ARTIGOS
Monumento ausente: tensões e história(s) (in)visibilizada(s) na univers/cidade
Absent monument: tensions and story(ies) (in)visible(s) in the univers/city
Monumento ausente: tensiones y historia(s) (in)visibilizada(s) en la univers/ciudad
Jardel Pelissari MachadoI; Andrea Vieira ZanellaII
IDoutor. Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-9840-8992
IIDocente. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis. Estado de Santa Catarina. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-8949-0605
RESUMO
Este trabalho analisa as relações entre cidade, história e produção social da memória, temáticas caras à psicologia social e a outras áreas de conhecimento. Para tal, tomamos como foco de análise as duas vezes (em 1968 e 2014) em que estudantes universitários derrubaram o busto que homenageava um antigo reitor e que estava fixado no pátio do complexo de edifícios da Reitoria da Universidade Federal do Paraná. Nosso ponto de partida foi a ausência do busto e os sinais que restaram no local em que estava fixado. Como trapeiros virtuais, realizamos a busca de informações que não são mais acessadas e que estão disponíveis nas teias da web. A análise desse material nos possibilitou conhecer as personagens e compreender as tensões envolvidas nesses dois atos. A narrativa apresentada contribui, por conseguinte, para a visibilização de vozes outras que compõem a constante tessitura da cidade, tensionando a história oficial, pretensamente monológica.
Palavras-chave: Memória social; Monumento; Cidade; História; Dialogismo.
ABSTRACT
This essay analyzes the relations between city, history and social production of memory, themes that are subject to social psychology and other areas of knowledge. For that, we took as a focus of the analysis the two times that university students overthrew (in 1968 and 2014) the bust that honored an ancient university dean and that was fixed in the courtyard of the building complex of the Rectory of the Federal University of Paraná. Our starting point was the absence of the bust and the signs that remained in the place where it was fixed. As a virtual ragman, we search the archives no longer accessed and available at the web. The analysis of this material led us to know the characters and to understand the tensions involved in these two acts. The narrative presented seeks to contribute to make visible other voices that make up the constant production of the city putting in tension the official history, allegedly monological.
Keywords: Social memory; Monument; City; History; Dialogism.
RESUMEN
Este trabajo analiza las relaciones entre la ciudad, la historia y la producción social de la memoria, temas que son relevantes para la psicología social y otras áreas del conocimiento. Con este fin, tomamos como foco de análisis las dos veces (en 1968 y 2014) en que los estudiantes universitarios derribaron el busto que honraba a un ex decano y que estava ubicado en el patio del complejo de edificios de la Rectoría de la Universidad Federal de Paraná. Nuestro punto de partida fue la ausencia del busto y los los signos que se quedan donde estuvo ubicado. Como traperos virtuales, buscamos información a la que ya no se accede y está disponible en la web. El análisis de este material nos permitió conocer los personajes y comprender las tensiones involucradas en estos dos actos. La narrativa presentada, por lo tanto, contribuye a la visualización de otras voces que conforman el tejido constante de la ciudad, tensando la historia oficial, supuestamente monológica.
Palabras clave: Memoria social; Monumento; Ciudad; Historia; Dialogismo.
Introdução
Esculturas de figuras humanas, em pedra ou metal, algumas de corpo inteiro, outras, bustos, estão dispostas em diversos locais, compondo paisagens das cidades desde a antiguidade. Expostas em espaços públicos, essas esculturas representam pessoas cujos feitos foram considerados importantes e que exprimem valores sociais a serem preservados, reproduzidos, perpetuados. Algumas apresentam personagens facilmente reconhecidas pelos habitantes da própria cidade ou do país, familiaridade construída a partir da reiterada presença em discursos que as enaltecem e legitimam sua inscrição em livros de história. Outras, embora fixados os nomes das personagens, apresentam ilustres desconhecidos. Por vezes passamos por elas sem as perceber, mas estão lá, com seus olhares e expressões fixas, à espera de atenção e reconhecimento.
Familiares ou não, vencendo os tempos (cronológico e meteorológico) e suas intempéries, rígidas em suas vigílias, constantes em suas posturas, permanentes em seu constante enunciar de histórias, lá estão as esculturas de figuras humanas, a constituir a paisagem da cidade. São monumentos que interpelam a memória, como afirma Choay (1999), fazendo existir o passado no presente. Mas o passado invocado e convocado no e pelo monumento não é um passado qualquer: trata-se de enunciado de um grupo social que elegeu uma determinada memória a ser preservada, a ser vista, ouvida, falada, a ser perpetuada por várias gerações. Tratam-se, portanto, os monumentos, de modos de produção de memória e subjetividades: uma memória seletiva, um modo de direcionar o olhar a determinadas imagens e personagens, aos espaços e tempos que habitaram e que se apresentam no presente como projetos de um determinado modo de vida em sociedade que se quer preservar. Eis o que transforma uma simples escultura em local público foco de interesse ao campo da Psicologia: o modo como visibilizam as memórias e vozes passíveis ou não de serem lidas/ouvidas e as condições nas quais se dão os processos de subjetivação.
Olhar para as esculturas de figuras humanas que compõem a paisagem das cidades nos leva, pois, a pensar sobre o passado que se quer perpetuar. Que personagens são fixadas em material rígido e imortalizadas em espaços públicos? Que histórias esses monumentos (re)produzem? Quais respostas a presença desses monumentos provoca?
Essas questões abrem um vasto campo para discussões e análises. Elas ganham, porém, outras tonalidades quando são direcionadas a esculturas que, por diversas razões, foram destituídas dos locais a elas destinados. Alguns rastros da antiga presença dessas esculturas permanecem, tal como as marcas de escritas antigas se apresentam em um palimpsesto. E é justamente esse não-estar de uma escultura de uma figura humana que nos mobiliza à escrita deste artigo. O busto de uma personagem pública, anteriormente localizado no pátio da Reitoria da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na cidade de Curitiba, capital do estado, se configura como foco, sendo a busca dos rastros que narram a trama constitutiva dessa ausência/presença o caminho para a compreensão da trama dialógica que conformou seu não-estar. Trata-se do busto de um antigo reitor, escultura que foi derrubada duas vezes (em 1968 e 2014) por estudantes da universidade, em diferentes momentos históricos. Por que essa pessoa foi escolhida para ter sua imagem perpetuada naquele espaço? O que provocou a resposta dos estudantes que a destituíram do seu lugar uma vez, e após mais de 40 anos, outra vez mais? Que tramas provocaram as respostas dos estudantes e que respostas as sucederam?
A narrativa aqui apresentada busca tensionar a história oficial, pretensamente monológica, e contribuir para visibilizar vozes outras que compõem a tessitura da cidade e algumas de suas tensões. As discussões aqui apresentadas analisam, pois, a trama dos acontecimentos que envolveram a dupla queda do monumento, tendo a dialogia como perspectiva de análise e os enunciados concretos, compreendidos como elos em tramas discursivas marcadas por tensas relações entre variadas vozes sociais, foco de discussão (Amorim, 2004; Bakhtin, 2010, 2018a; Faraco, 2003; Volóchinov, 2017).
Essas são as questões e a perspectiva de análise que se apresentam neste artigo. Estarão em cena, na apresentação e discussão da trama dialógica que configurou a dupla queda do monumento, as relações entre cidade, história e produção social da memória, temáticas caras à psicologia social e a outras áreas de conhecimento interessadas na análise do presente e suas complexas condições.
Sobre cidade, escrita e rastros dos tempos
A cidade é produto histórico da humanidade, de práticas sociais: é uma obra coletiva resultante de processos nômades e sedentários (Careri, 2009; Rolnik, 1995). Toda cidade se caracteriza como uma espécie de escrita das experiências humanas, objetivação de sua história em constante processo de transformação que concomitantemente transforma os corpos que a habitam: o "porvir da humanidade parece inseparável do devir urbano", destaca Fonseca (2003, p. 256). A cidade é, pois, escrita em constante reescrita, construção de espaços que contém em si o próprio tempo da humanidade. Escrever e inscrever o espaço-tempo é escrever o próprio ser, o existir nessa obra coletiva, é produzir espaços de vida com suas demarcadas formas e possibilidades.
Analisar o espaço, segundo Lefebvre (2013), permite compreender que as relações sociais possuem uma existência espacial, ou seja, que se "projetam sobre o espaço, se inscrevem nele, e nesse curso o produzem" (p. 182). Em outras palavras, pela existência espacial das relações humanas as pessoas não apenas estão, passam ou ocupam espaços na/pela cidade, mas, ao constituírem esses espaços, neles também (ins/es)crevem suas histórias, pois ali se constituem os processos de produção de subjetividade. Analisar o espaço se apresenta, portanto, como central às questões da Psicologia Social.
O espaço não é uma paisagem estática, uma configuração instantânea de objetos; é movimento constante, processo e transformação; é cruzamento de móveis, "um lugar praticado" e plurivocal (Certeau, 2014, p. 202). O espaço urbano constitui-se como múltiplas e dialéticas relações que envolvem diversos sistemas e ações, como o sistema econômico de produção, as estratégias políticas e as vivências cotidianas (Carlos, 2011; Lefebvre, 1991, 2013; Santos, 2014). Assim, a cidade não pode ser tomada como imposição externa e cenário neutro: ao contrário, é espaço marcado pela tensão constante entre variadas forças (Hissa, & Nogueira, 2013; Lefebvre, 1991, 2013; Nogueira, Hissa, & Silva, 2015; Sennett, 2014), entre variadas vozes sociais, compreendidas como valores e visões de mundo (Volóchinov, 2017).
Dentre essas vozes, algumas ocupam lugar de centralidade nas relações de força, definindo qual passado deverá ser recordado, quais memórias serão preservadas e por meio de qual monumento (Choay, 1999). Essas mesmas vozes definiram, ao longo do processo civilizatório, os edifícios, museus, obras de arte e monumentos, entre outros, que foram incorporados às cidades modernas e passaram a compor suas paisagens na condição de patrimônios a serem preservados (Abreu, 2012).
Mas a patrimonialização, a preservação de "uma paisagem, um cenário no espaço das metrópoles, um lugar para ser visto, contemplado e admirado" (Abreu, 2012, p. 21), põe em tensão forças de preservação e de destruição: ao mesmo tempo que institui o que deve ser preservado, institui também o apagamento daquilo que é julgado como não necessário à memória que se quer propagar. É nesse âmbito que emerge a noção de vandalismo como uma espécie de atentado criminoso, pois os "movimentos populares tendiam a demolir edifícios, portas e monumentos onde se inscreviam os nomes e a glória dos reis, vistos como testemunhos da opressão" (Abreu, 2012, p. 20). As tensões entre preservação e destruição visibilizam as constantes relações de força e embates que caracterizam as cidades, pois, enquanto algumas buscam a organização, racionalização e predição do espaço, a constituição de memórias a serem preservadas, outras, marcadamente as vivências cotidianas, produzem esgarçamentos nesses tecidos e planejamentos (Certeau, 2014; Hissa, & Nogueira, 2013; Lefebvre, 1991; Santos, 2014).
Assim, há no texto supostamente claro, objetivo e visível da cidade, uma "cidade transumante, ou metafórica" (Certeau, 2014, p. 159), constituída no e pelo cotidiano que se "inventa como mil maneiras de caça não autorizada" (Certeau, 2014, p. 38). Compõem também a polifonia das cidades os ecos de vozes silenciadas, alguns sinais e marcas de lógicas outras que escapam ao que se tentou organizar, prever e prescrever. Analisar os vestígios dessas vozes e as tensões que caracterizam a vida na cidade permite, portanto, compreender que as relações sociais se "projetam sobre o espaço, se inscrevem nele, e nesse curso o produzem"1 (Lefebvre, 2013, p. 182), do mesmo modo em que constituem as condições concretas de existência de uma sociedade.
A cidade, pois, é um palimpsesto, como destacam Sennett (2014), Santos (2014), Hissa e Nogueira (2013). Nessa espécie de papiro reaproveitado, as escritas mais antigas se misturavam às novas, pois era impossível apagar por completo seus rastros. O palimpsesto caracteriza-se como escrita sobre escrita, acumulações que se misturam e se integram. Para Lefebvre, "Na história do espaço como tal, o histórico, o diacrônico, o passado gerador deixa suas inscrições incessantes sobre o espaço, como sobre um quadro" (2013, p. 164). Desse modo, o "espaço gerado pelo tempo é sempre atual, sincrônico e dado como um todo; laços internos, conexões que ligam seus elementos, também produzidos pelo tempo" (Lefebvre, 2013, p. 164).
Tempo e espaço são, assim, indissociáveis e mutuamente constitutivos. São cronotopo (Bakhtin, 2018b), espaço que carrega marcas, rastros de tempos que não são passado, mas que estão presentes, a compor o que chamamos de atualidade - o tempo como quarta dimensão do espaço. Essa mesma compreensão se abre como possibilidade para pensar o futuro não como uma sucessão do presente, mas enquanto constituinte do presente - uma memória de futuro. O cronotopo é, nesse sentido, não uma acumulação, mas uma mistura, um agregado de tempos não lineares que podem ser lidos no espaço. Cronotopo, aqui emprestado da teoria literária bakhtiniana e alargado em sua potencialidade, "designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem" (Amorim, 2014, p. 105). Trata-se de tempos-espaços múltiplos, não planificáveis em uma única superfície. Palimpsestos sobrepostos, poderia se dizer, superfícies diversas com inscrições variadas.
O tempo, pois, não se apresenta, para o referencial bakhtiniano, como uma linha traçada, mas sim como emaranhado, fractal: é o passado (em suas possibilidades concretizadas e seus vários possíveis) que se faz ouvir e se reinventa a todo momento nas respostas presentes, no diálogo cotidiano, em todo e qualquer enunciado, pois a tensão entre as vozes sociais é tensão constitutiva de todo e qualquer discurso, independente do material que o enforma: uma ou mais palavras, orais ou escritas, gestos, movimentos, imagens e tantas outras. O tempo passado está no presente, convocado constantemente pelos e nos enunciados cotidianos que resgatam e respondem a enunciados anteriores. Do mesmo modo, o futuro, enquanto memória de futuro, também está no presente, pois se constitui como possibilidade de eterna resposta, como contrapalavra.
Essas tramas, sem começo ou fim, nas quais não há primeira ou última palavra, esse constante responder que constitui a atividade humana, é denominado, na filosofia bakhtiniana, dialogia. Nas tramas que conotam a própria existência humana não há sentidos finalizados: o que há é o constante responder que conecta pessoas, tempos e espaços distintos, a dialogia incessante. Nessa perspectiva, o diálogo não se dá apenas face a face, mas sim entre vozes sociais que se confrontam, apoiam, recusam. Todo enunciado, independentemente do modo como se apresenta (como palavra, gesto, frase, imagem, monumento, ação...), sempre será composto, de forma orgânica, por mais de uma voz social posto que carrega em si sempre seus opostos, a quem responde de uma certa maneira e determinada intensidade.
Os conceitos de palimpsesto, cronotopo e dialogia nos ajudam a pensar a constituição dos espaços-tempos não como linearidade, mas como uma espécie de coexistência de passado, presente e futuro. Na escrita da cidade, onde tempos se confundem na formação do espaço, analisar suas marcas, histórias e atualidades constitui-se como desafio para pesquisadores interessados na compreensão da sua polifonia, na escuta da tensão entre variadas vozes sociais. Assim, buscamos pensar "o urbano enquanto campo político de tecedura de sensibilidades onde diversos enfrentamentos de forças podem nos indicar as invenções e as desnaturalizações do humano" (Baptista, 1997, p. 174). Tensões que, materializadas nas condições concretas de existência, são vivenciadas cotidianamente, constituindo possibilidades de ser e agir e sendo por elas reconstruídas, numa relação dialética.
O caminho percorrido: dos rastros às tensões que os conformaram
A historiografia tradicional tem se dedicado, segundo as críticas de Benjamin (2016), a escrever a história como processo coerente, homogêneo e linear, ocultando acontecimentos em que se visibilizariam que a história poderia ter sido diferente. Vozes outras, insurgentes, são emudecidas em um discurso edificante que confirma e conforma a continuidade de uma dominação.
Assim como Sennet (2014), Bakhtin (2010; 2018a; 2018b) e Lefebvre (2014), Benjamin (2016) convoca a pensar a história não como passado, ou sucessão de fatos, mas como presente, pois "Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós? Não é a voz a que damos ouvidos um eco de outras já silenciadas?" (p. 10). A proposta de Benjamin é de compreensão da história como atualidade, como manutenção viva de um fato histórico, uma "ressurgência intempestiva de um elemento encoberto do passado no presente" (Gagnebin, 2014, p. 203). O filósofo problematiza, assim, as formas de produzir história e suas marcas, conduzindo-nos a pensar sobre os sujeitos envolvidos nessa produção e sobre de que forma se tem buscado, com essas construções, silenciar as tensões.
A proposta que emerge da obra de Benjamin (2015, 2016) para pensar a história e sua produção é a de que ela não seja feita a partir da empatia com os vencedores, mas com distanciamento, pois "não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie" (Benjamin, 2016, p. 13). Assim, o filósofo propõe ao historiador "escovar a história a contrapelo" (Benjamin, 2016, p. 13), ou seja, buscar sinais, rastros, vestígios que tentaram apagar de possibilidades outras para a própria história mas que permanecem esquecidos.
Um rastro é um sinal qualquer que não é criado, mas sim deixado, sem intenção, sem ser premeditado, "que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara" (Gagnebin, 2006, p. 111). É o fruto do acaso, de uma negligência ou de violência: todo rastro "denuncia uma presença ausente" (Gagnebin, 2006, p. 111).
Os rastros que nos mobilizaram à compreensão dos eventos que os (con)formaram e de vozes silenciadas que os protagonizaram se situam ao lado de uma das principais edificações da UFPR, o Complexo da Reitoria. Constituindo o espaço urbano da cidade de Curitiba, a UFPR, em seu percurso histórico de mais de cem anos (fundada em 1912), instituiu-se dispersa em edificações espalhadas pela cidade de Curitiba. Alguns de seus edifícios foram tombados como patrimônio histórico da cidade e do Estado: o Prédio histórico, na Praça Santos Andrade, e o Complexo da Reitoria, ambos na região central da cidade.
O Complexo da Reitoria compreende um conjunto de edifícios que aloja a administração central da universidade (Reitoria), os Setores de Ciências Humanas e de Educação e o Teatro da Reitoria, o maior da universidade. Num dos pátios desse complexo de edifícios há uma pedra de granito em formato de caixa na qual está fixada uma placa de metal onde se lê: "Ao Reitor Magnífico - Flávio Suplicy de Lacerda - Homenagem da Faculdade de Filosofia pela construção de sua sede - MCMLVIII" (Figura 1). A frase da placa leva a concluir que deveria estar ali fixado o busto do nominado senhor. Na mesma pedra há também arranhões, como cicatrizes, na lateral esquerda. Do outro lado, nas raízes da árvore, manchas de tinta vermelha. Acima, barras de ferro que provavelmente sustentariam a figura agora ausente. Pistas, sinais e restos que encontramos nesse local que dizem de histórias que não estão contadas na placa de metal. A que histórias essas marcas, sinais e restos nos levam? Quem são as personagens e narradores dessas histórias?
Para analisar um rastro é preciso perscrutar o processo que o gerou, quais pessoas e intenções estavam envolvidas na afirmação de sua presença/ausência. Em outras palavras, que histórias e memórias esses rastros e restos (uma figura ausente, arranhões na pedra de granito, tinta vermelha no chão) narram? O que estariam eles a testemunhar, a não deixar cair no esquecimento?
Buscamos nos arquivos da web, nas tramas da internet, informações sobre a ausência do busto, quem esteve envolvido nas e quais histórias teriam deixado esses rastros. Se o trapeiro, figura benjaminiana (Benjamin, 2015), junta e cataloga os restos da modernidade, do consumo, daquilo que não tem mais valor à sociedade burguesa, nós, como trapeiros virtuais, buscamos nos arquivos da web, nas informações não mais acessadas e que restaram esquecidas nas tramas virtuais, escritas que testemunhassem os acontecimentos que ficaram registrados nesse espaço. Buscamos por registros em sites de jornais e da universidade e em páginas de redes sociais. Com esses esquecidos que permanecem no universo virtual da web fomos tecendo as análises e compondo a narrativa que aqui apresentamos.
O trilhar desse caminho seguiu a intempestividade difusa das teias da web, sendo marcado por um intenso clicar e as passagens rápidas de um link a outro em diversos sites. Caminho que foi feito e trilhado ao mesmo tempo: tal qual as picadas abertas em mato virgem a golpes de facão, nossas setas de mouse foram abrindo possibilidades. Escritas e imagens foram sendo lidas, vasculhadas, arquivadas, sendo a narrativa aqui apresentada o trabalho de catalogação do que recolhemos ao longo desse trilhar. Na narrativa que compusemos a partir desse trabalho trapeiro, buscamos evidenciar as tensões históricas, dando visibilidade a vozes que foram silenciadas nesses processos e que compõem, como sinais esquecidos, a constante tessitura da cidade.
As quedas do monumento
O busto ausente pode ser visto na Figura 2, em fotografia produzida antes de sua retirada. Flávio Suplicy de Lacerda, de acordo com estudo de Campos (2013), ocupou diversos cargos políticos de destaque nos âmbitos estadual (Paraná) e nacional. Após ser vice-reitor da Universidade do Paraná (atual UFPR) em 1948, assumiu o cargo de Reitor da instituição em 1949, permanecendo nesse posto até 1964. Teve papel de destaque nos trâmites para o processo de federalização da Universidade do Paraná, ocorrido em 19 de dezembro de 1950. O busto de Suplicy, esculpido em bronze e preso na pedra de granito, foi fixado no pátio da Reitoria em 1958 - trata-se de uma homenagem ao então Reitor no ato solene de inauguração do prédio da Reitoria. Em 1964, ao deixar o cargo de Reitor da UFPR, assumiu o cargo de Ministro da Educação no governo do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, em plena Ditadura Militar. Reassumiu a Reitoria da UFPR no período de 1967 a 1971.
No período em que foi Ministro da Educação, entre 1964 e 1967, implantou a Lei no 4.464/1964, que ficou conhecida como Lei Suplicy. Esta lei regulamentou os órgãos estudantis e proibiu uma série de atividades, como realização de greves pelos estudantes. Criou o Diretório Nacional dos Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais dos Estudantes (DEE), entidades que vieram a substituir as já existentes União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Estadual dos Estudantes (UEE). A partir dessa lei, o DNE poderia ser convocado pelo Ministério da Educação ou pelo Conselho Federal de Educação. Com as restrições e controle que incidiam diretamente na autonomia do movimento, a Lei Suplicy abriu caminho para a implantação dos chamados Acordos MEC-USAID2 (Zaparte, 2011). Esses acordos, firmados sem serem previamente divulgados e discutidos com a comunidade universitária, visavam a transformar a Universidade numa fundação privada, com cobrança de matrículas que teriam valores progressivos a cada ano, a implantação de ensino tecnocrático em detrimento do crítico e a eliminação da interferência estudantil na administração. Nesse mesmo período foi criada a Equipe de Planejamento do Ensino Superior, a qual tinha cinco integrantes brasileiros e cinco dos Estados Unidos, o que produziu, segundo Zaparte (2011), uma desnacionalização do ensino superior, legando a outro país a sua organização. Esses acordos geraram diversos impasses e debates no Brasil, sendo o movimento estudantil importante entidade que denunciou e criou estratégias para barrar esses acordos. Em 1967 e 1968 intensificaram-se os confrontos entre estudantes e o governo militar. Nesse cenário se deu a primeira queda do busto de Suplicy.
No ano de 1968, após ser reconduzido ao cargo de Reitor da UFPR, Flávio Suplicy de Lacerda buscou instituir a cobrança pelo ensino na UFPR (APUFPR-SSind, 2010). Esse novo sistema passaria a vigorar para os novos ingressantes na instituição pelo vestibular daquele ano. No dia da realização do vestibular, os estudantes da UFPR, em conjunto com estudantes da União Paranaense dos Estudantes (UPE) e da União dos Estudantes Paranaenses Secundaristas (UPES), conseguiram impedir a realização das provas, o que produziu o adiamento do processo. Foi então organizada uma segunda prova, com a manutenção da proposta de cobrança de mensalidades. Novamente os estudantes se mobilizaram, porém a polícia montada conseguiu garantir a realização das provas. Em resposta, no dia 14 de maio de 1968, os estudantes ocuparam a Reitoria, derrubaram o busto do reitor e o arrastaram pelas ruas de Curitiba (Figura 3).
Os jornais e noticiários da época qualificavam os estudantes como "bandidos" (Zaparte, 2011) ou como "subversivos" (APUFPR-SSind, 2010). Após o busto ser derrubado e arrastado pela cidade, ele foi recolocado em seu lugar. Mas a presença do busto no pátio da Reitoria, segundo Zaparte (2011), nunca foi bem aceita pelos movimentos estudantis, mesmo após a ditadura, devido as ligações, propostas e transformações lideradas por Suplicy de Lacerda.
O ano de 2014 marcou os 50 anos do golpe que deu início à ditadura militar no Brasil (1964-1985). Nesse ano diversas comissões, grupos e fóruns por todo o país discutiam questões envolvendo a ditadura, seus documentos e efeitos à população e ao país. Uma dessas atividades acontecia na UFPR: a comissão da Verdade, que coordenava o Fórum Paranaense de Resgate da Verdade, Memória e Justiça (FPRVMJ). Diversas entidades, como movimentos estudantis, professores pesquisadores, outros movimentos sociais e representantes da UFPR, participavam dessa comissão e seus integrantes discutiam, dentre várias ações para a "descomemoração" do golpe da ditadura militar, a criação de um Museu de Percurso pela cidade de Curitiba - o percurso a ser visitado incluiria diversos espaços em que ocorreram importantes atos de resistência ao governo ditatorial3.
Um dos pontos de litígio na elaboração da proposta do Museu de Percurso era justamente o busto do ex-Reitor Suplicy de Lacerda. O Diretório Central de Estudantes (DCE) da UFPR e o movimento Levante Popular da Juventude (LPJ) se posicionavam pela retirada do busto e que ele fosse realocado em outro local. Argumentavam que, com isso, não objetivavam apagar a história nem ofuscar a importância de Suplicy de Lacerda no processo de federalização da UFPR, acontecido em 1950. A realocação era proposta pelo grupo pela ligação do antigo reitor a movimentos de repressão, assim como por ter papel central no acordo MEC-USAID. Por isso, afirmavam que a imagem não deveria ser deixada em um espaço de destaque como o que ocupava. Os representantes da UFPR posicionavam-se pela sua manutenção no local em que estava, que poderia ser o marco zero do percurso.
Frente ao impasse nessa decisão e às dificuldades de comunicação entre as partes, um grupo de pessoas que, segundo nota no site do movimento LPJ no Facebook4 eram ligadas ao LPJ, assim como a outros coletivos e partidos políticos, com o apoio do FPRVMJ, se organizaram para, no dia 1o de abril de 2014, 50 anos após a instauração da ditadura Militar, e repetindo o ato de 1968, retirar o busto de Suplicy de Lacerda (Figura 4).
Após a retirada do busto, os manifestantes o levaram ao pátio da Reitoria onde, com microfones e caixas de som, anunciavam aos demais estudantes e outras pessoas que por ali passavam quem era a figura retratada no busto e os motivos que os levaram ao ato. Após, arrastaram o busto pelas ruas de Curitiba, refazendo o mesmo trajeto dos estudantes de 1968 (Figura 5). A ação do grupo foi noticiada em vários jornais5 e associada a expressões como "destruição de patrimônio público" e "atos de vandalismo".
Os organizadores do ato, ligados ao LPJ, apresentaram as seguintes justificativas para suas ações:
Nesse 1° de abril, ao lembrarmos os 50 anos do golpe militar que assolou nosso país, consideramos ser inadmissível que tal monumento ainda hoje permaneça na Universidade Federal do Paraná, uma instituição pública e que deve servir aos interesses do povo brasileiro, e não exaltar um agente da ditadura6.
Respondendo ao LPJ, em nota oficial o reitor da UFPR, Zaki Akel Sobrinho, afirmou querer "manifestar nossa posição contrária a qualquer ato que traga danos ao patrimônio público, principalmente a um conjunto arquitetônico tombado pelo patrimônio histórico" (UFPR, 2014). No mesmo documento, o Reitor afirmou que "Cabe refletirmos sobre os alegados motivos para tal condenação. Não podemos apagar a história, nem tampouco reescrevê-la" e que o Reitor Flávio Suplicy de Lacerda havia despendido muitos esforços no processo de federalização da Universidade, "contribuindo assim para que tivéssemos a primeira universidade pública e gratuita de nosso Estado" (UFPR, 2014). O documento argumenta que as gerações futuras deveriam poder conhecer todos os envolvidos na construção da história da UFPR, em seu contexto, e que caberá a cada um avaliar, "julgando com seu próprio pensamento a contribuição de cada um, colocando no devido lugar a todos nós. E preservando nossa memória, verdade e justiça!" (UFPR, 2014). Na mesma nota, o Reitor anunciava a tomada de providências imediatas para recuperação e recolocação do busto em seu lugar.
Mas a reposição não foi imediata. Após a retirada, o busto permaneceu em posse do LPJ, conforme informação que se obtém pelo site do movimento no Facebook, como forma de barganha com a Reitoria do retorno do diálogo para a elaboração da proposta do Museu. Porém, segundo o site do movimento, isso não aconteceu e a Reitoria passou a expressar que entraria com ações da justiça contra os organizadores da ação. Frente a essa possibilidade, o LPJ devolveu o busto à UFPR. Porém, a devolução não barrou a judicialização7: pouco tempo depois de ter sido restituído à universidade, um dos membros do LPJ passou a responder processo nominalmente por dano a patrimônio público com agravante por ser patrimônio tombado.
Em resposta, iniciou-se nova mobilização do LPJ: se a luta tinha sido transferida para a esfera jurídica, necessário se fazia contrapor-se de algum modo ao curso dos acontecimentos, se não de forma direta, ao menos evidenciando que as ações tinham sido coletivas e se apresentavam como porta-vozes de uma insatisfação maior, não restrita aos envolvidos e àquele espaço e tempo. Foram então publicadas dezenas de fotografias com pessoas do Brasil todo portando cartazes, alguns feitos à mão, nos quais estavam escritas frases que afirmavam: "eu arranquei o busto do Suplicy de Lacerda".
Em junho de 2016, uma professora e dois professores8 foram nomeados para compor uma comissão responsável por redigir um parecer que expressasse a decisão tomada naquele mês em reunião do Conselho do Setor de Ciências Humanas. Em setembro o parecer foi encaminhado ao Conselho Universitário (COUN) da UFPR, que retomou a discussão sobre o destino a ser dado ao busto do ex-reitor. Os professores que assinaram o parecer argumentaram pela não recolocação do busto, mas que o pedestal ficasse como estava com a fixação de uma nova placa mencionando as duas datas de retirada do busto pelos estudantes. Recomendaram ainda que o pedestal fosse compreendido como escombro, uma "parte incontornável da história desta Universidade e da história política do Brasil" (p. 2). O busto, segundo o documento, deveria ser guardado em depósito e deveriam ser promovidos debates públicos com especialistas e representantes de movimentos estudantis sobre história, memória e Ditadura Militar.
Em maio de 2017, o Conselho Universitário da UFPR decidiu pela realocação do busco em seu local. A decisão reafirmou a criação de um museu de percurso, no qual o busto seria o segundo marco a ser visitado. O primeiro seria o Edifício José Munhoz de Mello (que abrigou a Polícia Federal no período ditatorial e que hoje abriga a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da universidade); o terceiro, o Edifício D. Pedro II (no complexo da Reitoria da UFPR) no qual seria instalado um marco para memória do cerco promovido pelos estudantes em 1968; o quarto, o busto (a ser esculpido e instalado na Praça Santos Andrade ou no prédio histórico da UFPR) do advogado e ex-professor da UFPR, José Rodrigues Vieira Netto (cassado em 1964). Até o presente momento (2019), porém, nenhuma das ações foi executada; o busto de Suplicy de Lacerda também não foi recolocado na pedra de granito.
Sobre as quedas, as tensões e as histórias
Os acontecimentos aqui narrados possibilitam compreender as tensões que conformam as cidades, bem como as (in)visibilidades que se apresentam nos monumentos que contam uma determinada história e silenciam em relação a tantas outras. Em diálogo com a afirmação de Benjamin (2016) de que não há monumento da cultura que não seja ao mesmo tempo um monumento da barbárie, podemos pensar sobre o que se apresentou como condição para a produção e presença do busto de Suplicy de Lacerda e ao mesmo tempo sobre as suas quedas.
O referido busto, enquanto enunciado de metal inserido nas tramas da cidade, ocupava lugar de destaque e força nos processos de produção de sentidos, reiterando uma perspectiva tradicional de história que faz louvor a pessoas individualmente: o busto-enunciado se configurava como tributo aos feitos daquele homem em favor de uma concepção de sociedade e ordenamento social. Mas uma escultura-enunciado não é composta por uma voz exclusiva. A figura de Suplicy de Lacerda, exposta no pátio da Reitoria, carregava em si histórias outras: comportava tanto as vozes dos que enalteceram suas ações e sua presença naquele espaço, quanto dos que se negaram a o louvarem bem como ao período trágico da recente história do país a quem tão bem serviu. Tratava-se, portanto, de uma presença incômoda, e as vozes silenciadas encontraram um modo de se fazer ouvir: retiraram e arrastaram pela cidade o busto-enunciado, uma vez e outra vez mais.
Na primeira queda, o busto retornou rapidamente ao seu pedestal, sendo seus detratores acusados de subversivos e bandidos. Provavelmente foram fichados, vigiados, quiçá presos e torturados, práticas a que estavam submetidas toda e qualquer voz contrária à presença das baionetas e coturnos no comando do país, bem como às forças com as quais se aliavam. Na segunda queda, em 2014, o cenário político era outro: sob a tutela da Constituição de 1988 e em plena vigência do regime democrático, movimentos sociais e entidades públicas tinham como tarefa a delimitação de atividades voltadas a "descomemoração" do golpe militar de 1964. Novamente o busto-enunciado se apresenta, e sua incômoda presença no pátio da Reitoria provoca a homenagem à sua queda, ou seja, à ação que o retirou de seu pedestal e visibilizou as tensões daquele momento histórico. A segunda queda permitiu visibilizar tensões outras, entre vozes sociais que conformam o cenário político não apenas na UFPR, mas no país.
Uma dessas vozes, adotada como oficial e divulgada pela administração da universidade, afirma a história de um Suplicy de Lacerda que federalizou a Universidade do Paraná, que proporcionou ao estado uma universidade pública e gratuita. Feitos importantes, por certo, mas que se referem a somente um aspecto de uma história complexa, silenciando em relação a feitos outros que impactaram o país como um todo. Sob a alegação de que "não podemos apagar a história, nem tampouco reescrevê-la", a fala oficial desconsidera que a própria história que o busto-enunciado narra foi produzida a partir de diversos silenciamentos em relação: à violenta repressão do estado aos movimentos estudantis e outros movimentos sociais durante a ditadura militar; à tentativa de transformação da educação em ensino tecnicista e a parceria com os EUA; à tentativa de cobrança de mensalidades nas universidades públicas brasileiras. Essa voz oficial, portanto, reiterava a violência que produziu os esquecimentos condensados no busto-enunciado e perpetuada com sua permanência no mesmo local.
Apesar das diferentes, as respostas às quedas do monumento pautaram-se, ambas, pela força da lei: no final dos anos 1960, a lei da caserna e suas práticas de exceção. No século XXI, o aparato jurídico e a prática de judicialização dos movimentos sociais, nesse caso justificada pela legislação que regula o que é considerado patrimônio histórico. A judicialização sustentada pela defesa dos processos de patrimonialização constitui, por um lado, o espaço e a memória como fetichizados, um passado tal como narrado pela historiografia clássica, que se foi e que não foi engolida pelas transformações e celeridades produzidas pela modernidade. Um objeto do passado que não se atualiza como experiência transformadora das vivências cotidianas, mas que permanece apenas como informação, como memória a ser preservada. Por outro, a judicialização produz a criminalização de todo e qualquer movimento que busca evidenciar a tensão, visibilizar a violência do silenciamento e evidenciar uma possibilidade outra de narrativa da história. Essa lógica se sustenta, pela linguagem, via caracterização do enunciado do outro (verbal, ato, gesto, imagem, monumento etc.), como errado, motivo de depreciação, como vandalismo e, em seu paralelo, à ignorância, baderna, ato de bandidos, baderneiros.
A ausência do que já foi presença é, pois, uma maneira de se fazer ouvir uma possibilidade outra de história da cidade: visibilizar as tensões que caracterizam a sua complexa trama, as diferentes visões de mundo e seus embates. Essa foi, justamente, a proposta apresentada pela comissão de professores, ou seja, uma aposta na força da ausência para provocar a compreensão das tensões que geralmente passam despercebidas com a simples presença de bustos-enunciados a enaltecer heróis de uma história produzida não somente por uma pessoa, e nem tampouco da forma supostamente linear e harmônica com que são narradas.
Na homenagem a uma figura pública, imortalizada em uma escultura de bronze que o afirma como herói, se apresentou ao mesmo tempo o silêncio em relação às vozes que se opunham às políticas educacionais com as quais se aliou e das quais se apresentou como porta-voz. O busto, portanto, assim como todo e qualquer monumento, é prenhe de ditos e não ditos, de vozes sociais, silêncios e práticas de silenciamento. Uma intensa dialogia conota cada monumento, cada enunciado, que se apresenta como um adensado ponto entretecido no encontro de forças várias, uma resposta que por sua vez é condição para respostas outras, e outras, e outras.
A história está sendo constantemente reescrita, não porque os fatos possam mudar, mas justamente porque outras vozes, silenciadas, passam a ser ouvidas, outros acontecimentos visibilizados. História viva, cidade viva. Assim, olhar para essas tensões, urbanas, espaciais, históricas, entre narrativas, é olhar para os processos de constituição das possibilidades de existência, para a materialidade concreta das relações. Prática fundamental à compreensão do nosso presente e dos futuros possíveis que estamos a construir, assim como para os processos de produção de subjetividades e suas narrativas nesses tempos-espaços.
Assim, se as ações humanas são sempre situadas no tempo e espaço, sendo, pois, também constituídas por elas, analisar a produção histórica dos espaços, de como podem ou não ser acessados, das relações que são ou não possíveis de se ter com ele, das marcas que ali estão inscritas e/ou (in)visibilizadas, as histórias que narram ou que silenciam, é também analisar dimensões que constituem os processos de produção de subjetividades.
Para finalizar esta escrita...
Pensar a construção dos espaços, dos tempos, das memórias e dos valores que são reverenciados ou silenciados em uma determinada sociedade constitui-se central à Psicologia, pois essas dimensões constituem as possibilidades e limites na produção de subjetividades, instituem pensabilidades e sensibilidades, formas de ser e de agir.
A história não é algo finalizado. A história é processo vivo, vivenciado em nossos agoras, no presente. Pensar a história como fato morto é pensa-la a partir do fim da possibilidade de narrar a história, a impossibilidade de transmissão da experiência e de reinventar o presente e o próprio futuro. A cidade, por sua vez, é (re)escrita constante, espaço pulsante que reflete e refrata as tensões entre vozes sociais - espaço-tempos nos e a partir dos quais as vidas acontecem e se constituem e que são por elas constituídas, escritas e reescritas.
É possível perscrutar a presença ausente (Gagnebin, 2006) de rastros que contam histórias outras em vários pontos de toda e qualquer cidade; por vezes passam despercebidos, mas, como marcas do tempo no espaço, resistem e denunciam a violência por vezes ardilosa das práticas que instituem e oficializam algumas vozes sociais e silenciam várias outras. Reiterando essas práticas, permanecem a compor as paisagens das cidades vozes sociais que ocupam lugares centrais nas relações de força e se apresentam como monumentos e patrimônios históricos, a ofuscar aqueles considerados desimportantes.
Mas as desimportâncias deixam seus rastros pela cidade, assim como seus artífices, os quais anunciam possibilidades de narrativas outras, de outras histórias, de outras formas de existir. Necessário se faz auscultar essas vozes, perscrutar seus rastros, condição para a reinvenção do presente e de futuros possíveis. Eis uma perspectiva de trabalho para uma Psicologia comprometida com as existências anônimas, plurais, que edificam o presente e que, porém, são continuamente alijadas das possibilidades de virem a se reconhecer em suas importâncias.
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Endereço para correspondência:
Jardel Pelissari Machado
machado.jardel@yahoo.com.br
Andrea Vieira Zanella
avzanella@gmail.com
Submetido em: 14/10/2019
Revisto em: 19/01/2020
Aceito em: 21/01/2020
1 Os trechos de textos publicados em outras línguas que são aqui citados foram traduzidos livremente pelos autores como forma de tornar a leitura deste texto mais fluente.
2 United States Agency for International Development.
3 Os pontos a serem vistos no Museu de Percurso, conforme projeto, podem ser acessados nas abas "A resistência" e "A repressão", no site do Museu: http://www.forumverdade.ufpr.br/caminhosdaresistencia/.
4 Conferir em: https://www.facebook.com/levantepopularPR.
5 Jornal Gazeta do Povo: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/estudantes-repetem-68-e-arrastam-busto-de-ex-reitor-pela-ruas-de-curitiba-8eqeh4b5ooga5xdpmlfri787i.
6 Retirado do site do LPJ no Facebook. Acessível: https://www.facebook.com/levantepopulardajuventude/posts/707059699359587
7 A judicialização é compreendida não como mera aplicação do poder do sistema judiciário na resolução de questões sociais. Trata-se de um aspecto da "experiência contemporânea, imbricado no jogo da norma, colocando em evidência formas sutis de governo das condutas, modos finos de subjetivação e certa instrumentalização psicológica do exercício de poder" (Prado Filho, 2012, p. 110). Pesquisadores têm se dedicado à discussão dos processos de judicialização e seus efeitos em diferentes esferas, como Nascimento (2012) e Reis e Guareschi (2016), entre outros.
8 Agradecemos à professora Renata Senna Garraffoni (DEHIS) e aos professores Adriano Nervo Codato (DECP) e Pedro Bodê de Moraes (DECISO), redatores do referido parecer, por terem gentilmente o cedido para que pudéssemos utilizá-lo em nossas análises.