A sociologia da punição de Loïc Wacquant como abordagem crítica no campo do direito e desenvolvimento

Adriana Silva Gregorut

Doutoranda e mestre em direito e desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV, São Paulo, Brasil). Tem graduação em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, Brasil)., Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil



Resumo

O presente trabalho tem como objetivo sugerir uma aproximação entre duas abordagens, a da sociologia da punição de Loïc Wacquant e a abordagem institucional de John Sutton, como chave analítica para a realidade do hiperencarceramento no Brasil. Para tanto, delimitaremos a proposta teórica de Wacquant e, em seguida, apresentaremos uma análise da crítica institucional à sua abordagem. Por fim, propomos um ensaio de como seria possível adequar ambas as abordagens para uma análise crítica do regime carcerário brasileiro que considere as particularidades locais, de forma a contribuir para o debate no campo do direito e desenvolvimento.

Received: 2018 June 28; Accepted: 2019 February 13

5638. 2020 ; 13(1)

Keywords: Palavras-chave criminologia crítica, direito, desenvolvimento, hiperencarceramento, controle social.
Keywords: Keywords critical criminology, law, development, hyper-incarceration, social control.

Introdução

O fenômeno da expansão da violência urbana e do hiperencarceramento em países do Sul Global reflete a importância das relações entre ordens institucionais e desenvolvimento econômico e social. Entretanto, trata-se de tema que não tem ocupado espaço central nos debates no campo do direito e desenvolvimento.

Em contraposição, pesquisas elaboradas no contexto da sociologia da punição poderiam trazer a esse campo contribuições importantes para analisar o papel do direito e das instituições – em especial, o regime penal – nos diferentes marcos socioeconômicos e nas condições de vida das populações dos países em desenvolvimento, e vice-versa. Nesse contexto, destaca-se a contribuição do sociólogo Loïc Wacquant para pensar como o modelo de Estado neoliberal influenciou a configuração de um regime penal baseado no hiperencarceramento e na atrofia do bem-estar social como instrumentos de uma dupla regulação das populações pobres.

Porém, sua formulação teórica tem sido criticada, por generalizar o referido diagnóstico, construído com base na realidade do sistema carcerário nos EUA e transportado para a análise da realidade de outros países. Uma das críticas mais contundentes vem de uma abordagem institucional, segundo a qual as respostas dos países à exportação do modelo neoliberal hegemônico são diversas e devem ser analisadas a partir do contexto institucional de cada país.

O presente trabalho tem como objetivo propor uma aproximação entre as duas abordagens como proposta de chave analítica para a realidade do hiperencarceramento no Brasil.[1] Para tanto, delimitaremos a proposta teórica de Wacquant para, em seguida, apresentar uma breve análise da crítica institucional à sua abordagem. Por fim, propomos um ensaio de como seria possível adequar ambas as abordagens para uma análise crítica do regime carcerário brasileiro que considere as particularidades locais, de forma a contribuir para o debate no campo do direito e desenvolvimento.

Loïc Wacquant: um estudo crítico do cárcere no neoliberalismo

Loïc Wacquant desenvolve sua pesquisa sobre o fenômeno do hiperencarceramento nos EUA a partir de uma abordagem crítica que, assim como outros autores, se esforça em “qualificar esse novo momento na história da punição, relacionando expansão carcerária, neoliberalismo, encolhimento dos gastos sociais do Estado, ampliação de investimentos públicos e privados nos dispositivos de controle do crime, entre diversos fatores” (GODOI, 2017, p. 24).

Trata-se, portanto, de abordagem que se insere em um conjunto de variadas leituras que identificam a imbricação entre o neoliberalismo e a questão criminal. Tais abordagens teóricas evocam elementos como: (i) a transição para um modelo econômico-social pós-fordista e neoliberal (DE GIORGI, 2004); (ii) a relação triangular entre espaço, tempo e trabalho e sua influência sobre as instituições sociais, como a prisão (MATTHEWS, 2009); (iii) o neocolonialismo e a globalização (ZAFFARONI, 2015); (iv) os arranjos culturais da pós-modernidade (GARLAND, 2014); (v) a prevalência de uma “lógica atuarial” nos processos de criminalização (DIETER, 2013); (vi) as mudanças institucionais em determinados países e seus efeitos sobre as políticas macroeconômicas e a política criminal (SUTTON, 2004; CAVADINO e DIGNAN, 2014; LACEY, 2013); (vii) ou um “pós-neoliberalismo” em ascensão na América Latina (SOZZO, 2016).

O que essas leituras têm em comum, apesar de suas divergências, é que se fundamentam, pelo menos em certa medida, em uma corrente teórica – que pode ser definida como economia política da punição (MELOSSI, SOZZO e BRANDARIZ-GARCÍA, 2018) – que busca associar as formas de punição ao modo de produção vigente, ainda que considerem importantes outros aspectos da totalidade social (políticos, culturais etc.). São abordagens desenvolvidas a partir da base construída por Rusche e Kirchheimer, Foucault e Melossi e Pavarini, entre outros, que buscaram entender a gênese da prisão como forma de punição moderna. Ela surge no âmbito do desenvolvimento da sociedade capitalista e vai se transformando conforme os modos de produção (mercantil, industrial, pós-industrial e financeirizado).

A aproximação entre essas diversas leituras e a criminologia crítica se dá, principalmente, no âmbito metodológico, a partir de um modelo de observação do fenômeno criminal que rejeita categorias ontológicas de observação da criminalidade como elemento universal da realidade social. O modelo identifica, assim, a relação funcional entre o direito penal e a estrutura socioeconômica capitalista da qual aquele faz parte, o que permite a construção de um marco analítico global a partir do qual é possível examinar os diversos segmentos da realidade social. Trata-se, em suma, de construir uma economia política da pena e da criminalidade.

Essa perspectiva macrossociológica permite abandonar o estudo sobre o comportamento desviante em favor de uma pesquisa que esclareça como se dá o controle social sobre o desvio e o processo de criminalização, tanto na sua dimensão normativa, que envolve os mecanismos de produção das normas penais (criminalização primária), quanto no âmbito da aplicação da norma pelos órgãos de controle (criminalização secundária).

Trata-se de superar o nível sociológico de observação centrado na esfera da distribuição para “penetrar na lógica objetiva da desigualdade, que reside na estrutura das relações sociais de produção, na sociedade tardo-capitalista, para apreender a lei invisível, mas efetiva, à qual estas relações obedecem: a lei do valor” (BARATTA, 2011, p. 199). Essa é, portanto, a tarefa de uma criminologia crítica radical, que será capaz de compreender a raiz comum entre as relações econômicas de desigualdade e as relações políticas de poder e de controle social.

Wacquant, por sua vez, propõe um esforço de pensar a relação entre a instituição carcerária, manifestada no modelo de hiperencarceramento, e a organização da produção capitalista no neoliberalismo. É, portanto, uma sociologia da punição que procura aliar a análise materialista da economia política da pena a uma abordagem simbolista, “atenta à capacidade que o Estado detém de traçar as demarcações sociais salientes e de produzir a realidade social por meio de seu trabalho de inculcação de categorias e de classificações eficientes” (WACQUANT, 2007, p. 15).

Trata-se de extrair das instituições e políticas penais duas funções inseparáveis: impor categorias hierárquicas e de controle; e comunicar normas e moldar representações coletivas e subjetividades.

A prisão simboliza divisões materiais e materializa relações de poder simbólico; sua operação reúne desigualdade e identidade, funde dominação e significação, e conecta as paixões e os interesses que perpassam e agitam a sociedade (WACQUANT, 2007, p. 16).

A abordagem simbolista adotada por Wacquant tem origem na obra de Pierre Bourdieu (1994), segundo o qual um dos maiores poderes do Estado é sua capacidade de produzir e impor categorias de pensamento aplicadas pelos indivíduos de forma espontânea a todos os elementos do mundo social. Nesse processo, o Estado introduz, em todas as suas instituições, elementos culturais, sociais e de hierarquia que conferem à arbitrariedade institucional a aparência de naturalidade.

Para o sociólogo francês, o Estado exerce tanto um poder traduzido em violência quanto um poder simbólico, sendo que a aliança entre ambos esses elementos garante a existência de relações de submissão e obediência. Estas, por sua vez, permitem a imposição de estruturas cognitivas e categorias de percepção, moldando espaços, relações, estratégias e estruturas sociais (BOURDIEU, 1994, p. 13). É o que Bourdieu chama de “campo burocrático”.

Trata-se de uma visão que nega uma concepção monolítica de Estado, visto como ator coerente e instrumento único capturado por interesses específicos, e adota a definição de “espaço de forças e de lutas sobre o contorno, as prerrogativas e as prioridades da autoridade pública, e, em particular, sobre os ‘problemas sociais’ que merecem sua atenção e como eles devem ser tratados” (WACQUANT, 2012, pp. 511-512).

Com base nesse conceito, além de aliar as abordagens materialista e simbólica, Wacquant (2015, pp. 1-2) propõe uma ruptura em relação aos estudos sociológicos tradicionais que separam bem-estar social e políticas penais, de maneira a enxergar esses dois elementos como partes de uma única organização. Eles representam o que Bourdieu denomina de “mão esquerda” e “mão direita” do Estado (2000, p. 184). A primeira corresponde à parcela encarregada das funções sociais (de educação, saúde, trabalho, habitação etc.), direcionadas à parcela da população desprovida de capital econômico e cultural e dependente da proteção e amparo do Estado. A mão direita, por sua vez, se materializa na função de disciplina econômica, que envolve políticas de austeridade, cortes de orçamento, incentivos fiscais e desregulamentação do mercado.

Wacquant acrescenta a essa visão a ideia de que a mão direita é integrada, também, pela função repressora do Estado, exercida pela polícia, pelos tribunais e pela prisão. Estes seriam elementos centrais para a análise do que Wacquant (2008) denomina “novo governo da insegurança social”, implementado nos EUA principalmente a partir da década de 1980, que corresponde ao período em que o braço social do Estado é suplantado pelo braço penal.

A abordagem proposta permite identificar uma nova função da prisão, adequada ao contexto socioeconômico particular que representa a fase neoliberal do capitalismo. Assim, além da função reguladora do mercado de trabalho e escoamento do excedente de mão de obra, bem como da função de imposição da disciplina da fábrica, que representam o exercício do poder material do Estado, o cárcere teria adquirido a função de reafirmar o poder simbólico e a autoridade do Estado, impondo uma divisão da população em categorias de “cidadãos de bem” e “desviantes” (WACQUANT, 2008, p. 17).

Assim, ao mobilizar um conceito sociologicamente orientado de neoliberalismo – afastando-se de concepções economicistas –, Wacquant nos permite pensar os processos de desregulamentação econômica, retração e recomposição do Estado de bem-estar, expansão do aparato penal e consolidação da responsabilidade individual enquanto imperativo cultural como elementos de uma reconstrução do Estado em torno do projeto político-econômico neoliberal.

Nesse contexto, identifica-se uma reforma simultânea, que envolveu a transformação da assistência social em controle punitivo e o recrudescimento do sistema penal em uma convergência organizacional que passou a servir de instrumento para a administração de uma população considerada indesejada ( Idem, 2015, p. 10). Verifica-se, assim, de um lado, a adoção de medidas de restrição de acesso aos programas de assistência social, corte em orçamentos e precarização dos serviços, e, de outro, reformas para facilitar o acesso à prisão, restringindo as medidas alternativas à privação de liberdade, aumentando o tempo de pena e dificultando o acesso ao livramento condicional. O resultado foi uma diminuição dos beneficiários dos programas sociais e um aumento exponencial da população carcerária.

Nesse âmbito, o recrudescimento punitivo envolve o deslocamento da política criminal na direção do tratamento penal da marginalidade urbana, de modo que a função assistencial do Estado moderno de bem-estar social é colonizada pela lógica punitiva e do controle social. Trata-se de um olhar criminalizante, e não assistencial, sobre as camadas sociais marginalizadas que encobre a compreensão do conflito social revelada nas desigualdades materiais.

Diante dessas constatações, não é mais possível pensar apenas na contradição fundamental da organização capitalista – a divisão classista entre explorador e explorado –, que fundamentou a origem da criminologia crítica, e segundo a qual a dinâmica entre capital e trabalho se torna a chave de análise para compreender a estrutura e organização do Estado e, portanto, do sistema penal.

Esses conceitos são reformulados por Wacquant com vistas a construir uma nova abordagem teórica que seja capaz de descrever e interpretar o mundo neoliberal que começa a se conformar a partir da década de 1970 com a transformação do capitalismo industrial em capitalismo financeiro. Trata-se de um novo arranjo dos sistemas econômico, político e jurídico, decorrente de políticas de liberalização e de desregulamentação de capitais, de desvalorização de medidas sociais e de privatizações.

Nesse contexto, Wacquant busca demonstrar “como as categorias, práticas e políticas penais nos Estados Unidos se originam e se inscrevem na revolução neoliberal da qual este país é o crisol histórico e o ponta-de-lança planetário” ( Idem, 2008, p. 13).

Assim, o aumento da população carcerária deixa de ser visto como resultado exclusivo da deterioração do mercado de trabalho (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999) ou da necessidade de disciplina dos indivíduos para a fábrica (FOUCAULT, 1999; MELOSSI e PAVARINI, 2014), “mas sim dos deslocamentos provocados pela redução das despesas do Estado na área social e urbana e pela imposição do trabalho assalariado precário como nova norma de cidadania para aqueles encerrados na base da polarizada estrutura de classes” (WACQUANT, 2008, p. 15).

O neoliberalismo corresponde a um modelo de Estado pós-keynesiano baseado no princípio da competição e na contraposição entre responsabilidade individual irrestrita e irresponsabilidade coletiva e política, por meio das quais cumpre sua missão de reafirmar simbolicamente os valores comuns da ideologia dominante ( Ibid., p. 31). Isso significa responsabilizar os “perdedores” pela sua própria falha de caráter e desvio de comportamento. A seleção entre “vencedores” e “perdedores” é feita pelo próprio mercado, visto como entidade naturalizada e de-historicizada: é a competição livre no mercado que revela aqueles que estão aptos a se desenvolver economicamente. Os demais se tornam sujeitos da gestão realizada pelo sistema penal.

O que o neoliberalismo traz de novo é a “reengenharia e a reestruturação do Estado como principal agência que conforma ativamente as subjetividades, as relações sociais e as representações coletivas apropriadas a tornar a ficção dos mercados real e relevante” ( Idem, 2012, p. 507). O Estado neoliberal impõe, assim, novas percepções de cidadania por meio de políticas adaptadas ao mercado.

A partir da abordagem proposta por Wacquant, é possível pensar o sistema jurídico-penal de hiperencarceramento como elemento essencial para a consecução da proposta neoliberal. A prisão se transforma, assim, em instrumento de imposição aos indivíduos encarcerados da racionalidade neoliberal, baseada nos princípios da concorrência e do pensamento empresarial.

Assim, verifica-se a substituição de um Estado de bem-estar protetor inacabado por um Estado disciplinar, que combina a imposição do workfare (o modelo assistencialista baseado no trabalho precarizado) com a violência cotidiana exercida pelo prisonfare sobre as camadas pobres da sociedade. A política social destinada a essa população transforma-se em política penal de supervisão e contenção punitiva dessa categoria de pessoas consideradas desviantes.

Percebe-se que, ao contrário da ideia promovida pelo senso comum de que o Estado neoliberal é a imagem do Estado mínimo, com mínima presença na vida dos cidadãos, a análise de Wacquant revela que, na verdade, trata-se de um Estado forte, que reduz sua presença na regulamentação da economia, mas redobra a força de seu braço penal.[2] Essas reformas (econômicas e penais) compõem um vasto movimento de reconstrução do Estado pós-keynesiano, “que visa comprimir e remodelar a esfera da cidadania social em uma direção paternalista e repressiva” ( Idem, 2008, p. 191), por meio da dupla regulação da pobreza nas esferas do workfare e da prisão. Tem-se, assim, a combinação entre a “mão invisível do mercado” e o “punho de ferro do Estado” ( Idem, 2001b, p. 404)[3], que se complementam para impor às classes subalternas a aceitação do trabalho assalariado dessocializado e da instabilidade social que o acompanha.

O modelo de Wacquant é pensado a partir da experiência dos EUA, mas que, segundo o autor, teria sido exportado a diversas partes do mundo, em especial nos países em que as políticas de orientação neoliberal tiveram maior aceitação. Isso explicaria a tendência de aumento da população prisional em alguns países da Europa Ocidental (como Inglaterra e França) e da América Latina, sendo o Brasil o principal representante desse modelo.

No entanto, conforme será desenvolvido a seguir, diversas são as críticas a essa concepção. Ainda assim, o diálogo entre essas duas visões – a de Wacquant e a de seus críticos – nos permite pensar novas agendas de pesquisa para o direito e desenvolvimento a partir da perspectiva crítica da criminologia.

Uma proposta de abordagem crítica no campo do direito e desenvolvimento

Conforme mencionado, a proposta teórica de Wacquant é construída a partir da análise da realidade do sistema carcerário nos EUA. Porém, o sociólogo trata o modelo socioeconômico americano como laboratório de um futuro neoliberal que se encontra em processo de exportação, graças à globalização, para as mais diversas regiões do mundo.

Haveria, assim, uma internacionalização do senso comum penal dos EUA, que transplanta para Europa, América Latina e para os países da antiga União Soviética esse modelo de penalização da miséria como instrumento de normalização do trabalho assalariado precário (WACQUANT, 2001a, p. 11). É uma proposta que enxerga as transformações no sistema penal como um processo transnacional, isto é, uma tendência global em direção ao incremento de medidas penais como instrumentos de gestão das desigualdades.

A crítica que se faz a essa visão ressalta que, apesar de haver uma pressão homogeneizadora que parte do processo de globalização e uma tendência altamente persuasiva da ideologia neoliberal, as estruturas institucionais nacionais constituem fortes elementos de resposta às tendências globais, o que demonstraria uma heterogeneidade de políticas sociais e penais decorrentes de diferenças institucionais, culturais e de padrões de desigualdade existentes em cada país (SUTTON, 2013, pp. 716-717). Questiona-se, assim, a capacidade da obra de Wacquant para explicar realidades sociais complexas e diversas, o que demandaria uma investigação empírica e comparada mais aprofundada.

Essa abordagem encontra ressonância nas contribuições críticas no campo do direito e desenvolvimento, que se desenvolvem desde a publicação do artigo “Acadêmicos auto-alienados”, de David Trubek e Marc Galanter (2007). O referido trabalho aponta como os teóricos do direito e desenvolvimento passaram a questionar os conceitos e arranjos institucionais produzidos nos EUA como modelo para outros países e indica o equívoco da pretensão de transplantar para países em desenvolvimento o paradigma do legalismo liberal (DAVIS e TREBILCOCK, 2009, p. 233).

Assim, o diagnóstico dos céticos do direito e desenvolvimento é: as reformas institucionais propostas pelas agências norte-americanas e organismos internacionais não produziram qualquer efeito positivo na realidade socioeconômica dos países em que foram implantadas. Ao contrário, para os adeptos da teoria da dependência, por exemplo, a exportação do paradigma liberal e do princípio de livre mercado para países do chamado Terceiro Mundo, bem como o histórico colonial e a permanência de práticas jurídicas desse período, constituem a principal causa do seu subdesenvolvimento.

Dentro dessa abordagem, é possível inserir o trabalho de Wacquant, que identifica a relação entre a exportação do modelo neoliberal americano de gestão da pobreza por meio do hiperencarceramento e o acirramento da violência e das desigualdades em países em desenvolvimento como o Brasil. Nesse sentido, o direito e os modelos institucionais, em especial o direito penal e o sistema carcerário, estariam produzindo o efeito de aprofundar o subdesenvolvimento desses países.

Pode-se dizer, portanto, que a formulação teórica de Wacquant contribui para o campo do direito e desenvolvimento na medida em que identifica a prisão como ponto essencial na rede de instituições que dão forma e administram as desigualdades. No entanto, conforme apontado acima, apesar de contribuir para entender como se dá a relação entre, de um lado, as práticas penais e, de outro, a ordem institucional mais ampla e o desenvolvimento[4], a abordagem de Wacquant tende a uma generalização que desconsidera as realidades institucionais locais.

Esse cenário é revelador da contradição existente entre uma abordagem que aposta na convergência transnacional do paradigma institucional dominante, resultante do processo homogeneizador da globalização, e uma abordagem que ressalta as evidências no sentido de uma heterogeneidade nas respostas dos países às pressões da globalização (SUTTON, 2013, p. 719).

O trabalho de Wacquant se enquadra na primeira abordagem, uma vez que, para o autor, países em todo o mundo estariam convergindo em direção ao modelo americano, em que reformas favoráveis ao mercado são complementadas com práticas institucionais violentas direcionadas à contenção e à gestão das subclasses (WACQUANT, 2001a, p. 11). Para o sociólogo, os EUA teriam construído uma vasta rede de difusão dos seus ideais neoliberais e modelos institucionais, composta por órgãos estatais encarregados de promover reformas nos países da Europa Ocidental e, posteriormente, da América Latina, em conjunto com organismos internacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano para o Desenvolvimento.[5]

As reformas propostas por esses órgãos, que tinham como objetivo declarado provocar mudanças na realidade social dos países em desenvolvimento, ocultam, na verdade, uma “política simbólica, cujo efeito não seja promover mudanças, mas derrotá-las ao reprimir protestos e, portanto, fortalecer, e não enfraquecer, grupos relacionados ao status quo” (TRUBEK e GALANTER, 2007, p. 279). Assim, a regulamentação econômica conforme o modelo americano, acompanhada das reformas para robustecimento do sistema punitivo, seriam ferramentas para favorecer a dominação das elites.

A segunda abordagem, por outro lado, admite que há uma tendência de exportação desse modelo socioeconômico que visa à homogeneização. No entanto, haveria, em contrapartida, uma heterogeneidade nas respostas institucionais dos países a essa pressão homogeneizadora da globalização. Referida abordagem propõem, então, um exercício de política comparada que propõe verificar diferentes arranjos institucionais para indicar a heterogeneidade dos modelos econômicos e penais de cada país (SOZZO, 2016).

Quanto à questão das transformações nos diferentes regimes penais, John Sutton (2013) propõe um modelo de análise empírica que busca complementar a abordagem proposta por Wacquant, de forma a torná-la mais adequada ao exame das diversas realidades locais e verificar se, de fato, há essa convergência transnacional em torno do modelo neoliberal dos EUA. O autor apresenta um modelo de estrutura de oportunidades, segundo o qual a instituição prisional faz parte de uma ampla rede de instituições que dão forma às oportunidades de vida, dividem indivíduos em papéis sociais legítimos ou ilegítimos e, assim, determinam a forma e o grau de desigualdade em determinada sociedade.

Esse modelo permite a Sutton elaborar estudo empírico acerca dos processos de transformação das relações entre as práticas penais e a ordem institucional em países desenvolvidos. Seu objetivo é entender se existe um ponto de mudança específico no regime penal dos países estudados e em que medida a tese de Wacquant acerca da convergência transnacional pode ser observada empiricamente.

Os resultados de sua pesquisa demonstram que houve, de maneira geral, uma quebra no regime penal no final da década de 1980 em direção ao recrudescimento punitivo que resultou no aumento do encarceramento, na diminuição dos gastos sociais e no desaparecimento da resistência exercida por parte dos partidos de esquerda ao encarceramento (SUTTON, 2013, p. 739). Porém, a presença de algumas exceções – em especial, os países escandinavos – demonstra que esse diagnóstico não implica um completo e generalizado abandono do bem-estar social em favor da prisão como resposta predominante às desigualdades. O estudo revela que as diferenças nas estruturas de oportunidade em relação a mercado de trabalho, educação e gastos com bem-estar social continuam a condicionar as tendências penais.

E as diferenças de estrutura institucional se mostraram especialmente influenciadoras das transformações nos regimes penais. Os países cuja organização econômica gira em torno de princípios corporativistas – e não de liberdade de mercado – e em que há maior centralização do Estado – em contraposição ao modelo federativo fragmentado dos EUA – tendem a demonstrar níveis mais reduzidos de severidade penal ( Ibid., p. 740).

Esse estudo mostra a importância de se duvidar da tese acerca da convergência tendencial dos diversos países em torno de um modelo de política econômica neoliberal, que inclui o hiperencarceramento como política de administração da instabilidade social decorrente das medidas de austeridade. No entanto, a pesquisa de Sutton traz uma leitura estranha à economia política, ao separar fatores econômicos de fatores políticos, culturais e comunicativos, aproximando-se de uma abordagem habermasiana (GONÇALVES, 2014) ao separar analiticamente esferas sociais que, em última análise, são indissociáveis. Além disso, a abordagem institucional se limita à análise de dados e contextos referentes tão somente a países desenvolvidos ocidentais, de modo que a variável do subdesenvolvimento e seus desdobramentos sobre a ordem institucional não foram analisados, ignorando por completo as imbricadas relações de cunho imperialista entre esses países e a periferia global.

Dentre os dez países que mais encarceram no mundo, com exceção dos EUA, todos estão situados no chamado Sul Global e “apresentam uma gama bastante diversa de estruturas organizacionais, jurídicas, políticas e sociais, bem como de percursos históricos que levaram a um punitivismo exacerbado” (GODOI, 2017, p. 240). A esse respeito, relativamente ao Brasil, pesquisas no campo do direito e desenvolvimento têm apontado para a emergência, com os governos de esquerda, de um novo modelo de desenvolvimentismo (TRUBEK, COUTINHO e SCHAPIRO, 2012; MORAIS e SAAD-FILHO, 2011), que envolve a manutenção da política macroeconômica de orientação neoliberal dos governos anteriores, associada a uma nova política industrial e à expansão do sistema de bem-estar social e de políticas de combate à pobreza.

Na década de 1990, o país passou por um processo de desconstrução das instituições do antigo Estado desenvolvimentista (TRUBEK, COUTINHO e SCHAPIRO, 2012, p. 4), substituído por uma nova política econômica que incorpora diversas das políticas baseadas no paradigma neoliberal, propagadas pelo Consenso de Washington e inspiradas pela abordagem do mercado eficiente. Foram implementadas reformas estruturais de liberalização do comércio e desregulamentação financeira (MORAIS e SAAD-FILHO, 2011, p. 508), modelo macroeconômico mantido pelos governos de esquerda brasileiros a partir de 2002, acrescido de uma nova política industrial e de um conjunto de políticas sociais que visam atribuir ao Estado papel central e implementar uma “estratégia nacional de desenvolvimento voltada à superação do hiato econômico e social que separa o país dos estados do centro capitalista desenvolvido, o que não pode ser alcançado apenas por condições de mercado” ( Ibid., p. 525).

Verifica-se, portanto, que a conformação do Estado neodesenvolvimentista no Brasil envolveu não a sobreposição da mão direita sobre a mão esquerda do Estado, mas uma complementação entre as duas, na medida em que uma política macroeconômica neoliberal de desregulamentação, flexibilização e privatização foi complementada por um incremento das políticas sociais de administração da pobreza.

Nesse contexto, não se observa, no Brasil, um aumento do orçamento do sistema carcerário proporcional à diminuição dos gastos com bem-estar social. Ao contrário, houve incremento de políticas sociais e dos recursos destinados ao seu financiamento. Essas políticas representam uma construção tardia e particular de um Estado de bem-estar brasileiro[6], que não corresponde ao conceito de workfare de Wacquant, ainda que guarde semelhanças com ele.

Por isso, para a construção de um saber crítico que contribua ao debate do direito e desenvolvimento e que esteja, ao mesmo tempo, atento às especificidades da realidade brasileira, é necessário levar em conta as diversidades da emergência do controle punitivo no país, que é estudado em sua relação com a estrutura marginal e dependente de poder que caracteriza o seu contexto socioeconômico, diretamente influenciado pelo histórico colonial.

A colonização permitiu a construção de um sistema composto por, além das instituições de controle formal, agências de controle social hierarquicamente inferiores, que, em razão dessa característica, dispõem de um âmbito ampliado de arbitrariedade e discricionariedade que lhes permitem a prática de condutas não institucionais, mas que são tidas como normais, uma vez que provêm de órgãos oficiais.[7] A atual configuração da violência punitiva estatal brasileira, por sua vez, seria resultado de um “continuum histórico de práticas autoritárias de controle do crime e da violência” (MINHOTO, 2002, p. 150) que transformou o sistema carcerário brasileiro em refugo das classes marginalizadas.

Nesse âmbito, a importação de modelos institucionais das nações desenvolvidas teria o efeito de reforçar e expandir – e não criar – as práticas autoritárias formais e informais de controle da violência existentes desde a colonização. O histórico de subordinação da economia brasileira à estrutura internacional de relações econômicas contribuiu para o acirramento das já profundas desigualdades socioeconômicas que marcam o contexto brasileiro desde a colonização e que são responsáveis por um cenário de crescente violência urbana (WACQUANT, 2003, p. 198).[8]

Esse contexto reflete a consolidação de uma concepção de cidadania hierárquica e paternalista que divide a sociedade em duas categorias principais (os cidadãos de bem e os desviantes) e expressa a união entre o aparato de persecução penal e a política de imposição de uma ordem classista.

Assim, a importação do modelo neoliberal americano de tratamento penal das classes inferiores e de hiperencarceramento teria permitido o “reestabelecimento de uma verdadeira ditadura sobre os pobres” (Ibid., p. 200),[9] ocorrido após o período de redemocratização e implementação do Estado de direito no Brasil.

Ao confrontar ambas as abordagens, verificamos que elas se mostram inadequadas para, sozinhas, fornecer um quadro teórico que dê conta das complexidades da realidade do Sul Global. Vê-se a necessidade premente de se desenvolver estudos que, ainda que ancorados em paradigmas metodológicos elaborados em contextos de países desenvolvidos – como é o caso de Bourdieu, Wacquant, Sutton, entre outros –, se desprendam da simples transposição de modelos teórico-explicativos e abarquem elementos dos contextos materiais e históricos locais.

Conclusão

O presente trabalho teve como objetivo apresentar uma proposta, ainda em construção, de abordagem teórica crítica no campo do direito e desenvolvimento a partir da sociologia da punição. Com base na análise teórica dos elementos que estruturaram o artigo, podemos extrair algumas conclusões preliminares.

A metodologia adotada pela economia política da punição, que inscreve o fenômeno da criminalidade em seu contexto socioeconômico segundo sua materialidade e historicidade, fornece um instrumental teórico valioso para questionar alguns dos paradigmas inscritos no campo do direito e desenvolvimento, que tendem a valorizar o direito liberal como modelo ontológico, apartado de seu contexto social mais amplo. Em especial, os estudos críticos da questão criminal na América Latina têm o potencial de desafiar as iniciativas que pensam nos modelos de direito dos países desenvolvidos – em particular, de direito penal – como adequados às realidades dos países periféricos, sem atentar para suas particularidades históricas e de configuração socioeconômica e institucional.

A abordagem teórica proposta por Wacquant contribui para uma análise do fenômeno criminal no contexto do neoliberalismo, identificando as influências do modelo americano de hiperencarceramento exercidas sobre os países em desenvolvimento.

O conceito de campo burocrático de Pierre Bourdieu possui especial utilidade para pensar as dinâmicas da transformação institucional – mesmo em países em desenvolvimento –, a partir da análise das forças que atuam nesse campo, para determinar prioridades de administração pública, moldar espaços e impor categorias, dando forma aos atributos institucionais herdados de um passado colonial e de um presente de permanências autoritárias.

O modelo de estruturas de oportunidades de Sutton permite agregar à análise até aqui desenvolvida uma abordagem institucional capaz de verificar, com base nos conceitos expostos ao longo do presente trabalho, e por meio da pesquisa empírica, quais os efeitos que o modelo neoliberal americano de hiperencarceramento realmente provocou nos países em desenvolvimento e quais as suas respostas institucionais a essa influência.

Faz-se necessário, porém, para tornar os conceitos acima expostos verdadeiramente úteis a uma análise da questão criminal no Brasil e em outros países do Sul Global, empreender esforços para “deslocar minimamente o eixo geopolítico que vem organizando as análises do encarceramento em massa” (GODOI, 2017, p. 240).

Trata-se de um delineamento preliminar de uma proposta de agenda de pesquisa para o campo do direito e desenvolvimento, preocupada com as particularidades da realidade local dos países em desenvolvimento, mas atenta às configurações macrossociológicas do contexto neoliberal, que possa refletir sobre as relações entre ordens institucionais e desenvolvimento a partir de uma abordagem crítica.


[1].

fn1O presente trabalho se insere no âmbito de pesquisa de mestrado ainda em curso, não propondo se encerrar em conclusões fechadas, mas sugere um possível caminho de pesquisa teórica.

[2].

fn2A reforma da assistência social representa uma forte intervenção na economia, que apresentou três efeitos importantes nas vidas das classes subalternas: (i) remodelou moralmente a imagem da categoria dos beneficiários, de forma a valorizar o trabalhador e degradar a visão do beneficiário desempregado; (ii) por meio da imposição do workfare, transformou o trabalho em obrigação cívica e condicionante da dignidade do indivíduo; e (iii) relegou aos pobres o espaço do trabalho precário, sub-remunerado e desqualificado, “aumentando, dessa maneira, a oferta de trabalhadores dóceis, acelerando as mudanças na base do pool de emprego e intensificando a dessocialização do trabalho assalariado” (WACQUANT, 2008, p. 182).

[3].

fn3Tradução da autora.

[4].

fn4Desenvolvimento aqui adquire o conceito mais amplo, que envolve não somente a esfera econômica, mas também a dimensão social e a dignidade humana.

[5].

fn5Wacquant aponta, ainda, para o papel essencial exercido pelos think tanks neoconservadores, que forneceram contribuição decisiva para a construção e, posteriormente, internacionalização, dessa nova razão punitiva, o que “põe em relevo os laços orgânicos, tanto ideológicos como práticos, entre o perecimento do setor social do Estado e o desdobramento de seu braço penal” (WACQUANT, 2001a, p. 13).

[6].

fn6As políticas de austeridade do governo de Michel Temer, como as reformas trabalhista e da previdência indicam uma mudança nessa tendência de fortalecimento do Estado de bem-estar social, mas que ainda não podem ser avaliadas em sua concretude, uma vez que estão ainda em curso de implementação.

[7].

fn7Trata-se do chamado “controle penal subterrâneo” (CASTRO, 2005, p. 104; ZAFFARONI, 1988, p. 15).

[8].

fn8Tradução da autora.

[9].

fn9Tradução da autora.

Referencias
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