ARTIGOS

 

A articulação teórica da associação livre

 

The theoretical articulation of the free association

 

La articulación teórica de la asociación libre

 

 

Fabiano Chagas RabêloI; Reginaldo Rodrigues DiasII; Karla Patrícia Holanda MartinsIII

IDocente. Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil. http://orcid.org/0000-0001-5026-8396
IIDocente. Universidade Federal Delta do Parnaíba (UFDPar). Parnaíba. Estado do Piauí. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-8515-0793
IIIDocente. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Estado do Ceará. Brasil. http://orcid.org/0000-0003-3242-6287

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Mapeia-se o processo de articulação teórica da associação livre entre 1900 e 1913. Defende-se que esse procedimento só é nomeado e elevado à condição de regra fundamental retroativamente após avanços na técnica, na metapsicologia e na clínica. Inicialmente, as diretrizes da associação livre estão mescladas ao método de interpretação dos sonhos. Constituíram passos estratégicos em direção ao seu reconhecimento: a problematização do manejo da transferência, a constatação de um resquício de sugestão no vínculo analista-analisando, os desenvolvimentos metapsicológicos acerca da fantasia, as considerações sobre a função da abstinência no tratamento analítico e o debate sobre a modulação da atenção na escuta do analista e na fala do analisando. Realizam-se alguns apontamentos de caráter ético e epistemológico sobre a atualidade da associação livre, destacando-se a importância da participação do analista para a efetivação dessa técnica.

Palavras-chave: Psicanálise; Associação livre; Atenção flutuante; Sugestão; Transferência.


ABSTRACT

The theoretical articulation process of free association is mapped between 1900 and 1913. It is argued that it is only named and elevated to the condition of fundamental rule retroactively, after advances in technique, metapsychology and psychoanalytic clinic. Initially the principles of free association are mixed with the method of dream interpretation. The strategic steps towards its recognition are: the questioning of a trace of suggestion in the analyst-analyzing link, the metapsychological developments about the fantasy, the considerations on the function of abstinence in the analytical treatment and the debate on the modulation of attention in the analyst's listening and in the patient´s speech. There are also some ethical and epistemological notes about the relevance of free association, highlighting the importance of the participation of the analyst in the implementation of this procedure.

Keywords: Psychoanalysis; Free association; Floating attention; Suggestion; Transference.


RESUMEN

Se mapea el articulación teórica de la asociación libre entre 1900 y 1913. Se defiende que ella sólo es nombrada y elevada a la condición de regla fundamental retroactivamente, tras avances en la técnica, en la metapsicología y en la clínica psicoanalítica. Inicialmente los principios de la asociación libre se mezclan con el método de interpretación de los sueños. Constituyeron pasos estratégicos hacia su reconocimiento: el cuestionamiento de un resquicio de sugestión en el vínculo analitico, los desarrollos sobre la transferência y la fantasia, las consideraciones sobre la función de la abstinencia en el tratamiento analítico y el debate sobre la modulación de la atención en la escucha del analista y en el habla del analizando. Se realizan algunos apuntes de carácter ético y epistemológico acerca de la actualidad de la asociación libre y de la importancia de la participación del analista para la efectuación de ese procedimiento.

Palabras clave: Psicoanálisis; Asociación libre; Atención flotante; Sugestión; Tranferencia.


 

 

Introdução

O sintagma associação livre - "freie Assoziation" - (Freud, 1910/1999a, p. 34) surge pela primeira vez na obra de Freud na terceira das cinco conferências Sobre psicanálise, proferidas na Clark University, nos Estados Unidos. Nesse texto, também é possível encontrar os sinônimos: regra fundamental - "Grundregel" - (p. 40) e regra principal - "Hauptregel" - (p. 31). Doravante, por quase três décadas, essas expressões comparecem nos textos freudianos para designar o que há de mais basal na técnica psicanalítica (Freud, 1914/1999b, 1925/1999c, 1940/1997a).

Os alicerces teóricos da associação livre, no entanto, já haviam sido estabelecidos quase uma década antes. Eles estão diluídos na discussão sobre a interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1997b). Todavia, não há ainda nesse momento uma designação explícita: ela não é reconhecida como um procedimento distinto da interpretação, tampouco recebe o destaque que posteriormente lhe é conferido.

A assunção da proposta da associação livre confunde-se com o próprio surgimento da psicanálise, no final do século XIX (Freud, 1914/1999b, 1925/1999c). Isso quer dizer que as primeiras descrições que ela recebe estão amalgamadas à investigação dos desvios por meio dos quais o inconsciente se manifesta. Por isso, a regra fundamental pode ser descrita como a tradução para o campo da técnica de uma teoria do psiquismo fundamentada na hipótese do inconsciente (Mezan, 1998). Dessa forma, a clínica precede a teoria, que deve ser pensada como um constructo inacabado, em constante reformulação.

Decorre daí a necessidade lógica de que se parta da aplicação clínica da associação livre, que seus efeitos sejam recolhidos e acumulados para, só então, lhe outorgar uma apreciação conceitual. Nessa primeira etapa, situada na pré-história da psicanálise, é possível reconhecer dois tempos distintos de investigação clínica, de cunho mais prático, que culminam no estabelecimento de um conjunto de orientações técnicas que mais adiante são agrupados em torno da regra fundamental (Rabêlo, Dias, Pereira, Oliveira & Oliveira, 2015): o primeiro é caracterizado pelo uso experimental da sugestão e da hipnose para fins analíticos; o segundo, pela exclusão da hipnose e por um esforço de redução da técnica aos seus componentes mais essenciais.

A primeira década do século XX, por sua vez, constitui um novo período - de articulação teórica - que culmina no reconhecimento da associação livre como a regra fundamental da psicanálise. O desenrolar desse trabalho, contudo, não é apresentado de forma sistematizada (Freud, 1914/1999b). Sua exposição acontece de modo fragmentado, como resultado de uma investigação em rede (Mezan, 2013) que mobiliza todo o edifício metapsicológico psicanalítico.

Desse percurso de articulação teórica, resulta uma fórmula ao mesmo tempo simples, rigorosa e desafiadora. Simples, pois descreve uma conduta que à primeira vista pode parecer elementar, mas que desvela enormes dificuldades na sua execução. Rigorosa devido ao fato de que tais recomendações situam as condições mínimas para a realização de um tratamento psicanalítico, distinguindo-o de outras modalidades de intervenção. Desafiadora, uma vez que sua execução põe em evidência as resistências psíquicas do analisando e, por extensão, do analista, o que exige uma implicação ética que ultrapassa o limite de um domínio mecânico da técnica.

Este trabalho se propõe a mapear o processo de articulação teórica da associação livre, evidenciando as consequências éticas decorrentes da sua adoção, assim como a importância da participação do analista para a sua efetivação. Pontua-se ainda, no âmbito dessa discussão, algumas orientações epistêmicas e metodológicas que permitem diferenciar a psicanálise de outras práticas terapêuticas.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa de cunho histórico e conceitual (Mezan, 2014), que busca acompanhar o ordenamento, no sentido lógico e cronológico, dos elementos que compõem a fórmula da associação livre na obra de Freud. Os textos analisados abrangem o período que vai da Interpretação dos sonhos (1900/1997b) aos artigos sobre técnica. Entende-se que Sobre o início do tratamento (Freud, 1913/1997c) juntamente com Recomendações ao médico que exerce a psicanálise (Freud, 1912/1997d) são as principais referências dessa articulação conceitual. Apesar desse recorte, também é feita menção a escritos mais tardios que oferecem um olhar crítico retroativo dos fundamentos da técnica psicanalítica, como é o caso de Sobre a história do movimento psicanalítico (1914/1999b), Caminhos da terapia analítica (1919/1997e) e Um estudo autobiográfico (1925/1999c).

Leva-se em consideração uma dificuldade contida nessas formulações iniciais sobre a técnica: Freud dirigia-se a leitores leigos, isto é, não psicanalistas. Por isso, muito dos termos dos quais ele se vale são oriundos de expressões cotidianas e da tradição cultural de sua época, além da psicologia da consciência e da medicina. Em função disso, um recurso didático importante para a transmissão da técnica são as metáforas e figuras de linguagem.

Daí, três diretrizes temáticas orientam a análise dos dados: 1) o inventário das figuras metafóricas, citações literárias e expressões idiomáticas vinculadas à associação livre; 2) o comentário dos avanços no campo da metapsicologia e da clínica e 3) a avaliação da influência de alguns personagens do movimento psicanalítico que participaram mais ativamente desse debate.

A esse respeito, acredita-se que o período que vai de 1906 a 1913, no que tange à discussão sobre a técnica, é marcado, sobretudo, pelas reverberações dos trabalhos de Jung na obra de Freud (Freud, 1910/1999a), ao passo que o período anterior evidencia os efeitos da relação de Freud com Fliess (Gay, 1989). A partir dos meados da década de 1910, por sua vez, Ferenczi e Abraham passam a ocupar os lugares de principais interlocutores de Freud, o que se deixa perceber no debate sobre a técnica ativa e na problematização dos limites da associação livre (1919/1997e).

Justifica-se daí a inclusão na bibliografia das cartas trocadas entre Freud e Jung, dos textos de Jung e Ferenczi e das atas da sociedade psicanalítica de Viena. Esse câmbio nos fluxos de transferência que se inicia com a interlocução com Jung também orienta a organização deste artigo em dois tópicos. No primeiro, discute-se as indicações na obra de Freud sobre a associação livre nos cinco primeiros anos do século. XX. No último, aborda-se a metade final dessa década e os primeiros anos da seguinte.

De 1900 a 1905: da Interpretação dos sonhos ao livro dos chistes

As expressões associação livre e regra fundamental e principal só surgem no texto freudiano a partir das conferências americanas (Freud, 1910/1999a). Apesar disso, é possível encontrar já no livro dos sonhos (Freud, 1900/1997b) uma descrição protoconceitual da associação livre, que se encontra mesclada à explanação da técnica da interpretação. Essa descrição é composta por três argumentos, que resumem as principais transformações discursivas que devem acontecer na fala do analisando logo no início do tratamento: 1) a suspensão do afeto de repulsa e do julgamento intelectual e moral; 2) uma modificação no modo de funcionamento da atenção, cujo foco é desviado dos processos externos para os internos (intrapsíquicos) e 3) a expressão imparcial e fidedigna do que se apresenta imediatamente à consciência.

Sublinha-se que essa atenção intrapsíquica não se confunde com o método introspectivo da psicologia experimental de W. Wundt (Figueiredo & Santi, 2010). Nesse, espera-se isolar os processos mais elementares - as sensações - e, seguindo no sentido progressivo das sínteses psíquicas, chegar às formações mais complexas, no caso: pensamentos e sentimentos.

Já no tratamento analítico opera-se sempre com processos psíquicos heterogêneos e complexos em constante reorganização. Dessa perspectiva, abre-se mão da pretensão de se alcançar os elementos mais simples e homogêneos, uma vez que, em uma situação clínica prática, esse tipo de material psíquico ou bem é inacessível ou não permite um manejo sistemático. Assim, ao priorizar o sentido da análise psíquica, Freud (1919/1997e) está advertido da ação de um trabalho de síntese em sentido contrário que reordena incessantemente os elementos modificados pela intervenção do analista.

O método experimental wundtiano pressupõe ainda uma atitude de neutralidade do pesquisador. No caso da associação livre, parte-se do princípio que a fala do analisando apoia-se no laço afetivo com o analista. Logo, quando se fala de neutralidade em psicanálise, tem-se em vista mais a preocupação de diferenciar o procedimento psicanalítico da sugestão do que sustentar uma atitude de total isenção. A esse respeito, vale a pena lembrar a afirmação de Freud (1912/1997d) de que, na psicanálise, pesquisa e tratamento não estão dissociados. A rigor, pode-se dizer que não existe pesquisa pura e desinteressada em psicanálise, haja vista que, em maior ou menor medida, sempre haverá uma implicação subjetiva do analista no tratamento que ele conduz ou no objeto que ele investiga.

Dessa maneira, os três eixos acima elencados são, na verdade, pressupostos prévios para a efetivação de uma diretriz mais basal referida ao analista: que as associações nas quais as interpretações do analista se apoiam devem originar-se do próprio paciente. Consequentemente, não há um saber prévio estabelecido para esse procedimento. As significações do sonho são sempre contingentes à fala do analisando.

Deve-se esclarecer ainda que não é qualquer associação ou pensamento que deve subsidiar a interpretação. A espontaneidade e a carga afetiva da representação são elementos decisivos para se determinar a sua procedência inconsciente. Desse modo, Freud (1900/1997b) se refere aos restos diurnos pré-conscientes como estações intermediárias no caminho até os pensamentos que influenciaram mais intensamente a constituição do sonho. Parte-se da premissa de que o trabalho do sonho opera um arranjo de compromisso entre produtos dos funcionamentos inconsciente e consciente. Partindo dessa matéria prima bruta que é o relato do sonho, o desafio da interpretação está em reconhecer o nexo entre o material consciente e inconsciente e demonstrar os caminhos pelos quais este se vincula àquele.

É importante considerar ainda que os pensamentos inconscientes envolvidos na formação do sonho possuem níveis de importância diferenciados. Daí a existência de conexões com menor valor estratégico. A meta do procedimento de interpretação passa a ser então chegar a esses pensamentos oníricos essenciais. Na grande maioria dos casos, os sonhos possuem duas ou três representações que estão na sua base. Ao se seguir o desenvolvimento das vias associativas da fala do analisando, independentemente de qual ponto do conteúdo manifesto se parta, espera-se chegar a esses pensamentos. Infere-se daí a estrutura rizomática do sonho: na sua base, encontram-se duas ou três representações a partir das quais partem inúmeras ramificações em direção aos restos diurnos pré-conscientes. A interpretação, por sua vez, segue o sentido inverso: das ramificações em direção à base.

Conclui-se daí que a associação livre pode ser descrita como o procedimento pelo qual se conjura a significação inconsciente mais essencial que se encontra expressa indiretamente, em estado latente, em cada detalhe do conteúdo manifesto.

Essa tese será esmiuçada e ampliada no livro sobre os atos falhos. Nele, Freud (1901/1999d) afirma que os mesmos processos que atuam na formação do sonho estão em vigor na vida diurna. Sustenta que a análise das formações psíquicas produzidas em vigília segue as mesmas regras da interpretação dos sonhos. A partir daí, os atos ditos falhos - Fehlerleistungen - tornam-se, no contexto da situação analítica, assertivas do inconsciente, uma vez que essa modalidade de ato só pode ser considerada falha da perspectiva de uma intenção consciente que é subvertida. Freud conclui então a existência de um determinismo inconsciente para todas as ações ou manifestações psíquicas consideradas despropositadas, aleatórias ou acidentais. Há nesse enunciado uma premissa forte para o reconhecimento da associação livre como regra fundamental da psicanálise.

Freud elenca três diferentes conjunturas de realização do ato falho: 1) quando o disfarce inconsciente obtém sucesso e algo é dito sem que o sujeito se dê conta de sua significação inconsciente; 2) quando o disfarce é parcialmente eficiente, daí a expressão do seu conteúdo é interrompida durante a enunciação ou logo após a conclusão; 3) por fim, é possível que a interrupção aconteça antes mesmo que algo seja dito. Nesse caso, a enunciação não se realiza, mas a iminência de sua expressão produz a mobilização das conexões associativas vinculadas à palavra suprimida e à perturbação do fluxo da fala. Trata-se, nesse último caso, de um processo similar aos lapsos de memória e aos esquecimentos.

É lícito tomar essas três possibilidades de realização dos atos falhos como análogas às atitudes do analista frente a um conteúdo evocado em associação livre. O analista pode pontuar um elemento do enunciado do qual o analisando não se deu conta. Também é possível que ele se depare com uma interrupção brusca do fluxo da fala e solicite a continuidade da sequência a partir do último fonema ou palavra enunciado. Por fim, ele pode se orientar pelas alterações afetivas da fala do analisando como índices da ação das forças de resistência. Em todos os três casos, a meta é criar as condições para que esse saber mobilizado pela fala em associação livre não venha a sofrer novamente os efeitos do recalque ou, pelo menos, que esse não aconteça com a mesma intensidade e abrangência.

Freud (1901/1999d) estende em seguida essa técnica de interpretação dos fluxos associativos de palavras às ações e movimentos. Percebe-se nesse procedimento um modo de consideração ao visual, que, diferentemente da clínica médica, está subjugada à possibilidade de significação retroativa e à hipótese do inconsciente.

O livro dos chistes (Freud, 1905/1997f), publicado alguns anos depois, permite avançar na avaliação do poder de resolutividade da expressão do saber inconsciente. O Witz - termo que possui um sentido mais próximo ao de trocadilho, piada de improviso ou dito espirituoso - constitui, segundo Freud, uma via para se alcançar a satisfação de uma tendência inconsciente. Sua formação se vale da materialidade dos fonemas - em um jogo de semelhanças, homologias, métricas rítmicas e substituições - para dar vazão à carga afetiva de um conteúdo recalcado que não pôde obter expressão direta.

Esclarece-se ainda que só o riso do interlocutor transforma um dito em chiste. Por isso, o chiste só é reconhecido por quem o proferiu retroativamente. Logo, se nas considerações sobre o sonho o acento estava no trabalho do inconsciente do sonhador (Freud, 1900/1997b), com os chistes enfatiza-se a importância do endereçamento a uma alteridade para a expressão do saber inconsciente (Freud, 1905/1997f).

Tal afirmação não está em contradição com a citação freudiana resgatada no início desse tópico que prescreve a inflexão interna da atenção como pré-condição ao trabalho analítico. Tal redirecionamento, na verdade, só evidencia o que já existe em estado latente e que é mobilizado pela presença desse interlocutor - o analista - que serve de suporte à fala.

Pode-se afirmar daí que tanto a associação livre como os chistes, embora constituam processos psíquicos distintos, são modos de contornar os obstáculos à expressão do inconsciente. Os dois potencializam uma tendência inconsciente que preexiste em estado latente. Além disso, ambos possuem um vetor centrífugo, em direção a um outro que atua como catalizador da elaboração do saber inconsciente (Ferenczi, 1909/2011a). No entanto, enquanto os chistes acontecem espontaneamente, a associação livre precisa ser induzida e mantida artificialmente. Os chistes, por sua vez, não alteram a conjuntura das forças de resistências, enquanto associação livre tem por objetivo mobilizá-las e superá-las.

Em 1904, Freud (1904/1997g) publica um verbete em uma enciclopédia médica onde define o método psicanalítico, contrastando-o com o método catártico do final do século XIX. Nesse texto, ele situa como o principal passo em direção à adoção do método psicanalítico o abandono da sugestão, da hipnose e de toda pretensão de se alcançar um estado expandido de consciência. Defende que o procedimento psicanalítico não se restringe a dar vazão aos afetos reprimidos ou expressão aos conteúdos recalcados. Ainda que tais objetivos não estejam excluídos, sua meta é a obtenção de uma transformação duradoura das resistências psíquicas e de um maior trânsito dos conteúdos inconscientes.

É possível encontrar nesse momento uma descrição esmiuçada da associação livre. Nesse texto, Freud propõe que o analista siga os pensamentos ("Einfällen") que chegam imediatamente à consciência do analisando, principalmente aqueles que são usualmente colocados de lado ("beiseitigten Gedanken"), os indesejáveis ("ungewollten") e perturbadores ("störend"). Todos eles têm em comum a capacidade de interferir ("durchkreuzen") na apresentação intencional consciente das ideias ("beabsichtige Darstellung"). A tarefa do analista é dar força ("bemächtigen") a tais manifestações e possibilitar que a sua expressão tenha prosseguimento ("ihren Mitteilungen gehenzulassen") (Freud, 1904/1997g, p. 103).

Nesse ponto, Freud faz uso de uma expressão coloquial da língua alemã: como se numa conversa alguém "passasse da centena ao milhar" ("aus den Hundersten in das Täusendste gerät") (Freud, 1904/1997g, p. 103, tradução nossa). Essa mesma expressão é lembrada nos artigos técnicos, quase uma década depois (Freud, 1913/1997c). Um equivalente no português seria: misturar alhos como bugalhos. Trata-se de um fala aparentemente desordenada, que não segue uma sequência lógica pré-determinada e que se deixa levar pelos desvios e interrupções.

Freud (1904/1997g) propõe que o doente não seja incentivado a relatar detalhadamente suas histórias clínicas ("Krankengeschichte"), mas sim a falar tudo o que lhe vem à cabeça ("was ihnen dabei durch den Kopf geht"), inclusive o que parecer desimportante ("unwichtig"), desconectado do tema abordado ("wenn ... es nicht gehöre dazu") ou absurdo ("unsinnig") (p. 103). Afirma que cabe ao analista exigir que nenhum pensamento ou ideia ("Gedanken oder Einfall") seja excluído do relato por parecer vergonhoso ou penoso ("beschämend oder peinlich") (p. 103).

Conclui-se daí que a associação livre é uma modalidade de fala que está longe de ser espontânea, uma vez que, numa situação cotidiana, a tendência é que o discurso siga a direção das forças de resistência. Logo, exige-se a participação do analista para que a regra fundamental seja instaurada e mantida. Qualquer lassidão ou negligência de sua parte culmina no retorno a uma modalidade de fala que não está orientada para a produção de efeitos analíticos.

No ano seguinte, no texto Sobre psicoterapia, Freud (1905/1997h) retoma a oposição entre tratamento sugestivo e analítico, valendo-se de uma metáfora. Evocando a frase de Leonardo da Vinci na qual o artista italiano estabelece a diferença entre o pintar e o esculpir, Freud propõe a seguinte analogia: a sugestão e a pintura operam por acréscimo; a análise e a escultura, por retirada. No primeiro caso, trata-se do acréscimo das tintas na tela e, conforme a definição de Ferenczi (1912/2011b), da "introdução voluntária de sensações, sentimentos, pensamentos e decisões no universo mental" (p. 253) do paciente; no segundo caso, opera-se a retirada do excesso da pedra bruta e das representações recalcadas da fala do analisando (Freud, 1905/1997h).

A partir dessa comparação, pode-se dizer acerca da regra fundamental que ela não mira o que há de mais recôndito na psique humana. Da mesma forma que o escultor pacientemente retira as camadas mais externas da pedra, o analista recolhe o material que desponta da superfície da fala do analisando. Essa recomendação é explicitada no artigo sobre técnica do início da década seguinte que retoma o tema da interpretação dos sonhos (1911/1997i).

Deve-se ponderar acerca dessa analogia que o analista não possui, como no caso do escultor, uma imagem mental do resultado final. É a própria fala em associação livre do analisando que deve indicar as coordenadas do processo de cura, ainda que caiba ao analista criar as condições para que essa direção seja seguida.

Talvez esse seja o sentido do termo pós-educação ("Nacherziehung") com o qual Freud (1905/1997h) ao mesmo tempo diferencia e aproxima a psicanálise de um trabalho pedagógico ("Erziehungsarbeit") (p. 118). Entende-se desse comentário que a ênfase do tratamento psicanalítico não está em transmitir conteúdos novos, mas em cuidar para que o saber inconsciente mobilizado pela fala do paciente supere as forças de resistências contrárias à sua elaboração e possa, a partir daí, produzir mudanças subjetivas estáveis e duradouras.

Essa perspectiva é corroborada por um texto póstumo de Freud (1940/1997a). Referindo-se ao termo pós-educação, Freud afirma que a análise não se preocupa em refazer o processo de educação a qual o analisando foi submetido, mas de corrigi-lo à medida que seu conteúdo se repete pela associação livre no laço transferencial.

Retornando ao texto Sobre psicoterapia, Freud (1905/1997h) cita um trecho da peça Hamlet, de W. Shakespeare (1564-1616), para ilustrar como o ofício do analista requer um manejo singular e artesanal, a exemplo da habilidade de tocar uma flauta. Não se trata de um procedimento mecânico, passível de ser aprendido e executado em um curto espaço de tempo. Tal qual a habilidade do músico, a prática do analista requer paciência, perseverança e criatividade.

Daí a conclusão de que o exercício da psicanálise está em conflito com o ideal terapêutico cultivado pela medicina, que preconiza um tratamento seguro, rápido e confortável. Em latim: "Tuto, cito, iucunde" (Freud, 1905/1997h, p. 114). Para Freud, brevidade e conforto são promessas que não podem ser sustentadas pelo analista.

A discussão sobre a técnica na obra de Freud parece arrefecer na segunda metade da primeira década do século XX. Uma razão para isso talvez possa ser encontrada na problematização das implicações técnicas do manejo da transferência. A partir do posfácio do caso Dora, Freud (1905/1997j) se dá conta que a oposição entre tratamento analítico e sugestivo não é mais sustentável, pelo menos de forma absoluta. Isso porque a sugestão, na condição de uma relação de influência, não se limita a uma intervenção por meio do acréscimo de significantes, mas, antes de tudo, caracteriza-se por uma ligação libidinal entre terapeuta e paciente.

É possível afirmar então que há inevitavelmente um componente sugestivo presente em todo tratamento analítico. Com isso, faz-se necessário desenvolver procedimentos capazes de filtrar as distorções ocasionadas por essa presença residual. O manejo da transferência e a associação livre vêm cumprir essa função.

A leitura do posfácio do caso Dora (Freud, 1905/1997j) demonstra a proximidade entre essas duas técnicas. Nesse capítulo, Freud afirma que o paciente tende a atuar suas lembranças e fantasias em vez de reproduzi-las pela fala. Infere-se daí que o manejo da transferência é um pré-requisito para a manutenção do fluxo da associação livre e que a associação livre pode ser considerada um índice da transferência. Por outro lado, o analista deve tanto quanto possível moderar a presença da sugestão na situação analítica, haja vista que, quando intervém a partir de suas próprias representações e pensamentos, ele bloqueia o fluxo da fala do analisando e aumenta as chances de que esse atue os seus conteúdos inconscientes em vez de expressá-los pela fala. Por conseguinte, associação livre e transferência podem ser entendidas como instrumentos de canalização e freio da sugestão para a obtenção de efeitos analíticos.

Para encerrar esse tópico, chama-se atenção para duas citações em latim contidas nas cartas a Fliess e retomadas como epígrafe na Interpretação dos sonhos e na História do movimento psicanalítico: "Flectere si nequeo Superos, Acheronta Movebo" (Masson, 1986, pp. 150 e 246, Freud, 1900/1997b, p. 11) e "Fluctuat nec mergitur" (Masson, 1986, p. 256, Freud, 1999/1914b, p. 44). Respectivamente: "Se eu não posso dobrar os poderes mais altos, moverei as águas do inferno" (Masson, 1986, p. 362) e "Oscila nas ondas, mas não afunda" (Masson, 1986, p. 375). A primeira frase é uma citação da Eneida, de Virgílio; a segunda, a transcrição de um dito gravado no brasão da cidade de Paris (Gay, 1989).

É possível ler essas duas frases à luz da definição da associação livre. A primeira, na condição de uma tradução da regra de ouro; a segunda, como antecipação do procedimento da atenção flutuante. Por ora, salienta-se que a linha mestra da associação livre é a confiança nos efeitos reorganizadores que essas forças infernais - a insistência do inconsciente no retorno do recalcado - produzem.

Do início da colaboração com Jung aos escritos sobre técnica: de 1906 a 1913

Em 1906, na primeira carta endereçada a Jung (Freud & Jung, 1984), Freud comenta dois textos recém-publicados pelo seu interlocutor que versam sobre experimentos associativos com palavras. Em um deles, Psicanálise e experimento de associação, Jung (1906/1995) apresenta os resultados de sua pesquisa, que consistia na apresentação em uma situação experimental controlada de uma palavra-estímulo para a qual o sujeito avaliado deveria indicar outro termo oriundo de suas próprias cadeias de ideias. Jung registrava, além do tempo de reação, as alterações corporais por meio de medições elétricas psicogalvânicas. Tais registros, segundo o autor, expressavam a intensidade com que a palavra-chave mobilizava os complexos afetivos.

A princípio, a posição de Freud é a de que o trabalho de Jung representava uma aplicação correta, pertinente e original da teoria psicanalítica. No entanto, nas atas da Sociedade Psicanalítica de Viena, na reunião de 26 de fevereiro de 1908 (Chechia, Torres & Hoffmann, 2015), referindo-se à apresentação do Dr. Urbantischitsch que versava sobre um experimento similar, é possível ler a seguinte afirmação atribuída a Freud: "O método de associação não é aconselhável quando se quer encontrar algo novo, ele apenas confirmou o que a psicanálise já descobriu" (p. 483).

As palavras de Freud (1910/1999a) nas conferências nos Estados Unidos, no entanto, dão a entender que o referido experimento possuiu uma importância adicional. Ele permitiu isolar na técnica psicanalítica aquilo que a diferencia de uma terapêutica sugestiva comum, demonstrando a sua materialidade factual e apresentando de forma didática o núcleo mais basal de seu modo de proceder. Dessa forma, ao demonstrar o que o psicanalista já sabia, o trabalho de Jung permitiu destacar a associação livre como pilar da técnica analítica.

Ferenczi (2011c), em 1908, se refere ao experimento de Jung como "teste da associação livre" (p. 13). No ano seguinte (Ferenczi, 1909/2011d), ele volta a falar em associação livre, dessa vez como o método que embasa o procedimento de interpretação dos sonhos.

Durante o ano de 1907, é possível encontrar nas cartas trocadas entre Freud e Jung (1984) alguns comentários acerca de um livro do escritor alemão W. Jensen (1837-1911), Gradiva, que inspirou importantes reflexões sobre a técnica a partir da consideração à fantasia (Freud, 1907/1997k). Para Freud, a fantasia é uma produção de compromisso que marca uma relação de continuidade entre a realidade factual e a psíquica, entre o sonho e a vigília. Sua característica principal é a busca pela satisfação disfarçada - nem sempre com sucesso - de uma tendência sexual inconsciente, de modo que ela se confunda com os interesses e preocupações do cotidiano. Apesar de se tratar de uma obra de ficção, Freud identifica no relato de Jensen uma realidade clínica ("klinische Wirklichkeit") (Freud, 1907/1997k, p. 65) que, segundo ele, merece a atenção do psicanalista.

O romance apresenta a história de um rapaz, Norbert, que, sem saber inspirado por uma lembrança infantil de cunho sexual, põe-se com todos os esforços a pesquisar a origem de uma imagem em alto-relevo de uma jovem, que supunha ter vivido no ano de 79, em Pompéia, antes de sua destruição. Suas elucubrações em torno desse objeto de investigação mostram-se uma construção delirante ("Wahn") (p. 48) bastante intricada, que começa a se desfazer a partir do reencontro com a real musa inspiradora do protagonista. Freud destaca a convicção que Norbert possuía em relação a suas ideias, mesmo quando elas destoavam da realidade e assumiam um caráter alucinatório.

Para Freud, o delírio do personagem de Jensen poderia ser tomado como análogo ao sonho e interpretado segundo as mesmas regras. Defende que o discurso dos pacientes em análise pode ser tomado como uma formação de compromisso, na medida em que suas falas são desdobramentos de suas fantasias. Logo, as impressões ("Eindrücken"), as lembranças ("Erinnerungen") e as expressões livres de ideias ("frei Einfallen") dos pacientes constituem material para a análise (Freud, 1907/1997k, p. 67). É importante sublinhar ainda a insistência de Freud na maleabilidade ("Schmiegsamkeit") do material da fala ("Rede") como uma precondição para a realização do trabalho de distorção ("Entstellung") que dá suporte à fantasia (Freud, 1907/1997k, p. 67). Segundo ele, a própria fala, na medida em que abriga múltiplos sentidos ("Zweideutigkeit") (p. 67), é passível de ser analisada como um sintoma.

No seu primeiro texto dedicado à transferência, Freud (1912/1997l) formula a recomendação de abstinência ou neutralidade, que se aplica tanto para o analista como para o analisando. Se uma atitude de neutralidade no sentido das ciências naturais é impossível de ser alcançada, ele defende que o psicanalista deve a todo custo evitar intervir a partir de suas próprias paixões, anseios, ideais e critérios morais. Da perspectiva do paciente, a situação analítica deve priorizar a expressão dos conteúdos do inconsciente pela fala em detrimento da satisfação pulsional. Essa é, portanto, a principal objeção feita por Freud (1912/1997d) ao que denomina técnica afetiva: o seu tênue limite com um tratamento preponderantemente sugestivo, cujo destino é se confrontar com a insaciabilidade das demandas do paciente. Daí a metáfora do espelho, que se mostra opaco ("undurchsichtig") (p. 178) ao analisando e lhe devolve apenas o material que lhe é apresentado. Salienta-se que, muito embora essa figura do espelho comumente represente uma relação de reciprocidade e equivalência, a intenção de Freud é justamente a oposta.

Defende-se que a principal contribuição desse período no que se refere à teorização da associação livre está na formulação de sua contraparte do lado do analista, a atenção flutuante. Tal procedimento permite uma definição mais rigorosa da regra fundamental e o desenvolvimento de alguns pontos ainda não suficientemente esclarecidos. Considera-se bastante elucidativo a mescla dos termos dessas duas expressões como demonstração da relação suplementar que há entre elas. É possível falar em associação flutuante e atenção livre e, ainda assim, manter o rigor conceitual.

A atenção flutuante ("gleichswebende Aufmerksamkeit") (1912/1997d, p. 171) consiste em não direcionar o foco da escuta a nenhum conteúdo específico. Ao se orientar por esse procedimento, o analista se esforça em acompanhar o fluxo da fala do analisando de modo uniforme, mantendo-se sensível ao material inconsciente que se destaca da superfície psíquica de seu discurso.

É possível remontar a origem desse procedimento à intuição clínica expressa na citação dos dizeres do brasão da cidade de Paris. Tal intuição, no entanto, teria permanecido uma referência descontextualizada e obscura se não houvesse o apoio da metapsicologia. Talvez um segundo elemento de inspiração esteja na utilização do termo "flutuante" por Ferenczi (1909/2011a) como uma qualidade dos "afetos" (p. 101) e "excitações" (p. 94) mobilizados na transferência, que se tornaram "livres" (p. 94) dos complexos aos quais estavam inicialmente vinculados e que buscam uma nova ligação por uma via centrípeta na relação com o analista.

Deve-se pôr em destaque que a atenção flutuante traz consigo dificuldades, tanto de ordem conceitual como prática: se a atenção é uma função do processo secundário e, portanto, da consciência, como se apoiar nela para acessar os conteúdos inconscientes que emergem da fala do analisando?

Tal indagação pode ser localizada como uma questão de fundo do escrito metapsicológico publicado em 1911 (Freud, 1997m). Esse texto permite esclarecer como é possível se alcançar uma modulação da atenção pelo inconsciente. Nele, Freud aprofunda a definição dos processos primário e secundário e discute a dinâmica que decorre da divisão do aparelho psíquico em zonas orientadas pelo funcionamento desses dois princípios. Segundo o autor, a relação mais fundamental e originária que há entre eles não é de oposição, mas de continuidade. Sustenta daí que a causa do estreitamento do fluxo de comunicação entre as instâncias psíquicas está na ampliação e cristalização do recalque.

Vale lembrar que, para Freud, o inconsciente trabalha de acordo com o princípio do processo primário; o pré-consciente/consciente, por sua vez, conforme a lógica do processo secundário. O processo primário caracteriza-se pela tendência à descarga de energia pela via mais imediata e direta, reinvestindo alucinatoriamente os traços de memória remanescentes das primeiras experiências de satisfação. Tal caminho segue uma lei mais fundamental, o princípio do prazer, que preconiza que todo acréscimo de tensão gera desprazer e o seu decréscimo, prazer.

O processo secundário, por sua vez, orienta-se pela prova da realidade. Isto é, pelo esforço em parear um ímpeto de satisfação inconsciente com um elemento da realidade externa ratificado pelo aparelho perceptivo. Tal meta exige a moderação e o desvio das tendências inconscientes, mas não exclui a sua satisfação. Antes disso, visa garanti-la, torná-la mais fiável e reduzir a margem de frustração que resulta de um funcionamento destemperado do processo primário.

A atenção é apresentada como uma função psíquica atrelada ao processo secundário e à consciência. Ela consiste em uma sondagem regular e sistemática das informações oriundas do mundo externo com o fito de assegurar a viabilidade de uma ação específica (Freud, 1911/1997m). Essa é definida como a antítese da satisfação alucinatória: uma forma de obter prazer e evitar desprazer apoiada na realidade. Ela é uma descarga motora orientada para a modificação de um alvo externo a fim de produzir a redução de uma tensão interna.

Retornemos ao problema da inflexão interna da atenção na associação livre. Ao direcionar o seu foco para os processos internos, espera-se que o analisando expresse as suas tendências inconscientes. É importante assinalar que não se trata aqui de uma simples conjuração do material inconsciente, pois isso poderia resultar em um devaneio - como um pensamento mais próximo à alucinação - ou numa atuação, pela via de uma descarga motora. Em nenhum dos dois casos, haveria uma elaboração psíquica das resistências.

Tomando essa questão da perspectiva do analista, percebe-se que há uma tendência inerente à sua escuta de destacar no seu campo de atenção aquilo que ele próprio deseja encontrar e não o que a fala do analisando apresenta como material inconsciente. Tal tendência constitui um risco constante ao objetivo da análise, do qual todo praticante deve estar advertido.

A resolução dessa dificuldade está na indicação (Freud, 1912/1997d) de que o principal instrumento de trabalho do analista é o seu próprio inconsciente, que funciona como um mecanismo similar ao telefone, decodificando os sinais elétricos e os transformando em ondas sonoras. De modo análogo, o inconsciente do analista é capaz de recolher as expressões do inconsciente do analisando e intervir no sentido de facilitar a superação das resistências. Decorre daí a necessidade do analista purificar o seu instrumento de trabalho como pré-condição para o exercício de sua função.

Esse trabalho de calibragem que torna o inconsciente do analista operativamente sensível às manifestações do inconsciente do analisando é o que caracteriza a inflexão flutuante da atenção. Na ausência de tal modificação, predomina a tendência do inconsciente do terapeuta de produzir uma perturbação ou um direcionamento disfuncional de seu fluxo de atenção. Nesse caso, o resultado seria uma atuação ou o desenvolvimento de uma cadeia delirante de ideias. Logo, espera-se que a purificação do inconsciente do analista possibilite a produção de uma superfície de contato mais ampla entre as funções psíquicas orientadas pelos processos primário e secundário, de forma que as formações do inconsciente veiculadas pela fala do analisando possam ser acolhidas e elaboradas.

Ao lançar luz sobre a complexidade das relações existentes entre os dois processos do funcionamento psíquico, bem como os diferentes arranjos que podem surgir daí, Freud (1911/1997m) antecipa um argumento que é mais explorado nos textos sobre a segunda tópica: que os limites entre inconsciente e consciente, princípio do prazer e da realidade, não são estanques e bruscos; branco no preto, por assim dizer. Há uma zona de penumbra que comporta características tanto de um modo de funcionamento como de outro. Essa convivência lado a lado dos diferentes territórios psíquicos, cada qual regido por sua própria gramática e modo de fluxo de energia, constitui um pré-requisito importante para uma descrição mais acurada da modulação da atenção exigida no trabalho analítico.

Pode-se afirmar daí que a fantasia, essa zona crepuscular de transição entre inconsciente e consciente, precisa ser suficientemente depurada para um adequado exercício da psicanálise. Do contrário, ampliam-se os riscos de as resistências do analista tornarem-se um obstáculo intransponível para a expressão do inconsciente do analisando. Freud (1912/1997d) denomina essa situação, conforme uma proposta de W. Stekel, de mancha ou ponto cego ("Blinden Fleck") (p. 176) da escuta do analista.

Há nessa expressão uma metáfora sinestésica, uma aproximação entre o visual e o auditivo, que ressalta muito bem os diferentes materiais que podem dar suporte ao funcionamento significante. Tem-se então que tal cegueira pode se manifestar como uma incapacidade de ver, ouvir, sentir e perceber.

É interessante ainda notar: o que vale para a atenção, vale também para outras funções psíquicas, como a memória. Se a fixação de impressões e o resgate intencional de informações são funções da consciência, o analista deve se guiar durante os atendimentos por sua memória inconsciente. O momento para registrar, sistematizar e organizar os dados recolhidos nos atendimentos é, portanto, após o encerramento da sessão.

É possível afirmar ainda que essa modulação da atenção exigida do analista não pode ser obtida por meio de um processo de treinamento cognitivo ou de aprendizagem formal, uma vez que o objetivo que se deseja alcançar não é a ampliação do domínio do processo secundário sobre o primário, mas a redução das tensões e o favorecimento da comunicação entre as instâncias psíquicas. Do contrário, haveria um retorno ao projeto de expansão da consciência, como acontecia artificialmente e de forma temporária por meio da hipnose no contexto do método catártico.

No texto Sobre o início do tratamento, Freud (1913/1997c) resume as principais recomendações sobre a técnica, dessa feita isolando o procedimento da associação livre na condição de regra fundamental. Defende que o sucesso do tratamento depende da obediência do paciente a essa premissa, que deve orientar sua fala logo nos primeiros encontros. A associação livre, segundo Freud, difere de qualquer modelo de conversação que acontece espontaneamente. Por isso, recomenda-se a sua explanação - de forma concisa, explícita e clara - para o candidato a analisando. Talvez esse seja o único momento da análise que mais se aproxima de uma intervenção pedagógica. No mais, Freud mantém a orientação de que o analista diga apenas o mínimo necessário para que o tratamento progrida.

A regra fundamental consiste em dizer com sinceridade e precisão - "Aufrichtigkeit" - a primeira coisa que vem à mente, evitando ao máximo transigir em favor de uma avaliação parcial condescendente, do pudor e da hipocrisia - "Zwiespältigkeit, Prüderie und Heuchlei" - (1913/1997c, p. 191). Para alcançar tal sinceridade, faz-se necessário a suspensão do juízo moral e de toda pretensão de conformar o relato a um ordenamento lógico prévio.

Nesse momento, Freud propõe uma analogia da associação livre com a situação de um viajante que, diante da janela de um trem, descreve a paisagem dos lugares por onde passa. Segundo ele, o analisando deve proceder da mesma forma ao relatar as imagens e pensamentos que despontam na sua consciência.

A respeito da sinceridade na situação analítica, Freud (1913/1997c) propõe uma ilustração a partir de uma peça de teatro de Goethe (1749-1832). Nela (Goethe, 1803/1948) - Die naturelle Töchter - o autor retrata o drama da descendente bastarda de um nobre que teve de manter em segredo por anos a fio a sua origem genealógica por receio da retaliação de seus meios-irmãos. Tal condição a privou de uma série de benesses que lhe seriam garantidas caso sua condição fosse revelada. Freud defende então que durante a análise não deve haver nenhuma injunção de discrição. Deve-se dar nome aos bois.

Valendo-se de uma expressão em francês, Freud (1913/1997c) afirma: não se faz uma omelete sem quebrar os ovos. É possível inferir daí que a casca dos ovos é a crosta da resistência que impede a expressão do saber inconsciente. Além da casca do ovo, que precisa ser quebrada com cuidado para que seu conteúdo seja preservado, Freud menciona uma segunda crosta, a da segunda-feira ("Montagskruste") (p. 187). Trata-se de uma imagem metafórica que indica a reconstituição das forças de resistência após um período significativo de interrupção do trabalho analítico. Deduz-se daí a necessidade de uma frequência e duração do exercício da associação livre para que se produzam efeitos analíticos estáveis.

 

Considerações finais

Ao se recuperar o percurso de teorização da associação livre, pretendeu-se evidenciar a pertinência e a atualidade das recomendações de Freud, sobretudo para quem se inicia na prática da psicanálise. Defende-se que muitos dos seus esclarecimentos acerca da técnica podem embasar uma leitura crítica acerca de algumas objeções feitas à psicanálise e auxiliar na diferenciação da direção do tratamento psicanalítico de outras propostas de terapêuticas, situando a especificidade de sua ética, metas e pressupostos.

Por exemplo, é frequente escutar que a técnica psicanalítica é demasiadamente ortodoxa, engessada e que urge produzir nela uma flexibilização. É possível ainda escutar que a técnica freudiana opera pela introspecção e pela sugestão e que, por conta disso, carece de rigor científico. Também há quem faça uma leitura cognitivista de alguns procedimentos técnicos psicanalíticos, como a atenção flutuante, mesclando os pressupostos psicanalíticos com constructos de outras teorias do psiquismo.

Além disso, percebe-se a influência de algumas representações do senso comum que acabam por corroborar um entendimento distorcido do funcionamento da técnica psicanalítica. A associação livre, não raro, é entendida de uma forma simplificada: falar qualquer coisa, irresponsavelmente. Há também quem envolva o ofício do analista em torno de uma aura de glamour, que tira de foco as dificuldades e as responsabilidades de quem se presta a essa função.

Sustenta-se que não há nada mais dissociado da ética da psicanálise do que essa perspectiva. Não há associação livre sem uma implicação do sujeito naquilo que ele diz. Da mesma forma, a atenção flutuante do analista não se confunde com uma atitude distanciada e desinteressada. Ela é empática no sentido mais radical da palavra, na medida em que sua meta é estabelecer uma abertura e uma sintonia com a expressão do afeto e do sofrimento do outro. Pode-se dizer ainda que a atitude de abstinência do analista é uma precaução quanto ao risco de um tratamento afetivo, que espreita a análise em cada momento crítico do laço transferencial. Daí a importância do analista na condução do tratamento.

Espera-se dar prosseguimento a essa pesquisa por meio da investigação dos limites da associação livre na clínica psicanalítica: na discussão do tratamento das neuroses obsessivas, das psicoses e dos casos limites (Figueiredo, Savietto & Souza, 2013). Entende-se que essa questão mobiliza de maneira marcante a interlocução entre Freud, Ferenczi e Abraham no período que se segue ao recorte temporal analisado neste trabalho.

 

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Endereço para correspondência:
Fabiano Chagas Rabêlo
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Reginaldo Rodrigues Dias
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Karla Patrícia Holanda Martins
kphm@uol.com.br

Submetido em: 06/07/2019
Revisto em: 27/11/2019
Aceito em: 21/12/2019