ARTIGOS

 

A apropriação da psicanálise pelo neopragmatismo

 

The aesthetic-moral appropriation of psychoanalysis by neopragmatism

 

La apropiación del psicoanálisis por parte del neopragmatismo

 

 

Marcelo Barreira

Docente. Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Vitória. Estado do Espírito Santo. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9367-3073

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A visão neopragmática da psicanálise discorda da centralização do self da tradição metafísica e indica uma nova redescrição de si: uma redescrição estética. Para sustentar sua proposta, Freud é visto por Rorty como um exemplo de pensador edificante, pois a psicanálise fornece uma riqueza de desdobramentos morais e político-culturais. Em grandes linhas, nosso autor compreende o mundo psíquico, baseando-se no pensamento de Donald Davidson, como o encontro entre "quase-pessoas" como "conjuntos de crenças e desejos"; sobretudo o consciente e o inconsciente, que considera polos paradigmáticos das instâncias psíquicas. Para compreender essa construção plural e dinâmica da subjetividade, este artigo enfatiza a análise de textos de Rorty escritos após 1989; em especial, Freud e a reflexão moral.

Palavras-chave: Rorty, Moral; Psicanálise; Neopragmatismo.


ABSTRACT

Neopragmatic view of psychoanalysis disagrees with the Self-centralization of the metaphysical tradition and indicates a new redescription of itself: an aesthetic redescription. To support his proposal, Freud is seen by Rorty as an example of edifying thinker, for psychoanalysis provides a wealth of moral and political-cultural unfolding. In broad lines, our author understands the psychic world, basing on Donald Davidson´s thinking, as the meeting between "quasi-people" as "sets of beliefs and desires"; especially the conscious and the unconscious, which considers paradigmatic poles of the psychic instances. In order to understand this plural and dynamic construction of subjectivity, this article emphasizes the analysis of Rorty's texts written after 1989, especially Freud and Moral Reflection

Keywords: Rorty; Moral; Psychoanalysis; Neopragmatism.


RESUMEN

La visión neopragmática del psicoanálisis no está de acuerdo con el egocentrismo de la tradición metafísica e indica una nueva descripción del yo: una nueva descripción estética. Para sustentar su propuesta, Rorty ve a Freud como un ejemplo de pensador edificante, ya que el psicoanálisis proporciona un caudal de desarrollos morales y político-culturales. A grandes líneas, nuestro autor entiende el mundo psíquico, a partir del pensamiento de Donald Davidson, como el encuentro entre "cuasi-personas" como "conjuntos de creencias y deseos"; sobre todo el consciente y el inconsciente, a los que considera polos paradigmáticos de las instancias psíquicas. Para comprender esta construcción plural y dinámica de la subjetividad, este artículo enfatiza el análisis de textos escritos por Rorty después de 1989; en particular, Freud y la reflexión moral.

Palabras clave: Rorty; Moral; Psicoanálisis; Neopragmatismo.


 

 

Introdução

Este artigo visa compreender a proposta de Rorty de repensar a moralidade na tradição filosófica a partir da seguinte questão central: o rompimento da psicanálise com a centralização metafísica do self em favor de uma redescrição estética de si. Em seu neopragmatismo, importa uma democratização da figura moderna do "gênio", pois todos somos criativos (Rorty, 1999a/1991, p. 214, n. 8). A psicanálise influenciou o senso comum, tornando o "inconsciente" uma fonte criativa de metáforas, ironia e sonho. Em seu principal texto sobre o assunto - Freud e a reflexão moral (Rorty, 1999a/1991, pp. 193-219) -, nosso autor se apoia no artigo de Donald Davidson (1982, pp. 289-305), intitulado Paradoxes of Irrationality, para se apropriar da psicanálise freudiana como estímulo a infinitas possibilidades de autocriação.

Mais perto da literatura (Rorty, 1980, p. 179), o pensador americano contradita o paradigma da busca ascético-moral por um centro do self. Assim, o "inconsciente" é lido para além da distinção metafísica entre razão e paixões. Daí a leitura rortiana da relação entre consciente e inconsciente como uma relação de conversação que se articula entre quase pessoas. Essas "pessoas" são instâncias psíquicas que compõem múltiplos sistemas coerentes e descentralizados de crenças e desejos; apesar de tão-só uma dessas "pessoas" ficar disponível a nós pela introspecção.

 

A centralização do self na tradição metafísica sobre a moralidade

A tradição metafísica coloca a consciência como fonte da moral. Platão apresentava a moral a partir de uma perspectiva ascética de subjugação das paixões em prol da alma racional. Esse ideal antropofilosófico de pureza era contra os impulsos animais e irracionais, por isso, a consciência autoritária subjuga-os desde princípios universais afeitos à natureza humana.

Rorty (1999a/1991, p. 215 n. 4) resgata MacIntyre, que reconhece a funcionalização do conceito de humanidade pela tradição ocidental ao lhe dar uma "natureza essencial" com "propósito e função especiais". Rorty (1999a/1991, p. 215 n. 4) cita novamente o autor inglês por comparar a relação entre a humanidade e o bem viver com a relação entre o harpista e o tocar bem a harpa. Nesse caso, a biologia metafísica aristotélica rompe com outra e mais antiga tradição:

Pois de acordo com esta tradição, ser um homem é cumprir uma série de papéis, cada um dos quais possuindo sua própria razão de ser e seu próprio propósito: um membro de uma família, um cidadão, um soldado, um filósofo, um servo de Deus. É somente quando o homem é pensado como um indivíduo "antecedente" e à parte de todos os papéis que "homem" deixa de ser um conceito funcional.

Logo, conceitos funcionalizantes abstraíram o humano em potências da alma, dividindo-a em intelecto e vontade. O intelecto orienta-se aos princípios absolutos e transcendentais, especialmente por sua apreensão da verdade, e assim norteia a vontade para um agir moral e ordenador das paixões, conduzindo-as à prática da virtude. Nesse modelo teórico-especulativo há uma parte racional, mais ou menos sã, e outra parte louca, bestial e passional. Na purificação das paixões, o ideal ascético de autopurificação, ou de purificação por uma ação extraordinária, acaba enfatizando - em que pese suas nuances - o papel da consciência ou do intelecto.

Apesar de Descartes e Kant seguirem Galileu - contra a compreensão aristotélica de natureza -, o pensamento desses autores mantiveram o ideal de autopurificação dessa tradição aristotélica quanto à centralidade funcional do intelecto na orientação da prática moral. A mesma centralidade Rorty vê no existencialismo de Sartre, só que a partir da visão cartesiana da consciência subjetiva. A ênfase moderna na liberdade, identificada com o self, tem sua expressão máxima no existencialismo de Sartre. O diferencial entre o pensamento de Sartre e o de Descartes é a terrível liberdade de Sartre, que autodestrói a determinação maquínica cartesiana ao "encontrar" algo de não mecânico na máquina: o nada ou a fissura no âmago do ser. Essa fissura seria um enclave não mecânico e vazio, isto é, sem significação já dada, na linha do conceito husserliano de "intencionalidade da consciência"; assim, o "ser para-si" (être pour-soi) é um espaço vazio e sem conteúdo prévio (Sartre, 2000/1943). Rorty, porém, discorda dessa proposta de abertura intencional da consciência, pois manteria a centralidade de seu núcleo subjetivo, e escreve: "Metafísicos como Sartre prefeririam ter, parafraseando Nietzsche, uma metafísica do nada do que nenhuma metafísica" (1999a/1991, p. 218, n. 29). Tal perspectiva lembra a crítica feita por Heidegger (2005/1947), em sua Carta sobre o Humanismo, à perspectiva "humanista" do existencialismo de Sartre (2000/1943). Ao não questionar o conceito de "existência", Heidegger aponta para a insuficiência na alteração da ordem das palavras no existencialismo de Sartre para romper com a tradição cristã de compreensão da existência. Colocar a existência precedendo a essência não significa a superação da metafísica, que se mantém pressuposta mesmo diante da fissura e o nada da intencionalidade da consciência, que pressupõe, de qualquer modo, sua "existência" enquanto algo dado e assumido numa impostação metafísica. Parece-nos, por conseguinte, que, se não houvesse a alteração na ordem dos termos dessa afirmação, Sartre teria de acompanhar a funcionalidade da tradição metafísica.

A compreensão mecânica do mundo começa com Bacon no século XVII e se estende a Copérnico e Darwin. Diferenciando-se da postura contemplativa e sua busca por essências, Copérnico inicia - conforme a citação que Rorty (1999a/1991, p. 194) faz de Dyksterhuis - uma "mecanização da imagem do mundo". Rorty (1999a/1991, p. 193) remonta essa citação condizente ao universo à seguinte afirmação de Freud: "nossa terra não era o centro do universo, mas somente um minúsculo fragmento de um sistema cósmico de uma amplidão vagamente imaginável". Darwin seguiria nessa linha ao descobrir, como o pensador americano assinala, nossa "natureza animal inerradicável" (Rorty, 1999a/1991, p. 193). Esse movimento interpretativo da proposta científica então nascente é assim sintetizado por nosso autor (1999a/1991, p. 194): "O universo começou a se parecer mais com uma máquina simples e enfadonha e a hierarquia edificante de tipos naturais cedeu lugar com Darwin e Mendel a criaturas vivas fruto de pressões ambientais fortuitas e mutações casuais". Desse modo, Freud aponta as três revoluções centrais de deslocamento do humano: a biológica, a cosmológica e a psicológica, rompendo com a centralidade humana e sua autoimagem egocêntrica e narcisista.

Segundo a narrativa freudiana acima, recuperada por Rorty, já na modernidade, houve um ponto fora da curva que implicou numa visão não centralizada ou funcionalizada do self. Nosso autor faz uma ampliação dessa narrativa. Aplicando essa ruptura para a mente, Hume propôs o self como máquina; e máquina não tem centro e nem apresenta uma hierarquia dentre as faculdades da alma. De acordo com Hume, o self se constitui de átomos mentais que se arranjam coerentemente por associação - como na lei da gravitação; daí considerar-se, de acordo com Rorty (1999a/1991, p. 194), o "Newton da mente" -, e que governaria nosso mundo mental. No mundo mecanizado não há centro e periferia, ou substância e acidente. No entanto, há um self moral e verdadeiro que não se submete à investigação científica, como nas associações de átomos mentais; assim, o imperativo moral não parte da experiência empírica, mas apela à pureza como justificativa e razão de ser. Essa proposta compreende o ser humano para além da causalidade natural.

Neste sentido, Kant retoma a perspectiva da moralidade. Ele, então, contrapõe idiossincrasia pessoal e universalidade moral, visto que esquecer de si em prol dos demais agentes racionais participa da comum e apriorística sensatez da consciência moral. A proposta kantiana, contudo - diferentemente do empreendimento irônico de Hegel em sua revisão teórica da linguagem de seus antecessores -, não ampliou vocabulários por considerar tal ampliação algo meramente estético e, portanto, sem consequências morais. A apropriação da psicanálise por Rorty vai de encontro a essa leitura não estética da moral. Distinguindo-se da busca kantiana por objetividade, o pensador estadunidense enfatiza narrativas idiossincráticas e sua ruptura com o universalismo de dualismos morais, como na oposição entre paixões e razão da tradição filosófica.

Um oponente a essa posição de Rorty foi MacIntyre. Este autor apresenta razões de dignificação do humano que se baseiam exclusivamente num mundo não mecânico do self, mas que se mantêm como fonte central de autoridade. MacIntyre (1981), portanto, opõe-se à defesa da narrativa em prol da funcionalidade das faculdades ou potências da alma, mesmo abandonando o que ele chama de a "biologia metafísica de Aristóteles". Rorty (1999a/1991, p. 218, n.30) ainda lembra que MacIntyre também abandona a tentativa de avaliar "as asserções de objetividade e autoridade" da "moralidade perdida do passado". No entanto, esses abandonos mantêm e conduzem a um conhecimento funcional da espécie humana numa afirmação de tipo socrática: "a vida boa para o homem é a vida despendida na busca da vida boa para o homem". Embora o autor inglês não preconize, em seu comunitarismo, a ideia de que uma narrativa seja mais "objetiva e digna de autoridade", ele - na citação retomada por Rorty (1999a/1991, p. 211) - contrapõe-se a "um conceito de um self cuja unidade reside na unidade de uma narrativa que conecta o nascer com o viver e o morrer, assim como o começo da narrativa com o meio e o fim"; que seria a posição de nosso autor.

Desse modo, em suas grandes linhas, haveria uma dupla estratégia de redescrição de si: a) pela via ascético-mística de purificação ou b) pela via estética de ampliação de si que acontece especialmente pela inovação semântica. A segunda perspectiva foi o que fez a psicanálise ao nos tornar mais metafóricos, jocosos, irônicos, livres, sonhadores e inventivos em nossas autodescrições. Ora, a psicanálise esclarece que certas questões não são úteis para vivermos melhor. Questões como "Há algo profundo no interior de meu torturador - sua racionalidade -, para o qual eu possa apelar?" (Rorty, 1999a/1991, p. 212), hão de ser substituídas por outras, mais promissoras, por exemplo: "Se eu fizer isso agora ao invés daquilo, que estória eu contarei para mim mesmo depois?" (Rorty, 1999a/1991, p. 212). Essa pergunta, como outras deste tipo, tornam-se uma estratégia mais eficaz de resolução de nossos dilemas morais do que as anteriores. Os dilemas morais se referem hoje em dia a nossa múltipla pertença a comunidades culturais, que, por sua vez, permitem várias respostas sobre a verdade da minha vida; daí a relevância do novo vocabulário trazido pela psicanálise freudiana.

A ampliação de vocabulário nos recria e autojustifica. Diferentemente de princípios gerais, como o imperativo categórico ou a maximalização da felicidade, os vocabulários se tornaram uma ferramenta útil para redescrever nosso passado e mudar nosso futuro, fazendo alguém se dizer mais sensível e sofisticado do que outros ou do que a si mesmo quando jovem. Há "contingências idiossincráticas cruciais do passado [a fim de] criar eus presentes que sejamos capazes de respeitar" (Rorty, 1992, p. 59), além de desenvolvermos o caráter e a possibilidade de sermos melhores por uma reconciliação conosco mesmos.

Freud quebrou o elo de uma longa tradição filosófica e teológica que procurou romper com nossas ambiguidades. As paixões submetidas à razão prolongam uma antropologia de viés metafísico, mas esse modelo interpretativo não foi facilmente substituído pelos termos "inconsciente" e "consciente" da psicanálise freudiana. A palavra "inconsciente" foi cunhada por Schopenhauer e Nietzsche, mas foi o freudismo que consolidou a divisão do mundo da subjetividade entre o consciente e o inconsciente. O inconsciente não participa da dualidade cartesiana e platônica da distinção entre razão e paixões ou outras oposições binárias. Não há mais um verdadeiro ser essencial que subjaz no âmago de uma suposta natureza humana (Rorty, 1989, p. 8). A psicanálise mostra um modo alternativo e contingente de moralidade, sem aplicar princípios gerais numa realidade particular humana (Rorty, 1989, p. 30). Freud nos mostrou que somos vestígios de encontros acidentais, cheio de ambiguidades a serem toleradas. Rorty (1999a/1991, p. 202) cita a leitura inovadora que Rieff fez de Freud ao afirmar que a "tolerância às ambiguidades é chave para o que Freud considerou a mais difícil de todas as realizações pessoais: um caráter genuinamente estável em uma época instável". Ouvir nossa tendência à instabilidade é não nos tornarmos reféns de uma explicação causal que se impõe por critérios epistemológicos.

Ao contrário de princípios morais universalizantes, a psicanálise aposta nas ambiguidades que contingencialmente nos constituem e nos constituem linguisticamente. A reflexão moral de Freud contribui não tanto pelo viés epistemológico da sua visão da psicanálise, mas pelo processo de autodescrição que proporciona. Ainda que privilegie o caráter "livre e espontâneo" (Rorty, 1999a/1991, p. 208), a ciência, a arte e a filosofia também evocam liberdade e espontaneidade da psicanálise, que não é o único instrumento de autoampliação. O ponto decisivo de nosso autor em seu interesse na apropriação da psicanálise de Freud seria a oportunidade de se construir uma autoimagem, numa atividade mais próxima da literatura do que da ciência. Essa autocriação não distingue clinicamente fatos de narrativas desses fatos. Algumas histórias (stories) que contamos sobre nós mesmos não deveriam ser colocadas automaticamente sob suspeita em detrimento do privilégio dado de antemão a outras histórias.

Falar de um "eu verdadeiro" ou da verdade em si, não faz sentido. Rorty recupera a definição de Nietzsche da verdade como um "exército móvel de metáforas" (Nietzsche, 1997/1873, p. 221). O inconsciente não sabe o real, lembra Jurandir Freire Costa (1995): "nossa realidade psíquica é contingente e somos uma pluralidade identificatória sem centro ordenador metafísico, dada a vicariância, a variabilidade e a imprevisibilidade de nossos desejos" (p. 96). Logo, ao contrário de uma "representação unívoca", a linguagem é uma "série de descrições contextuais", renovando os jogos de linguagem e criando crenças que favoreçam uma leitura do self como um "tecido de contingências e não um sistema de faculdades pelo menos potencialmente bem ordenado" (Rorty, 1992, p. 58).

Uma maneira enriquecida de formular nossos desejos e esperanças permite novas descrições e justificativas de padrões de comportamento. A "capacidade de cada um de nós de tecer uma autoimagem coerente para nós mesmos e, então, de usá-la para remodelar nosso comportamento" (Rorty, 1992, pp. 212-213). Pessoas excepcionais fazem de sua vida uma obra de arte. A generalidade da espécie se diferenciaria da valorização da singularidade de cada ser humano na construção do self. A virtude da integridade e constância de alguém passa pela coerência de suas narrativas. A procura por "better versions of ourselves" (Rorty, 1998, pp. 43-63) traduzem esteticamente nossa busca por dignidade e perfeição moral a partir das ambíguas contingências da singularidade existencial.

Rorty (1989, p. 36) concorda com Rieff ao reconhecer que Freud democratizou a figura moderna e kantiana do gênio: "Freud democratized genius by giving everyone a creative unconscious". Todos somos criativos (Rorty, 1999a/1991, p. 214, n. 8), eis o elemento inovador da psicanálise.

A importância da psicanálise para a psiquiatria nunca teria chamado a atenção do mundo intelectual para ela ou conquistado para ela um lugar na História de Nosso Tempo. Esse resultado foi alcançado pela relação da psicanálise com a vida mental normal, não com a patológica.

Após essa citação, comenta Rorty, a seguir, em mesma nota:

Mesmo se a psiquiatria analítica tiver de algum dia ser abandonada em favor de formas de tratamento químicas e microcirúrgicas, as conexões que Freud esboçou entre emoções tais como os anseios sexuais e a hostilidade, por um lado, e entre os sonhos e as parapraxias, por outro, permaneceriam como parte do senso comum de nossa cultura.

Foi esse impacto cultural da inovadora proposta freudiana que atraiu a intelectualidade ocidental. Freud não faz apenas uma redescrição útil, mas a ser ignorada em nosso dia a dia. A relevância da psicanálise é, junto a seu aspecto moral e por conta dela, também a sua contribuição cultural. Constatamos que o discurso privado da fundamentação teórica da moral se expressa hoje por meio de um vocabulário psicanalítico tornado comum. Freud, no entanto, não aprofunda certos elementos políticos - talvez pela predominância de um estilo que Rorty chama de "individualista, estoico e carregado de resignação irônica" (Rorty, 1999a/1991, p. 214). Seria um vocabulário de narrativas autodissolutórias como o de Dostoievsky e o de Sartre, com narrativas sobre máquinas remoendo-se até se despedaçarem.

Mesmo assim, narrativas históricas não são suprimidas por Freud. A consciência participa de uma máquina mais ampla na qual não faz sentido a conotação moral da palavra "purificação". O discurso pela remodelação de máquinas é útil, pois somos remodelados em nossa autoimagem e formação de caráter como uma máquina engrenada a uma máquina mais ampla, reconciliando um sentido existencialista de contingência com um sentido romântico de grandeza. Assim, junto à questão da própria dignidade vem o discurso sobre a solidariedade humana, pois lidamos conosco na medida em que lidamos com nosso inverso.

Narrativas históricas sobre movimentos sociais e intelectuais, como o da ciência moderna - a exemplo da passagem de Galileu a Gell-Mann; como o do liberalismo burguês - com a luta da burguesia contra os senhores feudais ou a disputa entre trabalho e capital ou como o do movimento romântico, são as melhores ferramentas para remodelarmos a nós mesmos, sugerindo vocabulários de deliberação moral que tecem nossas vidas individuais. Freud (2006/1930, p. 146) chega a afirmar que "uma mudança real nas relações dos seres humanos com a propriedade seria de muito mais ajuda do que quaisquer ordens éticas". Narrativas abrangentes alocam narrativas individuais e ordinárias. Assim, para Rorty, intelectuais ajudam moralmente ao colocarem "as narrativas de nossas vidas como episódios no interior de tais narrativas históricas mais amplas". Ele exemplifica com a posição de Murdoch (Rorty, 1999a/1991, p. 217, n. 21), autor que mostrou como, há 250 anos, os textos Investigação sobre o Entendimento Humano, de 1748, e História Natural da Religião, publicado em 1757 - ambos de Hume, eram considerados literatura por estimularem a imaginação e a compreensão do humano e, por conta disso, não seriam relevantes à esfera pública; no entanto, há neles um conteúdo moral.

 

O inconsciente como conversação entre "quase pessoas"

A psicanálise freudiana rompeu com a hierarquia entre as faculdades da alma com uma proposta mais horizontal de compreensão da alma. Sem submeter as paixões à razão - ou mesmo sem apelar para uma dimensão pré-racional/arquetípica ou suprarracional/mística -, a redescrição freudiana do mundo psíquico inova ao concebê-lo constituído como uma conversação entre "quase-pessoas" numa ampla rede de múltiplos conjuntos de crenças e desejos. A abordagem neopragmática, portanto, é exclusivamente humana e propõe uma visão de mundo que prescinde de uma visão místico-misteriosa da relação entre inconsciente e consciente.

A parte da alma chamada de "irracional" compõe nossas histórias singulares e contingentes, como "idiossincrasias acidentais" (Rorty, 1999a/1991, p. 199) habitando um corpo. O estudo dos detalhes concretos dessas idiossincrasias rompe com a divisão entre as partes do self; como vimos com as "partes baixas da alma", consideradas irracionais e prelinguísticas. Contra essa tradição metafísica, Freud não vê centralidade e nem substantividade na consciência.

Baseando-se no texto Paradoxes of Irrationality, de Davidson (1982), Rorty parte de uma compreensão davidsoniana de pessoa como um conjunto coerente e plausível de crenças e desejos. Assim, com Freud e Davidson, nosso autor elabora uma estratégia interpretativa da psique humana. Nossas idiossincrasias acidentais constroem nossos conjuntos de crenças e desejos, separando-nos dos demais membros de nossa espécie humana. A moralidade é uma linguistificação do self. O self participa de uma "network of beliefs and desires which must be postulated as inner causes of the linguistic behavior of a single organism" (Rorty, 1991, p. 123). Desse caráter linguístico advém a "racionalidade" do inconsciente. O inconsciente é racional, não porque confere autoridade teórica para nossas premissas e silogismos prático-morais, mas por sua capacidade de tecer uma rede interna, coerente, complexa e consistente de crenças e desejos a partir de outras crenças e desejos.

A psicanálise freudiana apresenta nosso self como uma máquina feita de linguagem - uma rede unificada de crenças e desejos, em substituição à causalidade mecânica dos átomos mentais de Hume - e sem uma essência para ser descoberta, embora precise de novos reparos e que vem por meio de um vocabulário particular, sempre a ser revisado. Para tanto, mesmo componentes irracionais e não elaborados de crenças e desejos se relacionam num sistema coerente. Tal coerência é tecida como uma conversação entre quase-pessoas dentro de nós - com o id, o ego e o superego como uma pluralidade de "pessoas" que estabelecem entre si uma relação descentrada e não causal.

A psicanálise "procura provar ao self que ele não é senhor nem mesmo em sua própria casa, devendo, porém, contentar-se com escassas informações acerca do que acontece inconscientemente em sua mente" (Freud, 1987/1916-1917, p. 336). O inconsciente acontece como se um hospedeiro nos usasse ou como se estivéssemos numa conversa em que apenas uma pessoa - um conjunto de crenças e desejos - esteja acessível a nós pela introspecção. Contra, portanto, a ideia de que há um verdadeiro eu, essencialista e metafísico, a obrigação moral é criar uma familiaridade com outras e estranhas "pessoas". Familiaridade que se traduz numa dinâmica hierarquização metafórica dentre as diversas opções desse conjunto de crenças e desejos. O "inconsciente" é apenas um conjunto alternativo e não familiar de crenças e desejos se comparado ao conjunto hegemônico - considerado como sendo o "consciente" -, mas, ainda assim, com sua própria coerência e operando como pessoa autônoma e estranha com relação ao consciente.

Não há um único conjunto exclusivo de crenças e desejos a que se deve se referenciar continuamente. Rorty explica que os conjuntos de crenças e desejos não são coerentes ou compatíveis entre si ao ponto de se identificarem. Há, portanto, em vez de oposições entre as faculdades da alma, um tipo de hierarquização contingente de um conjunto de crenças e desejos sobre outro, considerado alternativo, isso se conclui pela possível responsabilização moral das escolhas feitas dentre uma pluralidade de centros ou conjuntos.

A articulação desses subgrupos de crenças e desejos se depara com uma conversação aberta e sem orientação prévia. Há, contudo, nessa falta de orientação prévia, o risco autoritário de patologização. Ao se entender a esquizofrenia como uma rede alternativa de um conjunto de crenças e desejos que não dialoga com meus outros eus, a esquizofrenia expressa a não democratização das instâncias psíquicas. Desse modo, familiarizarmo-nos com essas "quase pessoas", o que permite uma mobilidade entre elas. Assim, numa escala móvel e contingente de valores, onde era familiar o id, passa-se a se familiarizar com o ego.

Importa, então, a democratização freudiana das instâncias psíquicas, que não preconiza uma atividade intelectual de espelhamento representativo do real na mente, cria instrumentos dinâmicos de significação moral. Daí a função moderadora do psicanalista de acordo com Rorty (1999a/1991, p. 216, n. 11):

O psicanalista serve como um tipo de moderador em um simpósio: o analista apresenta, por exemplo, uma consciência que pensa que a Mãe é um objeto resignado de piedade a um inconsciente que pensa nela como uma sedutora voraz, deixando os dois debaterem os prós e os contras. É claro que é verdadeiro que os fatos da resistência proíbem o analista de pensar em termos conversacionais. O analista precisa, ao contrário, pensar em termos de vários modelos topográfico-hidráulicos de fluxo libidinal, esperando encontrar nessas modelos sugestões sobre como superar a resistência, que significado associar a novos sintomas, e assim por diante. Mas também é verdadeiro que o paciente não tem nenhuma alternativa a não ser a de pensar em termos conversacionais. (É por isso que a autoanálise usualmente não funciona, e é também por isso que o tratamento pode fazer frequentemente o que a reflexão não pode). Para o propósito da tentativa consciente do paciente de reconfigurar seu caráter, ele não pode usar uma autodescrição em termos de catexia, fluxo libidinal e coisas do gênero; modelos topográfico-hidráulicos não podem formar uma parte da autoimagem de alguém não mais do que uma descrição de seu sistema endócrino faz parte de sua autoimagem. Quando o paciente pensa sobre descrições concorrentes de sua mãe, o paciente tem de pensar dialeticamente, pensar que há muito a ser dito em ambos os lados. Pensar, como oposto a reagir a um novo estímulo, é simplesmente comparar e contrastar candidatos à admissão em seu conjunto de crenças e desejos. Desse modo, enquanto o analista está ocupado pensando causalmente em termos das reações do paciente a estímulos (e em particular a estímulos que ocorrem enquanto o paciente está no divã), o paciente tem de pensar em seu inconsciente como, ao menos potencialmente, um parceiro conversacional. Esses dois modos de pensar parecem-me instrumentos alternativos, úteis para diferentes propósitos, ao invés de afirmações contraditórias.

Diante dessa dupla interpretação da realidade psíquica, o autor americano, ao contrário de uma distinção epistemológica (Rorty, 1998, p. 7), propõe uma nova interpretação moral da psique, ainda que reconheça a dificuldade desse seu empreendimento. Essa nova interpretação moral questiona a legitimação universal do lugar do humano nos grandes relatos metafísicos.

A metafísica preconiza a unicidade de vocabulários num vocabulário final, superior e não contingente, vocabulário que expressa a verdade objetiva. A interpretação pragmática da psicanálise freudiana, ao contrário, vê o progresso moral num vínculo com o processo de redescrição semântica, que partem da produção de metáforas para depois literalizá-las enquanto cultura. O papel da sexualidade - do mesmo modo que outras temáticas, como as leis do mercado e a questão étnico-racial - inscreve-se nessa mesma atitude ironista de redescrição como fermento de política cultural, mais do que um discurso de tipo epistemológico, como na teoria pulsional. Logo, um ponto relevante da análise rortiana sobre a sexualidade é a ruptura com o critério tomista e metafísico de verdade como adaequatio rei et intellectus. Assim, Rorty não enfatiza a pretensa moralidade ou racionalidade de determinada orientação sexual, como exemplo disso, a invenção do termo "homossexualidade" contribuiu com o enriquecimento da tradição democrática liberal ao constituir uma luta por reconhecimento (Rorty, 1999b, p. 113) de grupos socialmente minoritários numa sociedade caracterizada por uma pluralidade de sistemas de crenças (Rorty, 1993, p. 128).

 

Considerações Finais

Rorty reconhece a incompletude de seu pensamento sobre a psicanálise freudiana; por exemplo, ele não trata acerca dos impasses da satisfação pulsional. Isso se deve a seu interesse, que não foi analisar exaustivamente a psicanálise, mas semear algumas ideias para uma compreensão estética, plural e humana de nosso psiquismo. O elemento-chave de sua proposta é a visão de que Freud deu elementos de significação e ressignificação de nossa autoimagem, e isso traz uma reflexão moral de tipo pós-metafísico. O neopragmatismo rortiano não preconiza, enfim, a busca de autoconhecimento por princípios universais ou por oposições binárias, mas uma forma de autocriação a partir da contingência de encontros e eventos; memórias e corpos. Autocriação entendida como uma dinâmica e criativa convivência entre "quase pessoas".

 

Referências

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Davidson, D. (1982). Paradoxes of irrationality. In R. Wollheim, & J. Hopkins. (Orgs.), Philosophical essays on Freud (pp. 289-305). Cambridge: Cambridge University.

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Endereço para correspondência:
Marcelo Barreira
marcelobarreira@ymail.com

Submetido em: 16/03/2018
Revisto em: 11/02/2019
Aceito em: 18/06/2019