ARTIGOS

 

Os grandes debates dos anos 1920: notas sobre o feminino, em psicanálise

 

The great debates of the 1920s: notes on the feminine, in psychoanalysis

 

Los grandes debates de la década de 1920: apuntes sobre lo femenino, en psicoanálisis

 

 

Camila Terra da RosaI; Amadeu de Oliveira WeinmannII

IMestre. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-4927-876X
IIDocente. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Estado do Rio Grande do Sul. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4162-9660

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como foco a emergência de uma geração de psicanalistas mulheres, nos anos 1920, cuja autoria foi reconhecida e que encontrou um lugar na história do movimento psicanalítico. A partir de um breve contraste com a geração de psicanalistas mulheres dos anos 1910, o artigo interroga: o que tornou possível às analistas dos anos 1920 ocuparem um novo lugar? Nesse sentido, realçamos dois processos: o avanço das lutas feministas, encarnadas no movimento sufragista, e a abertura de um tempo em que as controvérsias, no movimento psicanalítico, não implicam, necessariamente, rupturas. A partir do Congresso de Berlim, em 1922, três temas dominaram os debates: a formalização da prática clínica, a análise de crianças e a sexualidade feminina. Nossa hipótese é de que o problema do feminino perpassa esses três temas como efeito de uma marca instaurada pela geração de 1910, que a de 1920 ativa, retrospectivamente.

Palavras-chave: Psicanálise; História; Feminino; Pioneiras da psicanálise.


ABSTRACT

This paper focuses on the emergence of a women's psychoanalysts generation, in the 1920's, whose authorship was recognized and that founded a place in the history of the psychoanalytic movement. Stating from a brief contrast with the women's psychoanalysts generation from the 1910's, this paper questions: what made possible to the analysts from the 1920's to occupy a new position? In this sense, we highlight two processes: the advance of the feminists fights, incarnated in the suffragist movement, and the opening of a time of controversy, in the psychoanalytic movement, that do not, necessarily, implies ruptures. From the Berlin's Congress, in 1922, three themes dominate these debates: the formalization of the clinical practice, the analysis of children and the female sexuality. Our hypothesis is that the femininity problem pass through these three themes as effect of a mark established by the generation of 1910, which the generation from 1920 activate, retrospectively.

Keywords: Psychoanalysis; History; Femininity; Pioneers of psychoanalysis.


RESUMEN

Este trabajo se centra en el surgimiento de una generación de mujeres psicoanalistas en la década de 1920, cuya autoría fue reconocida y que encontró un lugar en la historia del movimiento psicoanalítico. Partiendo de un breve contraste con la generación de mujeres psicoanalistas de la década de 1910, el artículo se pregunta: ¿qué hizo posible que las mujeres analistas de la década de 1920 ocuparan un nuevo lugar? En este sentido, destacamos dos procesos: el avance de las luchas feministas, encarnadas en el movimiento sufragista, y la apertura de un tiempo en que las controversias, en el movimiento psicoanalítico, no necesariamente implican rupturas. A partir del Congreso de Berlín, en 1922, tres temas dominan los debates: la formalización de la práctica clínica, el análisis de los niños y la sexualidad femenina. Nuestra hipótesis es que el problema de lo femenino permea estos tres temas como efecto de una marca establecida que la generación de 1920 activa, retrospectivamente.

Palabras clave: Psicoanálisis; Historia; Femenino; Pioneras del psicoanálisis.


 

 

Introdução

Ao revisitarmos a história da psicanálise, nos deparamos com diferentes nomes de psicanalistas homens que, de forma mais ou menos marcante, participaram dos primórdios do movimento, como Paul Federn, Max Graf, Edward Hitschmann e Otto Rank, presentes desde a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras, que teve seu início em 1902. Porém, não encontramos nomes de mulheres psicanalistas nessas primeiras atas (Numberg & Federn, 2015). Onde estavam elas? A partir de algumas pesquisas (Roudinesco, 2009; Cromberg, 2010), encontramos duas gerações iniciais de mulheres psicanalistas: as pioneiras, que atuaram nos anos 1910, e a segunda geração, que atuou a partir dos anos 1920. Denominamos "gerações" por se tratar de dois grupos de mulheres, cuja presença no movimento psicanalítico é marcadamente distinta; a separá-las, encontramos a "virada dos anos 1920", tanto no movimento psicanalítico quanto na sociedade europeia. As mulheres de 1910 situam-se em uma posição à margem da história e, ao mesmo tempo, cumprem uma função de borda da história. Podemos citar algumas delas: Emma Eckstein (possivelmente, a primeira mulher a exercer a psicanálise), Margarethe Hilferding (primeira mulher a ser membro da Sociedade Psicanalítica de Viena - SPV, em 1910), Sabina Spielrein, Hermine von Hug-Hellmuth, Vera Schmidt e Tatiana Rosenthal. Essas pioneiras praticaram, principalmente, a psicanálise de crianças e

[...] foram tanto ex-pacientes, tratadas em geral por graves problemas psíquicos, quanto mulheres marcadas por um destino excepcional: psicose, assassinato, suicídio, violências diversas. Seus sofrimentos e sua vontade de serem reconhecidas exprimiam um protesto e uma revolta contra sua condição no seio da sociedade ocidental do fim do século XIX (Roudinesco, 2009, p. 86-87).

Entendemos que essas mulheres produzem uma marca e, se um ato tem essa função, é porque enfrentou resistências.

Na segunda geração, encontramos analistas mulheres cujos estudos acadêmicos se deram, especialmente, nas áreas da medicina, pedagogia e literatura. São elas: Karen Horney, Helene Deutsch, Jeanne Lampl-de-Groot, Ruth Mack Brunswick, Melanie Klein e Joan Rivière. A fim de assinalar a dimensão da inflexão que comentamos, trazemos alguns dados fornecidos por Roudinesco (2009): em 1910, na fundação da International Psychoanalytical Association (IPA), dos 58 membros da SPV, Hilferding era a única mulher. Já em 1938, dos 149 membros da SPV, 42 eram mulheres. A historiadora da psicanálise interpreta essa importante transformação nos seguintes termos: "assim, o feminino sob todas as suas formas e em todos os seus estados foi o núcleo principal de uma expressão da psicanálise que assumiu o aspecto de uma derrota da imago paterna contra um fundo de decadência da família patriarcal" (p. 97).

Ao nos depararmos com essas duas gerações de mulheres, perguntamos: o que tornou possível às mulheres psicanalistas de 1920 ocuparem outro lugar, em relação às de 1910? Como se deu essa mudança de posição no movimento psicanalítico? Para enfrentar este problema, faz-se necessária uma contextualização da situação das mulheres nesse período. Com esse intuito, fazemos uma breve exposição do movimento pelo sufrágio feminino. Em seguida, nos dedicamos a um marco histórico do movimento psicanalítico - o Congresso de Berlim, de 1922, em que três temas são firmemente debatidos: o processo de institucionalização da prática analítica, a análise de crianças e a sexualidade feminina. Entendendo este momento como um marco histórico, concluímos que a atuação das mulheres de 1910 teve a função de inscrever um traço, possibilitando que, a posteriori, as mulheres de 1920 emergissem com força suficiente para ocupar um novo lugar no movimento psicanalítico.

 

Movimento pelo sufrágio feminino

Para melhor entendermos os processos culturais que influenciaram nessa transição da posição das mulheres no movimento psicanalítico, é importante que retomemos um ponto crucial na história ocidental: o movimento pelo sufrágio feminino, que irrompe em 1865 e alcança seus primeiros objetivos no limiar dos anos 1920. Como nos coloca a teórica feminista Joan Scott (1990, p. 84): "[...] a história do pensamento feminista é uma história da recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino, em seus contextos específicos, e uma tentativa para reverter ou deslocar suas operações". Perceber como se deram as relações entre homens e mulheres, nesse período de 1865 a 1920, nos permite entender algumas diferenças entre as pioneiras de 1910 e as de 1920.

Em 1700, Mary Astell (citado por Varikas, 2003), autora feminista inglesa, escreve:

Se a soberania absoluta não é necessária dentro do Estado, por que é necessária dentro da família? [...] Se o poder arbitrário não é [...] um modo apropriado de governar seres racionais e livres, não deveria ser exercido em lugar algum. E ele não é menos perigoso, muito antes pelo contrário, na família do que no reino, pois 100 mil tiranos é muito pior que um só. [...] Se todos os homens nascem livres, como se explica que todas as mulheres nasçam escravas? (p. 190).

Astell era um sintoma de sua época. Ela expressava uma transição pela qual a cultura ocidental moderna estava passando, em que o nexo entre política e natureza começava a se desarticular, o que alterava o papel das mulheres na sociedade. Para a escritora, a posição submissa de uma mulher ao homem, no seio de uma família, não é uma posição natural, é uma questão de Estado. Outro nome importante é o de Olympe de Gouge, pseudônimo de Marie Gouze, dramaturga feminista:

Verificando que o ideário revolucionário francês não contemplava as cidadãs francesas, Olympe de Gouge concebeu uma Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791) - paráfrase da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) -, em que expressa a absoluta igualdade legal e política entre os sexos (Abreu, 2002, p. 444).

O fim de Gouge foi o fim dos revolucionários: a guilhotina. Assim, mesmo com alguns questionamentos acerca do papel da mulher na política na época da Revolução Francesa, foi negada a cidadania às mulheres, por entenderem que seus afazeres domésticos e cuidados com as crianças eram incompatíveis com os direitos políticos (Scott, 2005).

Tanto a Revolução ocorrida em 1776, em solo norte-americano, responsável por uma das primeiras constituições do Ocidente moderno, quanto a Revolução Francesa de 1789 são responsáveis por mudanças no clima cultural, através do enfraquecimento da aristocracia e da Igreja Católica. Se, por um lado, o lema "liberdade, igualdade e fraternidade" alimentava uma ideia de irmandade na sociedade, por outro, ainda existiam grandes paradoxos, como a preservação da escravidão nos Estados Unidos e a submissão das mulheres. O fato de ser humano não era uma garantia de direitos: "[...] as mulheres foram reconhecidas como mães e não como irmãs" (Karawejczyk, 2013, p. 42 [grifo do autor]). Mesmo assim, alguns avanços incluíam as mulheres, como a possibilidade do divórcio consentido. Seguiram-se outras revoluções focais pela Europa, que reforçaram a perda de poder da aristocracia e o avanço do liberalismo. Logo, esse clima leva a um novo questionamento sobre o sufrágio universal. Em 1848, na França, a partir de uma Assembleia Nacional Constituinte, se decretou que o sufrágio seria universal, sem nenhuma condição de censo, mas isso ainda não significava que o voto se estendia às mulheres. A divisão por sexo tornou-se ainda mais evidente:

A partir dessa explícita não inclusão das mulheres - justificada pela sua diferença biológica - é que começou a surgir no mundo ocidental um movimento feminino em busca do reconhecimento de sua cidadania política e da igualdade de direitos, ou pelo menos, de uma equivalência de direitos em relação aos homens (p. 46 [grifo do autor]).

Na Inglaterra - o grande palco do movimento sufragista -, o questionamento dessa condição teve como marco o ato reformista de 1832, que expressava claramente que somente homens, male person, poderiam usufruir do direito ao voto. Como coloca Estelle Pankhurst (1931) - filha da líder do movimento sufragista, Emmeline Pankhurst -, mesmo já existindo um movimento pela emancipação feminina, desde os anos 1700, a possibilidade do voto das mulheres não foi levada em consideração. É com a candidatura ao parlamento de John Stuart Mill - conhecido por levantar a bandeira do movimento de emancipação das mulheres -, em 1865, que o ato de 1832 passa a ser problematizado. Não é preciso justificar por que um homem teve que ser o responsável por levar esse debate ao âmbito político - certamente, não foi por falta de luta das mulheres, como nos mostram Astell e de Gouge.

Alguns dados históricos são importantes para entendermos o que deu início a esse novo posicionamento das mulheres. Um deles era a taxa de natalidade e de mortalidade, que permaneciam mais equilibrados, sendo responsáveis por um aumento demográfico importante desde 1875. Assim, devido a melhores condições sanitárias, a possibilidade de morte de seus bebês já não era uma questão que tomava tanto as mães. Mais importante ainda foi o fato de que não se tinha tantos filhos como em alguns anos anteriores: "[...] o aumento do controle de natalidade indica, portanto, certa penetração de novas estruturas, valores e expectativas na esfera das mulheres trabalhadoras ocidentais" (Hobsbawm, 2015, p. 274). O historiador argumenta que o fato de as mulheres não participarem da vida política no fim do século XIX também é um dado novo na história:

Na política popular da sociedade pré-industrial, que variava desde as pressões de opinião de uma aldeia, a tumultos em prol da antiga 'economia moral' e às revoluções e barricadas, as mulheres, pelo menos as pobres, não só tomaram parte, como, reconhecidamente, desempenharam um papel. Na Revolução Francesa, foram as mulheres de Paris que marcharam sobre Versalhes, a fim de expressar ao rei a exigência do povo de que fossem controlados os alimentos. Na era dos partidos e das eleições gerais, empurraram-nas para o segundo plano (p. 282).

Assim, torna-se mais fácil, historicamente, encontrar dados sobre os movimentos organizados pela emancipação feminina do que descrever como essas mudanças ocorreram em termos culturais. Isso porque somente a existência desses grupos já inspirava resistência e debate: "[...] as mulheres estavam à beira de uma vitória maciça na longa luta por direitos de cidadania, simbolizada pelo voto" (p. 304). Porém, as mulheres ainda sofriam com muitas desigualdades no salário que recebiam e em seus direitos civis.

Somente em outubro de 1865, mais de 30 anos passados do ato reformista, surge a sociedade pelo sufrágio feminino em Manchester, a Manchester National Society for Women's Suffrage, tendo como secretária honorária Elizabeth Wolstenholme. Antes dessa sociedade, existia a Kensington Society, em Londres, liderada por Emily Davis, que tinha como foco a educação, mas passou a emitir alguns documentos sobre a emancipação feminina. Com John Stuart Mill eleito, foi proposta uma petição pelo sufrágio feminino, liderada pela Kensington Society, que se baseava na ideia de que, se todos aqueles que tinham propriedade podiam votar, assim poderiam também votar as mulheres proprietárias de terras. Aqui, Pankhurst (1931, s/p) aponta para uma diferença das duas sociedades: "era diferente do que teria sido se elaborado em Manchester, onde Liberdade, Igualdade, Fraternidade, era o slogan que animava as trabalhadoras do sufrágio"1. É importante ressaltar que a luta de classes atravessava o movimento sufragista. Existiam duas linhas dentro do movimento: uma identificada com o liberalismo, que defendia o direito ao voto e questões relacionadas ao mercado de trabalho, e outra que se propunha a pensar também questões referentes ao casamento e que se colocava contra o liberalismo.

Nas cartas mencionadas no livro de Pankhurst (1931), vindas de outras sufragistas, podemos perceber a presença de alguns ideais iluministas, como lemos na carta de Lydia Becker:

Visa o fim último ao qual todos os esforços de emancipação política são introdutórios - o pleno reconhecimento do princípio de que toda alma humana é um reino independente - e um universo, sobre o qual o indivíduo é o único soberano. A noção de que alguém deva sujeição ou subordinação a outra pessoa é fatal para a vida do governante e do sujeito (s/p. [grifo da autora]).

É interessante perceber também, nessas cartas, que mesmo que o foco das lutas do movimento fossem os direitos de cidadania, já havia um incipiente questionamento sobre os papéis sociais de homens e mulheres. Uma igualdade passava a ser pensada para além da questão política:

Eu acredito que os homens pensam que as mulheres não sentem, pelo menos que as mulheres não sentem como os homens se fossem tratados de maneira semelhante. Sempre que os homens propõem que as mulheres passem suas vidas em condições que eles não gostariam em suas próprias vidas, eles podem estar certos de que as mulheres também não gostariam e não se submeteriam se pudessem evitar (s/p.).

Em 1867, John Stuart Mill - cujo livro A submissão feminina foi traduzido para o alemão por Sigmund Freud (Annas, 1977) - faz seu primeiro pronunciamento no Parlamento a favor do sufrágio feminino, mas é derrotado pela maioria. Os argumentos dos que eram contrários ao sufrágio feminino giravam em torno de que as mulheres não teriam as capacidades mentais mínimas exigidas - como o discernimento, por exemplo - para a ação do voto. Depois de inúmeras manifestações nas ruas, que levaram a diversas prisões das sufragistas, e de inúmeras tentativas no Parlamento de levar a questão adiante em termos constitucionais, em 1918, finalmente, as britânicas conseguem o direito ao voto. A partir daí, outros países passam a permitir o voto de mulheres. Na França, tida como modelo democrático, o voto feminino só foi permitido a partir de 1945. Os anos 1920 foram palco das lutas sufragistas no território continental da Europa Ocidental.

 

Um congresso com função de corte

Os anos 1920 também foram decisivos para o movimento psicanalítico, sendo palco de grandes controvérsias que, de uma maneira ou outra, tencionavam a teoria e a prática analítica. Podemos nomear três como as grandes controvérsias dessa época: a formalização da prática psicanalítica, encabeçada por Ernest Jones e Max Eitingon; a análise de crianças, encarnada em Melanie Klein, mas que já era exercida por psicanalistas mulheres desde os anos 1910; e a sexualidade feminina, que encontrou sua primeira expressão em Karen Horney:

Nos anos em que a dissenção interna sobre a formação e qualificação dos candidatos à psicanálise ameaçava romper a frágil unidade do movimento freudiano, os analistas também entraram num debate sobre a psicologia da mulher. A discussão, em seu conjunto, era polida e mesmo afável, mas atingia o núcleo da teoria de Freud, e a questão continuou a atormentar a psicanálise (Gay, 1988, p. 454).

Até 1933, quando o partido nazista assume o poder na Alemanha, os congressos institucionais bienais eram vivos e bem frequentados, embora Freud tenha deixado de comparecer nos anos 1920, em função do câncer na mandíbula. Nessa mesma época, temos a construção do conceito pulsão de morte, introduzido em 1920, em Além do princípio do prazer (Freud, 1996/1920). A psicanálise passa por uma revolução, por um novo ato fundador: "[...] foi paralela a uma luta que afirmou a primazia do inconsciente sobre a consciência, do id sobre o ego, da pulsão de morte sobre o ego, do desejo sobre a adaptação, do 'demônio' sobre a felicidade e a religião: em suma, da psicanálise sobre a psicologia" (Roudinesco, 1986, p. 147). Entendemos que esse movimento teórico apontava para um lugar de não saber da psicanálise, isto é, para além do positivismo e da psicologia adaptativa. Também é a partir de 1920 que Freud começa a se afastar do comando da IPA, deixando cada vez mais espaço para Ernest Jones e os ingleses. Movimento, este, muito parecido com o que ocorreu no fim da Primeira Guerra: a Alemanha perde territórios para os vencedores e "[...] o humor anglo-saxão, o joke, suplantou o Witz" (p. 140).

Tanto o problema da formalização da prática analítica quanto as questões da análise de crianças e da sexualidade feminina uniram-se como uma possibilidade de questionamento da teoria e da prática freudiana, abrindo espaço para outras autorias, no interior do movimento psicanalítico. O que em outros campos - e outros tempos - era motivo de dissidências, nesses temas era possível a discussão sem separação: por isso, ganharam o status de controvérsias. Final da Primeira Guerra Mundial; instauração da Policlínica de Berlim, em 1920, e da Clínica Psicanalítica Pública de Viena, em 1922; psicanalistas ocupando um novo lugar na sociedade; conceito de pulsão de morte: todas essas questões formavam um clima propício para as grandes discussões no Congresso de Berlim, de 1922.

 

O processo institucional-burocrático da psicanálise

Roudinesco (1986) descreve o processo de institucionalização do movimento psicanalítico:

O processo de institucionalização da psicanálise compreende, [...] em termos esquemáticos, quatro etapas principais. De 1902 a 1906, foi o reinado da horda selvagem. De 1906 a 1912, assistiu-se a uma expansão da doutrina freudiana para o exterior, acompanhada de uma profissionalização cada vez mais acentuada na prática analítica. [...] Em 1910, a IPA se tornou o organismo dirigente de todas as sociedades já criadas ou por surgir. O período situado entre 1912 e 1927 viu desenvolver-se um mecanismo duplo de poder. A IPA deu continuidade a seu trabalho 'unificador' em meio às dissenções, exclusões e separações, enquanto o comitê2 dirigia secretamente os assuntos do movimento. Foi a era do fanatismo religioso e do dogmatismo. [...] A quarta etapa foi de 1926 a 1939 e assistiu à dissolução do comitê (1927) e, mais tarde, ao fim do reino das 'elites' sobre as 'massas'. A linha 'liberal' triunfou sobre a linha 'dogmática' (p. 131-132).

A institucionalização do ofício de psicanalista parte de três discussões: a questão da análise leiga, a chamada análise didática e a análise de crianças. A grande atualização da instituição psicanalítica - encabeçada por Jones e Eitingon -, que se deu em 1925, no Congresso de Homboug, quando se decidiu que a psicanálise continuaria restrita a médicos e pela obrigatoriedade da análise didática, teve sua origem no Congresso de Berlim, de 1922: "a moção de Eitingon teve por objetivo homogeneizar a formação dos analistas entre os diversos países representados" (Roudinesco, 1986, p. 152). A proposta, apresentada no congresso de 1922, seria de que cada formação deveria seguir o padrão IPA; a partir daí, cada sociedade se responsabilizaria pela aceitação ou recusa de candidatos, que seriam apresentados à IPA; o terceiro ponto exigia a obrigatoriedade de supervisão. Assim, seria psicanalista quem tivesse percorrido o processo oficializado pela IPA. No centro desse debate, embora não explicitada, estava a questão da análise leiga, a qual Freud mostrava-se favorável. Porém, o comitê que liderava a IPA, que tinha como maior expoente Jones, tomou a decisão de que a psicanálise não se separaria da medicina, reafirmando a força do grupo inglês.

O ápice da questão da análise leiga foi a denúncia de Theodor Reik por Wilhelm Stekel, em 1925, e, mais tarde, por um paciente americano, Newton Murphy. Em função dessa denúncia, Freud teria escrito para Paul Federn, em 1926: "[...] enquanto eu estiver vivo, vou impedir que a psicanálise seja tragada pela medicina" (Gay, 1988, p. 446). Posicionamento, este, reiterado em A questão da análise leiga (Freud, 1996/1926), publicado em 1926. Porém, toda essa discussão já existia no movimento. Os que eram contrários à prática da psicanálise por não médicos argumentavam que poderia haver confusões entre sintomas físicos e psicológicos, mais ou menos o que apontava o sonho da injeção de Irma, relatado por Freud. Usavam o caso de Rolf3, sobrinho de Hug-Hellmuth, como justificativa para a necessidade de ser um médico a fazer um diagnóstico diferencial, o que um analista leigo não poderia fazer (Rodrigué, 1995). Mesmo assim, Freud defendia que uma formação em medicina era dispensável, embora sustentasse que o paciente deveria, antes, ser avaliado por um médico: "[...] assim, nada mais natural que alguns dos adeptos mais destacados de Freud - de Otto Rank a Hanns Sachs, de Lou Andreas-Salomé a Melanie Klein, para não mencionar a psicanalista em sua própria casa, Anna - não fossem médicos" (Gay, 1988, p. 447). Todas essas discussões sobre a análise leiga, além de um número considerável de charlatões, que usavam da reputação da psicanálise em seu próprio proveito, fecundaram o terreno para as discussões da formalização - e talvez fecundem até hoje. A psicanálise é território de quem?

Vale lembrar que foi no congresso de 1922, em Berlim, que surgiu a obrigatoriedade da análise didática que vemos hoje, ainda, nas instituições filiadas à IPA. A partir de então, pensou-se em analistas instrutores (que transmitiam a psicanálise através da prática) e analistas supervisores (didatas ou controladores), que orientavam a análise de seus analisandos.

Os discípulos de Freud pareciam, mais ainda do que seu mestre, incapazes de situar os riscos, justamente no momento em que davam a sua profissão seus títulos de nobreza. As palavras supervisor, controle, candidato, instrutor, aluno, comitê, instituto e formação substituíram os antigos vocábulos da época heroica (Roudinesco, 1986, p. 153).

Importante ressaltar que Freud não seguiu nenhuma das novas regras aplicadas. Quem obrigaria Freud a se analisar e supervisionar? Freud seguiu atendendo parentes de seus pacientes, mesmo quando sua clínica já era majoritariamente composta por analistas: "na realidade, as regras foram elaboradas pelo primeiro círculo para as gerações vindouras" (Roudinesco, 2014, p. 297).

Outro ponto relevante nessas discussões era a expansão da clínica psicanalítica. Em 1918, no Congresso de Budapeste (no trabalho intitulado Linhas de progresso da psicoterapia psicanalítica), Freud (1996/1919) expressa sua crença de que no futuro o tratamento psicanalítico seria incluído como necessidade de saúde. Em 1920, sua crença começa a tornar-se realidade (em parte, em função das neuroses de guerra) com a constituição da Policlínica de Berlim, financiada por Eitingon e que, a partir de 1921, passa a contar com a colaboração de Melanie Klein: "as ideias de Freud, que em tempos de paz, os psiquiatras mostraram tanta relutância em levar a sério, agora obtinham um ilustre apoio entre os médicos designados para hospitais militares e encarregados de soldados neuróticos de guerra" (Gay, 1988, p. 346). Foi nesse período que se instalou um programa de ensino no Instituto de Psicanálise de Berlim, para garantir que os pacientes fossem atendidos por analistas minimamente experientes. Em 1924, Helene Deutsch torna-se diretora do Instituto e ocupa o cargo durante dez anos: "[...] o programa exigia cursos sobre teoria geral da psicanálise, sonhos, técnica, ensino do conhecimento analítico para o clínico geral e tópicos especiais como a aplicação da psicanálise ao direito, sociologia, filosofia, religião e arte" (p. 421). Além da exigência de leitura das obras freudianas. Os frequentadores do Instituto eram divididos em candidatos e ouvintes: aqueles que seguiriam o curso para ingressar na prática psicanalítica e aqueles que estudavam psicanálise para aplicar nas suas áreas - na sua maioria, pedagogos. Para aqueles que desejassem praticar a psicanálise, era exigida uma análise didática de duração de pelo menos um ano. O que ainda era controverso em outras sedes, em Berlim já estava estabelecido: "mas, mesmo com uma análise tão curta, a candidatura era um período de teste que correspondia, como disse Hanns Sachs, 'ao noviciado em uma igreja'" (p. 422). O Instituto Psicanalítico de Berlim ganha cada vez mais espaço e candidatos de vários países procuram o lugar para sua formação.

É nesse contexto que se dão as primeiras discussões sobre a formalização da prática analítica. Houve uma grande procura de pacientes pela Policlínica de Berlim, acarretando a necessidade de aumentar o número de analistas capacitados para atender a demanda, o que acabou gerando a discussão sobre a formalização. De 1920 a 1922, foram totalizadas 130 análises na Policlínica de Berlim (Roudinesco, 1986). Hanns Sachs ficou responsável pela direção de ensino da instituição. Acontece que, até 1926, muitos analistas europeus trabalhavam apenas para sua sobrevivência e ainda tinham que disputar mercado com psicanalistas com qualquer formação. A formalização era, também, uma questão de mercado, imposta pela expansão da clínica analítica.

 

Análise de crianças: a possibilidade de emancipação das mulheres

Freud tinha o mesmo posicionamento frente ao tratamento de crianças e psicóticos: acreditava que, nesse ponto, a psicanálise pouco poderia ajudar para além de uma pedagogia. Nesses dois campos, a história da psicanálise mostrou-se contrária ao posicionamento do fundador:

Poderíamos dizer que o relativo fracasso sofrido por Freud no tratamento das crianças prende-se ao estatuto particular que ele lhes atribuiu nos dois casos célebres publicados antes da guerra. Com efeito, ele abordou a paranoia de Schreber e a fobia do Pequeno Hans num trabalho em que a relação direta entre o paciente e seu terapeuta estava ausente (Roudinesco, 1986, p. 145).

Nem psicóticos, nem crianças gozavam da mesma posição, diante de Freud, do que os pacientes adultos neuróticos. Havia um distanciamento do objeto de estudo, como se a relação terapêutica pudesse ser substituída sem efeitos.

Os líderes dessa expedição a novas terras (infância e psicose) foram Melanie Klein e Karl Abraham (com seus estudos sobre a psicose maníaco-depressiva). Klein acreditava que a psicanálise poderia auxiliar no tratamento de crianças, tendo acesso a seu inconsciente, por meio da transferência. É importante ressaltar o ato de Melanie Klein: assim como Freud, tomou a infância como ponto de partida, mas desbravou ainda mais o terreno, adentrando em questões ainda não investigadas e, posteriormente, tornou-se "[...] a fundadora de uma doutrina e de uma instituição, até ocupar o lugar simbólico do próprio Freud" (Roudinesco, 1986, p. 157).

Klein foi apoiada desde cedo por Karl Abraham e Sandór Ferenczi, ambos seus analistas, que entendiam e defendiam a originalidade de suas investigações, mesmo com boa parte do movimento psicanalítico sendo crítico ao trabalho com crianças em idade precoce. Em 1919, Klein publica seus primeiros textos sobre a clínica com crianças: "a partir de 1920, a análise de crianças se problematiza, ou melhor, se politiza" (Rodrigué, 1995, p. 327). Era praticamente impossível não se fascinar com a técnica de brincar proposta por Klein e, aonde ela fosse, "os sentimentos disparavam" (Gay, 1988, p. 426). Para a autora - e aí está sua grande inovação técnica -, através da brincadeira era possível ter acesso às fantasias inconscientes das crianças: Klein concebia o recalque como muito anterior ao proposto por Freud, por entender que a conflitiva edípica se dava em momentos muito mais precoces e, portanto, o supereu estaria presente nas crianças, diferentemente de como Freud entendia. Freud encontra sua primeira resistência feminina, no movimento psicanalítico. Suas alterações técnicas vão resultar, futuramente, em alterações metapsicológicas e em uma nova escola da psicanálise.

A análise de crianças situa-se como uma das grandes controvérsias do Congresso de Berlim, por encontrar resistências nos psicanalistas - e no próprio Freud -, que não entendiam ser possível um atendimento em idade tão precoce. Nesse momento, Klein ainda não possuía a força que terá nos anos 1930, sua teoria ainda é incipiente. Anna Freud também ainda não possui produções suficientes para contrapor-se ao trabalho kleiniano. Klein ainda não possui adeptos: somente Abraham e Ferenczi como seus guardiões. No entanto, se nos debruçamos sobre os primeiros passos das pioneiras dos anos 1910, algo nos chama a atenção: a psicanálise de crianças foi seu meio de inserção no movimento psicanalítico - como podemos ver nas trajetórias de Sabina Spielrein, Hermine von Hug-Hellmuth, Vera Schmidt e Tatiana Rosenthal - e, também, de emancipação econômica, já que era um meio possível mesmo para aquelas mulheres que não podiam estudar medicina. Nessa época, entendia-se que somente mulheres poderiam dar aulas às crianças e isso também aconteceu na psicanálise: somente mulheres atendiam os pequenos, como comenta Freud, na conferência Explicações, aplicações e orientações: "aconteceu automaticamente que a análise de crianças se tornou domínio das analistas mulheres, e sem dúvida isto continuará assim" (Freud, 1996b/1933, p. 146). Talvez por não se distinguir, nesse momento, a função materna do papel da analista, ou pela confiança dos pais de entregarem seus filhos a mulheres. Para nós, o que vale a pena ressaltar é a rede que se formou: as psicanalistas encaminhavam pacientes umas às outras, formando um grupo solidário, com força suficiente para mudar os rumos da psicanálise: "[...] desse ponto de vista, podemos dizer que a análise de crianças acelerou a emancipação feminina" (Roudinesco, 2014, p. 331).

Podemos dizer, também, que a psicanálise de crianças determinou o futuro da psicanálise: "[...] em 1924, no Congresso de Wurzburg, Abraham declarou: 'O futuro da psicanálise é inseparável da análise através do jogo'" (Rodrigué, 1995, p. 66). Em 1927, no Congresso de Innsbruck, começam as grandes controvérsias entre Anna Freud e Melanie Klein. O futuro da psicanálise já estava traçado.

 

Elas tomam a palavra

É interessante perceber que as três grandes controvérsias envolviam, de maneiras distintas, o universo feminino. Em 1922, no Congresso de Berlim, uma nova formalização é proposta por Jones, em uma discussão que visava a padronização da técnica analítica, com o estabelecimento da obrigatoriedade da supervisão e da análise pessoal. Parece ocorrer aqui uma repetição: quando Margarethe Hilferding, a primeira mulher membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, ingressa na instituição, foram discutidas questões ligadas às regras de pertencimento. Podemos pensar que a atuação de mulheres na instituição psicanalítica torna necessária uma retomada das regras institucionais?

A análise de crianças foi o meio encontrado para a entrada de mulheres na psicanálise, ainda nos anos 1910; coube a elas o papel de iniciar esse trabalho, sendo uma via possibilitada mesmo àquelas que não haviam estudado medicina. Elas encaminhavam, entre si, seus filhos ou crianças do seu círculo familiar. Anna Freud - com o discreto apoio do pai, como podemos observar na conferência Esclarecimentos, explicações e orientações - defendia uma abordagem pedagógica, pois entendia que o supereu das crianças não estava maduro e que elas seriam incapazes de transferência. Klein apostava na possibilidade de acesso àquilo que podemos chamar de Outra cena da infância. Se existe uma sexualidade na infância, causadora de conflitos e sofrimentos, por que não a escutar? O campo de dominância feminina na psicanálise mostra-se um campo minado.

Na época em que Freud passa a ser reconhecido socialmente por seus escritos, o feminismo em Viena mostra pequenos avanços e algumas oportunidades para mulheres começam a aparecer, como a escola mista, fundada em 1901, por Eugenie Schwarzwald, uma reformadora pedagógica, que completou seu doutorado em Zurique. Mesmo que, em alguns momentos, Freud tivesse um posicionamento conservador em relação às mulheres e seu papel social, ele era rodeado por mulheres inteligentes e diferentes daquelas inocentes mulheres retratadas por Stefan Zweig, por exemplo: "[...] mas o tom condescendente, ainda que afetuoso, em suas expressões sugere que o movimento feminista nunca encontraria um adepto em Freud, apesar de tudo o que estava fazendo por elas em sua profissão" (Gay, 1988, p. 465).

Para situarmos o debate sobre o feminino, pensamos ser necessário falarmos de dois textos que influenciaram as autoras dos anos 1920: Manifestações do complexo de castração feminino, escrito em 1920, por Karl Abraham (1994/1920) (portanto, anterior ao Congresso de 1922), e O desenvolvimento precoce da sexualidade feminina, escrito por Ernest Jones (1996/1927). Ambos são citados nas produções posteriores sobre o tema, o que acentua sua importância no pensamento da época sobre o feminino.

O texto de Abraham foi o primeiro trabalho psicanalítico focado especificamente no tema do feminino. Abraham parte da ideia de que se pode pensar como universal o desejo das mulheres de serem homens. Acredita que o argumento de que os homens possuem maior liberdade na infância e maior disponibilidade de escolha profissional na idade adulta, utilizado pelas mulheres para justificar sua inveja do masculino, são racionalizações. O verdadeiro motivo seria o de essas mulheres não superarem as desvantagens que sentiam ao se depararem com seus órgãos genitais inferiores. Assim, tenta tipificar as mulheres conforme o modo como lidam com a castração. A influência desse texto nas produções posteriores é inegável; os textos que se seguem giram em torno do que foi proposto por Abraham: como as mulheres dão conta do seu complexo de castração? Quais os destinos possíveis para a inferioridade de seus órgãos? Muitos dos textos posteriores fizeram essa tentativa de catalogar, tentando dar borda ao feminino.

O texto de Jones, lido pela primeira vez no Congresso de Innsbruck, em 1927, inicia citando tanto Freud quanto Horney, reafirmando os questionamentos colocados por ela no Congresso de 1922 - que abordaremos posteriormente - e problematizando o falocentrismo da teoria psicanalítica, tentando pensar, assim como Abraham, acerca do complexo de castração nas mulheres. Jones aponta para um erro que alguns psicanalistas cometem, ao entenderem que a castração seria a ausência de qualquer sexualidade. Assim, pontua que a castração é sempre uma ameaça parcial ao prazer sexual. Para a extinção total do prazer, deveríamos utilizar a palavra afânise; sua ameaça suscitaria uma angústia que se aproxima muito de um pensamento de morte. Jones pontua que, embora existam especificidades de um modo masculino ou feminino de lidar com a afânise, ela estaria virtualmente presente em todos os sujeitos. Podemos pensar que o temor seria de retorno ao nível zero da sexualidade, o que aponta para a atuação livre de barreira da pulsão de morte. Aqui, o conceito de afânise aproxima-se do que Lacan chamará de gozo feminino, um gozo que escapa às bordas da ordem fálica. Parece haver uma aproximação entre feminino e morte. Se Abraham influenciou os trabalhos posteriores, é visível aqui o quanto Jones foi influenciado pelos trabalhos anteriores, como o de Horney e do próprio Abraham. Feito este recorte sobre esses dois trabalhos, podemos nos dedicar ao debate sobre a feminilidade ocorrido em setembro de 1922, no Congresso de Berlim.

A controvérsia sobre a sexualidade feminina funda-se em uma cena originária: uma filha que desafia o pai, sem tirá-lo de seu lugar de autoridade. E disso decorre sua função de corte. A fala de Karen Horney, nesse importante congresso, faz uma torção na maneira como as mulheres vinham inscrevendo-se na psicanálise e abre caminhos para novas possibilidades de filiação. No Congresso de 1922, em Berlim, em uma mesa presidida por ninguém menos do que Freud, Horney levanta-se e contesta o conceito de inveja do pênis, um dos pontos centrais da teoria freudiana sobre a sexualidade feminina: "a jovem e valente analista alemã, com mais garra que metapsicologia, foi capaz de desafiar publicamente o Professor em seu próprio terreno" (Rodrigué, 1995, p. 134). Segundo Gay (1988), Horney dirigiu-se respeitosamente, aceitando o conceito do fundador, mas sua crítica não deixou de ter um clima áspero. O texto apresentado por ela, nesse congresso, foi nomeado A gênese do complexo de castração nas mulheres. Logo de início, Horney (1991/1923) postula seu princípio: "[...] admitimos como verdade axiomática que as mulheres se sentem em desvantagem por causa de seus órgãos genitais, sem que isto seja considerado um problema em si; possivelmente devido ao narcisismo masculino isto tenha sido por demais evidente para precisar de explicações" (p. 35).

Horney acredita que a identificação com o pai é o que dá origem ao complexo de castração nas mulheres. Quando o amor primordial pelo pai (decorrente de uma identificação originária à mãe) é frustrado, a menina passa a identificar-se com ele. Não sendo a imagem e semelhança do pai, nasce o sentimento de inveja do pênis: "[...] é a feminilidade ferida que dá origem ao complexo de castração" (p. 49). A autora diverge de Freud; para ela, a inveja do pênis não está na origem de uma feminilidade reprimida - chamada por Freud de complexo de masculinidade -, mas é sua consequência:

Pelo contrário, podemos ver que a inveja do pênis de forma alguma impede o profundo e totalmente feminino apego amoroso ao pai e que apenas quando esta relação se arruína com o Complexo de Édipo (exatamente como nas neuroses masculinas correspondentes) é que provoca reação contrária ao papel sexual do sujeito (p. 50).

Sua hipótese é de que a inveja do pênis, originalmente, está intimamente ligada à pulsão escópica; é autoerótica, portanto. O menino, a todo o momento, tem oportunidade de olhar seu pênis, diferentemente da menina, que não pode ver seu clitóris. A diferença anatômica da menina não a deixa satisfazer sua curiosidade de olhar-se. Essa diferença é acentuada pela cultura, que reprime mais o sexo feminino do que o masculino. A visão de um menino urinando cria na menina a fantasia de que a ele também é permitido o toque, a masturbação. Temos, aqui, o despertar da inveja do pênis. Dessa curiosidade insatisfeita sobre seu próprio corpo decorreria uma dificuldade de libertar-se de si mesma como objeto de investigação, o que explicaria a maior subjetividade da mulher, em contraponto à maior objetividade do homem. Horney não chega a tratar a maternidade como solução para a inveja do pênis, mas diz que a menina ainda não enxerga essa gratificação tardia que vem de seu corpo. Se, na ereção do pênis, o menino percebe sua potência viril, a menina não tem como se perceber fértil.

"O que importava a Horney, porém, não era marcar pontos, mas estabelecer um princípio" (Gay, 1988, p. 472). Estabelecendo um princípio, de que as mulheres possuem voz - ativa -, Horney deu início a uma nova geração de mulheres psicanalistas. É importante lembrar que Horney foi uma teórica muito utilizada pelo movimento feminista, pois, nos anos 1920, o feminismo ainda é muito mais um campo de atuação política do que uma teoria. Se, por um lado, Freud coloca o debate sobre o feminino, oriundo do discurso científico do século XIX, em um novo patamar de complexidade, por outro, ao situar essa teoria nos marcos de uma cultura patriarcal, Horney converte-se não apenas em uma pioneira da psicanálise, mas também do feminismo. É sempre importante lembrar o contexto em que nasce um conceito. A inveja do pênis, em uma sociedade falocêntrica, não é impensável. Porém, como aponta Roudinesco (2014), tornar uma teoria sexual infantil, observável em alguns casos, em um conceito universal, transforma-o em dogma.

Os textos de Horney, ao longo dos anos, insistem na crítica histórico-cultural do falocentrismo. Psicanalistas homens tomam o masculino como modelo. Acrescentamos: como modelo teórico, clínico e institucional... Como nos coloca Foucault (2015/1976), as culturas modernas organizam-se através de um dispositivo de sexualidade, tornando a ordem fálica uma condição de existência da psicanálise. A fala de Karen Horney centra o complexo de castração como uma marca cultural e é esta a originalidade de sua teoria. Um grupo de pioneiras insistiu na psicanálise, nos difíceis anos 1910, abalando os fundamentos institucionais do movimento; a análise de crianças instaurou-se como um domínio feminino; um congresso permitiu a presença de uma mulher em uma mesa, ao lado de Freud, no alvorecer dos anos 1920; e, finalmente, o tema da sexualidade feminina é apropriado por psicanalistas mulheres sintonizadas com o avanço dos movimentos feministas. No artigo Sexualidade feminina, de 1931 (Freud, 1996/1931), e na conferência Feminilidade, de 1933 (Freud, 1996a/1933), ecoam as vozes de Horney, Deutsch, Lampl-de-Groot, Brunswick, Klein - e de muitas outras mulheres.

Freud comparava a sexualidade das mulheres a um continente obscuro, inspirado na referência do jornalista britânico Henry Stanley à sua expedição ao Congo - o que pode ser interpretado como se o feminino consistisse em um objeto de estudo intangível. O fundador da psicanálise compartilhava da ideia falocêntrica, gestada ao longo do século XIX, de um enigma do feminino:

Equipado com sua psicologia edipiana, sua crença num clitóris como substituto do pênis e sua convicção segundo a qual as meninas teriam consciência da inferioridade de "seu pequeno pênis", Freud permanecera encerrado numa concepção das mulheres, da feminilidade e da vida amorosa tributária do romantismo alemão e do Naturphilosophie (Roudinesco, 2014, p. 343).

Como a Outra cena de uma cultura patriarcal, até os anos 1920 a feminilidade somente pôde ser discutida em um contexto de obscurantismo. A partir do Congresso Internacional de Psicanálise de 1922, em Berlim, tendo as psicanalistas mulheres como protagonistas, a feminilidade passa a ser palco de conflitos, de controvérsias.

 

Continente obscuro ou oceano de controvérsias?

Nos anos 1970, com a possibilidade de formação de escolas de psicanálise não filiadas à IPA, outros olhares para a história do movimento psicanalítico foram possíveis, propiciando o aparecimento de uma história das pioneiras da psicanálise, que não consta nas páginas oficiais da IPA (Cromberg, 2010). As duas gerações de mulheres - de 1910 e 1920 - deixaram traços diferentes: as psicanalistas de 1910 foram esquecidas pela história e apenas com a nova historiografia psicanalítica temos acesso a seus trabalhos. Já as mulheres de 1920 produziram teoria, publicaram seus trabalhos, que podem ser lidos ainda hoje, e deixaram seus nomes escritos na história. Os anos 1910 deixaram marcas. Nossa pergunta é: qual o estatuto dessas marcas? O que a geração de 1920 nos diz, no que concerne a essas marcas inaugurais?

Além disso, é preciso lembrar o contexto em que o movimento psicanalítico estava inserido, entre 1910 e 1920. O movimento sufragista apontava para um rearranjo das funções das mulheres na sociedade, sendo o início da revolução feminista. Embora Freud tantas vezes tenha se posicionado contrário ao feminismo, a psicanálise não passou imune a esse movimento, tendo sido afetada no cerne de sua constituição, abrindo a possibilidade de um questionamento do fundador por uma mulher. O sufragismo, para além da questão dos votos, abalou as estruturas do patriarcado. A psicanálise, fruto dessa estrutura, viu-se estremecida em seus conceitos.

Nesse sentido, compreendemos que as analistas dos anos 1910 instauram uma marca originária, só ativada, retrospectivamente, pela geração dos anos 1920, nascida em outro momento das lutas feministas. Lemos seus traços na potência da fala de Karen Horney, no congresso de 1922; na nova organização institucional, que se fez necessária com a presença de mulheres na IPA; e na clínica com crianças, reduto, por muito tempo, inteiramente feminino. Esses traços se constituem como uma herança feminina na psicanálise. Que outras heranças ainda carregamos como mulheres filiadas ao movimento psicanalítico?

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Camila Terra da Rosa
camilatdarosa@hotmail.com

Amadeu de Oliveira Weinmann
weinmann.amadeu@gmail.com

Submetido em: 09/05/2018
Revisto em: 20/06/2019
Aceito em: 27/07/2020

 

 

1 Todas as traduções de obras editadas em língua estrangeira citadas neste trabalho são de nossa responsabilidade.
2 O Comitê Secreto iniciou suas atividades em 1912, por iniciativa de Ernest Jones, com a intenção de evitar o desvirtuamento da doutrina psicanalítica, após os rompimentos com Adler e Jung. Os pertencentes a este grupo, que ganharam um anel do próprio Freud para selar o compromisso, eram: Karl Abraham, Hanns Sachs, Ernest Jones, Otto Rank e Sándor Ferenczi. Max Eitingon passa a fazer parte em 1919. O grupo continua existindo até 1927 (Roudinesco & Plon, 1998).
3 Rolf Hug teve sua infância utilizada como caso sobre a técnica de psicanálise com crianças publicado na Imago, a partir de 1913, sem seu consentimento ou de seus pais - sua mãe, meia irmã de Hug-Hellmuth, morrera quando ele tinha 9 anos. Rolf fora relatado como alguém com uma tendência inata à criminalidade. Mais tarde, em uma tentativa de roubo, mata a tia, estrangulando-a. Acabou pedindo uma indenização da Sociedade Psicanalítica, por ter servido como cobaia humana. Prato cheio para os críticos da psicanálise.