ARTIGOS
Intersetorialidade no PAEFI/CREAS na perspectiva dos usuários: relato de pesquisa
PAEFI/CREAS intersectorality from the users' perspective: research report
Intersectorialidad PAEFI/CREAS desde la perspectiva de usuarios: informe de investigación
Gelson PanissonI; Marivete GesserII; Marcela de Andrade GomesIII
IPsicólogo.
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. Estado de Santa
Catarina. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4969-7641
IIDocente. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis.
Estado de Santa Catarina. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4091-9754
IIIDocente. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis.
Estado de Santa Catarina. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-9804-4754
RESUMO
Este artigo tem como objetivo identificar os sentidos atribuídos pelos usuários de um Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) acerca da articulação intersetorial realizada por este serviço, tal como é preconizada pela Política de Assistência Social Brasileira. As informações foram obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas junto a nove usuários do PAEFI de uma cidade da região Sul do Brasil e analisadas a partir dos núcleos de significação. O referencial teórico foi baseado na Psicologia Histórico-Cultural e autores da Psicologia Social Crítica. Os resultados indicam que a articulação intersetorial realizada por este serviço foi significada pelos usuários tanto como um trabalho integrado voltado à garantia dos direitos humanos, como também a um lugar de vigilância e disciplinarização. Propõe-se que as ações intersetoriais sejam pautadas no cuidado dialógico e em práticas emancipatórias junto aos sujeitos e contextos.
Palavras-chave: Assistência Social; Psicologia; PAEFI; Usuário; Intersetorialidade.
ABSTRACT
This article aims to identify the meanings attributed by users of a Service of Protection and Specialized Assistance to Families and Individuals (PAEFI) about the intersectoral articulation performed by this service, as recommended by the Brazilian Social Assistance Policy. The information was obtained through semi-structured interviews conducted with nine users of the PAEFI in a city in the southern region of Brazil and analyzed from the meaning cores. The theoretical framework was based on Historical-Cultural Psychology and authors of Critical Social Psychology. The results indicate that the intersectoral articulation carried out by this service was meant by users both as an integrated work aimed at guaranteeing human rights, as well as a place of surveillance and discipline. The study proposed intersectoral actions to be guided by dialogic care and emancipatory practices with the subjects and contexts.
Keywords: Social assistance; Psychology; PAEFI; User; Intersectorality.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo identificar los significados atribuidos por los usuarios de un Servicio de Protección y Asistencia Especializada a Familias e Individuos (PAEFI) sobre la articulación intersectorial realizada por este servicio, según lo recomendado por la Política de Asistencia Social de Brasil. La información se obtuvo mediante entrevistas semiestructuradas realizadas con nueve usuarios del PAEFI en una ciudad de la región sur de Brasil y analizadas desde los centros de significado. El marco teórico se basó en la psicología histórico-cultural y los autores de la psicología social crítica. Los resultados indican que la articulación intersectorial realizada por este servicio fue entendida por los usuarios como un trabajo integrado destinado a garantizar los derechos humanos, así como como un lugar de vigilancia y disciplina. Se propone que las acciones intersectoriales se guíen por atención dialógica y prácticas emancipadoras con los sujetos y contextos.
Palabras clave: Asistencia social; Psicología; PAEFI; Usuario; Intersectorialidad.
Introdução
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), implementada no Brasil através do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), configura-se como um importante aparato legal voltado à garantia de direitos da população em situação de vulnerabilidade social. Uma importante diretriz dessa política é o seu caráter intersetorial, o qual visa articular demandas e ações com outros sistemas e serviços. A efetivação de direitos, na sua processualidade e gestão, depende de uma dinâmica de acesso a benefícios, serviços, programas e projetos socioassistenciais, num movimento de trabalho em rede, considerando as necessidades de cada território (Brasil, 2004).
Como um dos equipamentos ofertados em nível de média complexidade, o SUAS conta com o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), onde funciona o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), cujo objetivo é prestar apoio, orientação e acompanhamento a famílias em situações de violação de direitos. Tais quadros geralmente estão associados à ocorrência de violência física, psicológica, sexual, negligência, discriminação, dentre outras situações que provocam danos e agravos aos sujeitos e os impedem de usufruir autonomia e bem-estar (Brasil, 2014).
O trabalho psicossocial realizado no CREAS, além de um fazer interdisciplinar - em que se estabelecem correlações e potencialidades no encontro entre diferentes áreas de conhecimento (Fernandes, & Hellmann, 2016) -, implica em atuar em rede, envolvendo diferentes setores, como a saúde, a educação, a justiça, entre outros. Tal articulação, quando visa a autonomia dos sujeitos e a prevenção de vulnerabilidades, potencializa a ação integral junto às famílias atendidas (Lima, & Schneider, 2018).
Benelli, Ferri e Ferreira Junior (2015) fazem uma breve incursão pela filosofia e problematizam a noção de rede, a qual reúne vários significados, tais como interação, conexão, interconexão, sendo que suas palavras-chave são cooperação, não dominação, não subordinação. Os autores mapearem dois paradigmas no campo da assistência social acerca do trabalho em rede: o primeiro, denominado de modelo da incorporação modernizante, promove uma inclusão excludente, visando adaptação sociocultural, onde a rede se reduz a um instrumento de captura dos pobres e desviantes sociais; já o segundo modelo - defendido pelos autores - remete à transformação social, visando uma prática social e política que promova as diferenças, objetivando abertura ao devir e a emancipação popular (Benelli, & Costa-Rosa, 2010; Benelli et al., 2015).
Diversos autores apontam o trabalho em rede como desafio cotidiano do profissional de Psicologia nas políticas sociais (Ribeiro, 2010; Schardong, Detoni, & Machado, 2016), diante de paradigmas pautados na segmentação da realidade, historicamente ajustados aos mecanismos do capitalismo contemporâneo associados à meritocracia, disciplinarização, refilantropização e criminalização das expressões da questão social (Raichelis, 2013). Além disso, fatores como a burocratização e a necessidade de produtividade, característicos das políticas públicas vêm dificultando a articulação em rede e a promoção de espaços de reflexão e ações coletivas, tornando o trabalho dos profissionais individualizado e fragmentado (Cruz, & Guareschi, 2014). Tais aspectos podem suscitar sofrimento e sentimentos de impotência por parte dos trabalhadores frente à precariedade da rede (Moreira, Muller, & Cruz, 2012). Ademais, junto aos trabalhadores do PAEFI, Andrade (2018) identificou que, na perspectiva da rede, o serviço adquire uma significação idealizada de agir nas situações que nenhuma outra política alcançou, um "lugar de produzir superação", ou lugar de resolutividade muitas vezes permeado por uma ideia policialesca de responsabilização da família.
Por meio de um levantamento bibliográfico na base Scientific Electronic Library Online (SciELO), notou-se que o tema da intersetorialidade no SUAS é pouco abordado academicamente nas pesquisas. Em uma primeira busca, utilizou-se o descritor "CREAS", foram encontradas 12 referências, sendo que nenhuma abordava a intersetorialidade. Com a utilização do descritor "assistência social" identificou-se 92 artigos dos quais apenas quatro apresentaram a questão da intersetorialidade no título; sendo que nenhuma tratava especificamente sobre o PAEFI.
Em dois artigos publicados, Borysow e Furtado (2013, 2014) pesquisaram o acesso e a intersetorialidade em serviços que atendem pessoas em situação de rua, identificando-se fragilidades na rede pública a respeito da composição dos serviços e articulações intersetoriais para o acolhimento dessa população. Numa pesquisa teórica, Monnerat e Souza (2011), ao refletirem sobre a promessa de integração das políticas sociais no Brasil desde o marco legal da Constituição de 1988, apontaram o modelo descentralizado e barreiras políticas e econômicas como aspectos que dificultam a efetivação da intersetorialidade entre saúde e assistência social. Os autores apontaram como desafio "resgatar o sentido de integração e transversalidade presente na ideia de sistemas e redes de proteção social" (Monnerat, & Souza, 2011, p. 47).
Numa revisão do estado da arte sobre a temática, Carmo e Guizardi (2017) apontaram desafios para a intersetorialidade - dentre os quais se destacam a polissemia do termo no compartilhamento de saberes, a burocracia dos órgãos estatais, a gestão e construção das políticas públicas via participação popular. Os autores identificaram restrita produção acadêmica sobre a questão da intersetorialidade desde a implementação do SUAS, resultando em poucos cenários para discutir as barreiras em torno da sua efetivação no âmbito das políticas públicas.
Este estudo é um recorte de uma pesquisa de mestrado que teve como objetivo compreender os processos de significação em torno do trabalho em rede desenvolvido pelo PAEFI com o intuito de refletir sobre as incidências das políticas públicas de assistência social na vida destes sujeitos. Neste artigo, pretende-se discutir sobre os sentidos atribuídos pelos usuários do PAEFI acerca das ações intersetoriais realizadas por este serviço. Acredita-se que essa pesquisa é de grande relevância social uma vez que, por meio da análise dos sentidos apresentados pelos usuários, é possível problematizar a atuação da Psicologia nesse contexto e oferecer subsídios para que a lógica do trabalho em rede não seja limitada a questões técnicas, burocráticas, pragmáticas e operacionais (Benelli, & Costa-Rosa, 2010; Benelli et al., 2015), mas que seja possível construir práticas pautadas numa perspectiva ético-política voltada à inclusão e ao envolvimento do público usuário em torno de suas questões e necessidades, conferindo um caráter político e emancipador do trabalho em rede.
A pesquisa teve como referência as bases epistemológicas da Psicologia Histórico-Cultural (Vigotski, 2000), a qual compreende a constituição subjetiva baseada na materialidade, na qual o sujeito é social e historicamente situado, produto e produtor de sua história de vida. Nessa perspectiva, o processo de mediação tem um papel fundamental, uma vez que é por meio das relações sociais estabelecidas pelo sujeito no contexto em que ele vive que ele se apropria dos significados sociais, atribuindo sentidos singulares aos mesmos, os quais são configurados de acordo com suas experiências e trajetórias de vida (Gesser, & Nuernberg, 2011).
No próximo tópico serão apresentados o método utilizado por meio da caracterização dos participantes do estudo e uma breve apresentação dos procedimentos de coleta e análise das informações. Em seguida, serão apontados e discutidos os resultados da pesquisa. Por fim, serão tecidas algumas considerações sobre o estudo e indicativos de novas pesquisas.
Método
O estudo foi realizado em um PAEFI/CREAS situado em um município da região da Grande Florianópolis. Participaram da pesquisa nove usuários do serviço, sendo que duas entrevistas foram realizadas em conjunto (uma entre mãe e filha, e outra entre cônjuges). Os participantes apresentaram idades entre 20 e 53 anos; sete são do sexo feminino, dois do sexo masculino. Em seu arranjo familiar, seis pessoas se identificaram como mães e as outras três como marido, pai e filha. Seis entrevistados indicaram ter renda familiar per capita entre um terço e meio salário mínimo; outras três pessoas não quiseram mencionar a remuneração. No que se refere à escolaridade, sete pessoas manifestaram possuir ensino fundamental incompleto, enquanto duas disseram ter concluído o ensino médio. Em relação ao número de membros nas famílias de cada participante, a média foi de cinco pessoas pertencentes ao núcleo familiar.
A entrevista semiestruturada foi utilizada como principal técnica de pesquisa em que a pessoa discorre sobre o tema em questão sem se prender à pergunta formulada (Minayo, 2010). Cada entrevista foi gravada com a autorização dos participantes para posterior transcrição, sendo que uma pessoa solicitou que sua fala não fosse gravada - nesse caso, os registros foram realizados por escrito no ato da entrevista com autorização do participante, os quais também foram analisados. As entrevistas tiveram duração média de 55 minutos.
De modo a assegurar todos os princípios éticos recomendados pela Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a presente pesquisa foi aprovada no pelo Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), parecer nº 2.572.240 de 30 de março de 2018 (CAAE: 82997618.7.0000.0121). Após o consentimento junto à Secretaria Municipal de Assistência Social, foi recebida uma lista das pessoas atendidas através da coordenação do serviço. Foi realizado contato aleatório com os usuários para agendamento das entrevistas. Todos os participantes leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual constavam as informações e objetivos da pesquisa. Foram atribuídos nomes fictícios aos entrevistados a fim de assegurar seu anonimato.
A análise das informações foi pautada nos direcionamentos de Aguiar e Ozella (2006, 2013) e González Rey (2005), autores que contribuem ao indicar os núcleos de significação como meio de se apreender a constituição de sentidos do discurso dos sujeitos, tendo presente o caráter dialógico, construtivo-interpretativo da epistemologia qualitativa em pesquisa. A análise envolveu três etapas: 1) Elaboração dos pré-indicadores, por meio de leitura flutuante e organização do material; 2) Organização dos indicadores e conteúdos temáticos, a partir de nova leitura conduzida pela aglutinação dos pré-indicadores, baseada em critérios de similaridade, complementaridade ou contraposição; e 3) Construção dos núcleos de significação, com a releitura do material, considerando a aglutinação em indicadores, articulação e organização dos núcleos de significação (Aguiar, & Ozella, 2006).
Resultados e discussão
As informações obtidas na pesquisa indicaram que o tempo de acompanhamento familiar realizado até então no PAEFI aproximou a média de dois anos. No que concerne à forma de inserção no serviço, uma pessoa adentrou no PAEFI por demanda espontânea e os outros oito participantes foram inseridos por encaminhamentos e/ou denúncias dos seguintes serviços da rede: Conselho Tutelar, Delegacia de Polícia, Promotoria da Infância e Juventude, CREAS de outro município e Serviços de Saúde. De modo geral, os usuários denotaram a percepção de que o PAEFI dialoga com o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), com destaque para o Conselho Tutelar e o Poder Judiciário.
A análise das informações quanto à significação dos usuários do PAEFI no que se refere à intersetorialidade indicaram dois núcleos de significação, a saber: a) o PAEFI como articulador da rede intersetorial em prol do acesso e garantia de direitos; e b) a atuação da rede intersetorial como um instrumento biopolítico e judicializador de grupos sociais subalternizados na sociedade capitalista. Nos próximos tópicos, serão discutidos tais sentidos atribuídos pelos usuários ao trabalho intersetorial no PAEFI estudado.
Intersetorialidade e cidadania: PAEFI como articulador da rede intersetorial em prol do acesso e garantia de direitos
Neste tópico, serão apresentados os sentidos atribuídos pelos usuários ao PAEFI como um serviço que articula ações intersetoriais em prol da efetivação da política e do acesso a direitos. Como anseios apresentados pelas pessoas entrevistadas acerca da articulação do PAEFI com a rede, destacam-se a inserção no mercado de trabalho e atendimentos nos serviços jurídicos e de saúde.
Ao ser questionada sobre o que mudou em sua trajetória de vida depois que começou a ser atendida no PAEFI, a usuária Sandra (53 anos, auxiliar de serviços gerais) referiu que o serviço foi significativo no auxílio para encaminhar os filhos ao mercado de trabalho: "mudou, porque daí que nem elas [profissionais do PAEFI] encaminharam meus filhos pra serviço1 [...] arrumaram serviço pros meus filhos que estavam desempregados" (Sandra). A família da entrevistada foi atendida no PAEFI há três anos, quando foi encaminhada ao serviço porque seu ex-companheiro e os filhos estavam envolvidos com tráfico de drogas.
A família de Lúcia (34 anos, professora) foi inserida no acompanhamento psicossocial por histórico de abuso sexual contra uma de suas filhas. Na oportunidade da entrevista, a família estava sendo atendida há cerca de três anos, sendo que houve pausas no processo do acompanhamento psicossocial. No que tange a articulação do PAEFI junto à rede, a usuária destacou as indicações desse para serviços de qualificação profissional e de advocacia, enfatizando que as orientações jurídicas oferecidas durante os atendimentos foram fundamentais: "Elas (profissionais) me dão orientação, né? [...] Ela (assistente social) conseguiu curso pra ela (filha) de computação... assim, tudo elas estavam vendo serviço pra (nome da filha) no menor aprendiz, né? Elas vão te ajudando, no que, como fazer..." (Lúcia).
Diante do encaminhamento da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI), a família de Jane (38 anos, leiturista) foi atendida por aproximadamente um ano no PAEFI, também por ocorrência de abuso sexual contra a filha da usuária. Ao sinalizar a articulação intersetorial com os serviços de saúde como algo importante em sua vida, a entrevistada ressalta a expectativa de encaminhamento de seu filho para o mercado do trabalho. Um aspecto subjacente chama atenção quando ela discorre que o trabalho social com famílias depende de uma estrutura de recursos e serviços, a fim de tornar possível o acesso a direitos:
Pra mim foi uma grande ajuda, eles [profissionais do PAEFI] estão vendo trabalho pro meu filho. [...] Só da forma de nos ajudar com um encaminhamento ao trabalho, a saúde, tendo acesso à saúde, já é uma grande coisa, né? [...] porque nem tudo eles podem fazer sozinhos, eles dependem, né? Tudo depende de outra pessoa, assim vai... depende do recurso público, nem tudo eles podem te ajudar, mas algumas coisas eles conseguem (Jane).
Os depoimentos acima mostram a importância das práticas intersetoriais no PAEFI como instrumentos de acesso a direitos aos usuários, conforme apontado por diversos estudos no campo da assistência social (Faraj, Siqueira, & Arpini, 2016; Pelisoli, Pires, Almeida, & Dell'Aglio, 2010). No que tange o papel da Psicologia, o caderno técnico do Conselho Federal de Psicologia salienta a articulação em rede para a atuação na política de assistência social, por viabilizar o acesso a direitos, favorecer a visão integrada, articulada, intersetorial e a construção de respostas conjuntas frente aos efeitos psicossociais da violência e violação de direitos. Para tanto, torna-se relevante estabelecer os fluxos no processo de trabalho, de modo a evitar ações de mero encaminhamento, fomentando a corresponsabilização dos envolvidos (Conselho Federal de Psicologia, 2013).
Nesse sentido, o depoimento de Jane se destaca ao depreender a codependência entre os serviços, assinalando para a importância da corresponsabilização da rede, de modo que seja possível efetivar o acesso a direitos. Entretanto, de alguma forma, a fala da usuária ainda revela a insuficiência do funcionamento da rede socioassistencial, constatada por Ferreira e Zambenedetti (2015), ao salientarem a precarização das relações trabalhistas nas políticas sociais como desafio que impede a configuração de uma rede de serviços efetiva.
Como interface nas ações intersetoriais do PAEFI, o trabalho socioeducativo foi um aspecto significativo trazido nas falas de participantes como Lúcia e Sandra, no sentido de orientar sobre os direitos e direcionar para os serviços. Faermann e Nascimento (2016) consideram tal instrumento técnico-operativo uma estratégia política junto ao trabalho com famílias, quando se torna caminho para instigar processos emancipatórios, de modo que os usuários se reconheçam como sujeitos políticos. Por outro lado, os autores advertem que as práticas psicossociais podem assumir características disciplinadoras e paliativas, voltadas ao enquadramento das pessoas, camuflando as desigualdades sociais, sendo que as ações socioeducativas devem acontecer no percurso de um processo reflexivo junto às famílias atendidas, a fim de favorecer o protagonismo, a autonomia e a cidadania (Faermann, & Nascimento, 2016).
As ações em prol da autonomia dos sujeitos nas políticas de assistência social são problematizadas por Sicari, Oliveira e Pereira (2015), ao refletirem sobre as práticas que legitimam a perpetuação da desigualdade e que culpabilizam o sujeito pela sua condição social. Das demandas trazidas pelos entrevistados da pesquisa em torno da promoção dos direitos, chama a atenção a premência pela inserção dos jovens no mundo do trabalho, conforme apontado nas narrativas acima. Ao mencionarem sobre as políticas de cursos profissionalizantes, as referidas autoras afirmam sobre uma possível "subprofissionalização" dos jovens em situação de vulnerabilidade social, quando se promove apenas "uma política de eliminação de riscos que mantêm o jovem pobre livre da criminalidade" (Sicari et al., 2015, p. 93), fazendo a rede intersetorial atuar de uma forma mais policialesca, e não como um instrumento mediador de práticas sociais emancipatórias. Para elas, apesar dos avanços conceituais, o trabalho socioeducativo não superou ainda a psicologização dos problemas sociais, sendo que quase sempre as falas dos profissionais "são substituídas por conselhos ou cobranças, como se as tais vulnerabilidades sociais [...] fossem resultados de escolhas malfeitas e, portanto, sinônimos de culpa" (Sicari et al., 2015, p. 97), individualizando algo que é uma produção histórica, cindindo a dimensão coletiva e singular que, para a Psicologia Histórico-Cultural, são esferas dialéticas.
Isto posto, as autoras afirmam a importância de criar espaços de encontros que potencializem a "construção coletiva de posicionamentos mais críticos e reflexivos" (Sicari et al., 2015, p. 96), atuando a partir de uma noção histórica, subjetiva, material, singular e coletiva do sujeito. De acordo com Gomes e Santos (2017), a atuação da psicologia orientada pelo materialismo histórico-dialético busca atuar nas incidências subjetivas decorridas dos processos de violação de direitos e vulnerabilidades, conferindo uma relação dialética às dimensões materiais e subjetivas.
Defende-se a necessidade de olhar o sujeito como uma construção social e histórica, tal como se propõe neste artigo, para que se faça barreira às noções individualistas e psicologizantes tão recorrentes no campo das políticas sociais. A perspectiva histórico-cultural, a partir da premissa de que a subjetividade se constitui a partir das relações materiais e concretas, fornece subsídio para compreender a autonomia e o protagonismo como práticas sociais historicamente construídas, sendo o trabalho psicossocial realizado no SUAS um mediador deste processo.
Assim, a partir desta visão, pensar em promoção de direitos significa superar as históricas dicotomias construídas entre material/subjetivo, interior/exterior e singular/coletivo. Concorda-se com Gomes e Santos (2017), quando afirmam que esta abordagem, por compreender os processos inter e intrasubjetivos a partir de uma lógica dialética e histórica, "colabora com a desconstrução de teorias que naturalizam, normatizam e patologizam determinadas práticas sociais, modos de vida e de relacionamento, modelos de desenvolvimento infanto-juvenil e configurações familiares" (p. 363).
A individualização e patologização da questão social também são apontadas por Lima e Silveira (2016, pp. 157-158), que problematizam a efetivação dos Direitos Humanos nas sociedades globalizadas e desiguais. De acordo com as autoras, no caso do Brasil, o processo histórico de construção dos direitos foi assolapado pelos efeitos dos ciclos de autoritarismo. Nesse sentido, as políticas sociais brasileiras são expressões desse processo caracterizado por ações fragmentadas, focalizadas, seletivas e meritocráticas, que individualizam e patologizam as múltiplas expressões da questão social, sendo dinamizadas "por relações de poder que tendem a refuncionalizar as lógicas dominantes", marcadas pela "adoção sistemática de mecanismos que associam disciplina, repressão e controle, o que reproduz a própria desigualdade" (Lima, & Silveira, 2016, p. 155).
Com base nas reflexões de Gándara Carballido (2014), Lima e Silveira (2016) consideram que a efetivação dos direitos humanos implica em constante reconstrução dos marcos teóricos, intervindo nos aspectos normativos, políticos, ideológicos, sociais, culturais e econômicos. Assim sendo, ao refletir sobre as ações do PAEFI em prol da garantia de acesso aos direitos, torna-se fundamental um olhar crítico para meras práticas de encaminhamento e de orientação, que podem estar induzidas pela lógica meritocrática, individualizante e reprodutoras das desigualdades. Considerando o processo histórico que delineia um Estado regulador da vida ante a questão social (Lima, & Silveira, 2016), tais reflexões serão aprofundadas no segundo tópico deste artigo no qual serão debatidas as práticas do PAEFI enquanto instrumento biopolítico de controle e gestão da vida de determinados grupos sociais na sociedade capitalista.
Intersetorialidade, Estado e violação de direitos: a atuação da rede intersetorial como um instrumento biopolítico e judicializador de grupos sociais subalternizados na sociedade capitalista
Em contrapartida às ações intersetoriais que favorecem o acesso a direitos como apontaram as narrativas destacadas no tópico anterior, o segundo núcleo de significação se refere a sensações de exposição e invasão expressadas por algumas pessoas entrevistadas no que concerne ao diálogo que o PAEFI estabelece com a rede. Os depoimentos a seguir colocam em questão as repercussões de posturas investigativas do trabalho social com famílias, quando o sigilo ético fica comprometido e uma postura normativa e policialesca por parte da rede intersetorial se faz presente.
A família dos cônjuges Maria (52, servente) e Marcos (50, sem atividade laboral) é constituída por seis pessoas, e a oferta de atendimento no PAEFI se deu há três anos. Segundo seus relatos, a demanda partiu de uma denúncia de suspeita de abuso sexual intrafamiliar contra dois netos do casal, sendo que uma das filhas da usuária vive em situação de rua. De acordo com o entrevistado Marcos, os profissionais do PAEFI "chamam" para atendimento, "que nem na delegacia [...] Eles querem saber alguma coisa, né? Ver se tá se passando alguma coisa de errado ou não. Se as crianças estão bem ou não" (Marcos). Na relação entre serviços, para a entrevistada Maria, o Conselho Tutelar e o PAEFI são "o mesmo: os de lá entram em contato com os de cá. Aí os de cá vêm aqui resolver os problemas que tem pra resolver" (Maria). A usuária enfatiza sentimentos de mal-estar diante da presença do PAEFI, expressando a vontade de encerrar o acompanhamento.
Carla (32 anos, cuidadora) teve seu núcleo familiar inserido no PAEFI a partir do encaminhamento de um CREAS de outra cidade por suspeita de sua filha (11 anos, com quem não tinha vínculo) ter sido abusada desde a primeira infância pelo avô materno. No decorrer do processo de acompanhamento no PAEFI, a filha passou por acolhimento institucional diante dos conflitos intrafamiliares. Após circular por diversos serviços - como o Conselho Tutelar, PAEFI, CAPS, Delegacia, Poder Judiciário e Casa de Acolhimento Institucional -, sentindo-se obrigada a comparecer nos atendimentos em prol da filha, a usuária apresentou sentimentos de recusa e objeção diante das intervenções do PAEFI. Sobre a articulação entre os serviços, a usuária manifesta que se sentiu profundamente exposta, comparando a rede a uma "máfia" que infringiu o sigilo ético:
Aí eu achei que minha vida foi muito exposta muito rápido [...] O PAEFI falava pra mim confiar neles que tudo que eu conversava com eles ali era sigilo profissional, eles falaram pra mim. Aí eu acabei me abrindo, eu sou muito fechada pra conversar. Aí como eles me falaram isso, eu acabei me expondo, falando o que eu sentia, o que eu não sentia sobre a minha filha... e no mesmo mês o PAEFI deu uma ordem pra minha filha ir pra um abrigo [...] Pra mim, é uma máfia ali: o PAEFI com o Conselho Tutelar e com o CRAS, que eles falam, também, que é o... é eu acho que é o CRAS que acho que fazia o atendimento lá psicológico e psiquiátrico [...] Aí a gente ia nos atendimentos lá com a psicóloga, mas tudo que ela ia falar, o PAEFI já tinha passado (Carla).
Além de haver provável troca e confusão entre os papéis do CRAS e do CAPS, ainda chama atenção na narrativa acima, quando o PAEFI é quem "ordena" o acolhimento institucional da filha da usuária. Tal significação faz pensar no quanto há mistura e/ou inversão da função entre os serviços nas práticas de articulação intersetorial na percepção da usuária. Carla atribuiu ao PAEFI o significado de serviço policialesco, ao se sentir monitorada e ameaçada a partir da abordagem da equipe.
Além disso, ela reforça que o diálogo equivocado do PAEFI com o judiciário, através de informes e documentação técnica sem atenção e consentimento, trouxe prejuízos em sua vida, repercutindo no rompimento da confiança e do vínculo para com o serviço:
Se elas queriam realmente me ajudar, elas deveriam de analisar o que iam mandar pro juiz, pro fórum e elas botavam tudo, tudo, tudo, tudo, que inclusive em juiz tava tudo aquilo que elas escreveram, tudo que eu falei, eles leram pra mim em juízo, entendeu? [...] Eu disse "também não quero. Eu tô muito assustada com tudo, então não quero nada... se eu quiser, a hora que eu tiver condições, daí eu vou pagar uma profissional particular, porque tudo que vocês estão oferecendo pra mim é só pra tirar informação e me prejudicar no momento" (Carla).
Os depoimentos acima ilustram como o trabalho psicossocial do PAEFI, quando baseado em posturas investigativas e julgadoras, pode provocar danos ao invés de contribuir com o acesso a direitos por meio da articulação com a rede. Na relação intersetorial do contexto investigado, as falas supracitadas dos usuários evidenciam sentimentos de mal-estar quando o serviço chama, monitora, observa, expõe, obtém informação, ordena, vigia e controla por meio de sua atuação ante o sistema de garantia de direitos. Os indicadores se referem a sensações de invasão, exposição e aversão diante de práticas que visam disciplinarização, controle, governamentalidade e gestão da vida, deturpando o que era para ser "acompanhamento psicossocial" em "monitoramento" junto às famílias atendidas.
Entre essas práticas consideradas fiscalizadoras, julgadoras e moralizantes, é possível cogitar a instauração de uma biopolítica no PAEFI. Tal conceituação foi formulada por Foucault (1999), e se caracteriza por um conjunto de formas diversificadas de disciplinarização, controle, governamentalidade e gestão da vida das pessoas, sobre as quais são dirigidos os mecanismos para se obter sobre elas certo efeito. Essas estratégias se estabelecem nas relações de poder com a finalidade de reger condutas e comportamentos, controlar corpos, governar a vida e seus processos (nascer, morrer, cuidar, estabelecer relações familiares, sexuais etc.).
Corroborando com as informações obtidas nesta pesquisa, o estudo de Dias (2017), ao analisar as práticas jurídicas de uma equipe de um CREAS do Rio Grande do Sul, identificou forças de individualização e culpabilização dos trabalhadores que os pressionam na direção da judicialização. Conforme a autora, nas relações entre serviços e na defesa de direitos dos usuários, os profissionais - diante da precarização das políticas públicas, associada à força privatizante característica da visão liberal - muitas vezes se sentem solitários, produzindo o fracasso individual como tecnologia de subjetivação e consequente culpabilização (Dias, 2017; Romanini, & Detoni, 2014). Dessa forma, imersos na racionalidade de governo da população e frente à diversidade de demandas, normas, prazos e prescrições, os trabalhadores ficam rígidos no cumprimento de tais regulamentações, e os usuários "se transformam em metas a cumprir e suas histórias em satisfações a dar" (Dias, 2017, p. 96).
Além disso, a "falta de apoio na rede intersetorial" foi identificada por Gomes et al. (2019, p. 60) como desafio, queixa recorrente e produtora de sofrimento entre os profissionais das políticas públicas da cidade de Florianópolis. De acordo com as autoras, as experiências singulares de sofrimento trazidas pelas trabalhadoras são resultados da "relação paradoxal historicamente construída entre o Estado brasileiro e a sociedade" (p. 57) que, de forma ambígua, assume o discurso da promoção dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que atua sob um modus operandi sustentado na regulação da vida e gestão das desigualdades sociais (Gomes et al., 2019; Lima, & Silveira, 2016; Oliveira, 2014). Salienta-se a importância da articulação intersetorial e da corresponsabilização entre as políticas em prol da defesa de direitos, porém de modo a evitar a individualização e/ou a culpabilização dos trabalhadores pela fragmentação e o descompasso latentes entre os serviços.
Sobre o sigilo ético, que alguns participantes da pesquisa relataram ter sido quebrado, Chaud, Gomes e Kluge (2017) reiteram que esse é um componente crucial do exercício ético da profissão, de modo singular, quando a obrigatoriedade jurídica é que faz operar o funcionamento dos atendimentos. Assim, cabe aos trabalhadores compartilhar apenas informações suficientes e relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o seu caráter confidencial (Conselho Federal de Serviço Social & Conselho Federal de Psicologia, 2007). Portanto, um dos desafios na dimensão ético-política para a atuação do psicólogo nos CREAS perpassa fundamentalmente pelo princípio ético do sigilo, no que tange a divulgação de informações em conversas e relatórios junto a rede intersetorial.
Como proposição de atitudes ante as demandas de violação de direitos no PAEFI, evoca-se para uma ética de um cuidado que não desconsidere o poder de escolha de cada sujeito (Kittay, 2011; Panisson, Gesser, & Gomes, 2018), mas que a abordagem do serviço nas ações intersetoriais aconteça a partir do diálogo e do consentimento dos sujeitos envolvidos, de modo a promover processos de apropriação de sua condição social e determinantes constituintes dela. Ressalta-se que o "fazer com" é diferente do "fazer pelo" usuário - o que denota em tutela (Andrade, 2018), em detrimento de um efetivo acompanhamento junto às famílias.
Diante disso, apreende-se que a abordagem do PAEFI implica o olhar para a singularidade das situações como produções coletivas e históricas, sendo que, desde a inserção das famílias no serviço, a postura de dialogia visa atenuar e reduzir os riscos e danos frente aos efeitos psicossociais da violência e violação de direitos. Nessa perspectiva, visa-se a contracorrente das ações vigilantes e policialescas, sendo que, em qualquer contexto de atendimento psicossocial, as estratégias devem aspirar posturas de respeito, cuidado e sensibilidade, visto que a equipe é "estrangeira" na família, a demanda geralmente parte de outrem e que o encontro sempre se dá na sua imprevisibilidade.
Conforme destacado no estudo de Gomes e Santos (2017), os orientadores teóricos da Psicologia Histórico-Cultural auxiliam na construção de práticas qualificadas, críticas e contextualizadas no âmbito do SUAS por conceber os processos psicológicos como, ao mesmo tempo, singulares e socialmente construídos. Assim, parte-se da ideia de que uma intervenção psicossocial sensível e dialógica é possível de ser construída na medida em que se trabalha "na singularidade de cada caso, na contextualização de cada sujeito, grupo, família e comunidade, impossibilitando qualquer intervenção que seja generalizada e apriorística" (Gomes, & Santos, 2017, p. 357). Ao encontro desse entendimento, um trabalho psicossocial que respeite o usuário na sua integralidade e na busca por seus direitos deve estar baseado em uma perspectiva ético-política voltada para o rompimento dos padrões normativos e opressores da diversidade humana e para a potencialização do sujeito (Gesser, 2013).
Portanto, a partir das noções teóricas da Psicologia Histórico-Cultural, é necessário manter uma postura dialógica de cuidado, em que o sujeito seja partícipe do seu processo, protagonizando em sua própria história de vida. Esta relação dialética exige flexibilidade e criatividade em prol de uma construção de confiança e vínculo com o usuário, algo que só poderá ser produzido na processualidade das relações intersubjetivas. De igual forma, entende-se que, junto a uma escuta singularizada das experiências, torna-se relevante a mobilização da rede em prol da garantia de direitos, da cidadania e de uma vida digna à população atendida (Gomes, & Santos, 2017). Seja com a rede, seja com o usuário, a aposta está na potência do encontro, envolvendo cada sujeito em seu processo sócio-histórico, de modo a fomentar práticas sensíveis e emancipatórias, de cuidado e de promoção dos Direitos Humanos.
Considerações finais
A presente pesquisa apresentou algumas significações produzidas pelos usuários de um serviço PAEFI da região Sul do Brasil sobre a atuação da rede intersetorial desenvolvida por esta instituição. Em linhas gerais, pode-se afirmar que os sentidos se enveredaram por dois principais eixos de significação: um deles é a percepção de que a articulação intersetorial favorece o acesso e a promoção dos Direitos Humanos; o outro é de que a atuação da rede é operada sob uma lógica policialesca, de controle e exposição das vidas privadas desses sujeitos e famílias.
As informações obtidas apontaram que, quando as práticas profissionais desenvolvidas no PAEFI atuam de forma intersetorial, elas contribuem para a garantia de direitos e para produzir transformações na realidade social dos usuários da política de assistência social. Além disso, elas favorecem a construção de respostas conjuntas e articuladas frente aos efeitos psicossociais da violência e da violação de direitos inerentes ao sistema capitalista. Todavia, identificou-se que, quando as práticas são baseadas em uma perspectiva de disciplinamento e gestão da vida, sem a preocupação de se contribuir para emancipação humana por meio da apropriação crítica da realidade experienciada pelo usuário, elas acabam corroborando com a manutenção das desigualdades sociais que, no contexto brasileiro, são marcadas pela colonização, racismo, autoritarismo e dependência econômica.
Diante da complexidade desse cenário que envolve a atuação em rede no PAEFI pesquisado, torna-se fundamental ampliar o debate sobre a rede intersetorial das políticas públicas - tema ainda pouco debatido nas pesquisas acadêmicas - de modo a oferecer subsídios teórico-metodológicos para que a lógica do trabalho em rede não seja limitada a questões técnicas, burocráticas, pragmáticas e operacionais. Salienta-se que a integração das ações das diversas políticas públicas é fundamental para a construção de práticas profissionais sensíveis e eticamente implicadas com a promoção de Direitos Humanos, construindo ações de cuidado, acolhimento e fortalecimento dos espaços democráticos. Sob esta perspectiva, entende-se que a Psicologia precisa se sustentar em uma postura ético-política de promoção da vida e dos direitos sociais, construindo práticas que estejam calcadas nas dimensões afetivas e políticas, configurando-se como um dispositivo subjetivo-político que promova acolhimento e cidadania.
Por fim, destaca-se a importância da realização de outras pesquisas que investiguem os modos de significação dos usuários em relação a rede intersetorial em outros setores das políticas públicas e nas demais regiões do país, já que este é um território marcado por profundas diferenças regionais. Além disso, seria interessante investigar os sentidos atribuídos também pelas equipes e gestores das políticas públicas - atores fundamentais nos processos de elaboração e execução de tais políticas. Dialogando com os sentidos atribuídos por estes diferentes atores institucionais - usuários, profissionais e gestores -, será possível construir um panorama mais ampliado e aprofundado sobre a complexa e paradoxal rede intersetorial construída e mantida pelo Estado e sociedade civil. Estudos futuros podem auxiliar na reflexão sobre o sigilo ético da profissão do psicólogo quando atuante junto ao poder judiciário, tema levantado, mas não aprofundado neste artigo.
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Endereço para correspondência:
Gelson Panisson
gpanisson@gmail.com
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marivete@yahoo.com.br
Marcela de Andrade
Gomes
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Submetido em: 28/09/2019
Revisto em: 03/01/2020
Aceito em: 27/02/2020
1 Alguns trechos dos depoimentos serão apresentados em itálico ao longo do texto, de modo a destacar expressões que enfatizam os indicadores e/ou conteúdos temáticos mais relevantes.