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<P>Dispositivo psiquiátrico e produção de sujeitos matáveis no Brasil entre fins do século XIX e início do XX </P>
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<P> </P>
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<H1>Silvio de Azevedo Soares </H1>
<H1>Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, SP, Brasil </H1>
<H1>Luís Antônio Francisco de Souza </H1>
<H1>Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, SP, Brasil </H1>
<P> </P>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P>A partir das contribuições de Michel Foucault (e seus conceitos de biopoder e dispositivo) e Giorgio Agamben (Homo Sacer), procurou-se problematizar o modo como se produziram mortes pela psiquiatria no Brasil do final do século XIX e princípio do XX. Por meio de revisão bibliográfica em obras que trataram da psiquiatria nesse período histórico, este artigo analisa, nas interpretações dos discursos e práticas psiquiátricas, a implicação de características biológicas, de aspectos da vida nua de indivíduos e grupos, que os transformariam em sujeitos matáveis, próximos à condição de Homo Sacer, e expostos à morte no interior da trama psiquiátrica. </P>
</TH>
<TH>
<P>From Michel Foucault’s contributions (and his concepts of biopower and dispositive) and Giorgio Agamben (Homo Sacer) it is discussed how deaths were produced by the psychiatry in Brazil of the late nineteenth and early twentieth century. Through bibliographic review in works dealing with psychiatry in this historical period, Psychiatric Dispositive and Production of Killable Subjects in Brazil between the Late 19th and Early 20th Centuries analyzes, in interpretations of psychiatric discourses and practices, the implication of biological characteristics, aspects of the bare life of individuals and groups, which would turn them into killable subjects, close to the condition of Homo Sacer, and exposed to death within the psychiatric weft. </P>
</TH>
</TR>
<TR>
<TH>
<P>Palavras-chave: psiquiatria, dispositivo, biopoder, biopolítica, Homo Sacer </P>
</TH>
<TD>
<P>Keywords: psychiatry, dispositive, biopower, biopolitics, Homo Sacer </P>
</TD>
</TR>
</Table>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Introdução </P>
<P> </P>
<P>Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus “homens sacros” (AGAMBEN, 2010, p. 135). </P>
<P> </P>
<P>Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo; era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia (LIMA BARRETO, 2010, p. 246). </P>
<P> </P>
<P>
<DropCap>
<ImageData></ImageData>
A </DropCap>
</P>
<P>pesar dos inúmeros conflitos no Brasil que resultaram em matanças coletivas no final do século XIX e no início do XX – como a Guerra de Canudos, a Guerra do Contestado e a Revolta da Vacina –, nos quais talvez seja impossível avaliar o número de mortes (SEVCENKO, 2010, p. 11), nosso objetivo neste artigo é problematizar a produção de mortes pela psiquiatria nesse mesmo período histórico. Por não terem ocorrido em situações de confronto, mas de maneira cotidiana e diluída, provavelmente seria igualmente infactível enumerar tais mortes. </P>
<P>Por meio das contribuições de Michel Foucault e Giorgio Agamben, analisamos como, no contexto de estratégias de biopoder, a psiquiatria, por meio da politização das características biológicas de ser vivente, da vida nua, ocasionou mortes, operacionalizadas pelos dispositivos de biopoder em instituições disciplinares como o hospício – não somente o assassinato direto, mas também as diferentes formas de exposição aos riscos de morte. </P>
<P>Compreendendo a psiquiatria como um dispositivo de poder-saber-modo de subjetivação (FOUCAULT, 1979, p. 244), analisamos alguns pontos dos discursos e das práticas psiquiátricas, destacando as implicações políticas da vida nua que converteram certos indivíduos em sujeitos matáveis, próximos à condição definida por Agamben (2010) de Homo Sacer, e tal como a descrição de interno realizada por Lima Barreto, que teve, pelo menos, duas passagens no Hospital Nacional de Alienados, em 1914 e 1919. </P>
<P>A partir de revisão bibliográfica de obras que se debruçaram sobre a psiquiatria nesse período histórico brasileiro (CUNHA, 1986, 1990; ENGEL, 1999, 2001; PORTOCARRERO, 2002) mas não haviam problematizado essa temática sob a perspectiva que adotamos, evidenciamos certos aspectos do discurso psiquiátrico que apontam para a politização da vida nua como mecanismo de controle social. Sublinhamos certas técnicas da psiquiatria, como o hospício e suas práticas internas, que, direta ou indiretamente, produziram mortes e analisamos sobre quais grupos sociais tais práticas e discursos incidiram. </P>
<P>A relevância deste trabalho reside na probabilidade de delinearmos, a partir de uma releitura das obras mencionadas, o modo como, na história da sociedade brasileira, o dispositivo psiquiátrico produziu mortes por meio da politização de aspectos da vida nua. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Marco teórico-conceitual </P>
<P> </P>
<P>Análise da produção de mortes em Foucault </P>
<P> </P>
<P>Pensar a noção de morte leva-nos às discussões elaboradas por Foucault sobre as diferentes estratégias de poder que produziram distintas formas de perecimento. Nesse sentido, no contexto histórico europeu de fins do século XVII e início do século XIX, o autor aponta a emergência de um novo sistema de poder – o biopoder – que reconfigurou a estrutura do poder soberano, então vigente. A soberania caracterizava-se como um poder que se exercia, essencialmente, por meio do direito de morte sobre os súditos, “direito de causar a morte ou de deixar viver” (FOUCAULT, 1988, p. 148). A morte é, assim, objeto do poder, produção política direta do soberano (resultado do poder de punir na forma pública do suplício)
<Link>1</Link>
, e a vida, “deixar viver”, é resultado indireto do </P>
<Endnote>
<P>Notas </P>
<P> </P>
<P>1 Destinada aos criminosos que atentavam contra a autoridade e a vida do soberano, a morte por suplício era um espetáculo em praça pública, exposto aos súditos como elemento de coação. No início de Vigiar e punir, Foucault descreve o suplício imposto a Robert-François Damiens em 1757, acusado de atentar contra a vida do Rei Luís XV: torturado, esquartejado, queimado e reduzido às cinzas. Sobre a descrição do suplício em sua técnica, como ritual de poder e instrumento jurídico-político, conferir Foucault (1987, pp. 34-47). </P>
poder dissimétrico do soberano: “Não é o direito de fazer morrer ou de fazer viver. Não é tampouco o direito de deixar viver e de deixar morrer. É o direito de fazer morrer ou de deixar viver” (Idem, 1999, p. 287). </Endnote>
<P>Já o biopoder, que engloba práticas e discursos da disciplina e as relações de poder-saber da biopolítica, caracteriza-se por tomar, enquanto objeto de intervenções de poder-saber, os fenômenos comuns à vida, ao corpo e à espécie humana, com a finalidade de gerir, multiplicar e majorar a vida, ampliando capacidades vitais de indivíduos e grupos sociais. A biopolítica, especificamente, refere-se a um modo de governar a sociedade por meio da gestão da população: o gerenciamento da vida humana a partir da redução da multiplicidade das circunstâncias sociais à dimensão biológica de espécie humana. Um novo direito se instala, então, com a modernidade: “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte” (Idem, 1988, p. 150). </P>
<P>No entanto, a morte não é um dado natural e um resultado passivo das tecnologias biopolíticas, como possa parecer: “o direito de fazer viver e deixar morrer” (Idem, 1999, p. 287). Se a vida da espécie humana apresenta-se imediatamente como um fato político; a morte continua a ser ainda estratégia, objeto e resultado das relações de poder. “Poder matar para poder viver” (Idem, 1988, p. 129), a morte como complemento tático de um poder que visa maximizar a existência biológica de uma população. </P>
<P>A morte é, como taxa de mortalidade, objeto da biopolítica em razão dos riscos de diminuição de vida da população – a morte de sujeitos que foram alvos de investimentos estatais como gastos em saúde e educação – e pelo fato de que essa população, como no Cameralismo e no Mercantilismo, ter sido considerada um elemento fundamental do poder dos Estados – braços para agricultura e para manufaturas, componente da relação trabalhadores-salários-preços das mercadorias (Idem, 2008, p. 90). No contexto de uma sociedade de normalização, que congrega as normas disciplinar e biopolítica (Idem, 1999, p. 302), “deixar morrer” é também o resultado de uma gestão calculista da vida. A fim de maximizar a existência biológica de uma população, as tecnologias biopolíticas produzem uma distribuição dos “vivos em um domínio de valor e utilidade” (Idem, 1988, p. 157) que acarreta, em detrimento de outros sujeitos, o planejamento e a exigência de mortes: deixados morrer como resultado de um cálculo biopolítico
<Link>2</Link>
. </P>
<Endnote>
<P>2 Foucault demonstra, por exemplo, como no mecanismo de gestão da escassez de grãos e da fome dos fisiocratas no final do século XVIII, alguns iriam morrer por fome para que não ocorresse a escassez geral de grãos (FOUCAULT, 2008, p. 55). </P>
<P>3 Uma das inovações analíticas do método genealógico desenvolvido por Foucault consiste em não conceber, na modernidade, as práticas de poder somente nas dimensões negativas de repressão, proibição, cerceamento, castigos e, consequentemente, geração de mortes (FOUCAULT, 1987, p. 26, 1999, p. 45). </P>
<P>4 Condição limite que demarcava, no direito romano arcaico, as fronteiras entre o político e o sagrado, Homo Sacer era uma prescrição por meio da qual o sujeito era legalmente abandonado pela comunidade política. </P>
<P>5 Nos rastros de Foucault, em obra de 1976 (L’Ordre psychiatrique: L’âge d’or de l’aliénisme), o sociólogo francês Robert Castel aborda a medicalização da loucura por meio da experiência francesa da psiquiatria alienista. Segundo Castel (1978), o alienismo e a tecnologia asilar, como estratégias de moralização das massas urbanas na sociedade industrial francesa pós-Revolução, produziram a patologização de certos comportamentos (como a indigência, a vagabundagem, o desvio sexual). </P>
<P>6 Estudiosos de Foucault – como Machado (2016), Castro (2009) e Negri (2016) – comumente dividem a sua trajetória intelectual em três períodos: uma arqueologia dos saberes, das regras de enunciação e de circulação dos discursos (anos 1960); uma analítica genealógica sobre os dispositivos de poder-saber que formam discursos e sujeitos (anos 1970); a fase ética de problematização do sujeito e das práticas por meio das quais o ser humano se constituiu como sujeito (anos 1980). Todavia, tal periodização não é suficientemente precisa na articulação da produção de Foucault, visto que as questões do poder, sujeito e discurso estão entremeadas – ainda que com distintos enfoques e abordagens – nas suas inúmeras análises. </P>
<P>7 Essa compreensão do sujeito como efeito de relações de poder e de discursos de saber refere-se aos estudos e análises do designado período genealógico de Foucault. A partir dos seus trabalhos dos anos 1980, de leitura ética das práticas de si, os modos de subjetivação se relacionam também às maneiras nas quais o ser humano, com certo grau de autonomia, se constitui como sujeito, não somente como objeto e produto das redes de poder-saber. Nessa acepção, o segundo e o terceiro volumes de História da sexualidade – publicados em 1984 e 1985 respectivamente – analisam como, na Antiguidade, os sujeitos fazendo uso de certas práticas se autoformavam como sujeitos de sexualidade. </P>
<P>8 Os marcos históricos desse artigo abrangem o período em que a psiquiatria se consolidou como especialidade científica autônoma no país, a partir da criação da especialidade médica em psiquiatria na Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro em 1881, até a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental em 1923, no Rio de Janeiro, entidade que fundamentaria as práticas psiquiátricas em novos critérios teóricos – no caso, a eugenia (CUNHA, 1986). </P>
<P>9 A obra História da sexualidade I: A vontade de saber, que, em seu último capítulo, apresenta as primeiras elaborações de Foucault sobre a biopolítica, foi publicada na França em 1976 e no Brasil em 1980; trechos das aulas de Foucault no Collège de France sobre o biopoder e biopolítica foram publicados, no Brasil, na coletânea Microfísica do poder de 1978. No entanto, os cursos completos em que Foucault se dedica a analisar a biopolítica, como Em defesa da sociedade, começaram a ser publicados, na França e no Brasil, em 1997 e 1999, respectivamente. Este fato talvez justifique a ausência de um enfoque biopolítico aprofundado nos referidos trabalhos. </P>
<P>10 Segundo Cunha (1986), no final do século XIX e início do século XX, desenvolveu-se a medicalização do cuidado sobre o louco no Brasil até então em liberdade (como parte da desordem urbana) ou sob custódia em mecanismos penais (cadeias) ou de caridade (Santas Casas). </P>
<P>11 Deve-se ressaltar que ao final do século XIX, além da consolidação da psiquiatria brasileira, ocorreu também o estabelecimento da criminologia no país. A partir de um complexo conjunto de relações entre saberes e práticas médico-legais, psiquiátricos, criminológicos e jurídicos, foi produzida uma agenda de reformas da justiça criminal e da tecnologia punitiva no Brasil. Sobre esse processo de formação da criminologia no Brasil e suas estratégias de normalização e ordenamento social, pode-se conferir Souza (2005). </P>
<P>12 De forma específica em relação à tematização racial nas práticas e discursos do dispositivo psiquiátrico brasileiro entre fins do século XIX e princípios do XX, pode-se conferir Soares (2018). </P>
<P>13 No curso Os anormais (2010), Foucault descreve a formação da noção de anormal, constituída pela psiquiatria francesa de meados do século XIX – de forma não sincrônica – a partir de três elementos: a) o monstro humano (como exceção jurídica e biológica: as deformidades congênitas, o hermafroditismo, os irmãos siameses; como exceção jurídica e moral: os crimes sem motivo); b) o indivíduo indisciplinado (os incorrigíveis que escapavam das normas disciplinares preliminares); c) a criança masturbadora (a partir da concepção da masturbação como causa potencial de uma série de doenças e distúrbios). Por essa noção, a psiquiatria se afastou da loucura como doença mental e emergiu, nos anos 1840-1875, como dispositivo extramanicomial de poder-saber do anormal, como ciência dos desvios, das anomalias e de todas as desordens possíveis de conduta (Ibid., p. 210). Essa concepção de anormal articulou-se à teoria de degeneração, fundamentando, dessa maneira, uma etiologia hereditária das anomalias e a medicalização do anormal (Ibid., p. 276). </P>
<P>14 De forma específica em relação ao enfoque do feminino na psiquiatria brasileira nesse período, pode-se consultar Cunha (1989) e Engel (1997). </P>
</Endnote>
<P>A partir da segunda metade do século XIX, o racismo moderno – como parte dos mecanismos de poder estatal, não como ideologia – permitiu ao Estado, no biopoder, segmentar a população entre aqueles que devem viver e os quem devem morrer – estes, os indivíduos ou grupos considerados como um perigo biológico em razão da purificação ou fortalecimento da raça (Idem, 1999, p. 304). O racismo de Estado é uma estratégia de governo dos vivos que permite a reativação do direito soberano de matar e uma gestão dos matáveis (o anormal, o desviante, o incorrigível, os que podem constituir riscos ao futuro da sociedade e da espécie humana). A morte biopolítica, ou seja, o conjunto de mortes operacionalizadas pelos dispositivos biopolíticos, é não somente o assassinato direto, mas também a exposição aos riscos de morte e a destruição da potência de vida de certos sujeitos. </P>
<P>Por fim, um adendo e uma questão. Nos cursos no Collège de France – tais como A sociedade punitiva (2015), O poder psiquiátrico (2006) e Os anormais (2010) – e na obra Vigiar e punir (1987), Foucault destaca a dimensão positiva do poder disciplinar
<Link>3</Link>
: a partir de instituições e de tecnologias disciplinares (como o sistema penal, as práticas carcerárias, os procedimentos psiquiátricos), a produção de instrumentos de observação, registro e acúmulo de saber e a sujeição de corpos em mecanismos individualizantes de correção, de produção de docilidade e de potencialização da vida. Dessa forma, suas reflexões sobre a morte no biopoder se concentram, fundamentalmente, na biopolítica (FOUCAULT, 1988, 1999, 2008). Posto isso, coloca-se uma questão aqui, embora não a esgotemos nesse trabalho: as mortes ocorridas nas instituições psiquiátricas brasileiras, no período que abordamos, foram produzidas sob o sistema disciplinar, ou a psiquiatria fora operacionalizada já em uma configuração biopolítica de poder? Distinta da realidade europeia – na qual Foucault descreve a emergência, primeiro, da disciplina (final do século XVII e início do XVIII) e, posteriormente, da biopolítica (final do século XVIII e começo do XIX) –, na sociedade brasileira, no final do século XIX e início do século XX, poderia ter ocorrido a conjunção de dispositivos de poder-saber disciplinares e biopolíticos? </P>
<P> </P>
<P>Agamben e a produção de sujeitos matáveis (‘Homines Sacri’) </P>
<P> </P>
<P>Em Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua (AGAMBEN, 2010), Agamben parte da distinção feita pelos gregos antigos entre as duas dimensões de “vida” (zoé, o fato de viver de todos os seres vivos, a vida natural; e bíos, uma forma de vida, qualificada pela política, dos indivíduos e dos grupos humanos) para apontar a origem da política na inclusão da bíos e na exclusão da zoé. Essa decisão de exclusão ou inclusão é prerrogativa do poder soberano. Figura inerente da estrutura política ocidental, o soberano localiza-se, sincronicamente, no interior e no exterior do ordenamento político, ao deter o poder de decretar a suspensão da validade da lei, o Estado de exceção (Ibid., p. 22). Essa relação de exclusão soberana da zoé é uma relação política de implicação desse nível de vida por meio de sua segregação e exposição à morte. A zoé politizada torna-se vida nua: simultaneamente excluída da ordem política e capturada no exterior do ordenamento legal, vida sujeita à morte que deve ser incluída por meio de sua expulsão (Ibid., p. 14). </P>
<P>Na política ocidental, a personificação da vida nua realiza-se no Homo Sacer
<Link>4</Link>
e sua vida, concomitantemente, matável e insacrificável. Por ser vida absolutamente ordinária (“vida nua”), o Homo Sacer é matável: pode ser morto impunemente, e sua morte não é considerada homicídio, pois não pertence à comunidade política das leis. O Homo Sacer é insacrificável: uma vida tão banal que não pode ser ofertada em sacrifício. A matabilidade do Homo Sacer não é sacrificial, pois não encerra o ciclo de violência, não converte, não purifica, não resulta em sacralização dos corpos. </P>
<P>O soberano e o Homo Sacer constituem, assim, duas figuras polares e correlatas do arcabouço político ocidental: o soberano é a esfera na qual todos os homens são potencialmente Homines Sacri; o Homo Sacer é aquele que todos os homens podem matar como soberanos, impunemente. </P>
<P>Para Agamben, dessa forma, o que Foucault denomina de biopolítica seria a zoé-política ou tanatos-política, ou seja, o ser humano, enquanto ser vivente (vida nua) como objeto de poder, a existência biológica da população problematizada no interior de cálculos políticos. A característica da biopolítica moderna seria a indistinção entre zoé e bíos, Homo Sacer e cidadão, espaço da vida nua e ordenamento político. A zoé tomada como política: “A novidade da biopolítica moderna é, na verdade, que o dado biológico seja, como tal, imediatamente biopolítico e vice-versa” (Ibid., p. 144). Se não se discerne entre ordenamento político e Estado de exceção, se a vida biológica é imediatamente submetida à política, todos os cidadãos, em suas vidas biológicas, são potencialmente Homines Sacri, e toda decisão política tende a ser uma deliberação sobre que vida deixa de ser politicamente relevante. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Perspectiva analítico-metodológica </P>
<P> </P>
<P>Compreendemos a psiquiatria como um “dispositivo”, a categoria metodológica foucaultiana que permite a constituição de uma rede heterogênea envolvendo práticas e técnicas de poder, discursos de saber, instituições, leis e normas (FOUCAULT, 1979, p. 244). Por esse enfoque, no curso de 1973-1974, O poder psiquiátrico (Idem, 2006), o autor descreve, em uma genealogia histórica do dispositivo psiquiátrico francês, como o poder disciplinar foi uma das condições históricas para a formação dessa ciência no final do século XVIII
<Link>5</Link>
. Nesse curso, por meio de uma análise das táticas microfísicas de poder inerentes às técnicas psiquiátricas que se desenvolveram sobre corpos no interior do asilo – o isolamento em cela, a camisa de força, as duchas frias, o interrogatório, entre outras práticas –, Foucault demonstra como se produziram discursos de verdade considerados legítimos – como o esboço de uma etiologia organicista da doença mental, uma teoria de psiquiatria forense e a noção de degenerescência – e se constituiu o sujeito psiquiatrizado. </P>
<P>Neste artigo, a aplicação da categoria “dispositivo” permite-nos examinar, de forma sincrônica, as características específicas das práticas de poder, dos discursos de saber e dos modos de concepção do sujeito que, no interior da trama psiquiátrica, produziram mortes ou expuseram indivíduos ao risco de morte. Em Foucault, notadamente na sua denomina fase genealógica
<Link>6</Link>
, há uma relação tríade entre relações de poder, produção e circulação de discursos de verdade e modos de subjetivação. Segundo ele, o poder não constitui uma substância ou entidade que se possa ter, trocar, retomar; ele se exerce, é ato, é constituinte das relações sociais. A essas múltiplas e históricas relações de poder que constituem e perpassam o corpo social, congregam-se específicos discursos de verdade, saberes produzidos e postos em circulação por tais mecanismos de poder. Essas práticas de poder e discursos de saber, a partir de determinadas instituições (escola, hospício, prisão etc.), engendram sujeitos, nas maneiras pelas quais os indivíduos se concebem e são compreendidos socialmente (aluno, doente mental, delinquente etc.). </P>
<P>Em outros termos, a perspectiva analítica de Foucault possibilita uma abordagem histórica e não apriorística da subjetividade. O sujeito é compreendido a partir de definidas relações históricas de discursos de verdade e de práticas de poder que constituem específicas formas de objetivação – modos nos quais o sujeito se apresenta como objeto de uma determinada relação de saber-poder
<Link>7</Link>
. Já a partir das contribuições teóricas de Agamben, tomaremos a psiquiatria como um dispositivo de controle social que opera práticas de segregação por meio da politização da vida nua de certos indivíduos e grupos. </P>
<P>Dessa forma, pretendemos descrever como, no Brasil dos fins do século XIX e início do XX – mais precisamente, entre 1881 e 1923
<Link>8</Link>
–, o dispositivo psiquiátrico, por meio de práticas médicas-psiquiátricas, discursos científicos como o organicismo e a teoria da degenerescência, instituições como hospícios, implicou modos de objetivação do sujeito que permitiram que certos corpos fossem deixados morrer, próximos à condição de Homo Sacer. </P>
<P>Utilizaremos como material de análise autoras (CUNHA, 1986, 1990; ENGEL, 1999, 2001; PORTOCARRERO, 2002) que abordaram a psiquiatria nesse contexto histórico, embora não com a perspectiva aqui adotada. </P>
<P>Por meio do exame de prontuários, cartas a eles anexadas, textos médicos-psiquiátricos e crônicas jornalísticas sobre o cotidiano da cidade de São Paulo, Maria Clementina Pereira Cunha (1986, 1990) analisou os perfis do Hospício do Juquery e da psiquiatria paulista. Nesses trabalhos – resultantes de pesquisa realizada no início dos anos 1980 –, Cunha sublinhou o papel estratégico adotado pela psiquiatria na disciplinarização das condutas individuais em relação aos problemas urbanos (como a vadiagem, a prostituição, a mendicância) decorrentes do crescimento da cidade naquele período. </P>
<P>Inspirada também no prisma teórico-metodológico de Foucault, a partir da análise dos prontuários médicos do Hospital Nacional dos Alienados e das teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro produzidas entre 1830 e 1930, Magali Engel (1999, 2001), em pesquisa feita em meados da década de 1990, investigou o processo brasileiro de constituição da loucura como objeto médico-psiquiátrico. Com a emergência da concepção médica de loucura, Engel destacou a ampliação da abrangência de doença mental e, por conseguinte, o progressivo aumento de número de pessoas diagnosticadas como doentes mentais, e a implantação de novos mecanismos disciplinares de controle social como hospícios medicalizados e sob gestão de psiquiatras. </P>
<P>Em estudo efetuado no final dos anos 1990 sobre a obra do médico Juliano Moreira, diretor do Hospital Nacional dos Alienados entre 1903 e 1930, Vera Portocarrero (2001) buscou apontar uma descontinuidade no saber e nas práticas psiquiátricas no Brasil do final do século XIX e início do XX. Para a autora, a emergência do conceito de “anormal” na psiquiatria brasileira, a partir da influência do psiquiatra alemão Emil Kraepelin sobre Juliano Moreira, permitiu a este dispositivo, em articulação com uma gestão política do espaço urbano, abranger não estritamente a loucura, mas todo e qualquer desvio de comportamento, alcançado também degenerados, epiléticos, criminosos, sifilíticos e alcoólatras. </P>
<P>Apesar de as discussões de Foucault sobre a biopolítica terem sido publicadas no Brasil já no final da década de 1970 e início dos anos 1980, Cunha (1986, 1990), Engel (1999, 2001) e Portocarrero (2001) compreenderam a psiquiatria, fundamentalmente, como mecanismo disciplinar
<Link>9</Link>
. Por conseguinte, acabaram não salientando as características biopolíticas desse dispositivo, como a secção de grupos da sociedade como alvos de intervenções de poder que visavam à otimização da vida de alguns e o abandono, de outros, aos riscos de morte. </P>
<P>De forma específica, Cunha não problematizou a proposta científica de medicalização da loucura elaborada pelo psiquiatra Franco da Rocha, diretor do Juquery, como uma estratégia em que certos indivíduos foram deixados à morte. Também Engel não abordou por que e como, no interior de práticas psiquiátricas, sujeitos foram deixados perecer no Hospital Nacional de Alienados. Do mesmo modo, Portocarrero não interrogou o dispositivo psiquiátrico como um mecanismo biopolítico de produção de mortes. </P>
<P>Dessa maneira, a relevância deste trabalho situa-se na possibilidade de demonstrar, por meio de uma revisão bibliográfica das obras mencionadas, como o dispositivo psiquiátrico, por meio da politização da vida nua, produziu mortes. </P>
<P>Por fim, as informações sobre dispositivo psiquiátrico apresentadas nessas obras foram reelaboradas em três eixos de investigação: a) a implicação da vida nua nos discursos de saber; b) os resultados desses discursos: os diagnósticos – como modos de objetivação do sujeito – nos quais certos indivíduos foram compreendidos socialmente próximos à condição de Homo Sacer; c) as técnicas e práticas de poder-saber que produziram diretamente a morte ou expuseram indivíduos às possibilidades de extermínio. </P>
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<P>Análise e discussão dos dados </P>
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<P>Dispositivo psiquiátrico na virada do século XX </P>
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<P>Ao final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, houve uma série de transformações no cenário social, econômico e político da realidade brasileira (FAUSTO, 1994; SEVCENKO, 1998). Deu-se o fim das relações escravistas e o início da constituição do mercado de trabalho assalariado. Ocorreram a queda da monarquia e o processo de formação do Estado republicano. A industrialização nascente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e a rápida urbanização decorrente acarretaram novas questões sociais, como o surgimento de novos personagens (operários, imigrantes estrangeiros, ex-escravos, prostitutas, mendigos), o aumento das taxas de desemprego e a proliferação de endemias e de epidemias urbanas. </P>
<P>Tais transformações impuseram ao Estado brasileiro a necessidade de novos mecanismos de controle social que fossem ainda fundados, nesse momento, nos parâmetros científicos caros à principiante República de inspiração positivista. Nesse sentido, interesses do Estado se convergiram para a psiquiatria. </P>
<P>A psiquiatria se consolidou no país também ao final do século XIX enquanto saber e prática médicos (CUNHA, 1986, p. 45). Datam desse período: o reconhecimento da psiquiatria como especialidade médica, com a criação da especialidade na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com o decreto n° 8.024 de 12 de março de 1881; a transformação, em 1890, do Hospício Dom Pedro II no Rio de Janeiro, que prestava até então uma assistência religiosa à loucura, em Hospital Nacional de Alienados, sob a gestão científica de psiquiatras
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; a gestão estatal direta no amparo aos doentes mentais com a criação do Serviço de Assistência Médica e Legal de Alienados, com o decreto n° 206A, de 15 de fevereiro 1890, e a definição de um estatuto legal da doença mental no país, com o decreto n° 1.132, de 22 de dezembro de 1903
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. </P>
<P>Ao tematizar questões importantes às estratégias de ordem social, como os comportamentos sexuais, as relações de trabalho, a segurança pública, a questão racial e as manifestações políticas (ENGEL, 1999, p. 559), a psiquiatria permitiu ao Estado brasileiro justificar cientificamente práticas de política social excludentes e segregadoras: a destruição de cortiços, a higienização das cidades, a repressão policial, os internamentos (CUNHA, 1990, p. 41; SEVCENKO, 2010, p. 82). </P>
<P>Se na política moderna “o entrelaçamento de política e vida tornou-se tão íntimo” (AGAMBEN, 2010, p. 117), a psiquiatria, como dispositivo de biopoder, ao tematizar, em suas práticas e discursos, diferentes aspectos da vida nua (raça, hereditariedade), permitiu, como veremos a seguir, uma gestão da sociedade urbana por meio da sujeição de corpos por seus caracteres biológicos. </P>
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<P>Implicação da vida nua nos discursos psiquiátricos </P>
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<P>A partir do final do século XIX, a perspectiva organicista (ENGEL, 2001, p. 153) e a teoria da degenerescência (PORTOCARRERO, 2002, p. 48) exerceram acentuada influência na então eclética psiquiatria brasileira (CUNHA, 1986, p. 29). De forma sintética, a psiquiatria organicista, constituída a partir das ideias do médico alemão Emil Kraepelin, relacionava a loucura, os vícios morais e outras doenças mentais a causas de ordem biológica (fenômenos físicos e orgânicos). Sistematizada pelo médico franco-austríaco Bénédict Morel, a teoria da degeneração explicava as doenças mentais a partir das degenerescências: os desvios da natureza biológica original do homem, a progressiva degeneração mental entre as gerações. A degeneração, como causa hereditária dos estados de anormalidade mental, relacionava-se também com circunstâncias sociais consequentes da urbanização e da industrialização, como o alcoolismo, o desemprego e a miséria. Enquanto mecanismos de biopoder, tanto a psiquiatria organicista quanto a fundamentada na teoria da degenerescência tomavam como objeto de seus discursos e práticas aspectos biológicos da vida humana. </P>
<P>Nessa perspectiva de localização orgânico-física da loucura, o médico Bueno de Andrada ressaltava que “os alienistas reconhecem facilmente estigmas degenerativos em inocentes disposições anatômicas” (apud PORTOCARRERO, 2002, p. 48). A existência de estigmas físicos atribuídos à degeneração (como deformidades cranianas, estrabismo, dentes e orelhas defeituosos, deformações ósseas, cegueira, surdo-mudez) indicaria, de forma inequívoca, a presença de doenças mentais. </P>
<P>No entanto, a inexistência desses sinais físicos não implicaria a ausência de doenças. Na classificação de degenerados do psiquiatra paulista Franco da Rocha, existia a figura dos “predispostos”, aqueles que já possuiriam uma “tara cerebral”, aguardando apenas uma ocasião oportuna para manifestação da doença (ENGEL, 2001, p. 163). Segundo Franco da Rocha, a linha divisória entre os predispostos e os degenerados seria de complexa definição, sendo da competência do especialista psiquiatra tal distinção. </P>
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<P>Do idiota ao degenerado superior, isto é, ao desequilibrado que possui algumas faculdades mentais brilhantes, vai uma série vastíssima de tipos, passando pelo imbecil e o débil de espírito, sem divisão nítida entre si, mas por transição quase insensível (ROCHA, 1904 apud ENGEL, 2001, p. 139). </P>
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<P>Em suma, a psiquiatria brasileira seria profundamente marcada, a partir dos anos 1880, pela ideia de que haveria “muito mais loucos entre o céu e a terra do que supunha o vão senso comum...” (CUNHA, 1986, p. 78). </P>
<P>Nesse contexto científico, a concepção da transmissão hereditária das degenerescências permitiu à psiquiatria ampliar a abrangência da noção de doença mental e dos limites de sua ação. Em razão do risco de o aumento de degenerados comprometerem toda nação, psiquiatras defendiam a necessidade de debruçar-se sobre os “estudos dos fatores de desenvolvimento físico e intelectual das raças” (PORTOCARRERO, 2002, p. 52). </P>
<P>Nesse sentido, afirmava o psiquiatra Juliano Moreira (apud PORTOCARRERO, 2002, p. 52) que “os grupos humanos que se interessam pela própria conservação não descuram ponderar aprofundamente os motivos que os podem aniquilar”. Concebendo a hereditariedade como o principal fator de doença mental, o médico Henrique Roxo defenderia, além da proibição dos casamentos consanguíneos, a restrição da procriação dos degenerados (ENGEL, 2001, p. 168). Enfim, abordando questões relacionadas à hereditariedade e ao futuro biológico da nação, o dispositivo psiquiátrico aproximava-se de uma das características da biopolítica moderna: o cuidado com o patrimônio vivente da sociedade (AGAMBEN, 2010, p. 141). </P>
<P>Os riscos decorrentes da transmissão hereditária das degenerações também fizeram com que o racismo aparecesse nos discursos psiquiátricos sob um véu de cientificidade. Na perspectiva de degenerescência, Roxo assim sustentava a inferioridade do negro: “É a evolução que não se deu. Ficaram retardatários (...) legavam a seus descendentes um cérebro pouco afeito ao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz” (apud ENGEL, 2001, p. 174)
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<P>Como característica do teor eclético da psiquiatria brasileira nesse período (CUNHA, 1986), à medida que esse dispositivo fundamentava a etiologia das doenças mentais no substrato físico-orgânico e na hereditariedade, aumentava o seu envolvimento no âmbito das condutas morais. Questões como a delinquência, o alcoolismo e o uso de cocaína e morfina foram relacionadas com o processo de degeneração. Distúrbios originados de desvios de conduta foram associados a fatores orgânicos e hereditários de causalidade da doença mental. </P>
<P>Dessa relação entre questões morais e aspectos orgânico-hereditários, a psiquiatria brasileira lançou-se às tarefas de disciplinarização e controle social da cidade. Para os psiquiatras brasileiros, a cidade – seus becos, botequins, cabarés e misérias – aparecia como ambiente ideal da deflagração da degenerescência, mal congênito e biológico, invisível e insidioso (Idem, 1990, p. 27). </P>
<P>Esse papel da psiquiatria como defesa da sociedade contra suas ameaças internas estava presente também em Juliano Moreira. Atuando sobre os fatores desencadeantes da doença mental (como a delinquência e o alcoolismo) e sobre a transmissão hereditária da degenerescência, a psiquiatria contribuiria para o desenvolvimento moral e econômico da sociedade brasileira (PORTOCARRERO, 2002, p. 34). Nesse sentido, Moreira considerava os epiléticos, os alcoólatras, os sifilíticos como entraves para o progresso e como riscos para ordem social, visto que durante as crises seriam improdutivos e poderiam transmitir hereditariamente seu mal para os descendentes, contaminando o futuro da população. Questões sociais como a alta taxa de criminalidade e a baixa produtividade da sociedade brasileira também seriam, para ele, resultado da concepção de indivíduos degenerados dentro da nação. </P>
<P>A partir da perspectiva de Agamben (2010), esse teor eclético da psiquiatria (entremeando fatores biológicos e comportamentos morais e políticos) pode ser relacionado à indistinção, no ordenamento político como também Estado de exceção, entre zoé (a vida biológica do indivíduo e da espécie) e bíos (o caráter político da vida qualificada). Essa indistinção era realizada, nesse caso, pela psiquiatria, como uma das instâncias soberanas sobre a vida na biopolítica moderna. </P>
<P>Essa generalização extra-asilar da psiquiatria foi possível graças à noção de anormalidade (como desvios hereditários e doentios) construída sob o organicismo e a teoria da degenerescência
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. Por essa formulação de anormal, condutas então do âmbito criminal e das indisciplinas são tomadas pela psiquiatria como males de origens biológicas e orgânicas. Assim, novos diagnósticos foram mobilizados na sujeição de indivíduos: “delinquentes recidivistas”, “anômalos morais”, “querelantes”, “instáveis” (PORTOCARRERO, 2002, p. 62); e ainda “excêntrico”, “estrambótico”, “impulsivo”, “instável”, “místico” (CUNHA, 1986, p. 135). </P>
<P>Com a ampliação das possibilidades de classificar as mais variadas condutas como anormais, houve o crescimento significativo da população diagnosticada com doentes mentais. Segundo Engel (2002, p. 254), relatório sobre o Hospital Nacional de Alienados de 1894 apontava que nas cinco décadas anteriores foram recolhidos 6.040 indivíduos no asilo, enquanto, somente entre janeiro de 1890 e novembro de 1894, já teriam sido internados 3.201 sujeitos. </P>
<P>Essa construção de novos diagnósticos a partir do conceito psiquiátrico de anormalidade pode ser compreendida, a partir de Agamben, como uma das formas, na biopolítica moderna, de redefinição contínua da linha que qualifica ou destitui valor da vida, que constitui bíos ou Homo Sacer, do “limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está fora” (AGAMBEN, 2010, p. 127). </P>
<P>Em síntese, as perspectivas organicista e da teoria da degenerescência, ao terem adotado, nos discursos psiquiátricos, uma interpretação biologizante do funcionamento social e cultural da sociedade (COSTA, 2007, p. 36), evidencia, como aponta Agamben (2010, p. 141), a implicação da vida nua no interior de estratégias de poder. </P>
<P>Figuras da vida nua sujeitadas pelo dispositivo psiquiátrico </P>
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<P>A tematização de aspectos da vida nua no dispositivo psiquiátrico, ao destituir valor de certas vidas, resultou em discursos classificatórios que sustentou mecanismos de normalização e de segregação. Nesse sentido, a análise das obras de Portocarrero (2002), Engel (1999, 2001) e Cunha (1986, 1990) aponta quatro grupos de sujeitos que foram os principais envolvidos na politização da vida nua pela psiquiatria como referentes negativos do biopoder: a) as classes populares urbanas; b) as mulheres e os homossexuais; c) os radicais políticos; d) os negros. </P>
<P>Submetidas às condições de miséria desencadeadoras da degeneração, as classes populares estavam submetidas, com maior probabilidade aos riscos de doenças mentais. Segundo Cunha, “somando-se a periculosidade intrínseca à loucura e à inevitabilidade genética, os pobres estavam sob suspeita generalizada” (1990, p. 23). As classes populares urbanas, ao carregarem a fratura biopolítica fundamental da modernidade (AGAMBEN, 2010, p. 173), foram abordadas não como “Povo” (bíos, corpo político dos cidadãos), mas como “povo” (a multiplicidade fragmentada de corpos carentes, a escória, pura zoé). </P>
<P>Segundo Cunha (1986, p. 141), os trabalhadores urbanos eram figura central no interior do Hospício do Juquery. As biografias contidas nos prontuários apontavam, em linhas gerais, para trabalhadores braçais, sem qualificação profissional, em contínuo deslocamento em busca de emprego, que, ao se defrontarem com o meio novo e hostil das grandes cidades, acabaram desempregados e destituídos do papel de provedor da família. Por consequência, tiveram como destino a sujeição nas malhas do dispositivo psiquiátrico. Tomados como “vagabundos”, aqueles que, vivendo de pequenos expedientes e atividades, inseriam-se no âmbito do não-trabalho (aos olhos dos setores dominantes), eram vistos como portadores de “estigmas físicos particulares”, entre os quais a vadiagem figurava como sinal de outras doenças mentais como a epilepsia, a debilidade mental, a psicose maníaco-depressiva. (ENGEL, 1999, p. 554). </P>
<P>Assim, a população internada no Hospital Nacional de Alienados no final do século XIX era composta, em sua maioria, de setores pobres e miseráveis da população da cidade de Rio de Janeiro: dos 758 internados em 31 de dezembro de 1899, 507 (66,8%) eram provenientes das massas miseráveis da sociedade (Idem, 2001). </P>
<P>A sexualidade, um dos avatares da vida nua moderna (AGAMBEN, 2010, p. 82), também foi uma dimensão na definição das causas, dos sintomas e das consequências das doenças mentais. A sujeição da sexualidade pelo dispositivo psiquiátrico efetivou-se tanto no âmbito individual, com a identificação de comportamentos sexuais anormais como doenças (ENGEL, 1999, p. 559), como no plano social, com a atribuição à função sexual de uma “responsabilidade biológica perante a espécie e a sociedade, através dos mecanismos da hereditariedade” (CUNHA, 1986, p. 159). </P>
<P>Na constituição da normalidade sexual, os psiquiatras brasileiros circunscreveram as práticas sexuais nos limites do prazer conjugal moderado e da finalidade reprodutora. Por conseguinte, manifestações de uma sexualidade que destoavam dos parâmetros conjugal e reprodutivo foram psiquiatrizadas em uma série de diagnósticos: por exemplo, a insaciabilidade do apetite sexual como “ninfomaníaca” e a perversão do interesse sexual como “homossexual” (ENGEL, 1999, p. 558). </P>
<P>Segundo Cunha (1986, p. 144), a questão básica subjacente às internações femininas no Juquery assentava-se nos distúrbios na atuação de papéis sexuais e sociais definidos: mulheres que recusavam o casamento, a maternidade ou a família; que demonstravam independência e rebeldia em relação aos esposos ou pais; que praticavam o livre exercício da sexualidade e a prostituição (considerada forma inferior de degenerescência feminina)
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<P>No interior do Hospício do Juquery, o controle sexual mais forte e mais negativo era destinado às mulheres: enquanto a masturbação masculina era considerada resultado de uma privação forçada da sexualidade, as práticas onanistas nas mulheres eram compreendidas como sinais de degeneração e incurabilidade (CUNHA, 1990, p. 61). Sob o diagnóstico de perversão sexual, também os homossexuais habitam o Juquery, “lugar dos pervertidos, abrigando todas as formas de prática sexual alheias às normas de procriação e da organização familiar” (Idem, 1986, p. 156). </P>
<P>A partir da indistinção entre biológico e político, característica da biopolítica moderna, “onde a vida e a política se identificam” (AGAMBEN, 2010, p. 145), manifestações políticas anarquistas
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também foram capturadas nas tramas do dispositivo psiquiátrico como traços característicos de um tipo de doença mental (ENGEL, 1999, p. 557). Com a constituição de uma nova noção de doente mental, o “litigante”, novos personagens engrossaram a população dos hospícios: os militantes de movimentos político-sociais de contestação à ordem estabelecida. Considerados “fanáticos políticos”, poderiam, pressupunha-se, contagiar, com suas ideias “delirantes” e “doentias”, comunidades inteiras constituídas por indivíduos pertencentes a raças inferiores ou portadores de um baixo nível intelectual e biológico (Ibid., p. 556). </P>
<Endnote>
<P>15 Sobre a psiquiatrização dos anarquistas na Europa do século XIX, pode-se conferir Avelino (2010). Foucault também encerra a última aula de Os anormais (2010, p. 279) propondo, para o curso seguinte, a análise da psiquiatrização da anarquia na segunda metade do século XIX. No entanto, em um deslocamento no interior de suas pesquisas, o curso subsequente, Em defesa da sociedade (1999), trata da genealogia histórica do discurso binário da guerra, da luta de classes, da guerra de raças. </P>
<P>16 Pode-se citar, enfatizando esse caráter impune e ininterrupto de produção de mortes pelo dispositivo psiquiátrico, o número estarrecedor de mais de 60 mil mortes ocorridas no Hospital Colônia de Barbacena (MG) entre 1930 e 1970 (ARBEX, 2013, p. 13). </P>
<P>17 De forma distinta ao estabelecimento da psiquiatria na realidade francesa, que, segundo Foucault (2006, 2010), se constituiu primeiramente, no final do século XVIII, como uma tecnologia disciplinar e, somente a partir de meados do século XIX, adotou uma configuração biopolítica. </P>
</Endnote>
<P>Nessa lógica, o psiquiatra Álvaro Fernandes defendia em sua tese sobre loucura na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1898, que: “O tipo de louco moral no momento presente é o anarquista, que corresponde a um estado definitivo da loucura, nascendo da luta social, da desarmonia entre o capital e o trabalho” (apud ENGEL, 2001, p. 279). Da mesma forma, o psiquiatra Franco da Rocha formulava a associação entre loucura e radicalismo revolucionário a partir da concepção de que períodos de agitação política desencadeariam mais casos de doença mental (ENGEL, 1999, p. 557). </P>
<P>Por fim, o dispositivo psiquiátrico designou, para os negros, as condições mais inferiores de degeneração, os estágios mais primitivos da humanidade (CUNHA, 1986, p. 31). Como a população negra já seria degenerada por sua constituição racial, os negros e os mestiços seriam os mais predispostos à loucura. Nesse sentido, Henrique Roxo compreenderia os altos índices de “dementes” e de “idiotas” entre os pacientes negros do Hospital Nacional de Alienados, no período de 1894-1903, como comprovação da inferioridade psíquica da raça negra (ENGEL, 1999, p. 553). O mesmo médico, relacionando a gênese das doenças mentais às associações entre fatores biológicos e aspectos sociais, atribuiria as principais causas da doença mental entre os negros ao baixo nível intelectual da raça e aos efeitos “perniciosos” da abolição “repentina” da escravidão (Ibid., p. 552). </P>
<P>Embora os negros constituíssem uma parcela imensa da população interna do asilo, recebiam pouca atenção, visto que portariam racialmente os fatores de degeneração. Os milhares de prontuários de pacientes negros do Juquery estavam praticamente em branco, com anotações telegráficas que designam, em sua maioria, diagnósticos de degeneração inferior próprios à condição racial: “idiotia”, “imbecilidade”, “débil mental” (CUNHA, 1986, p. 127). Síntese de uma perspectiva psiquiátrica sobre o negro, o prontuário de Maria José, então com 22 anos, aponta que “os estigmas de degeneração física que apresenta são os comuns da sua raça: lábios grossos, nariz esborrachado, seios enormes, pés chatos” (Ibid., p. 124). </P>
<P>No interior do hospício, ocupando a posição mais radical de aniquilamento da condição humana, encontravam-se as mulheres negras, portadoras da dupla condição de degeneração: ser mulher e ser negra. Diagnósticos e prontuários como o de Martha C. descrevem a mulher negra mais próxima da natureza que da qualidade humana: “estigmas físicos de degeneração muito acentuados: é um perfeito tipo de símio” (Ibid., p. 124). </P>
<P>Como resultado dessa visão patológica da raça, Barbosa (1992, p. 98) revela que, entre 1898 e 1920, negros e pardos foram internados, no Juquery, em proporção duas vezes superior à sua população em São Paulo. </P>
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<P>Práticas e relações de poder no dispositivo psiquiátrico </P>
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<P>A partir da destituição de valor da vida desses grupos de sujeitos, tornada “vida nua privada de todo valor político” (AGAMBEN, 2010, p. 129), em uma relação orquestrada pela psiquiatria, descreveremos algumas práticas e relações de poder no interior do dispositivo psiquiátrico que submeteram esses sujeitos, limítrofes à condição de Homo Sacer, aos riscos da morte. </P>
<P>Como parte do serviço de Assistência Médica e Legal de Alienados, o Hospital Nacional de Alienados foi o principal serviço psiquiátrico na cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX. Com a expansão dos limites da psiquiatria a partir da concepção de anormalidade, o hospital recebeu levas de indivíduos que, como os loucos propriamente ditos, não eram disciplináveis (PORTOCARRERO, 2002, p. 109). </P>
<P>Fundado nos princípios do saber psiquiátrico e dirigido por especialistas habilitados em detectar a loucura e a degeneração, o Hospício do Juquery, instalado pelo governo estadual em 1901, faz emergir o asilamento científico na cidade de São Paulo. Segundo Cunha, o equipamento cumpria, para os grupos de degenerados e alienados (deficientes mentais por problemas de vários tipos, epiléticos incapacitados para o trabalho, sifilíticos em estado terminal, desempregados, negros ex-escravos), a função de “depósito necessário a uma sociedade que recém se organiza para a vida urbana e para as disciplinas da fábrica” (CUNHA, 1986, p. 129). </P>
<P>Nessa perspectiva, Engel (2001) aponta que o maior número das admissões realizadas no Hospital Nacional de Alienados era de pobres ou miseráveis, conduzidos pelas mãos da polícia por supostamente colocarem em risco a segurança e a tranquilidade públicas. Entre 1907 e 1916 realizaram-se, nesse hospício, cerca de 10 mil internações e reinternações de indivíduos diagnosticados pelos médicos legistas da Polícia como alienados e degenerados (ENGEL, 2001, p. 263). Mesma realidade se verificou no Juquery, onde o maior contingente de internos fora enviado diretamente pela Polícia. Barbosa (1992, p. 100) aponta que, entre 1898 e 1920, 99,9% das internações no Juquery foram realizadas por meio da intervenção do Estado, por suas autoridades competentes (chefes de polícia, Secretaria do Interior, Secretaria da Justiça e Segurança Pública). </P>
<P>Se na biopolítica moderna ocorre a indiferenciação entre política (tutela e desenvolvimento da vida dos cidadãos) e polícia (luta contra inimigos internos e externos do Estado) – “a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo” (AGAMBEN, 2010, p. 143) –, pode-se constatar, na correlação entre o dispositivo psiquiátrico (suporte e mecanismo de intervenção estatal) e as exigências de ordenamento social (luta contra os inimigos internos), a presença de tal indiscernibilidade entre política e polícia. </P>
<P>O domínio da psiquiatria sobre indivíduos suspeitos ou diagnosticados como doentes mentais foi mais efetivo sobre os indigentes, conduzidos ao hospício pela polícia, identificados como ameaças à ordem e à moral públicas e sem recursos para as despesas de internação (ENGEL, 2001, p. 273). No Juquery, os internos indigentes eram privados do pleno direito sobre os seus corpos. Trabalhadores compulsórios, pagavam com seu labor a permanência no hospício. Recebiam pouca atenção clínica dos psiquiatras (seus prontuários eram sucintos), tinham a cabeça raspada por medidas de higiene e usavam os uniformes impessoais da instituição (CUNHA, 1990, p. 63). Dessa maneira, o interno asilado era reduzido a uma condição em que o “corpo humano é desligado de seu estatuto político normal” (AGAMBEN, 2010, p. 155), sujeitado a uma condição de exclusão que o confinava e, ao mesmo tempo, o expunha à morte. </P>
<P>Com a medicalização do hospício, os internos foram submetidos à repressão científica no interior do asilo. Entre as ações médico-psiquiátricas desenvolvidas no Hospital Nacional de Alienados, pode-se destacar: banhos prolongados sob vigilância, nos quais os enfermos chegavam a comer e a dormir enquanto se banhavam; pouso do doente no leito, com contenção física pelos enfermeiros; isolamento sob vigilância constante (PORTOCARRERO, 2002, pp. 124, 126 e 127). No Juquery, as tradicionais práticas asilares de coerção e de violência também apresentaram-se com o véu de legitimação científica: capacetes de gelo e banhos gelados ou quentes; tortura com status de tratamento médico (eletrochoques, “traumaterapia” e “malarioterapia” – a inoculação da malária na expectativa médica de que as febres decorrentes fossem benéficas a cura do alienado); camisas de força e celas individuais nos porões, com cerca de um metro de altura (CUNHA, 1990, pp. 96-100). </P>
<P>Se o próprio tratamento não expunha os internos, destituídos da condição de sujeitos de direito pela psiquiatria, ao risco de morte, as condições de vida dos hospícios se encarregariam da tarefa. No Hospital Nacional, a superpopulação, as péssimas condições de higiene e a transmissão de doenças eram os responsáveis pelos índices relativamente altos de mortalidade (ENGEL, 2001, p. 282). No Juquery, as condições gerais não eram diferentes: deplorável higiene, falta de funcionários, alimentação deficiente, precariedade das instalações, além das elevadas taxas de mortalidade por moléstias contagiantes como tuberculose e infecções gastrointestinais (CUNHA, 1986, pp. 15, 93). Segundo Barbosa (1992, p. 100), entre 1898 e 1920, o Juquery constituiu-se como verdadeiro dispositivo de produção de mortes: dos 5.048 internos que aí foram deixados morrer, 59,23% faleceram de fato, permanecendo em média sete anos. </P>
<P>Já os preconceitos e a discriminação contra a população negra foram cientificamente legitimados pela psiquiatria. No interior do dispositivo psiquiátrico, a situação do negro tangenciava a condição de Homo Sacer: (re)transformados em sujeitos matáveis, no Juquery os negros e pardos faleciam em proporções maiores (70,9% e 61,6% respectivamente) que os internos brancos (57,9%) (BARBOSA, 1992, p. 103). </P>
<P>Em suma, com as categorias “alienado”, “degenerado”, “anormal” e demais formas de objetivação psiquiátrica do sujeito, o dispositivo psiquiátrico – por meio da implicação política de aspectos da vida nua de indivíduos e grupos – destituiu diretos e valores de sujeitos, colocando-os próximos à figura de Homo Sacer. No interior do hospício somente se concretizou a matabilidade inerente à condição desses sujeitos quando reduzidos à vida nua. </P>
<P>As cartas e reclamos que permaneceram nos prontuários como provas dos sintomas das suas doenças atestam, na realidade, uma lucidez dos internos sobre a condição semelhante à de Homo Sacer, ignorada por seus contemporâneos. A carta da paciente Hortensia A. de A., por exemplo, captou a essência sacer de sua vida asilar: “Fazem (sic) mais de seis anos que aqui estou sepultada (...) a consideração está acabando, a saúde, a mocidade, tudo foi n’esta casa infernal” (apud CUNHA, 1986, p. 141). Biologicamente ainda viva, mas privada de quase todos os direitos e expectativas de existência, Hortensia já apontava, na condição de doente mental, para a “íntima simbiose com a morte, sem porém pertencer ainda ao mundo dos defuntos” (AGAMBEN, 2010, p. 100). </P>
<P>Considerações finais </P>
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<P>Nesse trabalho destacamos como a psiquiatria, por meio da implicação da zoé em mecanismos políticos de controle social, promoveu a destituição de valores e de direitos da vida de certos sujeitos. Indivíduos e grupos das classes populares, mulheres, homossexuais, negros e anarquistas foram enredados, próximos à condição de Homo Sacer, em políticas de produção de morte por suas características bio-orgânicas e hereditárias, em lugar de serem considerados cidadãos, detentores de direitos, ou seja, em relação a bíos (qualidades distintivas do homem enquanto ser de linguagem e de política). </P>
<P>Como uma instância de privação de direitos e de prerrogativas dos seres humanos, o dispositivo psiquiátrico produziu mortes que, como a do Homo Sacer, não foram consideradas homicídios e, igualmente, não fizeram parte de mecanismos sacrificiais, pois não interromperam a produção da violência e de novas mortes (AGAMBEN, 2010, p. 167)
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. Em suma, a produção em massa de Homines Sacri em inúmeros dispositivos de poder-saber talvez seja o fato distintivo entre a morte suplicial do indivíduo na soberania (FOUCAULT, 1987) e a no biopoder, tanto no interior de dispositivos disciplinares quanto a morte biopolítica. </P>
<P>Especificamente em relação à psiquiatria no Brasil entre fins do século XIX e início do XX, este trabalho sugere, ainda que reconheçamos a necessidade de mais investigações, a implementação e consolidação desse dispositivo de poder-saber, proveniente das sociedades europeias, já em uma conformação biopolítica
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. Por meio de discursos do organicismo e da teoria da degeneração – que compreendiam o negro, a libertina, o indigente, o homossexual, o anarquista como degradantes à espécie – e de instituições disciplinares como o hospício, o dispositivo psiquiátrico assumiu um papel de proteção científica da sociedade, de defesa da sociedade contra os possíveis perigos que pudessem miná-la do seu interior. </P>
<P>Enfim, este trabalho foi uma tentativa de refletir não apenas sobre aqueles que foram feitos viver em dispositivos disciplinares e biopolíticos, mas, sobretudo, sobre os que foram “deixados morrer” no interior dessas relações de poder. Por último, procuramos também sublinhar alguns pontos da história, que ainda se está por construir, da politização da zoé na realidade brasileira. </P>
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<H1>Referências </H1>
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<P>SILVIO DE AZEVEDO SOARES (silvioaz@hotmail.com) é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp, Marília, Brasil) e pesquisador do Observatório de Segurança Pública (OSP) da Unesp. É licenciado em ciências sociais e bacharel em sociologia pela Unesp. </P>
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<P>LUÍS ANTÔNIO FRANCISCO DE SOUZA (lafraso@hotmail.com) é professor livre-docente do Departamento de Sociologia e Antropologia e do PPGCS da Unesp. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e licenciado e bacharel em ciências sociais pela USP. </P>
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<P>Recebido em: 05/04/2018 Aprovado em: 21/02/2019 </P>
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