ARTIGOS

 

Em direção a uma ciência social performática na obra de Kenneth Gergen1,2

 

Towards a performative social science in the work of Kenneth Gergen

 

Hacia una ciencia social performática en la obra de Kenneth Gergen

 

 

Ederglenn Nobre Vieira JúniorI; Emerson Fernando RaseraII

IMestre. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9315-963X
IIDoutor. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. Estado de Minas Gerais. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6289-2313

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Kenneth Gergen é um psicólogo americano que tem ocupado um lugar de destaque entre aqueles que, suspeitando das bases que historicamente sustentaram a Psicologia como ciência, passaram a buscar por alternativas. Apesar de sua importância nesse cenário, existe certa escassez de estudos na literatura sobre suas propostas teóricas e o desenvolvimento de seu pensamento. Neste artigo, analisamos as principais características da construção de uma noção de ciência que tem sido descrita como performática em suas publicações mais recentes. Realizamos um estudo teórico conceitual, orientado pela epistemologia construcionista social e que se organizou metodologicamente a partir da noção de crítica interna. Identificamos que o desenvolvimento da noção de uma ciência como performance na obra de Gergen acompanha importantes transformações no entendimento do próprio fazer científico, como o processo de erosão da noção de objetividade e racionalidade e o foco cada vez maior nos processos relacionais.

Palavras-chave: Construcionismo Social; Ciência Performática; Kenneth Gergen.


ABSTRACT

Kenneth Gergen is an American psychologist who has occupied a prominent place among those who, doubting from the bases that historically supported Psychology as a science, started to look for alternatives. Despite of his importance in this scenario, there is a dearth of literature studies on Gergen's theoretical proposals and the development of his thinking. In this article, we analyze the main characteristics of the construction of a notion of science that has been described as performative in Gergen's most recent publications. We conducted a conceptual theoretical study, guided by the social constructionist epistemology and that was organized methodologically from the notion of internal criticism. We identify that the development of the notion of a science as a performance in Gergen's work accompanies important transformations in the understanding of scientific doing itself, such as the erosion of objectivity and rationality notion and the increasing focus on relational processes.

Keywords: Social Constructionism; Performance Science; Kenneth Gergen.


RESUMEN

Kenneth Gergen es un psicólogo estadounidense que ha ocupado un lugar destacado entre quienes, sospechando de las bases que sustentaron históricamente a la Psicología como ciencia, comenzaron a buscar alternativas. A pesar de su importancia en este escenario, faltan estudios en la literatura sobre sus propuestas teóricas y el desarrollo de su pensamiento. En este artículo analizamos las principales características de la construcción de una noción de ciencia que ha sido calificada de performativa en sus publicaciones más recientes. Realizamos un estudio teórico conceptual, guiado por la epistemología construccionista social y organizado metodológicamente a partir de la noción de crítica interna. Identificamos que el desarrollo de la noción de ciencia como performance en el trabajo de Gergen sigue cambios importantes en la comprensión de la práctica científica misma, como el proceso de erosión de la noción de objetividad y racionalidad y el creciente enfoque en los procesos relacionales.

Palabras clave: Construccionismo Social; Ciencia de la Interpretación; Kenneth Gergen.


 

 

Introdução

As últimas décadas foram palco de importantes transformações no modo de se compreender o funcionamento da ciência. Autores como Thomas Kuhn, Bruno Latour, Steve Woolgar e Karin Knorr Cetina podem ser citados como alguns daqueles que contribuíram para mostrar como a história, o social e a cultura são importantes para a constituição e o desenvolvimento das práticas em ciência, principalmente ao problematizarem a organização da comunidade científica, os relacionamentos estabelecidos entre os cientistas e sua relação com o mundo não acadêmico.

Em meados da década de 1960, a publicação de A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento, por Peter Berger e Thomas Luckmann (1978), também pode ser apontada como um marco para a proliferação dos debates e das críticas sobre os pressupostos da pesquisa científica, ao trazer à tona o problema da construção social da realidade a partir dos alicerces do conhecimento na vida quotidiana, tornando-se uma obra fundamental para mostrar o caráter histórico e social dos processos que legitimam as práticas científicas. Uma parte importante da Psicologia sofreu grande influência dessas transformações, impulsionando seus autores e pesquisadores a, cada vez mais, questionar os seus limites, funcionamento e potencialidades.

O psicólogo americano Kenneth Gergen, nascido em 1935, tem se destacado entre aqueles que, suspeitando das bases que historicamente sustentaram a Psicologia como ciência, passaram a buscar por alternativas. Gergen também tem sido identificado como um dos principais articuladores de um discurso construcionista social em Psicologia (Burr, 1995; Hibberd, 2005). Nas últimas quatro décadas, as obras de Gergen e o discurso construcionista social ajudaram a liderar debates que têm colaborado para reorientar teorias e práticas de pesquisa no interior da disciplina, inspirando um número cada vez maior de pesquisadores e profissionais a desafiarem os limites pré-estabelecidos de suas atividades e campos de estudo.

Gergen é um psicólogo americano que fez a graduação na Universidade de Yale (1953-57) e o doutorado na Universidade Duke (1959-62). Após passar quatro anos como professor-assistente de Psicologia Social na Universidade de Harvard (1963-1967), se estabeleceu, em 1967, como professor, no Departamento de Psicologia no Swarthmore College, no estado da Pensilvânia, ao qual permanece vinculado até os dias atuais.

Ao longo de mais de 50 anos de carreira, ele publicou 38 livros (entre obras próprias e organização de coletâneas) e aproximadamente 530 textos, entre artigos, capítulos de livro, prefácios e comentários. Um ponto de destaque na carreira de Gergen foi a publicação do artigo "A psicologia social como história", de 1973, no qual o autor questionou os pressupostos da psicologia social, diferenciando-a das ciências naturais e chamou atenção para o impacto da ciência no comportamento humano e para a importância da história nesse processo.

Apesar da importância de Gergen no debate epistemológico-social recente na Psicologia, existe certa escassez de estudos na literatura sobre suas propostas teóricas e o desenvolvimento de seu pensamento, sobretudo no contexto brasileiro. Em uma análise da obra de Gergen, Rasera (2015) aponta para alguns dos momentos significativos da trajetória intelectual do autor, destacando quatro deles. O primeiro, composto pelos trabalhos iniciais publicados até o ano de 1973, retrata a atuação profissional de Gergen como um psicólogo social experimental envolvido com uma ampla variedade de temas. O segundo momento, que percorre as publicações realizadas entre os anos de 1973 e 1985, aponta para a construção de uma crítica ao empirismo em Psicologia. Em seguida, estão as obras que vão de 1985 até 2000 e que foram importantes para a caracterização e desenvolvimento do movimento construcionista social. Por fim, Rasera (2015) chama atenção para um período mais recente voltado para as práticas relacionais e a construção da proposta de uma ciência compreendida como performance na obra de Gergen.

Neste artigo, tomamos como foco a identificação desse quarto momento. Interessados pela análise da noção de ciência construída ao longo da obra do autor e buscando identificar algumas de suas propostas para o fazer científico em Psicologia, voltamo-nos especificamente para as obras mais recentes de Gergen com o objetivo de compreender as principais características da construção dessa noção performática de ciência. Como apresentaremos adiante, essa noção está relacionada com o potencial de criação dentro dos relacionamentos e surge com a expansão da sensibilidade dos cientistas para as habilidades comumente atribuídas ao artista.

Realizamos, então, um estudo teórico conceitual, orientado pela epistemologia construcionista social e que se organiza metodologicamente a partir da noção de crítica interna proposta pelo próprio Gergen (1997). Nesse tipo de análise, os pesquisadores buscam colocar-se atentos às metáforas, construções narrativas e processos discursivos por meio dos quais os conceitos que sustentam o conhecimento produzido foram sendo desenvolvidos. Trata-se de uma tentativa de promover, em um primeiro momento, o diálogo interno entre as publicações analisadas, focalizando o processo de construção dos argumentos ao longo da própria obra como um todo3.

O construcionismo social compreende a linguagem científica como um instrumento pragmático, na medida em que, não sendo possível uma neutralidade de valores, a ação do cientista sempre favorece certas formas de vida enquanto acaba por dissuadir outras. O convite construcionista busca oferecer uma base para o desafio das realidades dominantes e as formas de vida a elas associadas, incluindo aí as próprias práticas científicas consideradas válidas. Gergen (1997) destaca a crítica interna como um dos caminhos por meio dos quais esse enfrentamento poderia ocorrer. Em última instância, trata-se de uma tentativa de colocar em voga as dúvidas produzidas no uso de suas próprias construções da realidade e das práticas associadas a elas.

Outras formas por meio das quais esse enfrentamento pode ocorrer são: promover a desestabilização das convenções sociais a partir de investigações que propiciem uma crítica cultural ou realizar uma pesquisa de desalojamento (scholarship of dislogment). Enquanto na primeira o debate está relacionado a perspectivas morais e políticas ampliadas, na segunda, foca-se na ruptura geral do convencional. É importante salientar que nesse texto concentramos nossos esforços na crítica interna.

Para a composição do corpus analisado, priorizou-se a escolha de livros e artigos publicados por Gergen no quarto período identificado por Rasera (2015). Além disso, também foram consideradas obras que, de alguma forma, voltam-se para a construção do projeto construcionista social, e, consequentemente, para a produção da crítica sobre o caráter da investigação psicológica, da natureza da ciência em geral e do projeto científico que foi sendo constituído e transformado a partir daí.

Esses escritos de Gergen nos ajudam a compreender os primórdios da pavimentação de um caminho em direção à noção de uma ciência social performática em sua obra. Ainda assim, como alerta Rasera (2015), a identificação de momentos, ou marcadores históricos, não representa divisões ou viradas claramente delimitadas no desenvolvimento do pensamento teórico de Gergen. Ao contrário, direciona nossa atenção para uma das principais características no modo como o autor trata seus temas e preocupações, em um processo sempre em desenvolvimento, retomando e agregando novos sentidos às ideias já apresentadas.

A proposta de uma ciência performática, como mostra Rasera (2015), aponta para algumas mudanças estimulantes na obra de Gergen. A crítica ao fazer científico, ainda que sempre presente em suas publicações, passa a considerar novos aspectos retóricos e estilísticos. Além disso, ganha força uma preocupação cada vez maior com a sociedade para além da comunidade acadêmica, algo que pode ser identificado em sua relação cada vez mais próxima com as práticas relacionais.

Ao realizar uma investigação sobre as características dessas mudanças, a expectativa é que possamos contribuir para o desenvolvimento e ampliação do debate interno à comunidade ligada ao movimento construcionista social, fornecendo reflexões sobre sua construção e desenvolvimento, e reconhecendo ainda algumas de suas possibilidades e limites. Além disso, esperamos também ampliar o debate sobre os próprios processos de produção de conhecimento na ciência psicológica como um todo, considerando as contribuições da obra de Kenneth Gergen para o desenvolvimento de seu potencial performático.

A seguir, apresentamos essas análises em três seções. Na primeira, abordamos as raízes das transformações mais recentes para o fazer científico na obra de Gergen, acompanhando o processo de erosão da noção de objetividade aí presente. Em seguida, abordamos o foco que as publicações do autor têm dirigido para os relacionamentos, seja nas práticas profissionais, destacando aí as análises sobre as visões do self na Psicologia, seja nas práticas de pesquisa. Por fim, enfatizamos a proposta de uma ciência performática, buscando delinear suas principais características e consequências.

 

Um fazer científico em transformação: na direção da erosão da objetividade

Em 1991, Gergen publicou o livro The saturated self: Dilemmas of identity in contemporany life, no qual se debruçou sobre o impacto causado por movimentos como o pós-modernismo, a difusão das ideias de desconstrução, o pós-estruturalismo, e, principalmente, a proliferação e o desenvolvimento das tecnologias. Nessa obra, o autor chamou atenção para o modo como esses movimentos colaboraram para ampliar a dúvida em relação à visão moderna de verdade objetiva e questionar as bases racionais do conhecimento e das narrativas de progresso por meio das práticas científicas.

Gergen (1991) atentou-se para o desenvolvimento de um processo que ele denominou de saturação social, que ocorre devido ao aumento do número e da variedade de relacionamentos, a frequência potencial de contato entre as pessoas, e a intensidade e persistência dos relacionamentos possíveis, proporcionados pelo desenvolvimento e difusão das novas tecnologias. Segundo o autor, o processo de saturação social colaborou com a erosão das bases tradicionais da ciência, em pelo menos dois modos principais: ao expandir os pontos de vista possíveis dentro das áreas de estudo; e ao possibilitar que novas vozes pudessem ser ouvidas.

De acordo com Gergen, conforme foi sendo facilitado o deslocamento das pessoas com a melhoria dos meios de transporte, aprimoradas as ferramentas de comunicação e ampliados os processos de publicação e divulgação das informações, tornou-se mais difícil para os pesquisadores manterem suas práticas confinadas às suas comunidades locais. Da mesma forma, facilitou-se a organização e a comunicação entre diferentes grupos ao redor do mundo, ampliando-se o acesso desses aos contextos acadêmicos que até então se mantinham restritos, possibilitando o desenvolvimento de novos e diferentes programas de estudos e pesquisas até então inexistentes ou marginalizados.

Vale lembrar que "o cientista pode proclamar uma descoberta [sobre si mesmo ou sobre o mundo], mas antes que essa descoberta possa contar como um fato, inúmeros outros cientistas irão examinar as evidências, refazer os estudos, ou, de alguma forma, tentar 'ver por eles mesmos'" (Gergen, 1991, p. 84), tornando a objetividade, portanto, uma conquista caracteristicamente social. Assim, quanto mais aberta e plural a comunidade científica e maior o número de vozes a serem ouvidas, mais trabalhosa e desafiadora essa tarefa se torna.

Para Gergen (1991), a compreensão desse processo dentro dos contextos acadêmicos seria otimizada a partir da compreensão de seu desenvolvimento na cultura. Por isso o autor realiza uma análise das mudanças entre as visões do self e da identidade, em diferentes momentos históricos, enfatizando a visão romântica e moderna, para então se dedicar ao seu papel na pós-modernidade. Essa análise histórica se torna fundamental para mostrar como aquilo que é valorizado em cada período orienta ou delimita as possibilidades de descrição e de ações das pessoas, modificando, inclusive, as práticas científicas.

Sob a influência do romantismo, por exemplo, o autor mostra como se valorizou um discurso da profundidade interior, que até então fora entendido como uma ameaça para a supremacia da razão no iluminismo, criando-se um senso de realidade que ia além das palavras, pois também convidava à ação (valorização do bucolismo e suicídio, por exemplo). Esse período também se caracterizou pela grande produção artística, consequência da exaltação dessa realidade interior marcada pela ausência e vazio. Segundo Gergen (1991), Freud teve um papel central no processo de transição entre as sensibilidades presentes nos períodos românticos e modernos, visto que a Psicanálise, além de legitimar o discurso romântico sobre o self, também possibilitou sua união com um discurso médico tomado como racional. Como resultado dessa união, foram constituídos diversos vocabulários ainda atuais sobre o eu e suas associações com as formas de vida (noções de família, de amor, de relacionamentos etc.).

Ainda que sem identificar um motivo específico para sua ocorrência, Gergen (1991) chama atenção para a mudança ocorrida no final do século XIX, a partir do qual o pensamento científico sistematizado começou a ganhar nova força, passando novamente a ser tomado como garantia de resultados, progresso e se opondo, enfaticamente, ao discurso romântico. No entanto, o autor alerta para algumas das características desse processo, como o enfraquecimento do currículo filosófico nas universidades e para a virada das ciências sociais (inclusive da Psicologia) na direção da sistematização das ciências naturais, principalmente importando ou adaptando seus métodos e princípios.

A ciência caracterizou-se como uma das principais vozes do discurso moderno de busca pelo progresso, alimentando uma grande narrativa que valorizava a busca pela essência das coisas (noção de unidade fundamental na matéria) e que reproduzia a noção de que a verdade só poderia ser alcançada por meio da correta aplicação de um método. O eclipse pós-moderno e o desenvolvimento das tecnologias possibilitaram que os indivíduos se expusessem de forma cada vez mais fácil a diferentes opiniões, valores e estilos de vida, tornando o self povoado pelo diferente e influenciado por uma gama cada vez maior de relacionamentos que até então não eram possíveis ou acessados.

Esse movimento colaborou para que os entornos do sujeito e de seus relacionamentos perdessem rapidamente sua uniformidade, alcançando, quando em seu extremo, o estado de saturação social apontado pelo autor. A academia e as práticas de produção de conhecimento que sustentam as ciências não passaram ilesas por essas mudanças, fazendo com que a supremacia de discursos hegemônicos passasse a ser cada vez menos sustentável. Na Psicologia, por exemplo, além de minar grande parte das descrições sobre o self cognoscível, começaram a ser ampliados, inclusive, questionamentos sobre a própria possibilidade de se produzir entendimentos precisos sobre ele (Gergen, 1991).

A ideia de que os indivíduos possuiriam uma personalidade ou um caráter básico, que fossem essenciais e que pudessem ser descobertos e explicados pela ciência, não mais se sustentaria, e, assim, o próprio conceito de objetividade passou a ser questionado. Segundo Gergen (1991), a realização social da objetividade só poderia ser alcançada por meio de alianças de subjetividades que, em sua maioria, dependiam da replicação exata de metodologias e posicionamentos teóricos específicos para reprodução dos estudos. Algo que, em contato com a pluralidade de valores e reações possíveis no estado de saturação social, se tornaria cada vez mais difícil de ser conquistado.

Com a visão de verdade objetiva em suspensão e o questionamento das bases racionais do conhecimento e da noção de progresso, começamos a perceber nas publicações de Gergen uma importante mudança. O autor começa a se dirigir para as práticas relacionais e para a construção de uma prática científica voltada para os relacionamentos, em oposição às bases individualistas da ciência tradicional. São as características dessa mudança que abordamos a seguir.

 

Por uma prática científica voltada para os relacionamentos

Sem o sustento do discurso da objetividade, aspectos como racionalidade, intencionalidade, autoconhecimento e coerência interna também foram colocados em xeque, de modo que as bases da ciência tradicional se tornaram ainda mais trêmulas e questionáveis. Nesse sentido, a publicação de The saturated self: Dilemmas of identity in contemporany life (Gergen, 1991) também foi importante para resgatar o discurso da construção social da realidade e, ao mostrar sua influência no mundo, propor uma importante mudança de foco para as práticas científicas: do foco no individual, para os relacionamentos.

O discurso construcionista social encontrou na virada pós-moderna a força necessária para questionar radicalmente a presunção de que existiria um "mundo lá fora" aguardando para ser descoberto e apreendido pelos cientistas. A compreensão de que os objetos de conhecimento, as descrições factuais e os insights seriam, na verdade, construções sociais, abriu espaço para que diferentes grupos passassem a defender suas formas específicas de expressar e descrever o mundo e a si mesmas, inclusive valorizando, nesse processo, os vocabulários que melhor expressassem seus valores, posicionamentos políticos e modos de viver.

Gergen (1991) mostra como essa mudança pôde ser vista ocorrendo na literatura, na arquitetura, na música e em diferentes contextos para além da ciência. Além de impulsionarem a desconstrução da crença no objeto de conhecimento identificável no mundo, colaboraram para o enfraquecimento do respeito pelas autoridades tradicionais - o cientista sendo uma delas - e para o questionamento da concepção de racionalidade. Nessa perspectiva, na pós-modernidade, a identidade individual não mais se sustenta, pois está sendo constantemente reformada e redirecionada, conforme as pessoas se movimentam entre um número cada vez maior de relacionamentos e discursos. Cabe-nos questionar, portanto: como uma prática científica poderia prosseguir em desenvolvimento sem se apoiar nas noções de racionalidade, objetividade e, principalmente, no essencialismo que o discurso pós-moderno tanto ameaça?

Tentar traçar uma resposta para essa pergunta a partir de The saturated self: Dilemmas of identity in contemporany life (Gergen, 1991) sugere um esforço no sentido de substituir as bases individualistas da prática científica tradicional por uma prática voltada para os relacionamentos. Para a realização dessa tarefa, Gergen (1991) alerta quanto à importância das linguagens estabelecidas nos relacionamentos, já que são elas que os tornam possíveis e, consequentemente, parte da realidade por meio da qual a vida é vivida. Constitui-se, assim, a proposta de uma teoria relacional na obra do autor, que possui como base a crítica ao modo como, ao nos apoiarmos na linguagem psicológica para produzir sentido sobre nós e sobre o mundo, acabamos por construir padrões específicos de relacionamentos.

Além disso, essa proposta permite compreender que, quando as linguagens se transformam, os padrões de vida dificilmente se mantêm os mesmos. Gergen (1991) exemplifica essas transformações ao analisar as mudanças entre os discursos românticos, modernos e pós-modernos, e ao apontar as possibilidades que a pós-modernidade ofereceu aos pesquisadores e profissionais. Essas análises foram importantes para definitivamente afastar o autor de propostas totalizantes e pavimentar o caminho para a incorporação de diferentes inteligibilidades e realidades no fazer científico da Psicologia em sua busca por práticas alternativas, além de alimentar a crítica já apresentada nos momentos anteriores de sua trajetória intelectual.

Para construir uma proposta alternativa de prática científica sensível ao relacional, no livro Relational being: Beyond self and community, publicado em 2009, Gergen parte do legado produzido por autores dentro das ciências sociais, da teoria feminista e da herança filosófica, como William James, Charles Cooley, George Herbert Mead, Lev Vigotsky, Harold Garfinkel, Erving Goffman, Mary Gergen, Carol Gilligan, Mikhail Bakhtin e Ludwig Wittgenstein. Nessa obra, ele critica que, apesar de avanços, muitas das teorias produzidas mantiveram-se conectadas a uma noção de um indivíduo delimitado, independente e possuidor de atributos e características internas. O autor aponta ainda a escrita acadêmica tradicional e a linguagem usualmente utilizada pelos cientistas como um importante desafio para a valorização dos relacionamentos nas práticas científicas.

Essas análises, quando direcionadas para o fazer científico da Psicologia, por exemplo, permitem denunciar a construção da realidade da mente (Gergen, 2009). Essa realidade vai se constituindo conforme expressões utilizadas para explicar estados mentais - como memória, desejos e atitudes - conquistam caráter de realidade, possuindo profundas consequências para a vida social, já que as pessoas passam a explicar a si mesmas e ao mundo em que vivem a partir delas. No entanto, essas expressões só fazem sentido se calcadas na noção de um ser individual e restrito, ou seja, um sujeito que possui um mundo interior limitado e separado do resto daquilo que está fora. A tese do autor é que essa presunção, além de oferecer um desafio às práticas científicas sensíveis ao relacional, convidam a um estado de alienação, solidão, hierarquia e competição, dentre outros.

Ainda assim, vale lembrar que a concepção de um ser limitado por um mundo interior só pode ser produzida na ação conjunta. Ou seja, esses termos não fazem sentido por si só, precisando de um relacionamento no interior do qual eles possam produzir entendimento. Essa reflexão se torna importante para posicionar o relacionamento como potencialmente capaz de desconstruir o muro entre o interno e o externo, mostrando que as palavras que compõem a realidade mental não são mapas de um espaço interior. Ao contrário, Gergen (2009) mostra que processos como razão, intenção e experiência são, na verdade, ações relacionais que seguem convenções sociais específicas, no interior de relacionamentos específicos.

Esse olhar para a realidade mental ameaça toda uma tradição de investigação científica que, ao apostar na manutenção desse sujeito limitado, consequentemente, reforça a manutenção de uma noção de objeto de pesquisa independente do pesquisador. A perspectiva relacional da ciência coloca, no centro, o papel dos relacionamentos na construção das realidades nas quais os indivíduos estão inseridos, fazendo com que os processos dialógicos aí produzidos passem a ocupar um lugar de destaque na transformação da própria realidade. Assim, reforçando a proposta de uma prática científica reflexiva (Gergen & Gergen, 1991), no artigo From mirroring to world-making: Research as future forming (Gergen, 2014), o autor reafirma a importância de se transformar as práticas de pesquisa que buscam compreender o mundo como ele é, por práticas que considerem aquilo que ele pode vir a ser. Trata-se da proposta de uma orientação que nega a visão do conhecimento como espelhamento da realidade e defende a prática científica como construtora do futuro.

Nesse sentido, Gergen (2009; 2016) se dedicou a apresentar e analisar algumas das práticas de pesquisa que, segundo ele, têm funcionado como alternativas inovadoras para a produção de diálogos transformativos. Ao focalizar o processo de coordenação relacional produzido pelas pessoas, aponta para o seu potencial em localizar fissuras em realidades conflituosas já naturalizadas, reforçando a importância da promoção de diálogos voltados para futuros mais promissores. Trata-se de pesquisas que, como explicitado no artigo Toward a visionary psychology (Gergen, 2016), quando voltadas para os contextos educacionais, por exemplo, em vez de investigarem os processos individuais de aprendizagem, priorizam os relacionamentos nos quais esses acontecem; já no campo da psicoterapia, investem em estudos que compreendem a terapia como um processo de restabelecimento dos relacionamentos, tirando o foco dos indivíduos particulares; e nas pesquisas voltadas paras as organizações, buscam substituir a visão dos sujeitos como seres individuais pelos processos por meio dos quais eles se organizam de fato.

Do ponto de vista do impacto da proposta relacional para a ciência, é possível localizar, ainda, pelo menos dois aspectos importantes (Gergen, 2009). O primeiro deles é a mudança da preocupação com o relativismo moral para uma postura de responsabilidade relacional. Segundo o autor, todo relacionamento é passível de produzir entendimentos rudimentares sobre o que é certo e errado, possuindo um papel fundamental na sustentação dos padrões de coordenação. Diante disso, o desafio moral passa a ser não a produção de uma existência livre de conflitos, mas sim o investimento em formas de se aproximar diferentes entendimentos e convidar as pessoas para um diálogo que não objetive a exterminação mútua. Busca-se a substituição da responsabilidade individual por uma responsabilidade relacional, que é caracteristicamente coletiva e não fundacional.

O segundo aspecto é o fato de Relational being: Beyond self and community apresentar ainda uma abertura importante para o papel das questões espirituais na compreensão dos relacionamentos, que comumente é afastada ou mesmo negada no âmbito da discussão científica. A "aproximação com o sagrado" (Gergen, 2009, p. 372), segundo o autor, inicia-se a partir do momento que, ao respeitarmos as diferentes inteligibilidades, aceitamos que, para algumas pessoas, exista uma consciência espiritual na origem daquilo que é tomado como real e bom dentro dos processos de articulação dos relacionamentos. O processo relacional pode nos aproximar do sagrado por se tratar de um processo no qual todos existem juntos e não podem ser separados.

A defesa de uma prática científica voltada para os relacionamentos implica, portanto, na construção de uma prática cujas consequências vão além da busca pelo entendimento daquilo que conta como conhecimento. Ela convida os envolvidos na construção desse conhecimento a repensar suas posturas e ações. Trata-se da visão do pesquisador como um agente ativo na construção do futuro (Gergen, 2014), convidando à constante reflexão sobre quais novas formas de ação podem ser desenvolvidas e quais as consequências dessas ações para o futuro da humanidade, delineando-se, assim, uma aproximação pragmática da questão moral para a ciência.

O convite relacional para as práticas científicas é complexo e desafiador, mas, na mesma proporção, excitante, sobretudo ao preparar o terreno para a ampliação das possibilidades para o fazer científico e para o papel dos pesquisadores. O desenvolvimento do potencial performático da ciência na obra de Gergen acompanha o entusiasmo em relação à expansão dessas possibilidades, e são suas principais características que abordamos a seguir.

 

Propondo uma ciência como performance

"Ciência social performática de fato!" (Gergen & Gergen, 2012, p. 11). É assim que se inicia uma das mais recentes publicações de Kenneth Gergen, em coautoria com Mary Gergen. Trata-se do livro Playing with purpose: Adventures in performative social science (Gergen & Gergen, 2012), no qual os autores partem da noção de construção social para propor uma descrição da ciência como performática.

O terreno que possibilitou essa proposta, segundo os autores, foi, justamente, o das reflexões, críticas e propostas apresentadas nas obras anteriores (Gergen, 1982; 1994; 1999). Essas obras, segundo Gergen e Gergen (2012), foram fundamentais para o enfrentamento da noção de ciência como uma prática objetiva e proprietária de uma autoridade inquestionável sobre o que as coisas são. Ao denunciar que a realidade nunca produz demandas específicas sobre como deve ser representada, mas, sim, que toda explicação científica é, na verdade, uma prática social resultante de uma comunidade contextualizada historicamente, a observação passou a não se sustentar mais como o único caminho para a compreensão do mundo e das pessoas, abrindo-se a porta para novas possibilidades de fazer ciência e de se produzir conhecimento no contexto acadêmico.

É em An invitation to social construction (Gergen, 1999) que as raízes da atenção dada por Gergen para as práticas performáticas talvez possam ser melhor identificadas, ainda que de modo tímido. Nessa obra, nota-se a defesa do autor pelo uso do teatro, da música, da dança e de filmagens, dentre outros - ainda que essas acabem ficando restritas às estratégias voltadas para aproximar o conhecimento científico do público não acadêmico - ou como recursos utilizados pelo autor em suas práticas como professor universitário, objetivando desafiar a soberania dos trabalhos acadêmicos tradicionais e para ampliar a gama de possibilidades por meio das quais o próprio conhecimento pode ser produzido. Nesse sentido, a publicação de Playing with purpose: Adventures in performative social science (Gergen & Gergen, 2012) pode ser tomada como um avanço para o desenvolvimento dessas ideias.

Os autores defendem que não será, necessariamente, por meio do aumento da sofisticação dos métodos de pesquisa já existentes que o cientista social ampliará seu papel na sociedade. Ao contrário, seria por meio da multiplicação de suas habilidades de expressão e transformando os questionamentos sobre o que as coisas são, para o que elas poderiam ser. Se em uma lógica empírico positivista de se fazer ciência o fato de a ação do cientista produzir mudanças em seus objetos de pesquisa era visto como uma falha metodológica, a proposta de Gergen e Gergen (2012) passa a vê-la como uma oportunidade.

O "desenvolvimento performático" (Gergen & Gergen, 2012) passa a representar, portanto, o potencial de criação dentro dos relacionamentos. Ele surge a partir da expansão da sensibilidade dos cientistas sociais, ao fazerem uso de habilidades comumente atribuídas ao performer artístico em suas práticas de pesquisa, tratando-se mais de uma tarefa de remoção de determinadas restrições e limites entre o que seja ciência e arte, do que do abandono propriamente dito das práticas tradicionais.

O status de correspondência da linguagem com a realidade, pressuposto tomado como fundamental para o processo de replicação dos resultados de um estudo e confirmação dos fatos nas práticas científicas tradicionais, passa a ser substituído por um senso de dúvida que, inclusive, leva o pesquisador a questionar: "Por que linguagem escrita? Ou seja, por que nossas tentativas de contar sobre o mundo deveriam se limitar à escrita (e à fala)?" (Gergen & Gergen, 2012, p. 25). Trata-se de uma abertura para as possibilidades que o uso das diversas formas de comunicação disponíveis na cultura pode trazer para os esforços das ciências sociais em compreender, explicar e modificar o mundo.

A mídia e os movimentos políticos tiveram um papel importante na construção da noção de arte como possibilidade de crítica e mudança social. Algumas das demonstrações políticas produzidas durante os anos de 1960 e 1970 foram fundamentais para ampliar o interesse por essa articulação dentro da academia. Segundo Gergen e Gergen (2012), diversas práticas foram desenvolvidas ao longo dos anos, buscando, por meio da performance artística, produzir mudanças sociais e enfrentar os limites impostos pela tradição acadêmica, servindo de inspiração e produzindo um maior senso de comunidade entre os pesquisadores.

Assim, o campo performático nas ciências passou a ser defendido pelos autores como um novo espaço de possibilidades que expande os modos por meio dos quais o mundo pode ser experienciado e compreendido. O olhar de um contador de histórias, por exemplo, poderia fornecer aos cientistas a percepção de certas tramas e aspectos dramáticos até então não percebidos. A sensibilidade poética, por sua vez, poderia revelar a importância de certos ritmos e sutilezas na fala, enquanto uma abordagem coreográfica, possibilitaria um olhar para o mundo a partir dos padrões relacionais até então não notados (Gergen & Gergen, 2012).

Essa expansão rompe definitivamente com a noção de objetividade das ciências tradicionais, possibilitando aos profissionais carregar suas visões de mundo particulares e suas experiências de vida, permitindo que elas sejam usadas como recursos de expressão, realocando o questionamento sobre se determinada prática é científica ou artística, para o questionamento sobre quais futuros ela pode possibilitar. Gergen e Gergen (2012) ainda criticam novamente a escrita científica tradicional, apontando para seu caráter despersonalizado e alienante e que acaba por dificultar a produção de um senso de comunidade. Ao romper com os métodos tradicionais, a consciência performática também convida à exploração de novas formas de expressão e ao desenvolvimento de um novo senso de cuidado.

Alguns exemplos marcantes de práticas performáticas em ciência são descritos pelos autores. Nas artes literárias, por exemplo, apresentam a ideia de uma escrita duográfica (duography) que busca substituir a noção do escritor solitário que revela seus pensamentos internos no ato de escrever, por uma prática de escrita que tenta produzir sentido a partir da cocriação, materializando a existência do relacionamento. Nesse sentido, os autores substituem a ideia de uma autobiografia por uma "duobiografia", uma escrita a duas ou mais mãos. Trata-se de um texto composto por pequenos relatos individuais dos diferentes autores, intercalados por escritas conjuntas e passagens que servem para refletir sobre o contexto histórico e incorporá-lo na ligação estabelecida no relacionamento dos autores.

Os exemplos continuam no campo das artes dramáticas, com a utilização de performances teatrais com o objetivo de mostrar como aquilo que consideramos como real e bom é construído nos relacionamentos, incluindo, aí, a realidade da mente. Outros exemplos se referem ao campo das mídias visuais, com o uso de repertórios visuais para a ampliação dos processos de interpretação e compreensão das teorias. Essas experiências abrem novas possibilidades não só de produção de conhecimento, mas, também, de estabelecimento de novos relacionamentos, já que, como mostram Gergen e Gergen (2012), os potenciais dessas práticas podem ser ampliados quando seus praticantes contam com parcerias de profissionais e artistas de diferentes disciplinas.

A abertura para esse potencial tem como pano de fundo o entendimento de que todo processo conversacional seria, em si, uma performance social. Esse entendimento parte do fato de que, ao falarmos, estamos endereçando nossas palavras para outros, dos quais esperamos alguma forma de coordenação de ações com as nossas. No entanto, como defendem Gergen e Gergen (2012), o sentido dessa ação reside apenas de modo parcial nas palavras utilizadas, já que as características dessa fala, como seu volume, rapidez e entonação, assim como nossas expressões faciais, nossos gestos e nossa postura complementam nossa ação e influenciam a resposta que receberemos.

Essa análise, quando levada para o contexto acadêmico, reafirma a denúncia de Gergen (2009) em relação à pobreza com que os escritos científicos usualmente são produzidos. Em comparação com a comunicação cotidiana e toda sua riqueza de recursos performáticos, a escrita científica tradicional torna-se uma prática endereçada a ninguém e sem um contexto óbvio no qual as ações são coordenadas. O acadêmico apresenta-se para sua comunidade como uma criatura sem corpo, uma mentalidade fantasmagórica, criticam Gergen e Gergen (2012). É a partir dessa crítica que os autores se voltaram para as práticas artísticas, buscando uma forma de enriquecer a ação do cientista social, tentando torná-la mais reflexiva quanto à sua audiência, às audiências que ela exclui, às respostas que esperam obter, e, em último caso, às ferramentas necessárias para obtê-las.

Os autores apresentam uma proposta de substituição do modo como compreendemos a realidade mental, tão criticada em Relational being: Beyond self and community (Gergen, 2009). A prática performática, quando sensível ao processo de construção de sentidos nos relacionamentos, tem como consequência a possibilidade de ruptura da ideia de que a mente funcionaria como um mundo interno e individual. Compreendendo que esse mundo mental também é performado, o discurso da ciência psicológica também passa a ser tomado como uma ação performada dentro desses relacionamentos. Trata-se, portanto, de uma ação por meio da qual a performance dramática, por exemplo, permite ao pesquisador trazer as ideias à vida, dando um corpo para a teoria (Gergen & Gergen, 2012).

A publicação de Playing with purpose: Adventures in performative social science (Gergen & Gergen, 2012), além de fornecer um verdadeiro acervo de recursos performáticos para os pesquisadores interessados nessa abordagem das práticas científicas, oferece os passos finais para a expansão dos potenciais da ciência social, já anunciados por Gergen em seus primeiros trabalhos. Ainda assim, os autores alertam para o fato de que as ciências sociais permaneceram, em grande parte, estavelmente agarradas à sua base filosófica empirista, tão analisada e criticada. Nesse sentido, a publicação constitui uma proposta radicalmente diferente daquelas que vinham sendo apresentadas ao abandonar os esforços direcionados para essas análises e críticas, passando a propor e defender a remoção das restrições aos processos de construção das teorias e das metodologias em uso.

É possível perceber a falta de interesse dos autores em oferecer determinada gama de ideias puramente teóricas, a partir das quais a realidade possa ser investigada. Ao mesmo tempo, é notável a excitação em relação às consequências de uma orientação artística para essas práticas. Trata-se da proposta de uma prática científica que comporta a expressão da paixão do pesquisador, para a qual "a questão primordial não é 'o que é a verdade', mas 'o que vale a pena fazer?' É uma questão de valor - em relação ao futuro que esperamos construir" (Gergen & Gergen, 2012, p. 49).

 

Algumas reflexões

Neste artigo, buscamos apresentar o processo de constituição de uma virada em direção à noção de uma ciência social performática na obra de Kenneth Gergen. Ao realizar essa tarefa, abordamos algumas das análises mais recentes feitas por Gergen sobre as transformações do fazer científico, destacando aí o processo de erosão da noção de objetividade e racionalidade, bem como as consequências de um foco cada vez maior nos relacionamentos em suas publicações. Tentamos ainda contribuir com a identificação das práticas de pesquisa que o autor tem valorizado como processo de produção de conhecimento em suas obras mais recentes.

O exercício analítico que realizamos nos convidou a refletir sobre a relação das obras mais recentes de Gergen com o projeto construcionista social que vem sendo desenvolvido por ele. Chama atenção os riscos que uma aproximação com o projeto construcionista social deslocado de uma reflexão comprometida com a complexidade do pensamento do autor ao longo dos anos pode oferecer. Isso, porque, quando olhamos para o desenvolvimento do projeto construcionista podemos entrar em contato com um autor que transita de uma postura de recusa a fornecer respostas ontológicas para a prática científica, para um autor engajado, não só em construir uma descrição de um "ser relacional" (Gergen, 2009, p. 32), como de questionar o modo como o uso de determinadas descrições ontológicas em oposição a outras pode influenciar na construção do futuro.

Essas mudanças parecem oferecer consequências importantes para o funcionamento da ciência e para o papel do cientista, principalmente quando levamos em consideração publicações recentes como From mirroring to world-making: Research as future forming (Gergen, 2014) e Toward a visionary psychology (Gergen, 2016). Nesses artigos, Gergen é explícito ao envolver o pesquisador e a ciência com a transformação da realidade social e com a construção do futuro. Nesse sentido, a proposta de se investir no desenvolvimento performático para as práticas científicas parece contribuir com a ampliação das possibilidades que os usos de diferentes formas de comunicação disponíveis na cultura oferecem para as ciências sociais ao tentarem compreender, explicar e modificar o mundo.

A utilização das habilidades artísticas de fato sugere o enriquecimento da ação do cientista social, podendo torná-la mais reflexiva quanto à sua audiência, às audiências que ela exclui e às respostas e mudanças que espera obter. Ainda assim, parece-nos urgente questionarmos: os pesquisadores, sobretudo os trabalhando no interior das práticas científicas em Psicologia, estão preparados para essas mudanças? Qual espaço tem sido reservado para uma prática científica que rompa com modelos tão tradicionais de produção e compartilhamento de conhecimento? Mais importante ainda: a formação nesse campo tem possibilitado espaços de reflexão e de desenvolvimento das habilidades e ferramentas necessárias para isso?

As respostas para essas perguntas necessitam de investigações e diálogos profundos, impossíveis de serem esgotadas nesse trabalho. Ainda assim, podemos anunciar alguns pontos a serem considerados, caso essa tarefa seja aceita por outros pesquisadores no futuro. Primeiramente, parece central que se continue a investir na avaliação das práticas científicas, questionando, principalmente, se o modo como elas têm se aproximado do projeto construcionista social tem servido para romper ou manter formas historicamente cristalizadas de produção de conhecimento. Além disso, parece proveitoso considerar o lugar que as histórias pessoais e as trajetórias profissionais dos pesquisadores têm ocupado no fazer científico, buscando valorizá-las e incorporá-las nas escolhas ontológicas, epistemológicas e metodológicas. Por fim, a dedicação à construção de espaços de diálogo precisa tornar-se uma prioridade urgente para os pesquisadores, possibilitando colocar em debate as pesquisas realizadas, de modo que se inclua nessas discussões um número cada vez maior de vozes.

Se considerarmos ainda o maior envolvimento de Gergen com as práticas profissionais e o fortalecimento de seu compromisso com a transformação das relações estabelecidas entre a ciência e a sociedade nos anos mais recentes de sua atuação (Rasera, 2015), somos convidados a não só a prosseguir com investigações teórico-metodológicas de suas propostas no futuro, mas a buscar ampliar o alcance desses estudos. A realização da investigação realizada no presente trabalho, ao mesmo tempo em que reafirma a riqueza e a importância da obra de Kenneth Gergen, aponta para a importância de se manter ativas as discussões sobre os desenvolvimentos, limites e potencialidades de suas propostas.

Nesse sentido, reconhecemos que a manutenção dessas discussões precisa se dar tanto no contexto interno da comunidade construcionista quanto na sua relação com a comunidade científica como um todo. Esse reconhecimento nos convida à autocrítica em relação aos limites da investigação aqui apresentada, já que, ainda que sua realização satisfaça a intenção inicial de ampliar os debates internos à comunidade ligada ao movimento construcionista social, ela só avança quando alinhada com mudanças conceituais importantes para essa própria comunidade. O desafio maior, portanto, parece ser como adentrar nesse novo universo de possibilidades para o fazer científico, mantendo o diálogo apreciativo em aberto.

Para a socialização dos resultados da pesquisa que produziu as análises aqui apresentadas, realizamos uma escolha no que se refere ao estilo e à organização deste texto. Buscamos compartilhar as informações de forma que possam ser acessadas tanto por leitores alinhados a inteligibilidade construcionista, quanto aqueles estranhos a ela, ao passo que reproduzimos um modelo que, como vimos, tem sido criticado por Gergen, sobretudo quando consideramos as consequências da escrita acadêmica tradicional. Essa escolha foi feita considerando-se a complexidade dos relacionamentos humanos, suas regras já estabelecidas e seu funcionamento já instituído.

Assim, foi possível dar visibilidade para os processos que contribuíram para o desenvolvimento de uma noção performática de ciência na obra de Gergen, reconhecer sua importância e alguns de seus desafios para a ciência orientada por uma inteligibilidade construcionista social. Ao mesmo tempo, esperamos que essa aproximação contribua para a contínua ampliação do debate sobre o tema, tanto no interior do movimento construcionista social, quanto externamente, convidando para a contínua reflexão sobre as possibilidades do fazer científico de modo apreciativo e dialógico.

 

Referências

Berger, P., & Luckmann, T. (1978). A construção social da realidade: Tratado de sociologia do conhecimento. Rio de Janeiro: Vozes.

Burr, V. (1995). An introduction to social constructionism. Londres: Routledge.

Gergen, K. J., & Gergen M. M. (1991). Toward reflexive methodologies. In Steier F. (Ed.), Research and reflexivity (pp. 76-95). London: Sage.

Gergen, K. J. (1982). Toward transformation of social knowledge. New York: Springer.

Gergen, K. J. (1991). The saturated self: Dilemmas of identity in contemporary life. New York: Basic Books.

Gergen, K. J. (1994). Realities and relationships: Soundings in social construction. Cambridge: Harvard University.

Gergen, K. J. (1997). Social psychology as social construction: The emerging vision. In C. McCarty, & A. Haslam (Eds.), The message of social psychology: Perspectives on mind in society (pp. 113-128). Oxford: Blackwell.

Gergen, K. J. (1999). An invitation to social construction. London: Sage.

Gergen, K. J. (2009). Relational being. Oxford: Oxford University.

Gergen, K. J. (2014). From mirroring to world-making: Research as future forming. Journal for the Theory of Social Behavior, 45(3), 287-310. https://doi.org/10.1111/jtsb.12075

Gergen, K. J. (2016). Toward a visionary psychology. The Humanistic Psychologist, 44(1), 3-17. https://doi.org/10.1037/hum0000013

Gergen, M. M., & Gergen, K. J. (2012). Playing with purpose: Adventures in performative social science. Walnut Creek: Left Coast.

Hibberd, F. J. (2005). Unfolding social constructionism. New York: Springer.

Rasera, E. F. (2015). Do socioracionalismo a uma teoria relacional: o projeto construcionista social na obra de Kenneth Gergen. Uberlândia.

Vieira, E. N., Júnior, (2018). A ciência na obra de Kenneth Gergen (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil.

 

 

Endereço para correspondência:
Ederglenn Nobre Vieira Júnior
nobrevieira@hotmail.com

Emerson Fernando Rasera
emersonrasera@gmail.com

Submetido: 13/08/2018
Revisado: 25/03/2019
Aprovado: 20/05/2019

 

 

1 Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado desenvolvida pelo primeiro autor sob orientação do segundo autor. Ele faz parte de um projeto mais amplo que tem se dedicado a investigar o movimento construcionista social na obra de Gergen, considerando suas transformações e desenvolvimentos (Rasera, 2015).
2 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
3 O diálogo com outros autores está para além do escopo desse artigo, tendo sido seu desenvolvimento iniciado em outro texto dessa pesquisa (Vieira, 2018).