dos modos de produção dos objetos técnicos e de modos de funcionamento dos aplicativos produziu alienação subjetiva e acumulação sem precedentes de riquezas restritas a um conjunto muito pequeno de pessoas numa escala exponencial.

Esse tom algo apocalíptico atingiu rapidamente as universidades e a produção e circulação de conhecimento. Foi, certamente, a articulação dessa revolução tecnológica a novas práticas concorrenciais disseminadas e hegemônicas nas últimas décadas um dos dispositivos de controle acurado do funcionamento das universidades. A educação de forma geral tornou-se objeto de interesse desse modelo concorrencial (Laval, 2019; Dardot & Laval, 2017) e processos como a universalização da avaliação, este operador da concorrência, foi se naturalizando. Dispositivos de criação de acervos que pudessem objetivar a concorrência foram criados. No caso brasileiro, a instituição do currículo Lattes não apenas tornou objetivamente operacional a comparação entre pesquisadoras pela associação a um conjunto de políticas de distribuição de verbas e fomentos (o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq chegou a criar uma estrutura nobiliárquica de pesquisadoras), mas passou a orientar projetos acadêmicos, a estabelecer um horizonte para a atuação dos profissionais durante toda sua vida. Agora será necessário produzir "n" produções bibliográficas em veículos igualmente categorizados hierarquicamente, será preciso (já é preciso) organizar eventos, estabelecer vinculações entre universidades e entre países, fazer com que os periódicos funcionem desta ou daquela maneira, isto é, uma sofisticada política acadêmico-subjetiva foi criada compondo uma enorme burocracia do Estado em consonância com a sociedade concorrencial.

Já não é necessário que o beneficiário da mais-valia do trabalho exija o trabalho, a mais-valia subjetiva açoita o trabalhador mais insistente e cruelmente do que a figura antiquada do chefe realizava.

O crescimento das publicações seriadas nas ciências humanas e sociais no Brasil produziu um ponto de inflexão na década de 1990. Desde então, o número de publicações cresceu expressivamente e houve uma forte indução dos modos de funcionamento dos periódicos e do que deveria e deve ser aceito e recusado. Tal padronização que funciona amplamente na codificação, isto é, no controle dos movimentos e das segmentações muito mais do que nos temas ou assuntos passíveis de publicações, tornou-se voluntariamente frágil diante da entrada das grandes empresas comerciais que visam e produzem lucro com as produções acadêmicas.

As gigantescas empresas cujo objeto são as produções acadêmicas se articularam com as ainda mais gigantescas empresas que modulam o tráfego de bits na internet e, sob as noções de liberdade individual e direito individual à expressão, confundem o acesso sem pagamentos visíveis a sítios e conteúdos na internet com o público e o gratuito.

O avanço do projeto neoliberal (cujo um dos arautos concebe autoritarismos como oportunidade de aprofundar suas propostas mortíferas) fez, em poucos anos, com que uma crise generalizada se implantasse no projeto de uma universidade pública, gratuita, socialmente referenciada e laica.

Tal quadro, explosivo e mortificante, que reúne elementos como a diminuição do fomento e a ampliação das exigências de publicação, tanto das autoras como das editorias, não é mais recebido como uma exigência produtivista, mas como um desejo ilimitado de aumentar suas publicações (meta e instrumento de avaliação e reconhecimento acadêmico), e mostra sua superfície hedionda nos dias atuais. Se o retrato de Dorian Gray (Wilde, 2021) uma vez oculto invisibilizava a degradação do retratado, a própria exigência social de ocultação da ganância deixou de ter relevância, afinal o sucesso tem seus caprichos em uma realidade incontornavelmente concorrencial.

A crise que vivemos como editoras, docentes e pesquisadoras não resulta de uma circunstancial ausência de investimento ou de fomento das agências governamentais, mas de um circuito que nos capturou naquilo que se pensava o mais íntimo, a subjetividade e o desejo.

 

Referências

Dardot, P., & Laval, C. (2017). A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo.

Laval, C. (2019). A escola não é uma empresa. São Paulo: Boitempo.

Wilde, O. (2021). O retrato de Dorian Gray. Porto Alegre: L&PM.