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<P>O papel do preso nas audiências de custódia: Protagonista ou marginal?
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</Figure><P> </P>
</TextBox><Endnote>
<P>Notas </P>
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<P>1 O presente texto é fruto de reflexões iniciadas durante a pesquisa de mestrado, cujo campo foi realizado entre maio e dezembro de 2015 no Fórum Criminal da Barra Funda em São Paulo, intitulada “Audiências de custódia: Um ponto de inflexão no Sistema de Justiça Criminal?”. </P>
<P>2 Forma segundo a qual os funcionários do Fórum Criminal da Barra Funda referem-se à área/salas onde são realizadas as audiências de custódia </P>
<P>3 Os trechos do texto que fazem referência direta ao campo foram destacados em itálico. </P>
<P>4 Em setembro de 2016 foi inaugurada uma nova ala especialmente para a realização das audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda. As instalações anteriores eram provisórias. Desde 2016, com a inauguração da nova ala, há nove salas de audiência. </P>
<P>5 As audiências foram acompanhadas entre maio e dezembro de 2015. </P>
<P>6 O Dipo funciona como a “porta de entrada” no Judiciário dos atos realizados pela polícia judiciária (polícia civil). É o local onde são recebidos os inquéritos policiais e os autos de prisão em flagrante e onde esses processos ficarão arquivados caso não haja denúncia – caso o Ministério Público faça a denúncia, eles se tornarão processos. </P>
<P>7 Segundo levantamento realizado pelo IDDD no ano de 2017, em que pese as audiências serem realizadas desde 2016 em espaço reformado no Fórum Criminal da Barra Funda que conta com parlatórios para o contato entre defensores e autuados, as entrevistas continuam acontecendo nos corredores das salas de audiência. </P>
<P>8 Os defensores designados recebem uma gratificação financeira para atuar nas audiências de custódia. </P>
<P>9 Embora muito frequentemente se tenha a impressão de que os presos não entendem o que é dito e consideram a audiência um verdadeiro “julgamento”. </P>
<P>10 Em relação ao que diz o Provimento do TJ e a Resolução do CNJ – quanto a procedimentos padrão durante as audiências. </P>
<P>11 Foram observadas no total seis audiências realizadas pelo referido juiz. Apenas no caso narrado foi concedida liberdade provisória, porém mediante pagamento de fiança. </P>
</Endnote><H1>Laís Kuller </H1>
<H1>Doutoranda do PCHS/UFABC </H1>
<H1>Camila Dias </H1>
<H1>Professora da UFABC </H1>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Recebido em: 24/06/2018 Aprovado em: 06/11/2018 </P>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P>Este artigo discute o lugar ocupado pelo preso nas audiências de custódia. A relevância em tese conferida pelas audiências de custódia à presença dessa figura, o preso, se efetiva? Ou valores, estigmas e representações atuam para invisibilizar esses indivíduos? Enfim, qual é a posição do preso frente aos demais atores presentes na cena? A pesquisa realizada no Fórum Criminal na Barra Funda, com base na observação direta de 210 audiências, aponta que, a despeito de mudanças procedimentais, permanece o descrédito atribuído às narrativas dos indivíduos presos, sendo desconsiderados inclusive relatos de violência institucional. </P>
</TH><TH>
</TR><P>The Role of the Prisoner in Custody Hearings: Protagonist or Marginal? aims to discuss the participation of prisoners during custody hearings. Is the relevance in thesis conferred by custody hearings to the presence of this figure, the prisoner, really observed? Or are values, stigmas and representations contributing to invisibilize these individuals? Finally, what is the position of the prisoner in relation to the other actors present in the scene? The research, based on direct observation of 210 custody hearings held at the Barra Funda Criminal Forum, points out that despite procedural changes, the discredit attributed to the narratives of the imprisoned individuals remains, and even reports of institutional violence are disregarded. </P>
</TH><TR>
</Table><TH>
<P>Palavras-chave: audiências de custódia, sistema de justiça criminal, prisão, presos, Justiça </P>
</TH><TD>
</TR><P>Keywords: custody hearings, Criminal Justice System, prison, prisoners, Justice </P>
</TD><P> </P>
<P> </P>
<P>Introdução </P>
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<DropCap>
</P><ImageData></ImageData>
P </DropCap><P>ara contextualizar o surgimento das audiências de custódia é importante mencionar que elas se inserem em um contexto marcado pela persistência de práticas autoritárias e pela consequente violação de direitos, elementos constitutivos do funcionamento do sistema de justiça criminal (SJC) (CALDEIRA, 2000; PINHEIRO, 1991; ADORNO, 1995) e expressos de forma clara no alto número de presos provisórios existentes no país (TEIXEIRA e MATSUDA, 2015; IPEA, 2015). O projeto Audiência de Custódia constitui uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e teve início em fevereiro de 2015 em uma experiência piloto na cidade de São Paulo, a partir da publicação do Provimento Conjunto 03/2015 do Tribunal de Justiça. </P>
<P>O cumprimento das determinações dispostas no referido documento foi possível a partir da cooperação entre Ministério da Justiça, CNJ, Tribunal de Justiça de São Paulo, Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Ministério Público do Estado de São Paulo e Defensoria Pública do Estado de São Paulo. </P>
<P>O modelo prevê a apresentação do preso em flagrante a um juiz de direito, acompanhados por defensor público ou advogado particular, além de representante do Ministério Público, no prazo de até 24h depois de efetuada a prisão em flagrante delito. A audiência tem como principais objetivos verificar a legalidade do flagrante e a necessidade de manutenção da prisão, além de identificar possíveis abusos ou tortura por parte da polícia contra o autuado. </P>
<P>A partir desse cenário, tem-se duas mudanças instantâneas, quais sejam, a apresentação do preso aos representantes da Justiça imediatamente após a prisão e a configuração de uma cena de audiência presencial. Importante mencionar que, antes da implementação desse dispositivo, a apresentação do flagrante policial à Justiça envolvia os representantes das diferentes instituições que compõem a Justiça Criminal apenas por meio de comunicações documentais escritas (KULLER, 2016). </P>
<P>Ou seja, as audiências de custódia permitiram a configuração de uma corporalidade e de uma oralidade até então inexistentes nessa fase pré-processual e, portanto, colocaram o preso em uma posição em que, potencialmente, pode enunciar a sua própria narrativa sobre a prisão em flagrante e, dessa forma, concorrer com a narrativa policial registrada no auto de prisão em flagrante – que, em regra, se converte em narrativa oficial do evento, reproduzida nas diversas fases policiais e judiciais (JESUS, 2016; JESUS et al., 2011). </P>
<P>Nesse sentido, considerando a oralidade e a corporalidade como novas estratégias introduzidas no SJC pelas audiências de custódia, este texto tem como objetivo problematizar a participação dos presos durante as audiências de custódia realizadas na cidade de São Paulo. Quais os efeitos que a sua presença física diante do juiz, do promotor e do defensor provoca em termos da dinâmica da própria audiência e de seus resultados? A relevância em tese conferida pelas audiências de custódia à presença dessa figura, o preso, se realiza? Ou valores, estigmas e representações historicamente associadas às pessoas presas contribuem para invisibilizar e silenciar esses indivíduos? A presença física do preso reforça e recoloca as representações hegemônicas que os atores do SJC formulam sobre a sua “clientela” e, dessa forma, corporifica os estigmas a ela associados? Enfim, qual é a posição do preso frente aos demais atores presentes na cena da audiência de custódia e quais os efeitos que essa presença produz sobre a decisão de manter ou não a prisão? </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>A ‘custódia’
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<P>As
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audiências realizavam-se em um espaço provisório no último andar do Fórum Criminal da Barra Funda
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. Em 2015
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havia seis salas de audiências, mas nem todas eram abertas diariamente. A quantidade de salas abertas dependia do volume de autos de prisão em flagrante recebidos. </P><P>Uma grande movimentação de presos algemados, policiais militares, defensores e funcionários do Fórum podia sempre ser vista nos corredores. No entanto, pessoas desconhecidas e com vestimentas simples, ou seja, sem roupa social, ao se aproximarem da porta que dava acesso aos corredores, imediatamente causavam estranhamento nos guardas. Eram paradas e precisavam se identificar e, em geral, convenientemente dissuadidas de adentrar à área restrita. </P>
<P>Embora de caráter público, os espaços que compõem a área da custódia propriamente dita eram acessíveis apenas para os atores previstos na situação, como funcionários do Fórum, juízes, promotores, defensores e advogados devidamente identificados, já revelando, como apontado por Goffman (2002[1985]), a importância capital das fachadas pessoais, uma vez que é a partir delas que os outros atores definirão a situação e planejarão as possibilidades de ação em resposta. </P>
<P>Nas salas de audiência, todas iguais, tinha-se: (1) a mesa do juiz, localizada em um tablado um pouco mais elevado; (2) a mesa do assistente do juiz, ao lado da mesa do juiz tem-se; (3) uma mesa retangular mais comprida, em frente à mesa do juiz e em cuja ponta fica sentado o preso, posicionado em frente ao juiz; (4) e em lados opostos da referida mesa tem-se os lugares do representante da defesa e do representante do Ministério Público, como ilustrado na Figura 1: </P>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
</TR><P>Figura 1: Sala de audiência de custódia </P>
</TH><TR>
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</TR><P> </P>
</TH><TR>
</Table><TH>
</TR><P>Fonte: Elaborada pelas autoras. </P>
</TH><Figure>
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</Figure><P>De modo geral, o funcionamento das audiências seguia um padrão: os autos de prisão em flagrante chegavam ao cartório do Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (Dipo)
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e eram distribuídos pelas salas em funcionamento. Sobre a mesa do juiz ficavam os autos das audiências que deviam ser realizadas. Era comum que o juiz e o assistente estabelecessem alguma ordem para a realização das audiências. Estabelecida a ordem, defensores e promotores recorriam aos assistentes de promotoria e defensoria para a retirada da cópia dos autos, bem como da folha de antecedentes criminais. O assistente do juiz telefonava para a carceragem e pedia que determinado preso fosse apresentado na sala. Minutos depois, policiais militares apareciam trazendo o preso. </P><P>O defensor público logo se levantava e, de posse do auto de prisão em flagrante, começava a entrevistar o autuado no corredor. Normalmente a conversa se dava com o preso algemado e sob os olhares e ouvidos dos policiais militares da escolta, bem como de toda e qualquer pessoa que estivesse passando pelos corredores no momento. Ou seja, não havia qualquer privacidade
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na produção dessa cena que é de suma importância no que tange ao direito de defesa. </P><P>Vale refletir sobre os efeitos que a ausência de privacidade e a proximidade dos policiais militares produzem na representação do preso, bem como na representação da própria defesa. A ausência de um espaço reservado e específico para a entrevista do preso pelo defensor é reconhecida, pela maioria dos atores, como um problema que precisa ser solucionado. No entanto, esse problema tendia a ser minimizado por todos os atores por conta do caráter recente e provisório do espaço onde aconteciam as audiências. </P>
<P>Enquanto o representante da Defensoria Pública conversava com o autuado do lado de fora da sala, do lado de dentro era muito comum que juiz e promotor conversassem sobre o auto, e, inclusive, definissem previamente os pedidos que fariam e as decisões que tomariam no referido caso. </P>
<P>Em geral, tais contatos prévios se davam sem a presença do defensor público (KULLER, 2016) e era muito raro que tais ponderações fossem feitas com sua participação. Isso pode ser compreendido por dois motivos: primeiro porque aparentemente a atuação do promotor tende a estar mais ajustada à do juiz; segundo, porque, diferentemente dos promotores, nem todos os defensores públicos que atuam na custódia são fixos. Embora exista um quadro fixo composto pela maioria dos defensores que atuam exclusivamente no Dipo, há aqueles que atuam regularmente em outras áreas (não necessariamente na área criminal) e que eventualmente são designados para cumprir escala nas audiências de custódia
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. </P><P>Após a conversa com o preso, o defensor retornava à sala. O autuado entrava em seguida acompanhado pelo policial militar da escolta, que o instruía sobre como devia se portar durante a audiência – “coloca a mão pra baixo, não coloca em cima da mesa” – e que permanecia na sala até o juiz proferisse a decisão. </P>
<P>É importante dizer que o papel social (GOFFMAN, 2002[1985]) imposto aos autuados na referida situação social é de total subserviência: a escolta, a manutenção das algemas, a presença vigilante do policial militar e a imposição de hierarquia dos demais participantes – todos eles – em relação aos indivíduos presos, como se pôde observar em diversas situações. </P>
<P>Ressalta-se que durante a pesquisa, em todas as audiências observadas, havia a presença de pelo menos um policial militar em sala. Tal fato é corroborado por uma pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017) realizada em seis capitais do país, que mostrou que em 86,2% das audiências observadas havia presença de policiais (civis ou militares). Assim, embora não estejam entre os atores do SJC, cuja interação é a base na qual está assentada a audiência de custódia, essas figuras desempenham um lugar de destaque, concreto e simbólico, e guardam uma relação direta com a própria figura do preso. </P>
<P>Trata-se de uma equação absolutamente assimétrica, em cujas extremidades se encontram o policial militar e o preso. A presença de um é considerada essencial para possibilitar a presença do outro. Ou seja, enquanto o preso é considerado uma “ameaça”, o policial militar garante a segurança de todos os atores da cena por meio do estrito controle sobre aquele corpo, cuja presença física diante de defensores, promotores e juízes é introduzida na fase pré-processual pelas audiências. </P>
<P>A cena da audiência de custódia é composta por meio da multiplicidade de interações entre atores posicionados de maneira diferencial nesse microcosmo social. Nesse sentido, as representações dos atores remetem aos encontros produzidos na própria cena, mas tais encontros e os papeis sociais que os atores representam nele remetem às posições diferenciais que os atores ocupam na estrutura social mais ampla. Goffman (1961), ao tratar das organizações sociais, mais especificamente da “organização formal instrumental”, diz que nas disposições sociais das organizações tem-se uma concepção total do participante como um ser humano em diferentes âmbitos, e não apenas enquanto participante de tal organização (GOFFMAN, 1961, p. 153). </P>
<P>Portanto, trata-se de discutir os efeitos da posição social ocupada pelo preso, bem como das representações sociais formuladas pelos atores do sistema de justiça sobre essa figura. Por isso, é importante discutir se a presença do preso em sua corporalidade e oralidade produz efeitos de ruptura ou de reiteração e reafirmação nas concepções e nas práticas decisórias dos atores do SJC. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Os atores: assimetrias conhecidas e reconhecidas </P>
<P> </P>
<P>A compreensão do lugar do preso na cena da audiência de custódia, conforme a abordagem aqui proposta, pretende situa-lo no contexto dos procedimentos regulares da audiência. Portanto, iniciaremos a exposição com uma breve descrição do rito procedimental – os lugares, as falas e os discursos presentes nas audiência de custódia que sinalizam como valores e construções sociais são manejados em cena (SCHRITZMEYER, 2012). </P>
<P>Uma vez que estavam todos na sala, devidamente sentados em seus lugares, o assistente do juiz começava a gravar a audiência, e então o juiz iniciava a condução. Todos os magistrados começavam esclarecendo sobre a finalidade da audiência
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, explicitando o fato de que não caberia naquele momento decidir sobre a culpa ou inocência, mas sim determinar se o autuado deveria permanecer preso ou solto durante o desenrolar de uma possível denúncia. De modo geral, os juízes dirigiam-se diretamente aos presos, perguntavam seus nomes e questionavam sobre suas condições pessoais, como escolaridade, residência, trabalho, renda, família, se eram usuário de drogas, se possuíam antecedentes, se já foram preso antes. </P><P>Tais perguntas são conhecidas como o momento de qualificação do autuado. Perguntas a respeito de eventuais atos de violência cometidos pelos policiais no momento da prisão – o que constitui um dos objetivos definidos no provimento de criação das audiências de custódia – não eram feitas em todas as audiências observadas, e essa omissão também foi identificada no relatório de monitoramento produzido pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) (2016). </P>
<P>Em seguida, os juízes indagavam sobre as circunstâncias da prisão – a forma como essa questão era formulada muitas vezes gerava grande confusão porque os presos acreditavam que deveriam mencionar o que fizeram ou não fizeram, em vez de falar de forma mais detida sobre a abordagem policial. </P>
<P>Após a fase de qualificação do preso, os magistrados abriam espaço para perguntas tanto da promotoria quanto da defensoria, que podiam ser dirigidas aos autuados. Após as perguntas, o juiz solicitava que o promotor de Justiça fizesse oralmente o pedido fundamentado e, em seguida, que o defensor público fizesse o mesmo. Encerrada essa fase, o assistente concluía a gravação. Então, o magistrado começava a digitar sua decisão. </P>
<P>Uma questão curiosa e que deve ser destacada diz respeito ao fato de que alguns juízes, imediatamente após as manifestações fundamentadas, imprimiam a decisão. Esse procedimento sugere que a decisão já estava pronta e que nada do que foi dito e feito durante a audiência foi levado em consideração. Em outros casos, observou-se que o juiz levava um tempo razoável para formular a decisão e então manda-la para a impressão. </P>
<P>Na maioria das vezes, foi possível perceber um padrão nesse sentido de acordo com o juiz em questão. Dessa forma, há juízes que geralmente apresentam decisões prontas e outros que ao menos alteram uma decisão pronta para que constem elementos trazidos durante a audiência. </P>
<P>As regularidades observadas a esse respeito, portanto, parecem relacionadas mais às características pessoais dos magistrados do que a quaisquer elementos pertinentes ao processo decisório em questão: tipo penal, características do réu, da vítima ou do fato; circunstâncias da prisão, etc. Ou seja, quaisquer que fossem essas variáveis, a tomada de decisão do magistrado – quer se trate da formalização burocrática de uma decisão já existente ou de conformação, ajuste ou revisão de uma decisão prévia em face da presença e das oralidades produzidas na cena da audiência – acaba dependendo apenas de suas próprias idiossincrasias. </P>
<P>No que diz respeito aos procedimentos tomados no desfecho da audiência, em geral – mas nem sempre – o magistrado profere oralmente a sua decisão, dirigindo-se diretamente ao preso antes que lhe seja solicitada a assinatura no documento que o concederá liberdade ou o mandará para a prisão. Portanto, a forma de condução das audiências varia significativamente conforme o magistrado em questão e, por isso, observaram-se condutas muito distintas. Porém, relataremos aqui dois tipos que podem ser considerados excepcionais e que, em certa medida, rompem com o “padrão” identificado na maioria das audiências e podem nos dar elementos para refletir sobre o lugar que as audiências de custódia outorgam ao preso. Esses relatos, ainda, possibilitarão refletir sobre os efeitos potenciais e efetivos que sua presença, incluindo sua oralidade, podem provocar na decisão judicial quanto à manutenção ou não da prisão. </P>
<P>O juiz 1, que caracterizamos como formalmente inadequado
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, raramente qualifica os autuados. Além disso, não faz os esclarecimentos iniciais antes de começar a audiência; diz apenas: “O senhor já conversou com o defensor, certo?”, e então segue durante a audiência sem sequer se dirigir ao preso, e ao final não profere oralmente sua decisão. Nunca se observou a realização de perguntas sobre irregularidades na prisão ou violência institucional. Direciona-se ao defensor público ou ao advogado particular. Além disso, as audiências em sua sala costumam ser as primeiras a acabar. Enquanto a maioria dos juízes segue realizando audiências até as 18h, 19h, a sala do referido juiz fica inativa já desde 16h. </P><P>O juiz 2, que caracterizamos como formalmente adequado, faz a qualificação de forma demorada, com perguntas muito específicas. Sempre aborda a questão da violência policial, perguntando inclusive se a violência foi praticada por policial militar ou civil, no local da prisão ou em outro local. No entanto, em todas as audiências observadas nunca se verificou que as informações levadas ao conhecimento do magistrado tenham produzido algum tipo de mudança em suas decisões ou comportamento. A seguir, narramos uma das audiências observadas, a única
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das seis em que o juiz concedeu liberdade provisória, porém mediante pagamento de fiança. </P><P>Um senhor negro, cabelos brancos, 49 anos (embora aparentasse muito mais), chegou à sala de audiência, autuado em flagrante pelo crime de receptação. Possuía uma das mãos enfaixada e quando lhe perguntaram se sofreu violência no momento da prisão disse que não. Durante a fala dos presentes não ficou muito claro, mas o auto de prisão em flagrante parecia dizer que ele foi encontrado com um saco de entulhos e que dentro desse saco havia uma machadinha, que teria sido utilizada para desmontar um veículo roubado que estaria na via pública – tudo isso às 10h da manhã. </P>
<P>O referido senhor era pedreiro, réu primário – com um antecedente datado da década de 80. Conforme ele falava, além de tudo era possível perceber que possuía uma espécie de tique. Ao fim, o(a) juiz(a) disse que concederia a liberdade provisória, porém com o pagamento de fiança. Isso aconteceu na véspera do final de semana, às 17h. Não lhe foi concedido nenhum prazo, o que significa que ele iria para o centro de detenção provisória (CDP) de qualquer forma, mesmo que na semana seguinte a família reunisse o valor necessário e liquidasse a fiança. Na semana seguinte, em conversa reservada com um dos promotores, esse caso foi relatado. Equivocamente foi mencionado que o(a) juiz(a) tinha convertido o flagrante em preventiva. Na mesma hora o promotor disse que deveria ter mais alguma coisa, que não poderia ser receptação simples, e caso o fosse, o(a) juiz(a) teria cometido uma ilegalidade. Entretanto, na verdade, o juiz(a) concedeu liberdade provisória com cautelar de fiança, embora no fim do dia, e véspera do final de semana. O promotor então explicou, aliviado, que nesse caso tudo estava legal, que não se tratava de uma ilegalidade. E emendou, sobre o pagamento da fiança, dizendo que pensam que essas pessoas não vão ter como pagar, mas que em geral a família consegue, e muito mais rápido do que se pensa. </P>
<P>Apesar de as audiências constituírem situações sociais em que há interação, é notório que atores hierarquicamente superiores aos presos – todos aqueles que compõem a cena – demarcam distância social em relação a eles, de forma deliberada ou não. Quando o juiz, a despeito de conceder liberdade provisória, aplica uma fiança que impõe o aprisionamento do indivíduo em razão da evidente falta de condições econômicas para seu pagamento, tem-se uma inversão da função das audiências de custódia. Como exposto na fala do promotor, seria ilegal converter a prisão em flagrante em preventiva, mas a fiança estava dentro dos limites legais. </P>
<P>Em tese, o juiz concedeu liberdade provisória. A questão é que nem sempre as famílias conseguem reunir os valores solicitados no mesmo dia, seja pelo adiantado da hora em que a audiência foi realizada, seja porque não possuem o valor e precisam de tempo para arrecadar o dinheiro. Trata-se, portanto, de um procedimento legal e normativamente correto, mas que produz uma situação que subverte o sentido e os fundamentos da audiência de custódia (KULLER, 2016). </P>
<P>Embora o episódio narrado represente uma exceção do que foi observado durante as audiências, já que a maioria dos juízes tende a substituir a medida cautelar de pagamento de fiança por outras que não envolvam pecúnia, ou ao menos reduzir consideravelmente o valor estipulado para as fianças, é importante marca-lo exatamente porque demonstra como inversões de objetivos são possíveis mesmo dentro de toda uma atuação revestida e investida de legalidade. Percebe-se, assim, a forma como opera a resistência de toda uma cultura inquisitorial e pouco democrática que marca as instituições da Justiça Criminal no Brasil (KANT DE LIMA, 1989; PINHEIRO, 1991; CALDEIRA, 2000). </P>
<P>A partir de casos exemplares e paradigmáticos é possível analisar alguns mecanismos acionados pelos atores do SJC que acabam por reduzir ou minar os fundamentos a partir dos quais as audiências de custódia foram instituídas. As práticas de esvaziamento das audiências são efetivadas por meio da utilização dos dispositivos normativos e legais. É possível observar algumas dessas práticas de esvaziamento normativamente corretas a partir dos casos descritos. </P>
<P>Uma questão inicial é o evidente alinhamento entre os juízes (ao menos, em sua maioria) e os representantes do Ministério Público. Tal alinhamento fica claro quando esses atores debatem – quase sempre sem a presença do defensor público e antes mesmo do início da audiência – os pontos de dúvida dos autos de prisão em flagrante e as posições que serão adotadas durante a sessão. De saída, tem-se um evidente prejuízo da defensoria pública a partir do seu alheamento em relação às tratativas efetivadas entre os outros dois atores, produzindo efeitos diretos na garantia ao direito de ampla defesa. </P>
<P>Nesse sentido, embora exista o já mencionado problema da ausência de um quadro completo de defensores fixos para atuar no Dipo, percebeu-se que, apesar de algumas ressalvas, a Defensoria consiste, no microcosmo que constitui as audiências de custódia, na única força tensora, capaz de produzir conflito e demonstrar a reprodução discursiva própria dos demais atores (CONECTAS, 2017). Quando o defensor não o faz, o que se tem é um discurso linear, uníssono, no qual questões importantes no que tange às possibilidades trazidas pela audiência, especialmente relacionadas aos direitos e garantias das pessoas presas, não são nem sequer colocadas em pauta. </P>
<P>Vale mencionar que o ambiente social (GOFFMAN, 2002[1985]) e a convivência reiterada entre pessoas do mesmo grupo é capaz de fornecer informações de uns participantes sobre os outros, de modo que certos entendimentos sejam tácitos e nem precisem ser verbalizados. Portanto, mais do que diferenças de posturas institucionais, é possível perceber que se estabelecem práticas e discursos reiterados, nas quais o juiz é o ator com maior capacidade para a produção de rupturas (por sua posição central na cena) enquanto o preso, entre todos os atores, é o que possui a capacidade mais limitada nesse sentido. </P>
<P>Foi possível observar que, de modo geral, os demais atores tendem a ajustar a sua atuação de acordo com os posicionamentos e entendimentos já reconhecidos do magistrado, que é quem conduz toda a audiência. Se de um lado o juiz, pessoalmente, constitui figura central que influenciará a conduta dos demais atores, do outro lado os presos, nos mais das vezes, são destituídos de individualidade, representam números, tipos penais. Os autuados raramente conseguem, com base em suas narrativas, alterar os entendimentos e as posturas individuais dos presentes. Portanto, por mais que a presença do preso tencione a cena ao trazer informações adicionais ao auto de prisão em flagrante, tais informações são reiteradamente desacreditadas e desconsideradas. </P>
<P>Importante mencionar que, embora juízes desfrutem de maior capacidade de produzir rupturas no contexto da cena, até por conta do papel social do qual são tributários, estes tendem a utilizar muito pouco essa capacidade (FOUCAULT, 2014[1975]). Por outro lado, os defensores públicos engajados, apesar de possuírem baixíssima capacidade de produzir rupturas reais, são os que, na quase totalidade dos casos, promovem o conflito e a revisão das posições e narrativas dos demais atores
<Link>12</Link>
. </P><Endnote>
<P>12 Isso no que diz respeito a rupturas que levem a uma transformação das práticas tendo em vista a ampliação da observação dos direitos e garantias das pessoas presas, porque no que diz respeito à manutenção das posturas, é evidente o poder infinitamente superior dos juízes. </P>
<P>13 O plantão judiciário é uma forma de oferecer a casos urgentes atendimento imediato, em horários e/ou dias em que não há expediente no Fórum. Quando as audiências começaram a ser instituídas o plantão judiciário recebia todos os flagrantes realizados na Comarca da Capital, seguindo o procedimento formal e escrito. Atualmente os plantões funcionam aos finais de semana e feriados e já realizam audiências de custódia. </P>
<P>14 Na obra Crimes sexuais e sistema de justiça (2000), sobre o processamento do crime de estupro no SJC, Joana Vargas observou que os indivíduos identificados segundo características estereotípicas associadas à criminalidade – negros, pobres – eram prontamente acusados, processados e condenados. Em contrapartida, para denúncias contra indivíduos de status social elevado e brancos, era observada muito mais cautela por parte dos atores do SJC. </P>
<P>15 O normal é que em sede policial as pessoas pobres não contem com assistência jurídica, pois não há defensores de plantão para essa função. </P>
<P>16 A identidade real é baseada na forma segundo a qual o indivíduo interage socialmente e, portanto, é acessível a todos. Já a identidade virtual possui um caráter mais subjetivo, porque trata-se daquilo que em vez de revelarmos, omitimos. Mas nas audiências, no processo de investigação da vida e da biografia do preso, mesmo características não visíveis serão reveladas. </P>
<P>17 Aparentemente, no crime de receptação e furto de veículo há um investimento da autoridade policial após o encontro de um veículo furtado, por exemplo, em atribuir “autoria” a alguém. Impossível dizer se tal comportamento se justifica por normas internas das corporações. Fato é que, como pôde-se perceber muitas vezes para esse tipo de crime, foram apresentadas pessoas com passagens pela polícia antigas – o que de certa forma corrobora a narrativa dos autuados. </P>
<P>18 Essa prática é comumente relatada pelos presos. Narram que ao serem abordados pelos policiais e confirmado algum antecedente criminal (mesmo de muitos anos atrás), especialmente pelo mesmo tipo penal, são levados para a delegacia para “segurar o B.O.” sem que haja nenhuma ligação entre os presos e a cena do crime – segundo a fala dos mesmos. Essa prática foi denunciada na maioria das vezes quando se tratava do crime de receptação. </P>
<P>19 Os cintos, e também os cadarços, são retirados porque não é permitido aos presos portarem nada que possa ser utilizado para colocar em risco a própria vida ou de outros presos. Os acessórios são removidos por medida de segurança. Ocorre que no caso de os presos serem liberados, tais itens não são devolvidos. </P>
<P>20 Dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e do IDDD – embora durante as observações o crime de furto tenha sido o mais frequente. A diferença talvez se explique pela questão já mencionada da ordem em que são escalados os autos de prisão e que varia dependendo do magistrado que preside a sessão. </P>
<P>21 Durante as audiências acompanhadas era frequente a apresentação de usuários de drogas presos pelo crime de tráfico. Essas pessoas apareciam muitas vezes descaças e bastante sujas. Não raro eram provenientes da região da cracolândia e arredores. </P>
<P>22 Embora os autos em geral contenham o depoimento dos acusados, nem sempre esse relato é repetido em juízo, e tampouco tais narrativas são integralmente reconhecidas pelos presos, que frequentemente dizem que apenas assinaram o papel. </P>
</Endnote><P>Nesse sentido, por exemplo, observou-se mudança na argumentação de alguns promotores de justiça, aparentemente causada pela atuação dos defensores públicos mais engajados. Como a defesa é a última a se manifestar em cena, e por conta do exame minucioso dos autos realizado por alguns defensores, percebeu-se que sustentações orais mais econômicas de parte dos promotores de justiça deram lugar a manifestações mais cautelosas e detalhadas. </P>
<P>A partir das observações aqui descritas, podemos dizer que atender ao protocolo que define os procedimentos das audiências de custódia de maneira formalmente adequada não significa necessariamente uma ruptura com o papel e a posição que tradicionalmente se atribui ao preso. O descrédito que os demais atores atribuem a sua posição acaba por mitigar sua fala e voz, impondo ao preso a permanência no lugar que tradicionalmente ocupa no SJC, o lugar do silenciamento e da invisibilidade. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>O preso em cena: protagonista ou marginal? </P>
<P> </P>
<P>Os aspectos centrais capazes de conferir status inovador e democrático às audiências de custódia dizem respeito ao debate oral que substitui o tradicional procedimento segmentado e escrito do plantão judiciário
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, bem como a presença e a possibilidade de ser ouvida a voz do preso. Nesse sentido, em tese, o novo instituto confere ao preso um papel aparentemente relevante, podendo-se até falar em protagonismo. </P><P>Na prática, tal formulação não deixa de ser verdade, considerando a multiplicidade de categorias, conceitos e sentimentos que serão manipulados pelos atores jurídicos em seus discursos e que variam conforme as características apresentadas pelos indivíduos autuados. Segundo o discernimento dos atores jurídicos, tais características constituem aspectos tão ou mais relevantes do que o tipo penal pelo qual o preso foi apresentado em audiência
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(VARGAS, 2000). </P><P>Quanto ao exposto acima, é fundamental relembrar que as audiências de custódia não se referem ao mérito (ou seja, ao julgamento da culpa ou inocência do acusado) e devem avaliar apenas se estão presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva. Contudo, o que se observa é justamente que as características pessoais e sociais do autuado, bem como sua trajetória de vida e suas possíveis (ou ausentes) relações, adquirem importância central na decisão do juiz em detrimento de outros elementos, tais como o ato que ensejou a acusação e as próprias circunstâncias da prisão. </P>
<P>O artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP), que versa sobre as justificativas da prisão preventiva, restringe o uso desse expediente, vedando sua ampla utilização sem qualquer justificativa. O problema é que o CPP insere um escopo bastante amplo de possibilidades para a decretação da prisão. Termos vagos, como “garantia da ordem pública/ordem econômica”, “conveniência da instrução criminal” e “aplicação da lei penal”, constam no texto e abrem margem para que o juiz construa uma interpretação a partir de elementos subjetivos, os quais darão amparo à decisão de manter o indivíduo aguardando o julgamento preso. </P>
<P>Portanto, o que se percebe em relação aos atores diz respeito ao que Foucault (2014[1975]) apontou como a tentativa de realizar um cálculo – embora pouco preciso – que leve em consideração não só a necessidade de manutenção da prisão por conta do crime ora imputado, mas, sobretudo, que anteveja o delito futuro, para o qual a prisão funcionaria como mecanismo de contenção e controle. </P>
<P>Além disso, o parágrafo único do artigo 312 do CPP autoriza a decretação da prisão preventiva quando houver descumprimento, pelo autuado, de medidas cautelares anteriormente impostas. Assim, tem-se que, para justificar os pedidos de prisão, na maioria das vezes, os operadores recorrem aos estereótipos associados comumente aos indivíduos “criminosos” (MISSE, 2010) e que devido à imprecisão constitutiva do texto legal, são facilmente manipulados para sustentar uma narrativa que seja convincente para os atores jurídicos que compõem a situação (JESUS, 2016). </P>
<P>Nesse sentido, a apresentação do preso em juízo poderia, em alguma medida, contribuir para uma contestação mais contundente de tais narrativas, apoiadas em construções estereotípicas comumente formuladas pelos atores policiais e ratificadas pelas demais instâncias da Justiça Criminal (JESUS et al., 2011). De modo geral, tais narrativas parecem ignorar a realidade, as relações materiais e as construções históricas sob as quais encontra-se forjado um tipo específico de sociedade, e, mais que isso, a produção e contenção de um tipo específico de criminalidade (TEIXEIRA, 2012; MISSE, 2010). </P>
<P>As potencialidades de dar voz ao preso no contexto das audiências de custódia não podem ser negadas, especialmente segundo um aspecto formal. Anteriormente, esses indivíduos eram presos em flagrante, tinham a prisão preventiva decretada por meio de um papel e seguiam por meses sem qualquer contato com juízes ou advogados
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. As audiências exigem que eles sejam apresentados em juízo em até 24 horas após a prisão em flagrante delito e que seja oferecida a eles oportunidade de falar. Contudo, é necessário problematizar tais potencialidades, a efetividade e os limites dessa fala no contexto de interação entre os atores do SJC. </P><P>Consideramos que o preso ocupa, na estrutura da Justiça Criminal aqui descrita, um lugar de fala bastante frágil, apesar dos esforços empreendidos no sentido tornar sua voz audível. Isso porque sua condição de descrédito está dada pelo papel social que representa e que é reconhecido por todos. As algemas e a escolta feita pelo policial militar evidenciam a identidade perigosa e ameaçadora que o constitui e que ele representa na audiência. Além disso, expressa de forma inequívoca a posição profundamente assimétrica do preso frente aos demais atores presentes na audiência. Segue-se, dessa forma, que a sua identidade possivelmente será desacreditada, já que restará pouca ou nenhuma dúvida a respeito da sua condição de criminoso. </P>
<P>O descrédito será ainda mais contundente se o indivíduo for portador de características que deixem transparecer, ou que reforcem, a sua identidade virtual
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, normalmente associada a conceitos considerados socialmente negativos, como tatuagens, vestimentas, etc. Isso acontece porque o criminoso representa o que se considera desviante na sociedade, aquele que rompe com as expectativas sociais e é capaz de colocar todos a sua volta em risco. </P><P>A partir de tal premissa se constrói um discurso binário que coloca em franca oposição os indivíduos criminosos – o outro – e nós, as potenciais vítimas (CALDEIRA, 2000, p. 171; GARLAND, 2008, p. 386). Com base nessa lógica binária e excludente tem-se que que quaisquer informações confidenciais ou intervenções na vida dos indivíduos criminosos são toleradas em nome da segurança pública e do bem comum. </P>
<P>Tais construções sociais são claramente observadas nas audiências de custódia. A categoria criminoso aparece como incompatível com a categoria cidadão (CALDEIRA, 2000). Isso porque um ato criminoso parece inadequado ao estereótipo construído de cidadão, razão pela qual tal indivíduo carregará uma marca, um estigma (GOFFMAN, 2004) e apresentará uma identidade desacreditada, passível de ser questionada pelos outros atores presentes na audiência de custódia. </P>
<P>Esse é um dos elementos que, de forma bastante eloquente, reduz a potência do novo instituto em termos das rupturas que podem operar no âmbito do funcionamento do sistema de justiça e na conformação de uma outra lógica de funcionamento. No sentido da reprodução das hierarquias que tradicionalmente marcam as posições de fala no SJC, as narrativas dos presos são o tempo todo questionadas, enquanto as narrativas policiais tendem a ser preservadas (JESUS, 2016; KULLER, 2016). </P>
<P>Isso acontece em muitos casos de violência relatados por alguns presos (IDDD, 2016; CONECTAS, 2017; FBSP, 2017) e que muitas vezes não produzem qualquer efeito, porque o juiz entende que não se trata de um depoimento confiável (GOFFMAN, 2004[1988]).Por exemplo, quando, a despeito de marcas contundentes de violência, perceptíveis visualmente nos presos, o mero relato de resistência à prisão no auto parece explicar tudo e justificar inclusive os excessos; ou quando, repetidamente, os presos por crimes como tráfico alegam que eram “olheiros” e que os policiais chegaram a pedir dinheiro para o responsável pela boca de fumo para soltá-los, mas que não tiveram sucesso e então o levaram para o distrito policial (DP); ou quando, no auto de prisão em flagrante, os policiais alegam que tiveram entrada franqueada na casa dos autuados (apesar de não possuírem mandado judicial) e, mesmo quando em audiência tal informação é contestada pelos presos, ainda assim o juiz considera que a investida é legal, em razão da apreensão de alguma quantidade de entorpecente. </P>
<P>Ou seja, as inúmeras ilegalidades ocorridas no momento da prisão, motivos suficientes para colocar todo o trabalho policial sob suspeição, são muitas vezes ignoradas porque são narrativas enunciadas por indivíduos cuja identidade é desacreditada, o que faz com que o potencial trazido pela sua oralidade acabe sendo destituído de credibilidade. </P>
<P>Nesse sentido, outros exemplos podem ser dados a partir de casos envolvendo crimes de receptação e furto de veículo
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. Nesses casos, é bastante comum a narrativa trazida pelos presos de que estavam em via pública quando foram abordados por policiais e que estes perguntaram se possuíam alguma passagem pelo sistema carcerário. Ao responderem que sim (mesmo crime pelo qual foram apresentados em audiência), os policiais diriam “vai segurar o B.O.”
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, e então os encaminhariam até o DP. Para todas essas narrativas, alguns juízes fazem os seguintes questionamentos: “O senhor conhecia os policiais que efetuaram sua prisão?” e “então porque os senhores policiais teriam interesse em prejudica-lo?”. Ou, ao final de uma audiência em que foram apresentadas denúncias dessa natureza pelo preso, alguns juízes costumam dizer: “É o seguinte, por hora eu vou ficar com a versão dos senhores policiais e o senhor vai ficar preso”. </P><P>Assim, nas situações sociais que constituem as audiências de custódia, cada um dos atores representará um papel social que de certa forma determinará a atuação dos demais participantes. Pode-se dizer que defensores, promotores e juízes possuem uma aparência física bastante semelhante, pelo tipo de vestimenta, postura, etc. Logo, ao se adentrar a sala de audiência sem conhecimento sobre a disposição dos atores nesse espaço, ou sobre os atributos discursivos tributários do papel social que desempenham, seria possível facilmente confundir os três atores anteriormente citados. Algo completamente diferente ocorre com o preso. </P>
<P>Os presos de forma alguma se confundem com os demais atores. São marcadamente diferentes, possuem características visíveis, como vestimentas, corte de cabelo, calças caindo
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, tênis sem cadarço, os pés muitas vezes descalços. Além de todos esses elementos que conformam a sua fachada (GOFFMAN, 2002[1985]), as algemas são o marcador mais específico da sua condição e delimitam claramente as assimetrias presentes nessa cena. São as algemas que carregam de forma mais contundente a marca do estigma que aqui tratamos. As algemas marcam a diferença entre esses cidadãos, que são em sua maioria pobres e negros, de outros cidadãos igualmente pobres e negros. As algemas constituem símbolo da destituição da condição de liberdade e de cidadania para tais indivíduos e denunciam de forma visível e contundente suas identidades desacreditadas (Idem, 2004[1988]). </P><P>A assimetria de posições entre os atores é notória e a tensão permanece durante toda a audiência. Em um dos casos, um dos presos, ao responder a uma pergunta do promotor de justiça, referiu-se a ele como “cara”, o que foi imediatamente rechaçado pelo promotor que respondeu: “Cara não! Eu sou promotor de justiça. Você me respeite e não se refira a mim como os sujeitos do bar aonde você trabalha”. </P>
<P>O promotor recolocava, dessa forma, a distinção do papel social a ele investido e que fora momentaneamente “ameaçado” pela oralidade do preso. Assim, os atributos estigmatizados dos indivíduos presos funcionam nesta situação social também como marcadores da normalidade dos demais participantes (Idem). </P>
<P>Portanto, além das características visíveis associadas culturalmente a aspectos negativos, como cor da pele, pés descalços, roupas sujas e tatuagens, mais um item de descrédito é inserido nesse contexto: simbolicamente, as algemas; juridicamente, o crime; concretamente, a possibilidade de perda da liberdade e da cidadania. Tais indivíduos constituem-se como desacreditados desacreditáveis (Idem), já que os atributos visíveis denunciam e corrompem automaticamente qualquer possibilidade de empatia ou aproximação entre nós e eles. </P>
<P>Nas audiências, os crimes de maior incidência são, nessa ordem: roubo, tráfico de entorpecentes e furto
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– ou seja, crimes contra o patrimônio e lei de drogas –, e as características dos indivíduos que são apresentados presos seguem um padrão visível e estereotipado do “criminoso marginal” (COELHO, 1987), já que o trabalho policial baseado no sigilo e na suspeição sistemática (KANT DE LIMA, 1989) está assentado na observação e contenção desse tipo de criminalidade. Tal dinâmica é o retrato de como, na prática, opera o que Foucault (2014) chamou de gestão diferencial dos ilegalismos (TEIXEIRA, 2012). </P><P>É importante ressaltar que as audiências permitem, a partir da apresentação do preso e da escuta de sua narrativa, desconstruir outras narrativas historicamente prevalentes, como as narrativas essencialmente pautadas no testemunho policial, assentadas em construções como a fé pública (JESUS, 2016). Tal desconstrução, no entanto, será menos ou mais exitosa a depender não só das características aparentes dos indivíduos apresentados – identidades reais – mas, especialmente, das biografias que passam a ser reveladas, seja a partir dos autos, das perguntas sobre a vida pregressa, seja com base em sua folha de antecedentes criminais (FA). </P>
<P>Assim, a trajetória de um indivíduo é parte importante na construção e manutenção de sua identidade social. Ela tanto pode contribuir para reforçar e fortalecer a identidade socialmente construída pelo indivíduo na sua relação com outros, ou, ao contrário, ser fator preponderante para o descrédito e deslegitimação da identidade que se tenta manter. Nesse sentido, a qualificação em audiência e a folha de antecedentes reconstituem parte essencial da biografia do preso e são fontes de informações relevantes porque desnudam aquilo que nem sempre está visualmente acessível aos outros componentes da cena (GOFFMAN, 2004[1988]). Portanto, podem trazer informações que colocam em xeque a identidade social que os indivíduos tentam manter e que, por isso mesmo, em geral se tenta omitir. </P>
<P>Contudo, uma vez que o sujeito se encontra emaranhado nas redes constituídas pelo SJC, há a possibilidade sempre presente de que a sua vida seja investigada, devassada e que elementos “desabonadores” da sua biografia – e, portanto, de sua identidade socialmente construída – venham à tona, fragilizando o papel que o indivíduo desempenha nas interações sociais cotidianas e colocando em risco de rupturas essas relações. Na maioria das vezes, mais relevante do que o crime em si é a capacidade dos atores jurídicos de mensurar, imaginar e construir uma representação sobre o grau de periculosidade do indivíduo preso para a sociedade e, a partir de um cálculo pouco claro ou preciso, decidir sobre a necessidade de manutenção da prisão. </P>
<P>Na manutenção de uma identidade socialmente construída é necessário que haja compatibilidade entre a biografia, a aparência e a maneira do indivíduo. No caso dos presos na cena das audiências de custódia, as características visíveis relacionadas a determinados estereótipos acabam por reforçar as características não visíveis, como a escolaridade, a própria biografia, os antecedentes. Entretanto, quando isso não acontece cria-se uma outra tensão na cena, já que se tem dois níveis de informações conflitantes, e então é necessário tentar entender o porquê de tal ruptura (Idem, 2002[1985]). Um caso pode ilustrar as tensões produzidas na cena da audiência de custódia quando há um descolamento entre os elementos constitutivos da identidade social do preso. </P>
<P>Um exemplo aconteceu em uma das tardes, quando um autuado foi apresentado por furto de um aparelho de som que se encontrava dentro de um automóvel Gurgel. Paulo entrou na sala de audiência causando desconforto entre todos os presentes. Tinha aquele estereótipo
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típico do usuário de drogas que frequentemente aparecia na custódia. Sua pele estava toda coberta por uma espécie de “graxa” preta, de modo que nem era possível identificar a cor de sua pele. Era um homem alto, bonito (foi o que todos comentaram na sala: “parece modelo”, “um banho já resolvia”), forte. Durante a qualificação falava bem, afirmou ser usuário de crack e que há algum tempo estava sem contato com a família. Disse também que possuía formação superior em engenharia agrônoma, mas que nunca exerceu a profissão. No entanto, após uma circunstância pessoal muito difícil vivida há quase dez anos, iniciou o uso de drogas, vindo a se tornar dependente e a perder tudo que tinha na vida. Afirmou morar na rua há oito anos. Sua audiência demorou mais que o habitual. Havia curiosidade por parte dos presentes em entender como uma pessoa “como elas” estava sentada em uma sala de audiência, acusada de um crime – tratava-se de uma situação pouco provável e nada natural do ponto de vista dos atores na sala. Todos, sem exceção, demonstraram grande empatia com o rapaz, incentivando-o a iniciar e seguir um tratamento. O juiz concedeu liberdade provisória e disse ao final da audiência: “Não desiste não, cara... Você é engenheiro agrônomo”. </P><P>O caso mencionado representa uma exceção no que diz respeito às trajetórias dos indivíduos presos, especialmente quanto à formação acadêmica. Justamente por ser portador dessa biografia excepcional – para alguém que desempenha o papel de preso na cena da audiência – percebe-se que houve empatia por parte de todos os participantes. Embora o juiz em questão não tenha o costume de assumir uma postura indiferente em relação aos presos, a audiência mencionada fugiu aos padrões das outras observadas. Pode-se afirmar que o fato de o preso ter formação em engenharia agrônoma foi o elemento desencadeador dessa ruptura da cena e, portanto, do seu rearranjo em outros termos que não aqueles padronizados. </P>
<P>Fatores como o tempo superior oferecido por todos os presentes para a escuta do preso (em geral cortados pelos magistrados quando se alongam na sua argumentação) e a curiosidade sobre a vida e trajetória do autuado, motivada aparentemente por um desejo de compreensão e justificação do ato delitivo, muito mais do que ímpeto acusatório, caracterizaram uma cena bastante atípica neste caso. </P>
<P>Tem-se, portanto, que as audiências de custódia podem ser lidas enquanto cenas que possibilitam a observação das representações desempenhadas pelos atores a partir das condições impostas pelo papel social do qual são tributários. Além disso, pode-se identificar as situações que provocam rupturas, reconhecer onde residem as principais assimetrias e em quais condições os atores – todos eles – impõem sua condição de normalidade, expondo os indivíduos estigmatizados apresentados em audiência em sua condição praticamente irreversível de desacreditados (Idem, 2004[1988]). Pode-se, ainda, reconhecer os diferentes pesos atribuídos tanto à aparência, quanto aos elementos menos evidentes, como aqueles que compõem a biografia e que podem emergir na cena da audiência mesmo que tenham sido omitidos pelo sujeito na apresentação da própria identidade. </P>
<P>Dessa forma, as condições pessoais dos indivíduos apresentados em audiência de custódia serão manejadas pelos atores em cena tendo como eixo discursivo a compatibilização entre a sua identidade real e a identidade virtual (Idem). Constituem assim conceitos elásticos, tanto quanto a análise pretensamente objetiva da gravidade de um crime, ou da necessidade de manutenção da prisão levadas a cabo pelos atores do SJC. Portanto, de uma forma ou de outra, seja para a concessão de liberdade ou para a conversão do flagrante em prisão preventiva, as características pessoais dos autuados serão manejadas de forma definidora para o desfecho da situação (KULLER, 2016). </P>
<P>Considerações finais </P>
<P> </P>
<P>Para compreender como, a despeito dos avanços legais e institucionais, permanecem como marca do SJC as práticas autoritárias, inquisitoriais e violentas, é necessário identificar e apreender os contextos nos quais tais práticas podem ser observadas (VARGAS, 2000; CALDEIRA, 2000; CONECTAS, 2017). Assim, a observação específica de uma cena particular na qual atores interagem a partir de suas posições institucionais e legais permite também reconhecer os limites das propostas formais de mudanças, por meio da maneira segundo a qual elas são implementadas (KULLER, 2016; IDDD, 2016). Nesse sentido, fica evidente como os atores – sobretudo aqueles posicionados em lugares privilegiados – acabam por inserir tais mudanças dentro de um marco interpretativo e representativo tradicional, burocratizando os processos que apontariam para possibilidades de rupturas e, dessa forma, ajustando os novos procedimentos à antigas fórmulas e à antigas estruturas de poder e de reprodução de dinâmicas discriminatórias e excludentes. </P>
<P>Obviamente, sem as audiências de custódia, as narrativas dos presos – dificilmente constantes nos autos de prisão em flagrante
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– sequer seriam conhecidas. Nem sequer seus corpos e seus rostos, com suas expressões, suas marcas concretas e simbólicas, teriam possibilidade de irromper nos trâmites burocráticos do sistema de justiça. Porém, é importante perceber que, a despeito das audiências contribuírem para trazer à tona essas contranarrativas, seu impacto é limitado pela naturalização de elementos que atravessam a estrutura profundamente assimétrica da nossa sociedade. </P><P>Nesse sentido, a violência policial contra pessoas acusadas de crimes, por exemplo, pode ser perpetuada, assimilada e acomodada dentro de um instituto que se pretende garantidor de direitos e que tem como um de seus objetivos justamente prevenir que abusos e arbitrariedades sejam cometidos na prisão em flagrante (FBSP, 2017). </P>
<P>A despeito de possibilitar que a corporalidade e a narrativa do preso sejam expressas na audiência, fica evidente que as cristalizações associadas ao processo de sujeição criminal (MISSE, 2008, 2010) acabam por serem manejadas e enquadradas pelos atores do SJC a partir das representações tradicionais que reproduzem e reforçam os estereótipos e os estigmas associados a esses indivíduos. </P>
<P>Dessa forma, a corporalidade tornada possível ao preso é enquadrada por meio da figura do policial militar, armado, vigilante e atento; da imposição de uma posição submissa e subserviente que as algemas expressam concreta e simbolicamente. O enquadramento que se produz sobre a voz do preso, por sua vez, ocorre por meio do descrédito atribuído a sua fala, da desqualificação de suas narrativas frente a outras narrativas consideradas mais verdadeiras e confiáveis – em geral, a narrativa dos policiais que representam o Estado (JESUS et al., 2011; JESUS, 2016; CONECTAS, 2017). </P>
<P>Nesse sentido, a centralidade da posição do preso na cena da audiência de custódia está referida às potencialidades do seu reconhecimento pelos demais atores do SJC. Tais potencialidades, contudo, encontram-se claramente limitadas pela reafirmação de estereótipos e estigmas construídos a partir da trajetória pessoal, da aparência física e da biografia do indivíduo. Em geral, esses elementos constitutivos da identidade social do sujeito não são capazes de romper com as representações que tradicionalmente os atores do sistema de justiça produzem sobre os indivíduos que são tragados pelas instituições a qual eles pertencem. </P>
<P>Portanto, as possibilidades trazidas pela corporalidade e pela oralidade do preso na audiência de custódia estão diretamente relacionadas aos elementos que o indivíduo tem condições de mobilizar e que podem romper com o lugar que ele assume e que lhe é concedido na própria audiência. Considerando que as representações estereotípicas que os atores do SJC constroem acabam por delimitar claramente o lugar “marginal” desacreditado e desacreditável do preso nas audiências de custódia, é justamente na sua maior ou menor capacidade de mobilizar elementos biográficos ou características pessoais que produzam rupturas nessas construções sociais e institucionais que reside a possibilidade de que a sua corporalidade e oralidade assumam protagonismo na cena da audiência, conformando novas práticas e significações. </P>
<P> </P>
<H1>Referências </H1>
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<P>SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Jogo, ritual e teatro: Um estudo antropológico do Tribunal do Júri. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. </P>
<P>TEIXEIRA, Alessandra. Construir a delinquência, articular a criminalidade: Um estudo sobre a gestão dos ilegalismos na cidade de São Paulo. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. </P>
<P>________; MATSUDA, Fernanda Emy. Do Carandiru aos Centros de Detenção Provisória: Sobre gestão prisional e massacres. In: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; MACHADO, Maíra Rocha (orgs.). Carandiru não é coisa do passado: Um balanço sobre os processos, as instituições e as narrativas 23 anos após o massacre, Vol. 1. São Paulo: FGV Direito, 2015, p. 399-418. </P>
<P>VARGAS, Joana. Crimes sexuais e sistema de justiça. São Paulo: IBCCrim, 2000. </P>
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</TR><P>LAÍS KULLER (laisfigueiredo11@gmail.com) é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) da Universidade Federal do ABC (UFABC, São Bernardo do Campo, Brasil) e mestre pelo mesmo programa. Possui graduação em sociologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP, Brasil). </P>
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<P>CAMILA DIAS (camila.dias00@gmail.com) é docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PCHS) da UFABC. É pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (LabGepen) da Universidade de Brasília (UnB, Brasil) e associada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Possui doutorado e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e graduação em ciências sociais pela USP. </P>
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