ARTIGOS

 

Piaget e a psicanálise: um diálogo no avesso da patologização da infância

 

Piaget and psychoanalysis: a dialogue on the reverse of childhood pathologization

 

Piaget y el psicoanálisis: un diálogo sobre el reverso de la patologización infantil

 

 

Mariana Inés GarbarinoI; Maria Thereza Costa Coelho de SouzaII; Luciana Maria CaetanoIII

IDoutora. Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Psicologia. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-3013-909X
IIProfessora Titular. Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Psicologia. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9802-0864
IIIProfessora Associada. Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Psicologia. São Paulo. Estado de São Paulo. Brasil. https://orcid.org/0000-0003-2068-7375

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A patologização da infância constitui um fenômeno que, embora contradiga as bases da epistemologia genética, tem sido pouco abordado nos trabalhos piagetianos contemporâneos quando comparado com os psicanalíticos. Piaget manteve diálogo com a psicanálise freudiana desde o início da sua obra, em uma tentativa de articulação que continuou ativa em autores do âmbito da psicologia e da educação. O presente artigo revisita esse diálogo sob um novo prisma: a problematização da lógica individualizante do fracasso escolar e da patologização. Para isso, propõe três eixos de confluência teórica que envolvem ressonâncias clínicas e éticas. Conclui que a articulação entre ambas as teorias não só mantém sua vigência, mas também se mostra fecunda para discutir os atuais reducionismos do desenvolvimento infantil.

Palavras-chave: Psicogênese piagetiana; Psicanálise; Patologização; Infância; Fracasso Escolar.


ABSTRACT

Childhood pathologization is a phenomenon that, although contradicting the bases of genetic epistemology, has been little addressed in contemporary Piagetian works when compared with psychoanalysis. Piaget maintained a dialogue with Freudian psychoanalysis since the beginning of his work, an attempt at articulating that remained active in authors from the field of psychology and education. This article revisits this dialogue in a new light: the problematization of the individualizing logic of school failure and pathologization. For this, it proposes three axes of theoretical confluence that involve clinical and ethical resonances. It concludes that the articulation between both theories not only maintains its validity, but also proves fruitful to discuss the current reductionisms of child development.

Keywords: Piagetian Psychogenesis; Psychoanalysis; Pathologization; Childhood; School Failure.


RESUMEN

La patologización de la infancia es un fenómeno que, aunque contradice las bases de la epistemología genética, se ha abordado poco en los trabajos piagetianos contemporáneos en comparación con los psicoanalíticos. Piaget mantuvo un diálogo con el psicoanálisis freudiano desde el comienzo de su obra, un intento de articulación que permaneció activo en los autores del campo de la psicología y la educación. Este artículo revisa este diálogo bajo una nueva luz: el cuestionamiento de la lógica individualizadora del fracaso escolar y la patologización. Para ello, propone tres ejes de confluencia teórica que implican resonancias clínicas y éticas. Concluye que la articulación entre ambas teorías no solo mantiene su vigencia, sino que también resulta fructífera para discutir los reduccionismos actuales del desarrollo infantil.

Palabras clave: Psicogénesis Piagetiana; Psicoanálisis; Patologización; Infancia; Fracaso Escolar.


 

 

Introdução

A psicogênese piagetiana e a psicanálise continuam sendo duas referências incontornáveis da formação de psicólogos, pedagogos e áreas afins. No campo da psicologia escolar e da psicopedagogia, estas teorias são amplamente estudadas com a finalidade de abordar as dificuldades escolares (Zelan, 1993; Paín, 1983/2010; Visca; 1987; Fernandez, 1991; Lenoble, 2010). Nesse contexto, as pesquisas acerca dos aspectos cognitivos e afetivos do desenvolvimento e do "não aprender" vem tomando força na estruturação de explicações etiológicas e das justificativas para organizar intervenções (Golse, 2008; David, 2008; Garbarino, 2020; Tassoni & Santos, 2013). Contudo, nota-se, atualmente, a circulação e a coexistência de discursos neurocientíficos com versões simplificadas e/ou deformadas das teorias piagetiana e freudiana (Lajonquière, 1992; Delahanty & Perrés, 1994; Garbarino, 2017).

Esses saberes, quando se apresentam de forma fragmentada e descontextualizada, terminam por reforçar um olhar dicotômico sobre cognição e afetividade, bem como simplificador do desenvolvimento infantil. As interpretações reducionistas, unilaterais e individualizantes do fracasso escolar concretizam-se em discursos que opacam o papel do educador colocando o foco, seja em problemas do tipo neurológico, como os transtornos da aprendizagem, seja em "bloqueios afetivos/emocionais" da criança ou em questões vinculares com suas famílias (Patto, 1997; Voltolini, 2011; Lajonquière, 2016).

Nesse marco, a patologização da infância constitui um fenômeno que, embora contradiga as bases da epistemologia genética, tem sido pouco abordado nos trabalhos piagetianos contemporâneos quando comparado com os psicanalíticos. Observa-se uma lacuna de pesquisas piagetianas em torno dessa questão, o que nos leva a revisitar uma obra que, desde suas origens, tentou complexificar a construção do conhecimento a partir de um enfoque interdisciplinar. Parte dessa ampliação da concepção piagetiana de sujeito foi efeito das suas incursões na teoria psicanalítica freudiana.

Destacaremos, neste artigo, alguns dos textos que apresentaram esse diálogo de maneira mais explícita. Dentre eles destacam-se, em ordem cronológica: A psicanálise e sua relação com a psicologia da criança, de 1920, O pensamento simbólico e o pensamento da criança, de 1923, A representação do mundo na criança, de 1926, A formação do símbolo na criança, de 1945 (Piaget, 1945/1975), As relações entre a inteligência e a afetividade no desenvolvimento da criança (curso da Sorbonne de 1953-1954), e Inconsciente cognitivo e afetivo, de 1972.

À luz desses estudos, que servirão como base para uma proposta de articulação conceitual configurada em três eixos, problematizaremos a lógica da individualização da dificuldade escolar, a simplificação do sujeito construtor de conhecimento e as práticas educativas reificadoras. Para isso, serão salientadas as convergências conceituais, clínicas e éticas entre ambas as abordagens teóricas. Cabe destacar que, no presente estudo, será focalizada e detalhada a abordagem psicogenética em função de nos posicionar na perspectiva do diálogo que o próprio Piaget manteve com os textos freudianos ao longo da sua produção. Assim sendo, vale também esclarecer que a conceituação lacaniana não será abordada.

O texto foi organizado em duas partes interdependentes. Em um primeiro lugar, a modo de introdução e contextualização, apresentaremos um breve mapeamento da literatura com as tentativas contemporâneas de articulação das duas teorias, contemplando tanto os apontamentos de possibilidades e limites. Nesse momento, também será abordada a dicotomia afetividade-inteligência e suas ressonâncias no âmbito da atual patologização da infância. Na segunda parte do artigo serão apresentados três eixos de confluências significativas para orientar o trabalho na clínica com crianças em dificuldade escolar.

 

Vigência e controvérsias do diálogo no marco das relações afeto-cognição

Freud nunca comentou o trabalho de Piaget. Vários autores pós-freudianos o fizeram, alguns para propor um potencial enriquecimento mútuo (Dolle, 1977; 1993; Furth, 1995; Golse, 2008; Lenoble, 2014), outros para salientar incompatibilidades epistêmicas que dificultariam sua aproximação (Lajonquière, 1992; Kupfer, 2003; Jerusalinsky, 2010). Entretanto, o interesse de Piaget pela psicanálise se manifestou desde o início de sua obra e teve claras ressonâncias na sua produção intelectual. Tanto é assim que chegou a declarar seu desejo sobre um futuro de união entre as duas teorias, em uma frase emblemática pronunciada na sua maturidade:

[...] estou persuadido que chegará o dia em que a psicologia das funções cognitivas e a psicanálise serão obrigadas a se fundir numa teoria que melhorará as duas corrigindo uma e outra, e é esse futuro que é conveniente prepararmos, mostrando desde agora as relações que podem existir entre as duas (Piaget, 1972/1983, p. 227).

Embora o desejo de Piaget ainda não esteja concretizado, diversos trabalhos já tentaram desenvolver o estudo teórico e prático dessas relações por ele anunciadas. Historicamente, o diálogo Freud-Piaget foi subsídio de uma prática clínica surgida na psicopedagogia, área que até hoje costuma trabalhar com ambas as teorias. Autores clássicos e contemporâneos, como Karen Zelan (1993) e os argentinos Sara Paín (1983/2010), Jorge Visca (1987) e Alicia Fernandez (1991), focaram o estudo clínico da dificuldade de aprendizagem como um sintoma, subsidiando suas interpretações em noções da psicanálise e da teoria piagetiana. Também na França, a psiquiatra e psicanalista Evelyne Lenoble e sua equipe (Lenoble 2010; 2014; Bernardeau, Devaux, Josso-Faurite, & Scalabrini, 2014) vêm articulando o estudo do sujeito do conhecimento e do inconsciente nas suas pesquisas oriundas do atendimento clínico infantil do Hospital Saint-Anne.

Apesar de poucos trabalhos considerarem esse diálogo na psicologia clínica não psicopedagógica (Gomes & Sakamoto, 2002), vários tentaram mostrar correspondências no campo da psicologia do desenvolvimento. São exemplos disso o clássico estudo de Gouin-Décarie com bebês (1962, citado por Piaget 1972/1983), que evidenciou claros nexos entre a construção das relações objetais da psicanálise e do objeto permanente de Piaget, assim como o de Heros (2009), que mostrou confluências em torno da memória infantil. Já em seus aspectos epistêmicos e filosóficos, a articulação teórica Piaget-Freud, foi especialmente considerada no contexto das relações afeto-cognição, seja para salientar convergências entre desejo e conhecimento (Dolle, 1977; 1993; Furth, 1995; Almeida, 1998), seja para situar divergências (Lajonquière 1992; Kupfer, 2003; Jerusalinsky 2010).

Dentre as controvérsias a respeito de um possível diálogo, uma das principais aponta que a psicanálise não constitui uma psicologia do desenvolvimento, nomenclatura que é classicamente destinada à teoria piagetiana. Nesse sentido, ainda que a psicanálise não seja uma teoria do desenvolvimento em si mesma, é possível realizar sua inferência a partir dos estudos freudianos sobre o desenvolvimento psicossexual. Do mesmo modo, ainda que a pergunta de pesquisa piagetiana não tenha sido referida especificamente ao trabalho clínico, a sua vasteza e profundidade conceitual permitem que seja utilizada nesse contexto, especialmente no que diz respeito ao atendimento de crianças.

Na perspectiva da psicogênese, a dialética afetividade-inteligência foi cuidadosamente abordada no trabalho de compilação de textos piagetianos do livro Piaget y el psicoanálisis organizado por Delahanty e Perrés (1994). Nele, os autores afirmam que a articulação entre as linhas de reflexão piagetiana e psicanalítica constitui uma tarefa ainda incipiente a ser desenvolvida pelos pesquisadores que acreditam na importância das suas possíveis confluências. Nesse mesmo prisma, Souza (2011) aponta que o fluido contato que Piaget manteve com a psicanálise constitui uma matriz para os atuais trabalhos que pretendem aproximar ambos os modelos teóricos como dialéticos e contrários à dicotomia afetividade-inteligência. Embora Piaget tenha pesquisado e escrito pouco sobre afetividade (comparado com a inteligência), avaliou essa dimensão como fundamental para o desenvolvimento psicológico.

Entretanto, é notório que uma das principais divergências entre ambos os escopos teóricos faz referência à escolha entre o foco do estudo da energia psíquica, no caso freudiano, e do pensamento, no caso piagetiano. Ainda que nenhum dos autores negue sua dialética, essa preferência se expressa em uma clara delimitação de seus campos de pesquisa. Freud (1914/1996, p. 248) assim explicita seu recorte: "como psicanalista, devo interessar-me mais pelos processos afetivos que pelos intelectuais; mais pela vida psíquica inconsciente que pela consciente". Já Piaget (citado por Bringuier, 1977/2004) afirma que se sua obra não enfatiza o estudo da afetividade é por opção de recorte, por "distinção", mas não por achá-la menos importante do que a inteligência.

Na perspectiva piagetiana (Piaget, 1954/1955), a dialética do funcionamento do sujeito propõe uma inteligência afetada, e uma afetividade intelectualizada, explicada na analogia com o funcionamento do carro, com base na estrutura do motor (inteligência) e da gasolina (energética). Em termos piagetianos, a gênese da afetividade não é dissociável da gênese dos esquemas cognitivos representativos, conceituais e operativos. A assimilação/acomodação é sempre de um mesmo esquema com duas dimensões, afetiva e cognitiva. Na medida em que os postulados piagetianos sobre afetividade não constituem uma teoria, ficaram "em aberto" várias lacunas e, portanto, possibilidades de pesquisas e novas hipóteses sobre o assunto.

Também no seminário da Sorbonne (Piaget, 1954/1955), em diversos momentos, Piaget analisa a afetividade no campo da moral, mas deixa em aberto as definições de "esquema afetivo" e "energética". Todavia, pode-se apontar que o esquema afetivo se caracteriza por ser um modo de agir diante das pessoas que se repete e generaliza, características comuns com a própria definição de esquema (Piaget, 1954/1955). As críticas de uma "afetividade racionalizada" em Piaget desconsideram a dialética de seu funcionamento conjunto e simultâneo com a inteligência, reiteradamente defendida pelo autor. Essa dialética resulta gradativamente mais equilibrada, socializada e qualitativamente diversa segundo seus níveis de desenvolvimento. Conceber a afetividade em estado puro, afastada de qualquer forma de inteligência, reproduziria a dicotomia por ele rejeitada.

A posição da psicanálise na dialética afeto-cognição é mais polêmica. Kupfer (2003) já alertou sobre limites e erros conceituais frequentes, tais como abordar a criança de maneira fragmentada e dividida em duas partes: a cognitiva, estudada com conceitos piagetianos; e a afetiva, a partir da psicanálise. Diferentemente, para a autora os problemas de aprendizagem são fenômenos multideterminados que não respondem a essa causalidade bipolar e tentar aproximar Freud e Piaget nessa perspectiva evidenciaria um ideal platônico não resolvido.

Dessa forma, as atuais pesquisas psicanalíticas que abordam as relações entre os processos intelectuais e as posições do sujeito do inconsciente são refletidas no interior da própria psicanálise. Seus autores defendem que, ainda que seu foco principal não tenha sido a consciência, Freud sempre se ocupou das modalidades e gênese do pensamento, da pulsão de saber e do tipo de vínculo com o conhecimento ao longo do desenvolvimento psicossexual (Mijolla-Mellor, 1992/2006; Lajonquière, 1992; 2016; Imbasciati, 1998, Kupfer, 2003; David, 2008; Schlemenson, 2009; Voltolini, 2011). O entrecruzamento do sujeito do inconsciente e do conhecimento se sustenta na relação entre a história libidinal da constituição do sujeito e suas modalidades cognitivas.

Ainda que com diferentes perspectivas, a influência do contexto sócio-histórico no desenvolvimento do sujeito cognoscente foi enfatizado por ambas as teorias. Enquanto a psicanálise estuda o sujeito na ótica do inconsciente e do desejo, a psicogênese piagetiana se ocupa do sujeito epistêmico, mas também do sujeito psicológico, sem desestimar nem o papel do fator social nem da afetividade (Piaget, 1972/1983; Piaget & Inhelder, 1966/1972). Contudo, especialmente no contexto escolar dito construtivista e escolanovista, o rol do educador terminou sendo desestimado em práticas espontaneístas que deformaram os pressupostos teóricos piagetianos em prol da ideia de uma "aprendizagem pela descoberta" (Weisz, 2000).

Essa ideia faz parte dos tantos equívocos e deformações em torno da interpretação da obra de Piaget. Assim como para Freud o inconsciente não determina a conduta humana em termos absolutos, o estudo piagetiano do sujeito epistêmico não significa se centrar exclusivamente em atividades racionais sem afetos e descontextualizadas de uma conjuntura sócio-histórica. Essa co-construção da criança com seu meio responde ao pressuposto, tanto da epistemologia genética como da psicanálise, de que o sujeito não é uma tábula rasa na qual se imprimem suas experiências, pois estas são organizadas de modo singular (Chiland,1993).

Essas vivências são sempre permeadas pela cultura, pelos seus objetos, valores e significações, ou seja, pelas instituições sociais e seus atores, que têm um papel fundante nesse processo (Piaget & Inhelder, 1966/1972; Freud, 1921/1996). O desenvolvimento psicológico da criança se configura sempre em relação a um contexto que oferece formas de entender os conflitos, os erros e os sucessos. Cada criança é única, mas todas afrontam o desafio de crescer em uma cultura de linguagem que as nomeia, que faz mediação com o mundo dos objetos e das experiências, e que, sendo mais ou menos expansiva, facilita ou obstaculiza processos de subjetivação. Atualmente, esse processo de nomeação é atravessado pelas coordenadas simbólicas resultantes da massificação do discurso tecnocientífico no contexto escolar, oriundo do saber médico-psiquiátrico que favorece a fragilização do pensamento autônomo do educador e a simplificação reducionista da leitura dos conflitos escolares (Untoiglich, 2014).

Em síntese, para ambos os autores, o adulto educador é representante da autoridade e do saber que se sustenta como referencial identificatório na passagem geracional, portanto, configura um pilar fundamental do desenvolvimento infantil. Entretanto, em tempos de patologização da infância, seu papel fica diluído e mascarado pelas classificações e diagnósticos que tendem a menosprezar a presença do adulto co-construtor e responsável pelo ato educativo (Voltolini, 2011; Lajonquière, 2016; Garbarino, 2020).

Diante do que foi exposto, cabe salientar que, embora reconheçamos as legítimas divergências e controvérsias que poderiam ser apontadas nas tentativas de articulação entre as duas teorias1, nos centraremos aqui nas convergências. Segundo nossa hipótese, elas são frutíferas para discutir a patologização da infância e para problematizar a fragmentação do sujeito e a visão dicotômica das relações entre afetividade e inteligência que esse fenômeno propaga nas abordagens da dificuldade escolar. Para isso, a seguir, salientamos três eixos de convergências conceituais e éticas que permitem instaurar um posicionamento clínico de desconstrução desse cenário de discursos e práticas que se pretendem hegemônicos.

 

Piaget e a psicanálise no contexto da dificuldade escolar: ressonâncias clínicas e éticas

Antes de apresentar os eixos de convergência, vale esclarecer de que maneira está pensada a relação da teoria piagetiana no contexto clínico, sendo que esta não resulta explicita na sua obra. No caso do âmbito da educação a presença de Piaget é menos discutida, ainda que o autor nunca tenha pretendido formular um método pedagógico. Embora a invenção piagetiana do método clínico (que será desenvolvido no próximo item), inspirado nas entrevistas clínicas, perpassou todas e cada uma das suas investigações, é inegável que o atendimento clínico não fazia parte da pergunta de pesquisa que orientou seus trabalhos. A questão estrutural da obra piagetiana sempre foi a progressiva construção do conhecimento, ou seja, a postulação de uma epistemologia genética.

Ainda assim, é indiscutível que sua teoria inspirou e inspira diferentes dispositivos e abordagens clínicos (Visca, 1987; Fernandez, 1991; Zelan, 1993; Paín, 1983/2010; Lenoble 2010; 2014; Bernardeau et al., 2014), notadamente aqueles que trabalham com crianças e adolescentes e, mais especificamente, com as dificuldades de aprendizagem. Nesse campo de pesquisas, Meljac e Lemmel (2007) defendem a denominação de uma "clínica piagetiana" e Gibello (2011) vai ainda mais longe sugerindo que Piaget foi um dos cinco grandes clínicos da história do lado de Freud, Hipócrates, Galeno e Avicenne.

Tendo feito essas ressalvas, e com base nos recortes conceituais antes levantados, postulamos os seguintes pontos de confluência teórico-clínica entre a psicanálise e a psicogênese piagetiana: (1) A concepção de sujeito e o estudo do desenvolvimento típico pelo atípico; (2) O conflito psíquico na dinâmica do pensar e na clínica; e (3) As relações interpessoais na clínica: o papel do adulto e dos pares.

 

A concepção de sujeito e o estudo do desenvolvimento típico pelo atípico

Tanto Piaget como Freud diluíram as fronteiras rígidas entre o normal e o patológico. Essa concordância clínica a respeito da divisa entre o típico e o atípico se sustenta na dialética do coletivo e da singularidade, do universal e do particular, presente em ambas as teorias. O caráter do típico na psicanálise se expressa em diferentes conceitos que explicam a constituição do sujeito do inconsciente. Essa concepção de sujeito entende que todo ser humano vivencia o complexo de Édipo, constrói seu narcisismo, funciona por um aparelho psíquico com instâncias inconsciente, pré-consciente e consciente, atravessa fases de desenvolvimento psicossexual etc.

Se para Freud (1938/1974) a patologia é definida em uma questão de intensidade do quantum energético, para Piaget (1975/2000) o disfuncional constitui um desequilíbrio duradouro do indivíduo em relação ao meio. Nesse ponto de afinidade, ao interpretar determinadas ações como disfuncionais subjaz a ideia de uma desarmonia energética que pode ser reconduzida (com ou sem intervenção clínica) com apoio na ressignificação de objetos e modalidades de investimento afetivo.

Nessa sequência, cabe salientar que um dos primeiros motores de pesquisa de Piaget foi o estudo do erro. A pergunta sobre a construção do conhecimento, desenvolvida ao longo de toda sua vida, teve sua origem quando, ainda sendo um jovem pesquisador, trabalhava com o teste de raciocínio de Burt no laboratório de Binet em Paris. Nesse contexto, Piaget percebeu tendências e regularidades nos modos de errar das crianças. Na autobiografia (Piaget, 1950/1979), lembra:

[] ainda que os testes de Burt tivessem certos méritos em relação ao diagnóstico, fundados como estavam sobre o número de sucessos e fracassos, era muito mais interessante tentar descobrir as razões dos fracassos. Desse modo estabeleci com meus pacientes conversações do tipo dos interrogatórios clínicos com o fim de descobrir algo sobre os processos de raciocínio que se encontravam detrás de suas respostas certas, com um interesse particular por aqueles que escondiam respostas equivocadas. Descobri com estupefação que os raciocínios mais simples [] apresentavam dificuldades insuspeitadas para o adulto [] Por fim tinha descoberto meu campo de pesquisa (p. 15-16, o grifo é nosso).

Esta citação mostra a perplexidade piagetiana diante da repetição e regularidade dos erros, e o desejo de entender o que estava "por trás" do conflito cognitivo, ou seja, o processo latente das respostas manifestas. De certo modo, poderíamos localizar o nascimento de sua teoria do desenvolvimento a partir dessa sensibilidade clínica para escutar as crianças. A posterior denominação de "método clínico" para seu dispositivo de entrevistas foi escolhida em reconhecimento dessa área. Destarte, fala e inconsciente se fazem presentes na teoria de Piaget.

No caso da psicanálise, assim como Freud estudou o atípico a partir da psicopatologia e dessa forma conseguiu postular condições típicas do desenvolvimento psicossexual, a análise das dificuldades escolares propicia entender melhor as condições habituais ou típicas do aprender (Golse, 2002; 2008). Para explicar a etiologia das neuroses, o pai da psicanálise teve que abordar processos típicos de gênese mental e, nessa operação, ofereceu uma definição da psicanálise na ótica do desenvolvimento ao afirmar que esta:

[] consiste em remontar uma determinada estrutura psíquica a outra que a precedeu no tempo e da qual se desenvolveu [] assim, desde o início, a psicanálise dirigiu-se no sentido de delinear processos de desenvolvimento. Começou por descobrir a gênese dos sintomas neuróticos e foi levada, à medida que o tempo passava, a voltar sua atenção para outras estruturas psíquicas e a construir uma psicologia genética que também se lhe aplicasse [] delineou a continuidade entre a mente infantil e a mente adulta e observou também as transformações e os remanejamentos que ocorrem no processo (Freud, 1913/1996, p. 185).

Nesse ponto, entretanto, há uma cisão fundamental entre os autores em relação ao significado do desenvolvimento em suas teorias. Para Freud, seu estudo não foi um fim em si mesmo, mas um meio para compreender as neuroses e aperfeiçoar seu método de cura. Para Piaget, o estudo dos erros foi um meio para elaborar uma teoria do desenvolvimento das estruturas cognitivas e responder à questão de como o sujeito humano avança na construção de melhores níveis de conhecimento. No caso freudiano, investigar a mente infantil foi relevante em função da clínica, sendo que as impressões da infância influenciam todo o curso da evolução do indivíduo. Isto posto, assim como a teoria piagetiana sobre a construção do conhecimento nasce do estudo dos erros das crianças, a freudiana se origina nos conflitos das instâncias consciente e inconsciente das histéricas. Conflito e desequilíbrio, tal como apontado a seguir, foram aspectos fundantes dos pressupostos conceituais dos autores.

 

O conflito psíquico na dinâmica do pensar e na clínica

A noção de conflito permeia ambas as teorias. No caso de Piaget, é definido como uma perturbação interna ou externa, motor da dialética equilíbrio-desequilíbrio-reequilibração. Para a psicanálise, os conflitos mais famosos e estruturantes talvez sejam o complexo de Édipo e o embate entre as legalidades inconsciente e consciente do aparelho psíquico, cujo exemplo mais ilustrativo é a produção do sintoma como solução de compromisso. Mas também existem os microconflitos cotidianos e permanentes de um Ego que deve mediar entre as demandas do Superego, o Id e a realidade (Freud, 1915/1996; 1938/1974). Para ambos os autores, o conflito se configura em um sentido tópico: conflito interssistêmico (Id, Superego, Ego) na psicanálise e conflito entre esquemas intuitivos e operatórios para Piaget.

Também a chegada da criança na escola, e o contato com novos conhecimentos, configura um dos grandes conflitos do desenvolvimento infantil e exige uma reorganização psíquica complexa para dar conta dos desafios afetivos e cognitivos que a prática escolar impõe. O ingresso na instituição escolar reedita a entrada na linguagem pelo (des)encontro com conhecimentos, regras e códigos preexistentes e externos de uma linguagem escolar que se pretende universal e igual para todos. (Lenoble, 2005; Schlemenson, 2009). Suportar essas mudanças põe em jogo a qualidade de uma posição subjetiva mais ou menos flexível atingida até esse momento. A criança precisa lidar com o desequilíbrio, o risco, a incerteza da tentativa e erro, o fracasso e também o sucesso (Lenoble, 2005).

Nesse sentido, a situação de aprendizagem é estruturalmente de confronto, portanto, suportar o conflito será um fator medular para se apropriar das propostas escolares (Perrenoud, 2003). Esse complexo processo precisa de tempo porque não constitui uma conquista pronta e a priori, mas é construída nas relações sociais que se instauram na instituição escolar. Portanto, diante dos impasses dessa construção, a rápida procura de rótulos e diagnósticos desvaloriza o papel do educador como co-construtor das competências e habilidades exigidas na escola para interagir com o conflito.

Mas o que têm em comum as teorias aqui abordadas em relação à dinâmica psíquica de "interação com o conflito"? Nesse ponto, desde uma ótica clínica e ontogenética, constata-se outra confluência teórica, sendo o conflito entendido como um momento de ação permeado pela tensão inerente à construção de conhecimento. Cabe lembrar que, nesse processo de aceitação do erro e da lacuna de saber, entre o equívoco e o desconhecimento, a expressão mais habitual entre os educadores e na literatura é a "tolerância à frustração". Se nos discursos educativos cotidianos afirma-se que alguém tolera (ou não) a frustração, no contexto clínico, é necessário apreciar as modalidades singulares dessa "intolerância", definir com precisão o sentido da frustração e especificar suas diferentes manifestações para não as diluir em uma mesma categoria genérica e abrangente. De acordo com os recortes conceituais aqui escolhidos, a sentença "interação com o conflito" seria mais exata e, a seguir, fundamentaremos essa afirmação.

No âmbito da psicanálise, o termo "frustração" foi problematizado por Laplanche e Pontalis (2009), alicerçados na sua tradução do alemão (Versagung). Eles afirmam que a condição subjetiva de frustração não depende só de um meio que concede determinados estímulos. Em um sentido freudiano, a frustração designa tanto um obstáculo externo como interno para a satisfação libidinal e o sentimento de prazer. Assim, pode se fundar na falta de um objeto da realidade, mas também no ato de recusar por parte do sujeito, ou seja, pode haver uma frustração interna pelas exigências subjetivas. A acepção do termo alemão não define se a frustração provém do sujeito ou do objeto, podendo ser um ato reflexivo, na linha da renúncia ou da autoprivação do prazer.

Além disso, o uso da palavra frustração indica um movimento unilateral de oposição entre duas forças, na qual uma delas (no caso o desejo do sujeito) se veria "anulada" pela imposição externa de uma realidade não compatível com seus interesses. Diferentemente, o termo "interação com o conflito" aponta, como a Versagung freudiana, uma relação de tensão inerente ao encontro de forças opostas, de um sujeito que se apropria ou não dele. Consiste em um mecanismo mais complexo de funcionamento psíquico que remete a uma posição subjetiva ativa porque o que é conflito para um sujeito pode não ser para outro. Dessa forma, não se trata só de tolerar, termo que pode ser confundido com passividade, mas de uma dialética entre o aceitar e o agir.

Esse complexo modelo de tensão de forças, presente em inúmeras situações vitais, facilita vislumbrar, tanto em uma ótica piagetiana como psicanalítica, o caráter ineludível e irredutível do conflito. Destarte, não consiste em se submeter à "realidade", mas de operar com ela, e apesar dela, para transformá-la. A princípio o conflito existe, sem necessariamente remeter a uma valorização positiva ou negativa do termo. É justamente nessa avaliação de seu potencial e valor que o estatuto de sujeito entra em jogo. No sentido piagetiano das modalidades de equilibração, o que é perturbação para uma compensação mais primária (tipo alfa) deixa de sê-lo nas condutas mais sofisticadas (tipo gama) quando o sujeito consegue antecipá-la virtualmente como um elemento do sistema perdendo assim seu estatuto de conflito (Piaget, 1975/2000).

Com base na analogia entre os conflitos da vida e os de um jogo de percurso (Lhôte, 2010) - recurso amplamente utilizado na clínica com crianças -, a operação de "interação com o conflito" fica ilustrada na dinâmica do lance inicial de dados e do raciocínio organizado para mover um pião. O lance de dados pertence ao registro do acaso e, portanto, pode apresentar um número diferente ao esperado. Suportar esse conflito e entendê-lo como parte de um sistema maior constitui o primeiro requisito para, posteriormente, dar espaço ao pensamento lógico na escolha do movimento mais conveniente. Em uma ótica freudiana, é a renúncia parcial ao princípio de prazer a que habilitará um funcionamento psíquico regido pelo princípio de realidade (Freud, 1915/1996).

Em resumo, a tese do conflito como núcleo da clínica está fundamentada na dialética prazer/desprazer da psicanálise e equilíbrio/desequilíbrio da teoria piagetiana. Em ambos os casos estes não são opostos excludentes, mas instâncias irredutíveis da tensão que dinamiza o funcionamento do aparelho psíquico e das estruturas cognitivas. Essa tensão inerente ao ato de aprender, e que configura o conflito como motor necessário para o desenvolvimento, não pode ser apressadamente abordado na ótica da psicopatologia. Nesse sentido, construir conhecimento envolve um sutil movimento de lidar com a castração, operação freudiana que resulta, ao mesmo tempo, defensiva e construtiva (Cournut, 1994), assim como as condutas de negação do conflito (alfa) e de compensação e antecipação do conflito (gama) da teoria piagetiana da equilibração (Piaget, 1975/2000).

 

As relações interpessoais na clínica: o papel do adulto e dos pares

Longe de uma concepção espontaneísta do desenvolvimento, a qualidade da mediação dos adultos é crucial na clínica piagetiana. Uma de suas principais características consiste em colocar boas perguntas sem apelar a extensas explicações corretivas (Piaget, 1926/2005). Na psicanálise, o analista se abstém de opinar, no sentido lacaniano de não dirigir o paciente, mas sua cura (Lacan, 1958/1998). Em concordância com esse pressuposto, no atendimento inspirado na psicogenética piagetiana, o profissional não dirige ou sugestiona as ações da criança, mas intervém para promover o pensar sobre elas (Macedo, Petty & Passos, 2010).

Diferentemente, a insistência de demanda de atenção e concentração (problemática recorrentemente manifestada pelos professores) reforça o padrão de dependência do adulto para concluir uma tarefa, sem favorecer o progressivo exercício autônomo da "força de vontade" para que a criança possa "emprestar" sua atenção de um modo mais deliberado (Garbarino, 2017). Esse conceito piagetiano de força de vontade consiste em uma regulação operatória que supera qualitativamente o pensamento intuitivo e a afetividade heterônoma, podendo ser ativada com maior ou menor intensidade segundo o sistema de valores do sujeito (Piaget, 1954/2005). Esse sistema de valores (incluída a autovalorização) é construído ao longo de uma história libidinal, com tipos de vínculos e experiências que se configuram desde o nascimento.

A força de vontade não se reconfigura por sugestão externa, mas consiste em um processo paulatino de mudanças a longo prazo. No caso das crianças em dificuldade escolar, a força de vontade autônoma para o estudo precisa a priori de uma significativa valorização do conhecimento que, como foi apontado, não é inata, mas consiste em uma construção social conforme os valores do meio. Então como tornar o prazer de aprender em um valor? O conhecimento pode tomar diferentes valorizações culturais. Nessas coordenadas, na clínica, o adulto oferece espaços simbólicos para transformar a aprendizagem escolar em uma atividade com sentido, na esfera do desejo e da subjetivação da ação. Mesmo sem poder intervir diretamente na força de vontade, o adulto pode favorecer a construção de uma matriz propiciadora de um pensamento mais dinâmico (via processos de descentração e desconstrução de crenças cristalizadas) e da construção de valores (como o prazer de pensar, e do encontro com a novidade e a diversidade) a partir de propostas problematizadoras do instituído (Schlemenson, 2009; Paín, 1983/2010).

A relação interpessoal da criança com o adulto toma diferentes matizes e dinâmicas conforme o momento do desenvolvimento. No contexto do pensamento pré-operatório e da fase fálica, teorizados por Piaget e por Freud respectivamente, o adulto é significado pela criança como representante de sapiência absoluta. No primeiro caso, pelo respeito unilateral, a deificação dos pais e a heteronomia que regula esse vínculo (Piaget, 1926/2005). No segundo caso, pelo pensamento mágico e pela onipotência dos pais edipianos, posteriormente transformados em identificações e transferência libidinal aos professores e outros adultos significativos (Freud, 1905/1996). Assim, o profissional da clínica promove processos expansivos do pensar quando, sem se desresponsabilizar da assimetria geracional estrutural do ato educativo, não se apresenta como dono da verdade e mostra que o adulto também pode errar e aprender com as crianças (por exemplo, quando elas constroem estratégias criativas para afrontar os desafios).

Diante desse panorama, na clínica psicanalítica e piagetiana o adulto é um mediador que progressivamente se constitui em uma referência, sem por isso alimentar um vínculo de dependência para afrontar as tarefas realizando intervenções fechadas e diretivas. Isso por dois motivos. Por um lado, porque instalar um silêncio saudável abre brechas para a emergência do sujeito e, por outro, porque as repetidas intervenções corretivas (como a demanda de "prestar atenção") reproduzem o esquema disciplinar escolar.

Destarte, esse lugar ativo e de escuta do adulto vai no sentido oposto dos discursos simplificadores acerca das dificuldades de aprendizagem, especificamente no que diz respeito à patologização da infância e ao reducionismo causal do mal-estar escolar que responsabiliza a criança pelo seu fracasso e exalta a meritocracia (Asbahr & Lopes, 2006; Ochoa & Orbeta, 2017). Essas expressões contemporâneas e paradigmáticas da dicotomia afeto-cognição tendem a diluir o papel do adulto-educador deixando-o em um lugar de impotência e irresponsabilidade.

A respeito da relação com os pares, na clínica grupal de embasamento piagetiano e psicanalítico, o "outro" atua como dinamizador do pensar. O trabalho grupal propicia a formulação e a circulação de hipóteses singulares de seus membros, o que enriquece e diversifica os pontos de vista. Desse modo, compartilhar o saber dinamiza a construção coletiva que estrutura o pensamento individual e vice-versa. O par pode conter e orientar, mas também tomar o lugar de estrangeiro e rival (Schlemenson, 2009).

Nessa perspectiva, as intervenções clínicas se direcionam a realçar a permanência do sujeito na impermanência dos objetos, ou seja, promovem um sentimento de si mesmo estável, de ser sempre um entre outros, mas, diferente dos outros, promovendo o acesso a uma "filiação universal de saber" (Bernardeau et al., 2014). A distinção Eu não Eu se constrói a partir de "bordas" psíquicas semipermeáveis, na tensão entre a contenção e permanência do si mesmo e a abertura às trocas com o entorno físico e social.

Essa dinâmica de circulação do saber e confronto com outros pontos de vista viabiliza a ampliação do pensar, com alternativas que podem ser impensadas ou indizíveis para um sujeito. É nesse sentido que o outro funciona como estrangeiro na acepção apontada por Júlia Kristeva (2001). A intervenção do par contribui para diversificar a linha de estereótipos de conteúdos discursivos que até então são colocados. Além disso, a experiência da troca de opiniões e interpretações sobre um mesmo assunto se enriquece quando o sujeito se posiciona no ato de enunciar, de não ficar preso à repetição de enunciados feitos, problematizando o que parecia não ir além de lugares comuns e conhecidos.

Quando o mundo deixa de ser um lugar de evidências, do familiar e do cotidiano, ele torna-se mais complexo e atrativo, o que favorece seu investimento libidinal (Mijolla-Mellor, 2006). Esse processo de dinamismo no pensamento é favorecido com a conquista do pensamento operatório, que abre lugar para um conhecimento que vai além do perceptivo, do preconceito e da intuição (Piaget, 1964/1975).

À diferença da escola, na clínica, a evolução de cada criança é pensada a partir dela mesma como unidade de análise e não por comparação com outras ou com níveis estabelecidos a priori (Paín, 1983/2010; Schlemenson, 2009; Macedo et al., 2010). Os processos de descentração subjetiva são facilitados no atendimento grupal no qual a criança se reconhece e se diferencia nas trocas cooperativas e recíprocas com o conhecimento dos pares. A análise clínica dessas posições subjetivas e das modalidades libidinais de interação com o conhecimento e com os outros se sustenta em uma dupla dimensão, psicológica singular e epistêmica global.

A intervenção grupal favorece essa abordagem por oferecer um contexto de atendimento "ecológico" mais próximo da realidade escolar que o dispositivo individual. Desse modo, a criança poderá transferir um novo modo de autovalorização como sujeito pensante e uma posição mais autônoma e flexível, não só com os objetos de conhecimento, mas também nas suas relações interpessoais no contexto escolar e familiar.

 

Conclusões

Ao longo do presente artigo, tentou-se mostrar de que modo a perspectiva do diálogo da psicogênese piagetiana com a psicanálise instaura ressonâncias éticas, educativas e clínicas diante da patologização da infância e da aprendizagem. Essa interlocução teórica oportuniza problematizar a pertinência de certas perguntas, tais como questionar se uma criança está apresentando comportamentos tidos como "disfuncionais" ou se tem um transtorno, se ela está se manifestando inquieta e desconcentrada ou é hiperativa. O modo de formular essas indagações pressupõe uma lógica implícita de modelo causa-efeito.

A psicologia genética e a psicanálise oferecem ferramentas conceituais para desconstruir a visão do diagnóstico clínico como fechamento estático do "ser" que anula o enigma, a pergunta e a perplexidade acerca da causalidade e origem das condutas. O sujeito em desenvolvimento interpela um movimento analítico desde o "ser" para um "estar sendo" dinâmico, desde o registro do manifesto ao latente e desde a legitimidade sacralizada do discurso neuropsiquiátrico à indagação sobre a função de um diagnóstico em um determinado contexto sociocultural.

Em vista disso, a individualização do fracasso escolar não só contradiz as teorizações de Freud e Piaget acerca do papel do educador e da cultura na construção do conhecimento, mas também reproduz a perspectiva dicotômica que dissocia a afetividade da inteligência explicando a dificuldade escolar seja por disfunções neuronais, manifestadas em transtornos da aprendizagem, seja por fatores emocionais e atitudinais, tais como falta de motivação, interesse e/ou esforço individual.

Além disso, os pressupostos epistemológicos piagetianos e freudianos, por não estarem baseados na sugestão ou no treino de habilidades, também vão no sentido inverso da tendência contemporânea às receitas prontas, velozes e com garantia científica de eficácia. Nesse sentido, no campo da clínica, a proposta temporal das intervenções sustentadas no arcabouço conceitual psicanalítico e piagetiano dilui as fantasias de imediatez oriundas da perspectiva medicamentosa e do tempo padronizado das sessões.

Em relação aos limites do presente trabalho, salienta-se o recorte realizado a partir da escolha de eixos. O diálogo que Piaget manteve com a psicanálise vai muito além dos conceitos e discussões apresentados neste artigo. Essa interlocução com a produção freudiana e pós-freudiana (especialmente com Jung e Adler) foi uma constante na sua obra, especialmente quando se debruçou com a interdependência afetividade-inteligência, o sujeito psicológico e as produções simbólicas. Além disso, e em função dos objetivos do presente texto, também não foram aprofundadas as propostas de articulação dos vários autores contemporâneos que defendem essa possibilidade.

Portanto, nota-se a relevância de aprofundar, a partir de novas pesquisas de cunho teórico e empírico, o estudo sistemático das atuais interpretações sobre o "não aprender" que costumam reificar no cotidiano. Esse objeto de pesquisa carrega um triplo interesse: 1) social, pelo impacto das lógicas reducionistas e dicotômicas (como a patologização da infância) nos discursos sobre dificuldade escolar; 2) teórico, pela validade dos autores clássicos da psicologia para discuti-las, tal como mostrado nas convergências da concepção piagetiana e psicanalítica de sujeito, afastada da simplificação e da fragmentação afeto-cognição do desenvolvimento infantil; e 3) ético, pelo seu potencial problematizador da lógica individualizante e imediatista das explicações do fracasso escolar que desvalorizam o papel do adulto e do meio social.

Diante das convergências aqui salientadas, percebe-se que o corpo teórico piagetiano que aborda a dialética afeto-cognição em diálogo com a psicanálise resulta em um conjunto de construtos coerentes e abertos a novas leituras para discutir as atuais nomenclaturas e explicações causais que demarcam um modo de entender o sujeito que constrói conhecimento e seus impasses. Conclui-se assim, que a articulação entre esses e outros conceitos de ambas as teorias continuam vigentes e fecundos para problematizar a simplificação do fracasso escolar e a patologização da infância oriunda dos reducionismos contemporâneos do desenvolvimento infantil.

 

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Endereço para correspondência:
Mariana Inés Garbarino
marianaigarbarino@gmail.com

Submetido em: 23/08/2019
Aceito em: 17/03/2020

 

 

1 O estudo dessas divergências e convergências gerais entre ambas as teorias foi aprofundado em Garbarino (2017).