ARTIGOS

 

A violência, as mulheres e o Estado: dificuldades e estratégias

 

Violence, women and the State: difficulties and strategies

 

La violencia, las mujeres y el Estado: dificultades y estrategias

 

 

Letícia Bortolotto FloresI; Samara Silva dos SantosII; Isabel Maria Farias Fernandes de OliveiraIII

IMestra. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-3275-0688
IIDocente. Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-7171-5113
IIIDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal. Estado do Rio Grande do Norte. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-2153-762X

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é parte de uma pesquisa de mestrado que teve como objetivo caracterizar a Rede de Enfrentamento à Violência Contra às Mulheres em um município do Centro-Oeste do Rio Grande do Sul, Brasil. O acesso às participantes ocorreu a partir da estratégia de amostragem Bola de Neve. O estudo contou com 11 participantes provindas de diferentes esferas da Rede de Enfrentamento municipal. Foram analisadas as principais dificuldades e estratégias relatadas pelas participantes no trabalho de Enfrentamento à violência contra a mulher. Como principais dificuldades, foram apontadas: a falta de investimento do Estado, a desestruturação/fragmentação da Rede e a individualização/pessoalização do trabalho prestado. Como principais estratégias: a formação de vínculos pessoais de trabalho e o desenvolvimento do trabalho voluntário para suprir as lacunas. As conclusões apontam para uma rede despolitizada, fragilizada e distante de seus ideais garantidores da cidadania.

Palavras-chave: Colaboração intersetorial; Políticas Públicas; Gênero; Violência contra as mulheres.


ABSTRACT

This article is part of a master's research that aimed to characterize the Combat Network of Violence Against Women in a western center city of the state of Rio Grande do Sul, Brazil. Participants of the study were accessed by Snowball sampling method. The sample was constructed by indication from the participants themselves. The study included 11 participants from different sectors of the Combat front. The main strategies and difficulties highlighted by the participants in their work with the combat of violence against women were analyzed. The main difficulties were pointed out as: the lack of State investment; the restructuring/fragmentation of the Network; individualization/self-personalization of the work. The main strategies were pointed out as: construction of personal ways of strategies; development of personal ties of work; and the development of voluntary work to fill the gaps. The conclusions point to a depoliticized network, fragile and distant from its ideals of providing guaranteed citizenship.

Keywords: Gender public policies; Intersectoral collaboration; Violence against women.


RESUMEN

Este artículo es parte de una investigación de maestría que tuvo como objetivo caracterizar la Red de Enfrentamiento a la Violencia Contra las Mujeres en un municipio en el Centro-Oeste de Rio Grande do Sul, Brazil. El acceso a los participantes se basó en la estrategia de muestreo de Snowball. El estudio incluyó a 11 participantes de diferentes ámbitos de la Red de Enfrentamiento municipal. Se analizaron las principales dificultades y estrategias informadas por los participantes en el trabajo de Enfrentamiento a la violencia contra la mujer. Se señalaron las principales dificultades: la falta de inversión por parte del Estado; la desestructuración/fragmentación de la Red; y la individualización/personalización del trabajo prestado. Como estrategias principales: la formación de vínculos de trabajo personal y el desarrollo de trabajo voluntario para llenar los vacíos. Las conclusiones apuntan a una red despolitizada, debilitada y distante de sus ideales que garantizan la ciudadanía.

Palabras clave: Colaboración intersectorial; Políticas Públicas; Género; Violencia contra las mujeres.


 

 

Introdução

O processo de transição à democracia na década de 1980 permitiu a abertura para as demandas sociais, consideradas menos relevantes nas décadas passadas. Nesse contexto, as propostas feministas, embasadas pelas lutas coletivas das mulheres, e as questões relativas às diversas violências sofridas por elas adquiriram maior força. Em meio às lutas por direitos sociais, buscava-se políticas que se preocupassem em atender, não somente à problemas específicos compartilhados por determinados grupos de mulheres, mas, fundamentalmente, em afetar os mecanismos que criam obstáculos para a efetivação da igualdade de oportunidades em todas as esferas da vida social. O caminho para firmar políticas com este propósito ressalta a necessidade de se construir uma institucionalidade estatal responsável por trabalhar sobre as desigualdades de gênero que auxilie o fortalecimento de ações, planos e projetos que direcione a melhoria nas condições de vida de mulheres (Conteratto, & Martins, 2016; Godinho, 2000; Guzmán, 2000; Machado, 2016).

No meio acadêmico e político, a atuação das frentes de luta e militâncias possibilitaram o reconhecimento das violências contra as mulheres como um problema social, fato que demanda estudos científicos e meios de enfrentamento a partir de Políticas Públicas, organizadas e viabilizadas pelo Poder Público (Machado, 2016). Nesse ponto, as forças coletivas acreditavam na ocupação do Estado como possibilidade de mudança nas situações de opressão e exclusão social. A definição de Políticas Públicas pode ser mais bem explicada por Prá (2002), sendo o resultado das tensões entre sociedade e Estado, elaboradas como um conjunto de procedimentos que buscam transformar as demandas sociais em prioridade política, e em objeto de decisões governamentais. Dessa forma, os direitos sociais são concretizados e garantidos por lei, tendo diferentes atores, provenientes do Estado e da sociedade civil, envolvidos na sua resolução (Prá, 2002). No entanto, para garantir a efetividade dos direitos sociais conquistados, não basta apresentá-lo por escrito, constitucionalmente, é necessário um plano de ação contínuo, construído com base na experiência concreta, material e singular de cada um, mas que reverbera numa experiência concreta, material e múltipla, capaz de fazer laço e conectar o comum, a comunidade (Monteiro, Coimbra, & Mendonça Filho, 2006).

Na consolidação de um destes planos de ação, público, que foi resultado de lutas coletivas é que em 2003, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), uma série de ferramentas e propostas em gênero, principalmente no que tange ao enfrentamento à violência contra as mulheres, começaram a ser implementadas, visando um trabalho articulado de ações da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como de ações não governamentais (Brasil, 2011a, 2011b, 2011c, 2013). Houve a ampliação das ações, que passaram a incluir a prevenção, a garantia de direitos e a responsabilização dos homens autores de violência, além de envolver profissionais e atores sociais de variadas frentes de trabalho, serviços e instituições. Assim constituída, a Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres encontra-se articulada a partir do princípio da intersetorialidade, ou seja, pressupõe a articulação/soma/síntese/rede de setores (ou até mesmo a própria superação da fragmentação destes) de forma a trabalhar a totalidade do problema social apresentado, contando com a participação do conjunto das organizações governamentais, não governamentais e informais, comunidades, profissionais, serviços, programas sociais, setor privado, bem como as redes setoriais (preconizadas pelas políticas pontuais) (Brasil, 2011b; Pereira, 2008).

A intersetorialidade consta como uma nova lógica de gestão, que visa a otimização de saberes, estruturando competências e conhecimentos em prol de um objetivo comum (Pereira, 2008). Contudo, há o contraponto que sustenta a dinâmica geral do Estado em que essas políticas estão sendo construídas, principalmente quando se discute políticas pontuais em relação às mulheres. Embora as políticas de Estado tenham característica de manutenção e garantia do bem-estar social, quem organiza estas políticas, em determinado momento, é um governo determinado, podendo, assim, refletirem, em sua aplicação, perspectivas políticas, sociais e de classe (Godinho, 2000). Desta forma, diante da ordem atual seguida pelo Estado vigente, a própria noção de aplicabilidade de uma rede intersetorial é colocada em questão, visto que, embora haja esforços para a promoção de uma Política que seja adequada ao combate da problemática referida, as diretrizes tendem a adquirir funções, apenas, de suavização das tensões sociais, agindo de forma parcializada e fragmentada, sem visar eliminar as bases de sustentação geradoras do problema (Barbosa, 2006; Oliveira, & Amorim, 2012; Yamamoto, 2003).

A realidade das Políticas Públicas no Brasil, com a adoção das Políticas Neoliberais - que vêm se intensificando desde a década de 1990 - direciona para um cenário de flexibilização e recuo do papel do Estado enquanto regulador das relações sociais, incluídas as relações de mercado, além da redução dos gastos públicos (Barbosa, 2006; Moreno, 2017; Pereira, Tassigny, & Bizzaria, 2017). Segundo Montaño (1999), a implementação do projeto neoliberal provoca uma distorção no significado político do Estado e das demais organizações jurídicas e políticas que lhe dão sustentação. Ainda, conforme o autor, é almejada uma "des-economização das relações políticas e a des-politização dos fenômenos tanto econômicos quanto sociais; com isto obtém-se a des-historização do real (o pretendido fim da história)" (Montaño, 1999, p. 57). Os valores advindos do neoliberalismo - individualismo, liberdade de expressão, produção em série, entre outros - colaboram com uma noção de relativismo. As Políticas Públicas, gestadas pelo Estado no interior da ordem capitalista burguesa, sofrem com o impasse de serem mantenedoras do status quo, adquirindo uma função de suavização das tensões sociais, sem visar eliminar as bases de sustentação geradoras do problema (Yamamoto, 2003). Politicamente, isto é um reflexo do redirecionamento das prioridades que passam a compor a agenda do Estado diante do projeto político neoliberal, características que vão de encontro aos ideais apontados pela ação intersetorial e de rede.

Para além das questões políticas, há também a preocupação com as questões estruturais, geradoras das resistências culturais às mudanças nas relações de gênero, que podem ser visualizadas pelos comportamentos relativos à intolerância, conformismo e negação (Rabelo, 2015). Fenômenos como a naturalização dos comportamentos agressivos e a culpabilização das vítimas colaboram para que a violência de gênero não seja compreendida como relevante para uma parcela significativa da população, tornando importante a responsabilização e conscientização Estatal para lidar com o assunto. Nesse sentido, as ações oriundas do Estado, desde o momento da denúncia até o julgamento, compõem um quadro essencial para que essa violência de gênero, aqui focada na violência contra as mulheres, seja enfrentada e, consequentemente, deslegitimada (Godinho, 2000; Guzmán, 2000).

Diante do cenário de relativização e desinvestimento nas Políticas para as mulheres e demais aparatos para a suavização da questão social, buscou-se conhecer o atual funcionamento da Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres em um município localizado no Centro-Oeste gaúcho. Foram analisadas as principais dificuldades vivenciadas pelas participantes do estudo no que se refere à atuação na rede local, assim como suas estratégias para lidar com as dificuldades apresentadas.

 

Método

Esta discussão parte de uma pesquisa de mestrado que buscou explorar o desenvolvimento da Rede de Enfrentamento à Violência Contra às Mulheres em um município no Centro-Oeste do Rio Grande do Sul (RS), Brasil. A pesquisa se propôs a realizar um mapeamento, no qual foi possível analisar, a partir de entrevistas semiestruturadas, as orientações e ações executadas em meio às atividades desempenhadas por esta rede. Tratou-se de um estudo qualitativo de cunho exploratório, desenvolvido durante o ano de 2018.

A coleta foi conduzida a partir da estratégia de amostragem Bola de Neve (Vinuto, 2014), que possibilitou o fluxo de contato a partir de uma rede de indicações. A escolha por esta estratégia de amostragem se deu devido à ausência de um mapeamento oficial dos serviços envolvidos com a problemática da violência contra a mulher. Como o município conta com uma base de Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM), este serviço foi escolhido como semente do estudo por configurar uma das portas de entrada da rede.

Cada pessoa entrevistada foi responsável pela indicação de outros participantes, provenientes de sua própria rede de contato, para dar continuidade à amostra. No total, 11 participantes fizeram parte da pesquisa, sinalizando diferentes ligações e relações de trabalho com a problemática, variando de agentes diretamente ligados aos serviços especializados de atendimento, agentes de serviços de atenção primária, pessoas atuantes em universidades ou simpatizantes/militantes da causa. Destes 11 participantes, nove foram mulheres, o que justifica a flexão para feminino e apropriação de alguns termos. As participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e responderam a uma entrevista semiestruturada com 12 questões, as quais remetiam a sua trajetória profissional e atuação direta na Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher na cidade. Optou-se a denominação de atoras1 para as participantes do estudo. As entrevistas foram gravadas e transcritas, para, assim, serem submetidas a uma análise de inspiração bardaniana (Bardin, 2009), passando pelas etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, que possibilitou a construção, a posteriori, de categorias empíricas. A elaboração deste artigo partiu das respostas de duas perguntas: "Quais as principais dificuldades do seu trabalho?" e "Você consegue pensar em estratégias para enfrentar as dificuldades que encontra?". A discussão de análise foi proposta a partir das seguintes categorias: "1- Dificuldades" e "2 - Estratégias".

Levando em consideração a flexibilidade possibilitada pela condução de um roteiro de entrevista semiestruturado, as respostas para as perguntas exploradas nem sempre apareceram de maneira organizada e completa apenas nas questões pautadas. Desta forma, a pré-análise e a divisão do material ocorreram a partir da leitura exaustiva das transcrições, separação e categorização dos trechos que pudessem corresponder às categorias elencadas. Assim, foram enumeradas as unidades de registro, que se referem a palavras, frases e expressões que dão sentido ao conteúdo das falas e sustentam a definição das categorias. Para a última fase, de tratamento dos resultados, as categorias incorporam significados, derivados das inferências e interpretações acerca dos resultados de acordo com a fundamentação teórica construída. Os dados serão, a seguir, organizados nas categorias: 1. Dificuldades e 2. Estratégias.

 

Resultados

Unidade temática 1 - Dificuldades vividas no trabalho

A análise da categoria "Dificuldades" aponta para a centralização de problemáticas no que envolve a falta de investimento e no resultante sucateamento da estrutura física das instituições de apoio e a desvalorização de agentes. Atenta-se para este quadro como propiciador de estratégias de trabalho individualizadas e de contextos em que as participantes se sentem descredibilizadas em seu potencial criativo para propor soluções alternativas. Assim, a desestruturação proveniente da falta de investimento nas políticas de Enfrentamento foi apresentada pelas participantes em diversas esferas, sendo as principais reclamações a baixa remuneração e a falta de estrutura/ferramentas de trabalho.

A gente faz nosso trabalho da melhor maneira possível, mas a gente sabe que teríamos melhores condições se nós tivéssemos melhor pagamento (Entrevista 2).

Como é público a gente tem muita limitação né, aí entra desde o financeiro, até pra se deslocar [...] queria poder fazer mais coisas, mas é impossível fazer com as ferramentas que tu tem. E a gente entra num sofrimento quando a gente não consegue as coisas assim como a gente gostaria, né, então... claro, dificuldades a gente tem, mas a gente não pode desistir (Entrevista 11).

Também como forma de desinvestimento, é possível visualizar a falta de profissionais e de serviços na composição da Rede.

[...] na verdade, o município está negligenciando uma atenção que, pra nós aqui, é relevante. A gente dá todo esse suporte, e depois assim, nosso trabalho parece que, sabe? Desanda... no sentido, assim, a gente fortalece, as fortalece pra terem uma vida fora daqui, mas chega lá fora o que que elas vão faze? (Entrevista 2).

Quando eu me pergunto assim a questão do porquê que eu acho que a rede não funciona, [...] é bem importante a gente lembrar a questão de não se ter uma Política Pública né pra isso, eu já falei e e muito menos de governo, porque os últimos governos também não tem investido nisso, então assim fica aquela coisa assim de ah uma determinada gestão se começa a pensar e troca a gestão e... e isso que nem se teve um movimento, um movimento muito frágil muito pequeno pra questão da violência (Entrevista 8).

O desinvestimento público nas políticas referentes à violência contra as mulheres aparece muito interligado com a não efetivação do trabalho em Rede. Este ponto denuncia a responsabilidade Estatal pelo não funcionamento de serviços e pela falta de direcionamentos necessários.

Porque tu não tem uma rede de proteção que tu tinha que ter. Se o Estado não protegeu antes da violência ele tem que proteger depois! É isso que diz né, e daí não, não acontece nada pra quem não faz com que as coisas aconteçam. [...] a última vez que a gente foi na câmara de vereadores, falaram que não tinha dinheiro, [...] e esse papo de não tem dinheiro, engraçado, um governo tem dinheiro, passa governo não tem dinheiro né, daí ficam dizendo que não tem dinheiro, cadê o dinheiro? sumiu o dinheiro? se o imposto que eu pago é o mesmo né? (Entrevista 7).

[...] onde é que o Centro de atendimento à mulher? Não existe. [...] A gente falar é muito fácil, a gente quer ação, não adianta nós tá conversando e não ter ação lá fora. Ela tá precisando dum emprego, ela tá precisando se inserir na sociedade. A onde tá o trabalho das políticas públicas pra ajudar? Nós não podemo fazer sozinha, nós temo o nosso trabalho, que é acolher (Entrevista 2).

[...] o que eu percebo é que falta um apoio da gestão muito grande, a gestão principal não enxerga as questões de violência, a rede de saúde mental que é uma das pontas muito importantes pra dar continuidade [...] ela não existe, né, pra mim assim, o fechamento do ambulatório de saúde mental, sobrecarga nos CAPS [Centro de Atenção Psicossocial], né tudo isso ahn... fechamento do hospital, ahn unidade de internação psiquiátrica dentro do hospital que tudo isso mostra uma falha muito grande na rede de saúde mental, então se essa linha, se essa ponta da rede não funcionar, que é primordial, não tem como a rede se formar (Entrevista 8).

Lidar com o poder público, lidar com políticas públicas, é muito delicado, porque tu precisa não só desse respaldo das pessoas, mas do Ente público, porque o conselho é um órgão da prefeitura né e se a gente não consegue uma agenda com o nosso prefeito, ai definitivamente a gente percebe que tá atada, que tá de mãos atadas assim (Entrevista 10).

O desenvolvimento de estratégias pessoais frente ao cenário de desinvestimento e fragmentação também é apontado como dificuldade. As participantes relatam o desgaste pessoal e grande envolvimento com o trabalho desenvolvido como preocupações frequentes.

[...] essa questão de violência doméstica que, anh que é uma questão que estressa, que gasta [...] quem está aqui dentro da delegacia trabalhando é porque quer e porque gosta, porque quem não, não consegue ter essa empatia com a questão ela vai embora, bem cedo, não consegue ficar (Entrevista 1).

[...] e acho que isso é uma das coisas porque, o que que acaba acontecendo, as pessoas acabam trabalhando aqui em cima óh, se matando aqui em cima, não conversam, fazem o que dá pra fazer (Entrevista 4).

Além do investimento emocional individual, também é possível visualizar que, em algumas situações, as participantes são obrigadas a investir financeiramente para o desenvolvimento de atividades.

[...] não é fácil, se fosse fácil todo mundo fazia, não é fácil fazer trabalho de base, trabalho com grupo de mulheres tudo, tem que insistir tu tem que botar do teu dinheiro, tu tem que investir teu tempo, teu recurso, tua energia [...] (Entrevista 9).

Unidade temática 2 - Estratégias de enfrentamento às dificuldades vividas no trabalho

Na categoria "Estratégias" são apontadas as soluções arquitetadas pelas participantes para dar conta das dificuldades oriundas do trabalho na Rede. Dentre as possíveis formas de lidar com as dificuldades, as participantes destacam, quase que unicamente, o uso de estratégias pessoais. Essas, perpassam métodos de resistência, uso da criatividade para lidar com as ferramentas disponíveis, tolerância, estudo e busca por formação continuada. Além da valorização dos vínculos pessoais como forma de apoio e o trabalho voluntário.

Estratégias pessoais daí né? é, é, eu tenho trabalhado muito a minha resiliência. E não só nesse momento e nesse grupo [grupo reflexivo com homens autores de violência], mas quando a gente trabalha com violência, a gente trabalha muito com a nossa resiliência como profissional. [...] resiliência também, no momento em que a gente faz todo um trabalho, com aquela pessoa, e ela sai dali e não tem ninguém, então ela cai num abismo né. Tu deixa ela preparadinha, vai, vai a lugar nenhum né, não tem pra onde ir muitas vezes, porque é uma rede que não tem apoio [...]. Então é muita resiliência nisso, a gente faz todo um trabalho, mas tu sabe que talvez ali na frente não vá ter continuidade e mesmo assim tu continuar fazendo (Entrevista 5).

Eu acho que é muito falho na formação, acho que é a grande lacuna que a gente tem na saúde são as questões de gênero né, e também a questão da violência [...]. Outra questão que eu acho muito difícil é que a gente não aprende a trabalhar em rede né, eu comecei a aprender isso na residência multi e acho que é por isso que eu tenho esse olhar também a partir dessa formação mais multiprofissional (Entrevista 8).

Eu sempre procuro estudar, eu leio, eu gosto de ler pra entender as questões assim, e a questão que eu uso muito é a questão da empatia, de me colocar no lugar das pessoas que tão vivenciando isso pra pra tentar traçar um caminho que eu... que eu enquanto cidadã percorreria (Entrevista 9).

As estratégias pessoais podem aparecer como forma de tentar lidar com as dificuldades de maneira individualizada, mostrando uma interpretação que direciona à responsabilização destas atoras para que a construção da Rede seja efetivada.

[...] Então eu acho que o maior impacto é dormir hoje, acordar amanhã e dizer o que que eu vou fazer hoje pra modificar esse cenário? nós temos como fazer, é atuar no micro pra modificar no macro [...] as pessoas não são mais importantes, a gente tá num mundo em que as coisas são mais importantes então a gente tá nesse caos, mas a gente tem que criar essa rede (Entrevista 6).

Salienta-se a importância da articulação e mobilização de diferentes setores. Há um esforço das participantes para a construção de vínculos e contatos. A mobilização busca uma melhor abordagem para questões relacionadas à prevenção da violência, de forma a fortalecer o canal de comunicação e aproximação entre as estratégias e a comunidade.

[...] porque tu tando no meio tu, tu conhece né. Por exemplo, te chamam pra falar num determinado lugar, a [delegada] vai tá junto. Te chamam pra tal lugar, a enfermeira que trabalha com isso tá junto. Então tu acaba, tu acaba trocando, conhecendo, né. E, e, e, cada uma sabe o que a outra faz. Mas pessoalmente, parece que é muito mais pessoalmente do que, do que institucionalmente (Entrevista 4).

Falando em rede, eu acho que é fundamental a gente se enxergar dessa forma, sabe, tem alguém lá na academia no terceiro semestre, tem uma mestranda tem um advogado tem uma psicológica tem um juiz tem uma delegada, e tudo isso a gente tem que se olhar e tem que enxergar uma linha, sabe de dizer assim tá eu sei que eu posso contar (Entrevista 6).

Entretanto, esta construção é feita, principalmente proveniente da rede pessoal das atoras. O contato, que ocorre de forma não institucionalizada, é realizado a partir de um trabalho de auxílio mútuo.

A maior estratégia é o apoio, é a rede [pessoal] [...] tem as parceiras, tem um pessoal que é todo...noutras pessoas que também as reuniões que a gente faz [se referindo as reuniões do GT violência] é participando de grupo de enfrentamento, é pra gente se apoiar pra gente não desistir, porque se a gente começar a olhar pra essas dificuldades, a gente desiste se não tiver apoio, "não vamo lá gente, vamo ir no MP [ministério público], ver documento, vamo movimentar isso [...] tu ve que não tá sozinha lutando faz muita diferença" (Entrevista 11).

Um ponto que merece destaque parte da prestação do trabalho voluntário como estratégia de fortalecimento da Rede. Esse apoio deriva, na maioria das vezes, do auxílio das universidades, mostrando que aproximação com a comunidade, em determinados momentos, é articulado com características de oferta de serviço.

[...] mas o que nós temos aqui são 2 faculdades, a [nome da Instituição] e a [nome da Instituição] né que nos tem possibilitado esse acompanhamento além de psicólogas voluntárias que atuam aqui também então é o que a gente ta ah é tem outro serviço que eu tinha esquecido que é de oficinas de parentalidade, pessoal da [nome da Instituição] faz também, que a gente encaminha as pessoas pra lá também (Entrevista 3).

A principal problematização, aqui, centra-se no papel da universidade como prestadora de um serviço que, em tese, é de responsabilidade do Estado. Fator que se difere, essencialmente, do trabalho que seria prestado com formação em atividades de extensão e pesquisa. As ações de Extensão Universitária possuem como pressuposto a atuação e diálogo permanente junto à comunidade, levando o conhecimento científico de forma direta à sociedade a fim de promover ações capazes de transformação. Todavia, a presença da universidade na comunidade, frequentemente vista e confundida como uma ação voluntária e não como o retorno do investimento em educação, muitas vezes, é a única forma de vínculo prestado por algumas categorias profissionais nos serviços.

A gente tem psicólogos voluntários pra quem a gente direciona as famílias que aceitam ne, a gente tem as faculdades de psicologia que também dão suporte, a gente tem os voluntários que trabalham com justiça restaurativa, agora nós estamos iniciando grupos de diálogos de homens e vamos iniciar em breve grupo de diálogos de mulheres, são basicamente esses os encaminhamentos (Entrevista 3).

O vínculo voluntário aparece como uma estratégia para lidar com a falta de profissionais, podendo, em algumas falas, passar por uma compreensão de responsabilidade civil para auxílio com a problemática.

[...] cursos de amparo, digamos assim, é fundamental pra auxiliar, quando a gente pensa o que a gente pode fazer, vocês três, tem um objetivo em comum, criem um projeto, cheguem no [juizado] e digam: "uma vez por semana eu gostaria de vir aqui e oferecer atendimentos psicológicos gratuito", vocês conseguem isso, ele [o juiz] vai te dar abertura, sabe, criar uma periodicidade, fazer um projeto que tenha um cunho permanente, nunca é, mas que tenha algo mais duradoura (Entrevista 6).

A partir da apresentação das categorias, propõe-se a discussão conjunta das mesmas, refletindo sobre as implicações das respostas das participantes sobre dificuldades e estratégias no trabalho frente a violência contra as mulheres. Desta forma, convém propor questionamentos a respeito do que as participantes apresentaram como queixa, perguntando, afinal, qual a real motivação desta atual conjuntura? Como se explica o distanciamento das estratégias propostas nos documentos oficiais para a realidade apresentada no município? O que justifica a existência destas dificuldades na realização do trabalho com o Poder Público em relação às mulheres? Tendo estas inquietações como norte, é proposta a argumentação a seguir.

 

Discussão

A discussão a respeito dos resultados foi construída partindo das similaridades vistas no conteúdo das falas, além dos sinais de mediações que podem ser traçados entre as problemáticas descritas. Como ponto inicial, convém tomar nota sobre a atual conjuntura política em termos de Federação, Estado e Município, compreendendo o fenômeno acima apresentado, principalmente, partindo das demarcações e limitações apresentadas pela agenda neoliberal (Antunes, 2009; Moreno, 2017). O estado do Rio Grande do Sul foi, de 2013 à 2015, articulado a partir dos princípios da Rede Lilás: Rede de Enfrentamento e Atendimento Especializada à Mulheres em Situação de Violência (Decreto nº 50.914, 2013), que foi responsável por compor estratégias de fortalecimento dos espaços estaduais e municipais específicos para a aplicação das Políticas Públicas para as mulheres, dispondo de ferramentas para o combate dos mais variados tipos de violências. A implementação da Rede Lilás, representou o recorde de investimento do Estado com Políticas para as Mulheres, gerando, na época, a ampliação da oferta de serviços direcionados às mulheres e a formação e capacitação em políticas de gênero (Mesa, 2014). Nas comparações entre o Brasil e o Rio Grande do Sul, verifica-se, em algumas situações, que o estado encontrava percentuais de investimentos e implementações mais elevados do que o país. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2010, 2014), a proporção de municípios com estrutura para gestão das Políticas Públicas de gênero (contando com um órgão gestor com capacidade para formular e implementar políticas voltadas para as mulheres) em 2009 era de 18,7% no nível Federal, e 18,3% no estado. Em 2013, houve um aumento considerável nesse percentual, que passou a ser 27,6% e 30,8%, respectivamente (IBGE, 2010, 2014; Martins, & Conteratto, 2018).

Estes dados, contudo, sofrem significativas mudanças após o início de um período de crise política e orçamentária. A crise administrativa, relativa à reforma ministerial de 2015, resultou na redução dos investimentos e direcionamentos de gastos específicos para as políticas para as mulheres, tendo como desfecho desta situação a perda do status de ministério da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) e, no RS, a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Rio Grande do Sul (SPM-RS) (Conteratto, Martins, & Leal, 2017). Como reflexo imediato da redução, há um corte significativo nas verbas destinadas aos serviços de Atendimento (conforme apontado na entrevista 8), assim como no financiamento de ações, estratégias e pesquisas direcionadas à temática. Diante disso, artifícios que ainda estavam em fase de consolidação perdem sua força motriz de desenvolvimento, com o desestímulo adicional da redução de verbas, estagnação ou redução de salários, fechamento de serviços, entre outros fatores que colaboram para o não funcionamento e não desenvolvimento de planos voltados para política de enfrentamento à violência.

Esse cenário foi exposto pelas participantes que, em diversos momentos parecem vivenciar consequências destes cortes, como a falta de recursos (mais explicitado nas entrevistas 2, 8 e 11) e falta de serviços para onde direcionar a mulher (entrevista 2). Algumas falas trazem uma construção histórica, baseada na memória das entrevistadas, a respeito de outros momentos da gestão caracterizados por diferentes formas de funcionamento e priorização do investimento público nos setores ligados com as políticas para as mulheres (entrevistas 7 e 8). Assim, é aberto o questionamento sobre o atual direcionamento de gastos, responsabilizando a falta de apoio da gestão atual para com a situação exposta.

Conforme anteriormente explicitado, a falta de investimento tem como consequência a diminuição de profissionais contratados, a redução dos salários, bem como a fragmentação dos serviços, que fazem parte das frentes de trabalho. A trajetória, os investimentos e a integração de objetivos dos serviços na Rede ficam condicionados aos momentos e interesses políticos da gestão, comprometendo a qualidade e a constância das estratégias e serviços prestados. De acordo com Yamamoto (2007), as dificuldades caracterizadas vão ao encontro do fenômeno da precarização. Segundo o autor, a precarização é traduzida, por meio de dois mecanismos: a descentralização dos serviços (que implica a responsabilização individual/local e oferta de serviços deteriorados e sem financiamento) e a focalização (especificidade no atendimento para um público que comprova sua condição de pobreza).

O desinvestimento em prol de determinadas políticas, e em detrimento de outras, ocorre tendo em vista o benefício do mercado, o que causa consequências à população, principalmente a população mais pauperizada, que têm nas políticas seu único acesso ao amparo e assistência. Nesse sentido, chama atenção as estratégias que abordam questões referentes ao trabalho voluntário (entrevistas 3 e 6). Yamamoto (2007) discute o aspecto regressivo do gasto público no setor social - representado neste estudo pelas políticas para as mulheres - a partir do esforço para que se criem maneiras de suprir as lacunas geradas pela falta de estrutura e redução do financiamento Estatal. Desta maneira, abre-se espaço para a (re)filantropização das respostas à questão social, ou seja, a transferência para o âmbito da sociedade civil de parte da responsabilidade pela oferta de serviços - apresentada, dentre outras formas, pelo trabalho voluntário. Ainda, há o ponto que, diante desta situação de falta e necessidade de ação, a atuação voluntária parece preencher algumas lacunas pessoais e sociais, permitindo àqueles que a praticam que sejam mobilizadas diferentes formas de satisfação de necessidades individuais, em diferentes níveis. Entretanto, conforme Caldana e Figueiredo (2008), a realização dessas atividades voluntárias podem aliviar as tensões e as lacunas, mas não são suficientes para contrapor ou alterar o sistema de atenção deficitária.

É importante salientar, também, o movimento de despolitização desta Rede. Este fenômeno, é apontado por Barbosa (2006) como a intensificação da noção de distanciamento entre a política e o "direito a ter direitos", retirando o Estado do posto de garantidor de bem-estar social. Nesse contexto, as estratégias de enfrentamento vão sobrevivendo com a aplicação de planos pontuais, centrados em estratégias individualizadas, fragmentadas, com funcionamento debilitado, o que acabará por auxiliar, posteriormente, na sua extinção como direito social.

Há, ainda, o ponto a respeito da construção dos vínculos a partir de manejo pessoal pelas participantes (fator possível de ser visualizado em todas as entrevistas, mas mais especificamente apresentado nas 1, 4, 5, 6 e 11), sendo a formação da rede (mais facilmente visualizada na ligação entre os serviços da Rede de Atenção) muito voltada para o grupo de apoio individual de cada informante. A característica de rede de contatos, apontada pelas participantes, pode ser descrita conforme categorização de Rede Social, apresentada por Marteleto (2001). Na Rede Social, há a valorização dos elos informais e das relações, em detrimento das estruturas hierárquicas. As atoras utilizam das redes como uma estratégia de ação no nível pessoal ou grupal, gerando instrumentos de mobilização de recursos (Marteleto, 2001; Rogers, & Kincaid, 1981). Dessa perspectiva, as redes propostas por "vínculos pessoais", que foram tomadas como subcategoria de análise a partir das falas referentes à categoria "Estratégias" (e as relações que as constituem), são também pensadas a partir dos fluxos de informações, objetos e pessoas que nela transitam. Diante deste contexto, se percebe a importância da escolha da determinada técnica de amostragem (Snow Ball) para o acesso às participantes, visto que a formação de redes pessoais não se encontra institucionalizada, portanto, não é acessível para os sujeitos que estão fora dela.

Outro aspecto que deve ser considerado é o das relações de divergências que são sustentadas como desafios ao trabalho intersetorial. Há uma complexidade no processo de trabalho na intersetorialidade que pode vir a gerar desacordos entre profissionais, que devem superar os conflitos entre os diferentes tipos de conhecimentos e posicionamentos em prol de decisões coletivas (Romagnoli, 2017). Desta forma, a complexidade do fenômeno violência pressupõe da necessidade de amparo e preparação das atoras para um trabalho voltado a essa temática. O sofrimento é presente em algumas falas (entrevistas 1 e 11), o que atenta para a difícil tarefa de lidar com um fenômeno complexo de maneira individualizada, fragmentada e unilateral. Diferente do que é demonstrado como principal estratégia pelas participantes, a forma de lidar com essas problemáticas não deve perpassar a responsabilização individual. A resiliência, evocada em uma das falas, reflete o pensamento neoliberal cujo enfrentamento, centrado no indivíduo, no seu sucesso e fracasso, depende somente dele. Pelo contrário, o enfrentamento a essa problemática precisa superar a reação individualizada e arquitetar uma resposta ou resistência coletiva. Portanto, deve sim partir de uma responsabilização do Estado para com o financiamento, com formações para os agentes, conferências, regulamentações e com a atenção voltada para a avaliação e acompanhamento da aplicação das políticas. Todos estes atos devem estar de acordo com os preceitos direcionados pelas políticas de Enfrentamento, garantindo que sejam possíveis ações de intersetorialidade, além da realização periódica de uma avaliação dos programas introduzidos, a fim de verificar se os objetivos iniciais desses programas estão sendo alcançados de maneira efetiva (Conteratto, & Martins, 2016). Acima de tudo, para uma melhor preparação para um trabalho intersetorial, também é necessário atentar para a formação desses profissionais, prezando pela superação dos saberes fragmentados, pela articulação de práticas psicológicas que respeitem, valorizem e que promovam visibilidade aos modos singulares de vida, que operam no sentido de reinventar possibilidades de atuação e não no sentido de adequar ou reproduzir mecanismos de controle e disciplinares de normatização da vida (Silva, & Carvalhaes, 2016).

 

Considerações finais

O estudo possibilitou a construção de categorias de análise que, embora organizadas de forma separada, construíram uma discussão interligada. As dificuldades apresentadas pelas participantes foram compreendidas a partir de uma relação de mediação com as estratégias articuladas por elas. As subcategorias elencadas corroboram com esta ideia.

Chama atenção a forma como todas as demais categorias e subcategorias parecem ser causa de um problema que, para esta análise, se mostrou originário. A falta de investimento nas políticas para as mulheres - que foram apresentadas a partir de variações entre a falta de recursos financeiros para a viabilização do trabalho, falta de credibilidade nas estratégias elaboradas e dificuldades no desempenho de um trabalho intersetorial -, parece nutrir as demais dificuldades e fomentar as possíveis estratégias realizadas pelas informantes. Uma rede torna-se desestruturada quando não há investimento e, por conta da desestruturação, surge a necessidade de que os sujeitos nela (e por ela) envolvidos busquem estratégias para lidar com a realidade que lhes é apresentada, que se encontra permeada pela fragmentação.

A fragmentação se torna uma marca do distanciamento da aplicabilidade da Rede de Enfrentamento para com os preceitos que sua cartilha prega. Não existe intersetorialidade em uma rede fragmentada. Não existe rede quando há fragmentação.

Os direcionamentos apontam para uma alarmante despolitização da rede em questão, fenômeno que ocorre, também, como reflexo de uma conjuntura política de cortes e desinvestimentos nas estratégias de amenização da questão social. As estratégias que ainda conseguem se manter atuantes se tornam cada vez mais fragmentadas, individualizadas e desvinculadas de suas características sociais e de garantia de direitos. Esse impasse, além de resultar na fragilidade na atenção prestada, dificulta o reconhecimento da Rede como uma ferramenta de caráter público, de defesa do interesse geral e da cidadania.

A individualização/pessoalização do trabalho das atoras(es) aparece como marca frequente desse processo de fragmentação, no qual os indivíduos parecem tomar para si a responsabilidade de uma política desinvestida, tentando dar conta dos obstáculos concretos que fazem parte das diversas expressões da violência. As ações voluntárias são exemplos claros da problemática que envolve a responsabilização da sociedade civil ao buscar dar conta de estratégias de ação fragmentadas, além de dar abertura para a preocupante precarização do trabalho das participantes envolvidas.

Há uma falha no fluxograma de serviços, que não possibilita o encaminhamento da mulher atendida para serviços de acompanhamento. As estratégias que fazem parte da Rede de Enfrentamento atuam de maneira unilateral, sem ligação com outros setores/serviços, acarretando o aumento da responsabilização individual de cada sujeito para com o funcionamento e resolubilidade de um problema que, estruturalmente, exige de uma mobilização muito maior do que apenas um serviço pode prestar. Além disso, há uma aparente lacuna na formação e capacitação de profissionais, que seguem desassistidos e amparados por uma base de conhecimento ainda segmentada e unilateral, que não os direciona para o trabalho intersetorial e transversal.

É importante lembrar que a expressão da violência contra a mulher se dá em uma relação de complexidade. A violência é um fenômeno complexo e, por isso, as possíveis maneiras de se planejar seu enfrentamento perpassam por estratégias que levam em conta as formas de abordar a totalidade do problema. Nesse ponto, a estrutura das políticas que visam promover o enfrentamento das violências que são sofridas pelas mulheres tem como princípio a superação do reducionismo, da fragmentação, apostando na totalidade das ações. A gestão da violência de forma intersetorial nas políticas compreende que as soluções não são compartimentadas, elas são interligadas, regem ações entre os setores. Não cabe esperar que parta da sociedade civil, por meio de ações sociais, a resolubilidade do problema. Da mesma forma, não cabe somente aos órgãos jurídicos ou a saúde a resolubilidade do problema. A violência não é apenas um problema penal cujas marcas e consequências são visíveis em um corpo físico. Portanto, seu enfrentamento pressupõe ações coletivas e articuladas tanto em nível micro, como em nível macrossocial ou político.

Embora a responsabilização sobre as problemáticas apresentadas recaia sobre o Estado e sua falha no investimento e execução das soluções para o problema público, é preciso atentar, também, para outro ponto que diz respeito à ferramenta de gestão que direciona as políticas de gênero: a união de forças no ideal de que a agenda contra a desigualdade de gênero esteja presente institucionalmente, sendo claro em cada órgão a ideia de que "[...] que homens e mulheres não possuem os mesmos problemas e necessidades, mas devem possuir os mesmos direitos" (SPM, 2011, p. 6), na construção de uma cidadania que inclua e não exclua.

As relações entre agentes governamentais e atoras(es) envolvidos em iniciativas em que se pretende transversalizar a perspectiva da igualdade de gênero são um fator importante para o seu sucesso. Para isso, faz-se necessário articular apoio à agenda das mulheres tanto dentro, quanto fora do governo. Dessa forma, unir forças significa compreender que o que parte do individual não tem o poder suficiente para modificar uma estrutura. Tendo o Estado como regulador, o controle social sobre a ação governamental é um dos meios que asseguram Políticas Públicas democráticas e inclusivas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Letícia Bortolotto Flores
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Samara Silva dos Santos
silvadossantos.samara@gmail.com

Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira
fernandes.isa@gmail.com

Submetido em: 20/08/2019
Revisto em: 06/12/2019
Aceito em: 07/01/2020

 

 

1 O termo atoras foi escolhido tendo em vista a característica de "mulheres atuantes", buscando o distanciamento da ideia de "performance". O termo se mostra mais adequado à denominação, uma vez que a mera utilização da palavra "atrizes" não seria suficiente para suprir o significado e variações de relações/cargos/ligações desenvolvidas pelas participantes.