ARTIGOS

 

A irredutibilidade constitutiva da psicanálise como fundamento de sua clínica

 

The constitutive irreducibility of psychoanalysis as foundation of its clinical practice

 

La irreductibilidad constitutiva del psicoanálisis como fundamento de su clínica

 

 

Ana Cristina Lemos MoreiraI; Vinicius Anciães DarribaII

IDoutoranda. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-2083-5721
IIDocente. Instituto de Psicologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-9986-6554

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo interrogar se é possível estabelecer uma relação entre o que encontramos nos primeiros escritos de Freud, anteriores propriamente à fundação da psicanálise, e o que fundamenta a concepção da clínica psicanalítica por Lacan, tal como situada ao final de seu ensino. O conceito de signo da percepção, formulado por Freud em 1896, reporta-nos à incidência da linguagem no corpo e a seus efeitos, dentre eles a instituição da pulsão enquanto uma força constante irredutível à fala articulada, constitutiva da subjetividade. Já em Lacan, na década de 1970, ao propor a incidência significante no real do corpo, é postulado um gozo que não cessa de não se escrever, o qual vem a se constituir como pivô de sua orientação clínica naquele momento. Sustentaremos, assim, que, na instauração da pulsão a partir da conceituação freudiana de um aparelho de linguagem ou na exploração lacaniana de um campo do gozo, ou seja, no que se organiza em um e outro em torno do trauma da linguagem, encontrar-se-ia o fundamento da clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Linguagem; Corpo; Pulsão; Gozo; Clínica Psicanalítica.


ABSTRACT

This article aims to question if it is possible to establish a relation between what we read in Freud 's earlier writings, which preceded the foundation of psychoanalysis, and what Lacan proposes to be the foundation of the conception of psychoanalytic clinical practice in his last teachings. Freud's concept of perception sign in 1896 refers to the incidence of language in the body and its effects, among them the conception of drive as a constant force irreducible to articulate speech, constitutive of subjectivity. In Lacan, in the 1970s, when proposing the incidence of the signifier in what is real in the body, it is postulated a jouissance that does not cease not to be written, which becomes the pivot of its clinical orientation at that moment. We will propose, then, that in the establishment of the drive from the Freudian conceptualization of an apparatus of language, or in the Lacanian exploration of the jouissance, that is, in what is organized in one and the other around the trauma of language, we found the base of the psychoanalytic clinical practice.

Keywords: Language; Body; Drive; Jouissance; Psychoanalytic Clinic.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo cuestionar si es posible establecer una relación entre lo que encontramos en los primeros escritos de Freud, anteriores a la fundación del psicoanálisis, y lo que subyace a la concepción de Lacan sobre la clínica psicoanalítica, situada al final de su enseñanza. El concepto de signo de la percepción, formulado por Freud en 1896, nos remite a la incidencia del lenguaje en el cuerpo y sus efectos, entre ellos la institución de la pulsión como fuerza constante irreductible al habla articulada, constitutiva de la subjetividad. Ya en Lacan, en la década de 1970, al proponer un impacto significativo sobre lo real del cuerpo, se postula un goce que nunca deja de estar escrito, lo que se convierte en el eje de su orientación clínica en ese momento. Argumentaremos, pues, que en el establecimiento de la pulsión desde la conceptualización freudiana de un aparato de lenguaje, o en la exploración lacaniana de un campo de goce, es decir, en lo que se organiza en uno y otro en torno al trauma del lenguaje, se encontraría el fundamento de la clínica psicoanalítica.

Palabras clave: Lenguaje; Cuerpo; Pulsión; Placer; Clínica Psicoanalítica.


 

 

Introdução

Em um trabalho de análise, para além da construção de um saber sobre o mal-estar a partir da articulação significante, o analisando se depara com algo que, por ultrapassar o campo das significações, mostra-se impossível de ser elaborado através da fala articulada. Trata-se da falta radical de sentido, cuja insistência aponta para o real da linguagem. Situamos aí, com Lacan (1969-1970/1992, p. 130), que "o real surge do que do simbólico se enuncia como impossível", e que, "essa relação de fronteira entre o simbólico e o real, nós vivemos nela" (p. 24). Por isso, a inevitável emergência desse "elemento de impossibilidade" (p. 46) no discurso. A psicanálise aposta nos efeitos da incidência significante no corpo, o que não aponta para uma determinação, mas para o que se poderá ler do que se inscreveu como um encontro contingente entre o que funda o ser humano - a linguagem - e o corpo.

A linguagem, assim, retira do homem a possibilidade de tomar a relação com o corpo a partir de uma lógica instintual. É o que Freud (1911/1996) propõe ao tratar do conceito de pulsão. Situada na fronteira entre o somático e o mental, a pulsão é o representante psíquico de forças orgânicas, implicando o atravessamento do corpo pela linguagem. Sua força constante demonstra a impossibilidade de o processo de significação aboli-la. Nos termos de Lacan (1972-1973/1985), isso se traduzirá pela produção de um gozo que não cessa de não se escrever1. Tal gozo, situado para além do princípio de prazer e desprazer, conforme Freud (1920/1996), converte-se em campo de trabalho da clínica psicanalítica.

Ao afirmar: "o que me interessa diretamente é a linguagem, porque penso que é com ela que lido quando tenho que fazer uma psicanálise", Lacan (1971/2009, p. 43) está interessado em seus efeitos na clínica. Podemos observá-los através de formações simbólicas (sintomas, sonhos, chistes e atos falhos), via discurso articulado, por meio de atribuições de sentidos partilháveis ou não, ou, ainda, na forma de angústia. Algumas delas, especificamente as que localizamos no cerne da clínica psicanalítica, já podem ser reportadas ao que é mesmo anterior à constituição de uma subjetividade. É o que verificaremos com Freud (1896/1996), a partir da inscrição dos signos da percepção, e com Lacan (1972-1973/1985), através da incidência, no corpo, do significante enquanto signo. Responsáveis, respectivamente, pela instituição da pulsão ou como causa do gozo as primeiras marcas da linguagem, irredutíveis à representação, funcionarão como mola propulsora da constituição subjetiva e, ao mesmo tempo, como condição de possibilidade da própria clínica psicanalítica. Em outras palavras, nesta irredutibilidade constitutiva da subjetividade encontra-se o fundamento da psicanálise.

Descoberta realizada por Freud em seus primeiros escritos, anteriores propriamente à fundação da psicanálise, apostamos encontrar nesse momento teórico o que se faz alicerce da clínica proposta por Lacan a partir da década de 1970. O que Lacan (1975/2003, p. 566, grifo do autor) viria nomear como "gozo opaco, por excluir o sentido", cerne de sua clínica no final de seu ensino, poderia ser pensado como um retorno à pulsão freudiana, conceito sobre o qual Freud construiu o fundamento teórico-clínico da psicanálise.

 

A irredutibilidade constitutiva da psicanálise

Freud formou-se em medicina no ano de 1881. Seu interesse dirigiu-se, de início, para o estudo das afecções orgânicas do cérebro. Em 1885, no entanto, encontrou-se com a histeria através de Charcot. A partir de então, tomado pelo desejo de saber sobre esse novo objeto, voltou-se para a psicopatologia. Começou, então, a escutar mulheres da burguesia vienense, cujo sofrimento se associava a sintomas histéricos. Aliada à observação clínica, neste momento Freud iniciou a construção de um arcabouço teórico, sustentáculo de uma prática inédita, a psicanálise.

Desde os primórdios, Freud (1893/1996, p. 43) percebeu que o sofrimento manifesto por seus pacientes era proveniente de um trauma psíquico: "toda histeria pode ser encarada como histeria traumática, no sentido de que implica um trauma psíquico e de que todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma". Em Esboços para a "Comunicação Preliminar", de 1893, Freud (1892/1996, p. 196, grifo do autor) havia definido assim o trauma psíquico: "transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora".

O trauma psíquico, enquanto uma impressão que não é abolida pelo sistema nervoso através dos recursos disponíveis - pensamento associativo e reação motora -, está, neste momento, ligado, fisiologicamente, à incidência de uma soma de excitação específica no sistema nervoso e, psiquicamente, à inscrição de marcas ou traços de memória indeléveis. Importante pontuar que o trauma estará sempre referido a uma impressão: "Denominaremos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses" (Freud, 1939/1996, p. 87, grifo do autor).

Desde Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico (Freud, 1891/2014), no qual são questionadas as teorias proferidas por grandes figuras da neuropatologia da época, que justificavam a ocorrência de distúrbios da linguagem a partir da existência de lesões em determinadas áreas do cérebro, verificou-se que não há uma relação de causalidade entre os processos fisiológicos e os processos psíquicos, mas um paralelismo. O estímulo do córtex cerebral por uma soma de excitação deixa atrás de si uma modificação fisiológica permanente e, "sempre que esse mesmo estado do córtex for estimulado de novo, o psíquico ressurge como imagem mnêmica" (p. 73). Assim, a modificação fisiológica causada pela incidência de um quantum de excitação implica, no nível psíquico, a inscrição de traços de memória permanentes. Tal tese vem ao encontro do conceito de trauma psíquico, que pressupõe dois elementos indissociáveis, apesar de não redutíveis um ao outro: algo da ordem de uma intensidade - a soma de excitação - e algo da ordem de uma inscrição - o traço.

Assim, o trauma psíquico tem relação, por um lado, com o que não se deixa inscrever no aparelho psíquico, e, por outro, com traços que se inscrevem incessantemente. Ele encontra-se associado a uma excitação somática constante, que foi conceituada inicialmente como excitação endógena (Freud, 1894-1895/1996), por estar referida a uma dimensão fisiológica do aparelho psíquico, e, posteriormente, como pulsão (Freud, 1915/1996a), quando passa a estar relacionada com um aparelho de linguagem. Ainda que traduzidos em representações e transcritos em palavras articuladas em um discurso, o pensamento associativo ou o processo de significação não abolem o que, definitivamente, não se inscreve. É nessa demarcação do que encontramos em Freud que localizamos uma irredutibilidade constitutiva não só da subjetividade, como da própria psicanálise. Esta última se estrutura sobre o que não cessa de não se escrever; o que nos remeterá, nessa investigação, ao modo como a clínica psicanalítica é concebida por Lacan no final do seu ensino. Veremos, por enquanto, como essa irredutibilidade veio a ser articulada por Freud.

Assim que nasce, a criança encontra-se, segundo Freud (1895/1996), em situação de desamparo relativo a uma insuficiência de ordem biológica. Isso significa que, frente ao aumento da excitação somática, vivido como um estado de urgência, a criança se mostra impossibilitada de realizar, por si mesma, qualquer ação viabilizadora do rebaixamento da tensão produtora de desprazer. O único recurso do qual dispõe é a via motora. Dessa forma, por meio de movimentos musculares, emissão de sons como gritos ou choro, é efetuada uma descarga, que é, no entanto, incapaz de reduzir a tensão incidente. Se houver, contudo, um adulto receptivo a tais manifestações, elas poderão ser significadas como um estado de anseio e aflição vivido pela criança, supondo nela uma necessidade qualquer. Tal significação transforma o que, a princípio, se mostra como mera reação motora em uma demanda. O adulto, buscando respondê-la, efetua uma "ação (que merece ser qualificada de 'específica')" (p. 349) no mundo externo.

Havendo, como efeito desta ação, um rebaixamento de tensão no interior do organismo da criança, esta vivencia o que Freud (1895/1996, p.370, grifo do autor) chamou de "experiência de satisfação". Assim, uma ação específica realizada pelo adulto a partir da significação dada aos movimentos da criança, sendo estruturada na e pela linguagem, produz uma marca de satisfação no corpo desta última. Em outras palavras, a incidência da linguagem no corpo do infans produz uma satisfação que, neste momento da teorização de Freud, está associada a um rebaixamento de tensão que se traduz em uma descarga de prazer.

Como a ação específica apenas apazígua a tensão através da diminuição do quantum de excitação, sem eliminá-la, a experiência de satisfação não é plena. Trata-se, na verdade, de um tratamento da excitação somática pela linguagem, que não elimina algo que não se reduz ao processo de significação. Neste sentido, Lacan (1959-1960/2008, p. 56, grifo do autor) assinala, diante do que escapa à simbolização, que "a essa spezifische Aktion faltará sempre alguma coisa". Voltando a Freud, está estabelecida a constância da excitação somática; porém, agora, atravessada pela linguagem, já que a ela fora dada uma significação. O efeito definitivo é a constituição de um campo que conjuga o pulsional e o simbólico: "Com o advento da linguagem, há uma desnaturalização do corpo, perde-se a relação necessidade - objeto natural e a possibilidade de satisfação. Temos, então, um corpo simbólico que não encontra mais a satisfação por estar separado do objeto pelo muro da linguagem" (Rudge, 1998, p. 15).

A incidência da linguagem no corpo inviabiliza o hipotético objeto natural que estaria, definitivamente, perdido. Ou seja, o primeiro efeito da incidência da linguagem no corpo é da ordem de uma elisão do objeto - perda mítica da coisa, das Ding (Freud, 1895/1996). O que se tem são marcas de satisfação, ou seja, marcas mnêmicas indeléveis, produtoras de um modo de satisfação que insiste sem cessar. Freud (1915/1996a, p.127) redefiniu esta última nos termos da pulsão, tomada, como vimos, como "um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático", com o que apontou para a imbricação entre linguagem, corpo e satisfação. Mobilizadoras do aparelho psíquico, as marcas de satisfação inscrevem-se como os primeiros traços de memória (Erinnerungsspuren) que, além de introdutores da criança no mundo da linguagem, instituem a pulsão como uma força constante (Konstant Kraft). Como observa Rudge (1998, p. 26), "esses traços resultantes de experiências originárias, em si incognoscíveis, podem ser considerados como os traços constituintes da pulsão".

Isso ficou mais claro quando, na Carta 52 dirigida a Fliess, Freud (1896/1996, p. 281) formulou a hipótese de que o aparelho psíquico pudesse ser formado a partir de um "processo de estratificação". Suas sucessivas camadas seriam estabelecidas através da retranscrição ou tradução dos traços de memória (Erinnerungsspur) nele inscritos, o que, inevitavelmente, levaria a um "ajustamento quantitativo" (p. 283) da excitação, cujo objetivo seria o de evitar o desprazer a partir de um rebaixamento nos níveis de tensão. O aparelho estratificado de Freud é dividido a partir das seguintes camadas:

- W (Wahrnehmungen) (percepções): nesta camada, os neurônios ϕ (phi), receptores das excitações exógenas de acordo com o aparelho neuronal proposto por Freud (1895/1996) no Projeto para uma psicologia científica, são investidos. As quantidades provenientes do mundo externo (Q) neles incidentes são totalmente descarregadas, não deixando rastro; o que, psiquicamente, diz respeito a percepções que não se registram, e que, por isso, não conservam lembrança alguma. Freud associa essas percepções à consciência, à qual se ligariam. Porém, tratando-se de um modelo de aparelho psíquico que se constitui não só dentro de um tempo lógico, mas também cronológico, nessa primeira camada, supostamente formada no início da vida, as percepções não poderiam ser conscientes, visto que a consciência só é formada a posteriori, subsequente no tempo. É certo que não há consciência sem percepção, mas há percepção sem consciência, e é o que se supõe ocorrer neste nível. Segundo Lacan (1959-1960/2008, p. 80), "no nível do sistema ϕ, isto é, no nível do que ocorre antes da entrada no sistema ψ, e a passagem na extensão da Bahnung, da organização das Vorstellungen, a reação típica do organismo enquanto regulado pelo aparelho neurônico é o processo de elisão. As coisas são vermeidet, elididas".

Como percepção e memória se excluem, aquela se apaga, é elidida. Lacan ratifica o que ocorre em um primeiro momento constitutivo do aparelho psíquico, e que viria a funcionar como condição de sua instauração: o processo de elisão, ou, ainda, a exclusão do objeto.

- Wz (Wahrnehmungszeichen) (signos da percepção): nesta camada os neurônios ψ (psi) receptores das excitações exógenas e endógenas são investidos. Ocorre, então, a primeira inscrição (Niederschrift) na forma de traços de memória (Erinnerungsspuren). Freud (1895/1996) nomeia-os como signos da percepção.

Segundo Freud (1895/1996, p. 350, grifo do autor), os neurônios ψ seriam modificados permanentemente após a passagem de um quantum de excitação endógena por suas "barreiras de contato". Propomos que tal modificação equivale, psiquicamente, à inscrição dos signos da percepção enquanto resíduos da experiência de satisfação, do que dela se inscreve no aparelho psíquico como traços de memória, a partir das facilitações (Bahnungen) estabelecidas entre os "neurônios nucleares" e "os neurônios do pallium" (p. 367, grifo do autor), dois grupos de neurônios pertencentes ao sistema ψ, investidos quantitativamente pelos estímulos endógenos (Qη') e exógenos (Q), respectivamente. São sempre reativados com o reaparecimento de um "estado de urgência ou de desejo" (p.371, grifo do autor). O acúmulo de Qη', ou seja, das magnitudes intercelulares nos neurônios nucleares corresponderia, psiquicamente, ao acúmulo de traços de memória cuja associação leva à formação do que Freud chamou de eu.

Enquanto resíduos da experiência de satisfação, do que dela se inscreve no aparelho psíquico, os signos da percepção, na verdade, são signos do que foi elidido, do suposto objeto que fora perdido. Este, então, se presentifica a partir de sua ausência, sendo representado por traços de memória. Segundo Rudge (1998, p. 43), o registro desses traços se dá através de "uma memorização que constitui um campo do irrecuperável através da rememoração"; sendo, portanto, irredutíveis ao processo de significação.

Porém, como "o material presente em forma de traços de memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição" (Freud, 1896/1996, p. 281, grifo do autor) devido a uma variação de ordem econômica, os signos da percepção se traduziriam em representações (Vorstellungen), o que implicaria seu apagamento. Alguns anos depois, Freud (1915/1996c, p.183) ratificaria sua hipótese de que "ideias são catexias - basicamente de traços de memória". Assim, a transposição de uma marca mnêmica para outro estrato psíquico "não se processa pela efetuação de um novo registro, mas por uma modificação em seu estado, uma alteração em sua catexia" (p. 185). Capazes de se associarem, as representações (Vorstellungen) produziriam o pensamento inconsciente, tratamento simbólico ao que se instaurara como uma memória impossível de ser rememorada.

- Ub (Unbewusstsein) (inconsciente): estrato psíquico constituído a partir de uma segunda inscrição. Aqui ocorre, como vimos, a tradução dos signos da percepção em representações (Vorstellungen). Enquanto aqueles se mantêm indiferenciados, essas últimas se articulam e produzem o pensamento inconsciente a partir do estabelecimento de uma diferenciação entre as mesmas. Isso se dá através de um rearranjo, um reordenamento das barreiras de contato. Instituidora da capacidade de rememorar e produzir histórias, as bahnungen instauram o processo de significação.

- Vb (Vorbewusstsein) (pré-consciente): estrato psíquico constituído a partir de uma terceira inscrição. Aqui ocorre a "transcrição" (Umschrift) dos pensamentos inconscientes em "representações verbais" (Freud, 1896/1996, p. 282) ou representações-palavras (Wortvorstellungen) dispostas em um discurso articulado, racional e coerente. O eu da realidade se instaura, sendo regido por um princípio de funcionamento mental que veio a ser nomeado por Freud (1911/1996) como princípio de realidade. A consciência entra em ação, ligando-se às circunstâncias reais no mundo externo.

No que diz respeito aos três registros propostos por Freud, o primeiro é da ordem de uma inscrição (Niederschrift) das impressões, o que implica em uma escrita através de signos; o segundo é da ordem de uma tradução (Übersetzung) desses signos em representações que se dispõem a partir de uma associação por causalidade; e o terceiro é da ordem de uma transcrição (Umschrift), o que implica a reprodução ou expressão em representações-palavras (Wortvorstellungen). O primeiro deles, no qual se registram os signos da percepção, interessa-nos particularmente. Enquanto resíduos da experiência de satisfação, efeito da incidência da linguagem no corpo da criança, entendemos articular-se ao que Lacan (1975/1998, p.9) nomeia como "detritos" deixados pela "água da linguagem", "restos aos quais mais tarde [...] se agregarão os problemas do que vai lhe assustar". Além de constituintes da pulsão (em Freud) ou, como veremos, de um gozo (em Lacan), os signos da percepção podem vir a funcionar como suportes da linguagem articulada que produz as significações. Observamos, então, o duplo efeito de uma escrita no corpo.

 

Signos da percepção: uma escrita de gozo no corpo

Segundo Garcia-Roza (1993/2008, p. 55), os signos da percepção seriam da ordem de uma impressão, cujo estatuto seria o de uma Prägung (cunhagem) - sinal, marca que se caracterizaria pela "permanência de algo que não foi inscrito no inconsciente, mas que permaneceu como pura intensidade, memória da pura impressão e não do traço que a representa". Para Lacan (1959-1960/2008, p. 65), no entanto, essa Niederschrift não se restringe a uma Prägung, mas a "algo que constitui signo e que é da ordem da escrita". Tal questão se tornaria extremamente relevante no final do ensino de Lacan (1972-1973/1985), principalmente no que diz respeito à clínica. Sendo o real formulado com base em uma escrita, o gozo, efeito da incidência significante no corpo, torna-se anterior à constituição do inconsciente estruturado como uma linguagem.

Analisando o modo como Freud formulara sua Niederschrift, endossamos a questão formulada por Alberti (2016, p. 193): "até que ponto Freud não antecipara a possibilidade de haver registros originais para um sujeito em formação, anteriores àqueles que hoje, com Lacan, comporiam o inconsciente do campo da linguagem?". Tais registros originais apontam para os signos da percepção que, para além de funcionarem como suportes de uma fala articulada, produzem a pulsão. Essa força constante (Konstant Kraft), não inscritível, atestaria o que Lacan (1975/2003, p. 566, grifo do autor), chamou de "o gozo próprio do sintoma. Gozo opaco por excluir o sentido"? Nos efeitos produzidos pelos signos da percepção, propomos poder encontrar um fundamento para o que indicamos ter se tornado o cerne da clínica psicanalítica, com Lacan, a partir da década de 1970, o gozo irredutível ao sentido.

Lacan (1959-1960/2008, p. 82, grifo do autor) caracterizara, antes, o sistema de Wahrnehmungszeichen como "o sistema primeiro dos significantes, com a sincronia primitiva do sistema significante". Ele ratifica, assim, o que Freud (1896/1996) postulara ocorrer neste nível do estrato psíquico: uma associação por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation) entre os traços de memória. Não se estabelecera, ainda, a associação por causalidade produtora do pensamento inconsciente. O que há são traços mnêmicos, segundo Freud, ou significantes, segundo Lacan, sem diferenciação, sem alternância, sem intervalo de tempo ou espaço, e, portanto, sem possibilidade de uma articulação simbólica. Reportando-se à afirmação de Lacan (1964/2008, p. 51, grifo do autor) de que "esses Wahrnehmungszeichen devem ser constituídos na simultaneidade", Fernández (2009, p. 70, grifo da autora) atenta para o fato de que

é fundamental que não se faça aqui uma leitura apressada de Lacan, passando-se rapidamente do tempo em que os Wz se constituem na simultaneidade para a sincronia significante enquanto metafórica, que não é sem a dimensão diacrônica, não marcada ainda em Wz. Talvez seja melhor pensarmos nos Wz como apenas o tempo de origem do significante. Neste tempo, já está em jogo a constituição do sujeito.

Os Wz, conforme postulamos, estão referidos à experiência de satisfação proposta por Freud (1895/1996) no Projeto. Implicam a linguagem, pois são o que da ação específica realizada pelo adulto se inscreve no corpo da criança como marcas de satisfação. Significantes não traduzidos, não significados pelo infans, e, por isso, motivadores de mal-entendido, produzem um gozo refratário à simbolização. Tal opacidade se faz traduzir pelo trauma da linguagem.

Esta leitura ficaria mais clara a partir do Seminário livro 20: mais, ainda, quando, ao propor um novo estatuto para o significante, o de "signo de um sujeito" (Lacan, 1972-1973/1985, p.195), o autor o constitui como "o significante Um" (p. 31), "um-entre-outros" (p. 195, grifo do autor), uma escrita de gozo que, enquanto uma letra que se repete, vem atuar como suporte da linguagem. O conceito de letra é abordado por Lacan sob diferentes prismas ao longo do seu ensino. Na década de 1950, sob a primazia do simbólico, a letra é formulada como o "suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem" (Lacan, 1957/1998, p. 498) - suporte do significante que, em seu aspecto relacional, representa um sujeito para outro significante (Lacan, 1960/1998).

A partir da década de 1970, especificamente no Seminário livro 18: De um discurso que não fosse semblante (1971), ao privilegiar o real a partir da escrita, a letra adquire um novo estatuto. Tomada como da ordem do escrito, que é "segundo em relação a toda função de linguagem" (Lacan, 1971/2009, p. 59), a letra (letter) é o que cai como resto, dejeto, lixo (litter), a partir de um corte no discurso, escrevendo algo do gozo. Não se confundindo com o significante, já que "a letra está no real, e o significante, no simbólico" (p. 114), a letra não é sem relação com este último. É o que deduzimos a partir do Seminário livro 20: mais, ainda, quando a letra é associada ao significante enquanto signo. Nesse caso, "o signo não é simplesmente sinal de alguma coisa, como a fumaça seria do fogo, mas a presença do significante no corpo, o que é separado de seus efeitos de significado. Assim, é na perspectiva do Um sozinho que Lacan passa a conceber seu significante" (Monteiro, 2012, p. 138).

Esse Um sozinho, significante que não se associa a outro significante, é chamado a fazer sinal, a constituir signo (Lacan, 1972-1973/1985, p. 195). Relaciona-se com algo do sintoma que não é absorvido pelo campo das significações e que, por isso, se mantém irredutível à decifração. Mantendo-se como uma irredutibilidade constitutiva da subjetividade, nessa letra de gozo situamos a condição de efetividade da clínica psicanalítica.

Supomos, então, duas faces da letra: uma face simbólica que ex-siste à fala, podendo se inscrever como verdade no campo do Outro, atuando, assim, como uma escrita suporte da linguagem; e uma face real, como um escrito resto da linguagem. Esta última é associada, por Lacan (1971-1972/2012), ao Há-Um (Il y a d'l'Un), algo do Um que resta no final de uma análise, que não se repete e não produz qualquer efeito de sentido, constituindo-se como um escrito que faz borda entre saber e gozo.

A psicanálise, assim, fundamenta-se sobre uma ética que situa um gozo opaco no horizonte do desejo, acolhe e escuta sua dimensão de impossível - que está para todos - a fim de que se possa fazer, na contingência do um a um, algo com isso.

 

Lalangue2: o gozo da linguagem

Partindo do pressuposto de que a criança nasce imersa no campo da linguagem, os significantes que, por alguma vicissitude, a afetam não trabalham, a priori, para a significação, mas para a satisfação3. Atuam como "causa do gozo" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 36), novo uso do significante proposto por Lacan que, até então, somente representava um sujeito para outro significante (Lacan, 1960/1998, p. 833). Nesse caso, "a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 31) - o significante se escreve no real do corpo como uma marca de gozo:

É o rastro deixado pelos encontros com o Outro, signo com que o ferro do significante, em uma metáfora célebre de Lacan, marca o gado. Ele me distingue e define, mesmo que não explique nada. É saber porque é letra, que se presta à leitura, sem ser, porém, nenhuma sabedoria. Enquanto o saber-conhecimento é universal, forma que vem dar forma e continente ao gozo, o saber-traço é apenas trilho, por onde pode escoar sem ser tomado pelo sentido (Vieira, 2010, p. 81).

Aí se introduz o "significante enquanto tal, quer dizer, enquanto aquilo que aprendemos a separar de seus efeitos de significado" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 69). Sua inscrição indelével é da ordem de uma escrita que pode se prestar à leitura, mas que, a priori, não se compreende, já que, em um primeiro momento, o que a criança ouve é "significante puro" (p. 106), sem a articulação necessária ao processo de significação. O índice dessa escrita aparece na lalação da criança, "material sonoro, ambíguo, equívoco, repleto de mal-entendidos, com diversos sentidos e, ao mesmo tempo, sem sentido" (Quinet, 2009, p. 171). Na lalação, há a emissão de significantes que não fazem apelo a nada.

Conforme supracitado por Vieira (2010), sem reduzir-se a um saber-conhecimento, ou seja, a uma circunscrição do gozo pela via da produção de saber, essa escrita se reduz a um saber-traço por onde o gozo excluído do sentido escoa. Nessa escrita, Lacan (1972-1973/1985, p. 190) situa lalangue:

Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de alíngua, que já estão lá como saber, vão bem além de tudo que o ser que fala é suscetível de enunciar.

O sintoma, a partir de então, começa a ser questionado quanto a seu estatuto de formação simbólica. Fruto da incidência de lalangue, de um significante que se constitui enquanto signo, o sintoma torna-se um meio de gozo.

Inserido no campo da linguagem, porém não no campo da articulação significante que tem o sujeito dividido como efeito, o sintoma passa a estar referido a um "saber que jamais será reduzido" (Lacan, 1974/2011, p. 31) e, que, por isso, ex-siste à fala, tendo relação com "a Urverdrängt de Freud, ou seja, o que do inconsciente jamais será interpretado". Há, então, no sintoma, algo da ordem de um saber irredutível à significação, e que estaria associado ao recalque originário (Freud, 1915/1996b).

Desde os primórdios, Freud (1896/1996, p. 283) afirmara que cada estrato psíquico corresponde a uma época da vida, e "na fronteira entre essas épocas deve ocorrer uma tradução do material psíquico", o que leva a um "ajustamento quantitativo" da excitação. Entretanto, Freud observa que nas psiconeuroses parte desse material não se traduz, ou seja, há "uma falha na tradução (Versagung der Uebersetzung)", o que faz com que a intensidade da excitação da camada anterior se mantenha e se manifeste. Segundo Garcia-Roza (1995, p. 189, grifo do autor),

essa falha na tradução com a persistência do modo anterior tem como consequência uma fixação da pulsão na representação. É importante notar que na Carta 52 Freud ainda não emprega o termo fixação (Fixierung), embora já conceba esse tipo de persistência da inscrição como uma forma de recalcamento.

Nos pontos de fixação da pulsão, encontra-se a condição para o recalque originário, e, consequentemente, para a articulação entre representações. Ao mesmo tempo, tais pontos marcam a presença indelével do que se mantém irredutível à fala produtora de sentidos, justamente pelo fato do processo de simbolização não abolir o que a ele não se reduz. Essa Versagung ou falha na tradução aponta, assim, para uma característica estrutural do aparelho de linguagem, a indestrutibilidade das primeiras marcas mnêmicas que se instauram como traumáticas.

Tais marcas se fixam como algo "da ordem do insabido. Insabido porque de outra ordem, diferente do saber, de outra materialidade ou, como é possível equivocar em francês, de outra moterialidade, em que mot é palavra, aqui tomada como pura matéria" (Alberti, 2016, p. 190, grifo da autora). Verificamos, assim, duas ordens do saber: uma que tem relação com o que é recalcado originariamente, um "saber que jamais será reduzido" (Lacan, 1974/2011, p. 31), no qual localizamos lalangue, face real da linguagem; e outra que tem relação com o que se produz a partir da articulação significante.

Lacan (1972-1973/1985, p.188), ao referir-se ao saber como "o que se articula", afirma que o inconsciente é o testemunho desse saber. Lalangue "nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos", já o significante "articula coisas que vão muito mais longe do que aquilo que o ser falante suporta de saber enunciado" (p. 190). O inconsciente é "um saber fazer (savoir-faire) com alíngua" (p. 190), um tratamento, via significação, ao efeito primordial da linguagem, a produção de gozo:

A linguagem passa a ser compreendida por Lacan como tendo existência anterior ao ordenamento significante, ao momento em que ele incide sobre o corpo e faz uma inscrição. A comunicação e o estabelecimento da cadeia que pode acontecer em um segundo tempo revela-se apenas seu uso secundário, não sua finalidade máxima (Barroso & Ferrari, 2014, p. 251).

Tal como os signos da percepção em Freud (1896/1996), é nossa hipótese que o significante enquanto "signo de um sujeito" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 195) aponta para as primeiras inscrições psíquicas. Nos termos do que Lacan avança, o efeito primário disso é a produção de lalangue, do que não se reduz à articulação significante, agindo como um resto irredutível à palavra. Eis o âmago da questão clínica desenvolvida por Lacan no final do seu ensino.

 

A irredutibilidade constitutiva como condição de possibilidade da clínica psicanalítica

Freud (1920/1996, p. 47), mais próximo do final de seu percurso teórico-clínico, conclui que o paciente em análise, ao repetir compulsivamente seus sintomas, o que constitui obstáculo ao tratamento, "nos mostra que os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram presentes nele em estado de sujeição, mostrando-se elas, na verdade, em certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário". Há uma impossibilidade de simbolização que induz a uma compulsão à repetição, fruto das primeiras inscrições psíquicas. Isso se dá devido a uma articulação constitutiva e irredutível entre significante e corpo, o que em Freud resulta na pulsão e, em Lacan, no final do seu ensino, no sintoma. A partir de então, Miller (2015, p. 68) conclui:

o lugar teórico do sintoma, em Lacan, é exatamente o lugar em que Freud escreve a pulsão, ou seja, é o conceito que permite pensar a relação da articulação significante com o corpo. Quer dizer que a pulsão, em Freud, é a interface entre o psíquico e o somático, enquanto, em Lacan, o sintoma é a conexão entre o significante e o corpo.

Apesar de uma relação entre significante e corpo jamais ter deixado de estar presente na ideia de sintoma para a psicanálise, o estabelecimento de uma analogia entre a pulsão freudiana e o sintoma lacaniano só é viabilizada a partir do último ensino de Lacan, quando o significante, ao invés de apenas mortificar o corpo através da negativização do gozo via simbolização, vivifica-o como causa do gozo (Lacan, 1972-1973/1985).

Em um primeiro momento, o sintoma foi considerado "o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito" (Lacan, 1953/1998, p. 282), sendo "estruturado como uma linguagem" (p. 270). Nesta lógica, o significante, ao incidir sobre o corpo, anulava o gozo, causando a mortificação do corpo através do processo de significação, e a consequente resolução do sintoma. Em um segundo momento, enquanto "signo de um sujeito" (Lacan, 1972-1973/1985, p.195), o significante, ao afetar o corpo, vivifica-o de gozo. Nessa perspectiva, a linguagem é traumática, e o sintoma é o efeito de sua incidência. É o que Miller (2015, p. 85) ratifica ao postular que "o sintoma inscreve uma relação muito mais direta entre o significante e o gozo". Assim como a pulsão, em Freud, é produzida a partir do atravessamento da linguagem no corpo, o sintoma também o é, no momento do ensino de Lacan aqui privilegiado.

Sob esse aspecto, o trauma da linguagem pode vir a atuar como causa, não só para a constituição do sujeito, como também para uma clínica singular. Tanto em um caso quanto no outro, um elemento irredutível é o pivô da operação, no segundo caso tratando-se de um fazer com ele. Era o que Lacan (1964/2008, p. 58) propunha ao afirmar que "nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real". Tem-se aí o real da linguagem, o qual veio a ser localizado em lalangue, como vimos.

Retomando nosso ponto de partida, a implicação entre significante e gozo em Lacan poderia ratificar a vinculação entre traço de memória e quantum de excitação em Freud? "Lacan supõe que não se pode sequer definir o significante sem o gozo, e que não se pode tampouco definir o gozo sem o significante, e esta é a nova definição do significante lacaniano: que o significante, como tal, se refere ao corpo, e essa referência se faz sob a modalidade do sintoma" (Miller, 2015, p. 85).

Poderíamos postular que Lacan, já no fim de seu percurso teórico, através do conceito de sintoma, estaria fazendo um retorno à pulsão freudiana, como propõe Miller (2015, p. 86) ao sustentar que "lá onde, em Freud, existe a pulsão, em Lacan há o sintoma". Freud (1937/1996, p. 245) conclui sobre a impossibilidade de solução dos sintomas ao perceber que o que chamou de "controle egossintônico" da pulsão de morte a partir da ação da libido falha em seu intuito de amansá-la, ou seja, de colocá-la completamente em harmonia com o eu. A simbolização é parcial, há algo que permanece intocado pelo processo de significação, e que tem relação com o fator quantitativo. Este, segundo Freud, estabelece um limite à eficácia do processo analítico.

Neste último período da teoria freudiana uma posição ética é ratificada através da sustentação desta impossibilidade constitutiva, mobilizadora e desafiadora na clínica. O que não se reduz à palavra, o trauma psíquico fundante da psicanálise, não impõe um entrave ao trabalho analítico, mas age como sua própria mola propulsora, sua condição de possibilidade. Ao admitir que "a realidade sempre permanecerá sendo 'incognoscível'" (Freud, 1940/1996, p. 210), e que é impossível fazer com que a exigência pulsional desapareça (Freud, 1937/1996), Freud deixa uma questão quanto ao fim de um processo analítico. A construção de um saber sobre o sintoma faz parte do processo analítico, mas não é um fim em si mesmo. Há algo para além das representações, um resto que não se reduz ao discurso, ao mesmo tempo em que o mobiliza.

Estamos diante dos restos sintomáticos formulados por Freud (1937/1996). Com eles, "Freud chocou com o real do sintoma, com o que, no sintoma, está fora do sentido" (Miller, 2011, p. 10). Curiosamente, "esse resto é o que está nas origens do sujeito, é, de algum modo, o acontecimento originário e, ao mesmo tempo, permanente, quer dizer, que se reitera sem cessar" (p. 14), por isso sua relação com lalangue.

Lacan (1971/2009, p.74) chama a atenção para o fato de que a escrita (écriture) se distingue do escrito (écrit), porém mantém com ele certa relação: "Vocês talvez imaginem que é a mesma coisa. Fala-se da escrita [écriture] como se ela fosse independente do escrito [écrit]. É isso que às vezes deixa o discurso muito atrapalhado". No final de uma análise, lalangue se precipita na letra, "uma escrita extraída do simbólico do Inconsciente que contém um pedaço de real" (Quinet, 2009, p. 172). A letra, aqui, é este efeito do significante que cai como resto de gozo. Supomos, neste caso, que a letra seja da ordem do significante Um pertencente ao campo do uniano. Há-Um capaz de escrever algo do núcleo real do sintoma, sendo este reduzido em sua materialidade, cessando de não se escrever.

Não seria essa a proposta clínica de Lacan a partir da década de 1970, um saber fazer aí com isso? A expressão savoir-y-faire, que significa "um saber haver-se aí com seu sintoma" (Lacan, 1976-1977, inédito), associa este último ao real da linguagem, a uma irredutibilidade constitutiva e definidora de uma clínica inédita.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ana Cristina Lemos Moreira
aclemosmoreira@gmail.com

Vinicius Anciães Darriba
viniciusdarriba@gmail.com

Submetido em: 12/10/2018
Revisto em: 17/06/2020
Aceito em: 14/07/2020

 

 

1 Aforismo proposto por Lacan (1972-1973/1985), associado a uma categoria modal aventada por Aristóteles (384-322 a.C.), a do impossível. O que não cessa de não se escrever tem relação com um gozo produzido pela incidência do significante no real do corpo, com o trauma da linguagem.
2 O neologismo francês lalangue, inventado por Lacan, e formado pela fusão do artigo definido la (a) com a palavra langue (língua), está referido ao substantivo feminino lallation, em francês, ou lalação, em português. Trata-se, segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa [online] (Priberam, 2018), de uma "fase, anterior à fase linguística, em que a criança emite sons sem significado, geralmente com início por volta dos dois meses e meio". Lalangue, dependendo do tradutor, ora é transposto para o português como alíngua ora como lalíngua.
3 O termo satisfação, aqui, está relacionado à produção de um gozo não circunscrito pela linguagem articulada, estando no fundamento da subjetividade. Apesar de Freud (1895/1996), em um primeiro momento de sua teorização, ter associado o termo satisfação a uma descarga de prazer, mais adiante, em Além do princípio de prazer (Freud, 1920/1996), este mesmo termo passaria a estar associado à pulsão de morte, estando para além do prazer ou desprazer, verdadeiro estatuto da satisfação ou gozo.