<TaggedPDF-doc>
<x:xmpmeta>
<rdf:RDF>
<rdf:Description>
<xmp:ModifyDate>2019-07-23T15:29:21-03:00</xmp:ModifyDate>
<xmp:CreateDate>2019-07-23T15:29:16-03:00</xmp:CreateDate>
<xmp:MetadataDate>2019-07-23T15:29:21-03:00</xmp:MetadataDate>
<xmp:CreatorTool>Acrobat PDFMaker 19 para Word</xmp:CreatorTool>
<xmpMM:DocumentID>uuid:7f6f9894-1c29-4311-865f-60e788739ec6</xmpMM:DocumentID>
<xmpMM:InstanceID>uuid:ad224b02-69e8-4933-af90-b7f3fcdf0db9</xmpMM:InstanceID>
<xmpMM:subject>
<rdf:Seq>
<rdf:li>1</rdf:li>
</rdf:Seq>
</xmpMM:subject>
<dc:format>xml</dc:format>
<dc:title>
<rdf:Alt>
<rdf:li></rdf:li>
</rdf:Alt>
</dc:title>
<dc:description>
<rdf:Alt>
<rdf:li></rdf:li>
</rdf:Alt>
</dc:description>
<dc:creator>
<rdf:Seq>
<rdf:li></rdf:li>
</rdf:Seq>
</dc:creator>
<pdf:Producer>Adobe PDF Library 19.12.66</pdf:Producer>
<pdf:Keywords></pdf:Keywords>
<pdfx:SourceModified>D:20190723182908</pdfx:SourceModified>
<pdfx:Company></pdfx:Company>
<pdfx:Comments></pdfx:Comments>
</rdf:Description>
</rdf:RDF>
</x:xmpmeta>
<bookmark-tree>
<bookmark>
<destination></destination>
</bookmark>
<bookmark>
<destination></destination>
</bookmark>
<bookmark>
<destination></destination>
</bookmark>
<bookmark>
<destination></destination>
</bookmark>
<bookmark>
<destination></destination>
</bookmark>
</bookmark-tree>
<Sect>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<Artifact></Artifact>
<P>A custódia nas audiências: Uma análise da política de transferência das audiências de custódia para a cadeia pública na cidade do Rio de Janeiro </P>
<TextBox>
<Figure>
<ImageData></ImageData>
</Figure>
<P> </P>
</TextBox>
<TextBox>
<Figure>
<ImageData></ImageData>
</Figure>
<P> </P>
</TextBox>
<H1>João Vitor Freitas Duarte Abreu </H1>
<H1>Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil </H1>
<H1>Pedro Heitor Barros Geraldo </H1>
<H1>Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil </H1>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P>O artigo analisa a transferência da Central de Audiência de Custódia do prédio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para a Cadeia José Frederico Marques em Benfica. Para tanto, enfatiza três aspectos: a) o deslocamento do serviço de justiça; (b) a dimensão pública da justiça; e (c) a compreensão da política de aprimoramento dos dispositivos de encarceramento. Os dados foram coletados em pesquisa de campo realizada entre junho de 2017 e maio de 2018. Audiências na cadeia pública restringem o acesso ao público. Além disso, essa mudança favoreceu a decisão de manter os custodiados presos produzindo um aperfeiçoamento do dispositivo de encarceramento. </P>
</TH>
<TH>
<P>Detention Hearings: An Analysis of the Displacement Policy of Pretrial Detention Hearings to the Public Jail in the City of Rio de Janeiro discusses the transfer of the Central de Audiência de Custódia from the Rio de Janeiro’s Court of Justice to the José Frederico Marques Jail, in Benfica, in light of three aspects: a) the displacement of the justice service; b) the public dimension of justice; and (c) the understanding about incarceration device enhancement. The data was collected during fieldwork carried out between June 2017 and May 2018. Conducting the hearings in the public jail restricts public access to the hearing. The change has also favored the decision to keep prisoners in custody, producing an enhancement of the incarceration device. </P>
</TH>
</TR>
<TR>
<TH>
<P>Palavras-chave: audiência de custódia, serviços de justiça, prisão provisória, encarceramento, Rio de Janeiro </P>
</TH>
<TD>
<P>Keywords: detention hearing, court services, incarceration, pre-trial detention, Rio de Janeiro </P>
</TD>
</TR>
</Table>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Introdução </P>
<P> </P>
<P>
<DropCap>
<ImageData></ImageData>
E </DropCap>
</P>
<P>ste artigo analisa a transferência da Central de Audiência de Custódia (Ceac) do Rio de Janeiro do prédio do Tribunal de Justiça para a Cadeia José Frederico Marques a partir da observação das audiências realizadas na cidade. A organização desse serviço de Justiça produz um dispositivo de encarceramento, em que os juízes analisam de fato quando devem soltar os custodiados, em lugar de uma supervisão do trabalho da polícia. A análise se orienta para a compreensão de que o deslocamento do serviço implica seu caráter ainda mais restritivo e uma finalidade da política que favorece o encarceramento. </P>
<P>O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juntamente com o Ministério da Justiça, lançou no início de 2015 o projeto Audiência de Custódia. O objetivo é apresentar o acusado ao juiz em audiência em que serão ouvidas também as manifestações dos representantes do Ministério Público, da Defensoria Pública ou o advogado do preso. Durante a audiência, o juiz deve analisar a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz pode avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras formas de abuso de poder. O projeto prevê ainda a estruturação de centrais de alternativas penais, de monitoramento eletrônico, de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, que serão responsáveis por apresentar ao juiz opções ao encarceramento provisório. </P>
<P>Na comarca do Rio de Janeiro, a Ceac foi implementada no prédio do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) localizado no Centro. Com dois anos de funcionamento, foi transferida para o interior da Cadeia Pública José Frederico Marques, em Benfica, na Zona Norte. Na ocasião da cerimônia, que contou com a presença do ministro da Justiça e do presidente do TJRJ, a justificativa dada para a transferência foi a otimização dos recursos e maior segurança, evitando o transporte e a circulação de presos na área central da cidade (O GLOBO, 02/10/2017). </P>
<P>As audiências de custódia decorrem de um reconhecimento do problema da superlotação do sistema penitenciário. A política do Judiciário é produzir uma etapa a mais no processo penal, para supostamente fiscalizar o trabalho da polícia nos casos de prisão em flagrante. A apresentação do custodiado em audiências tem por objetivo reduzir o número excessivo de prisões preventivas nos casos de flagrante. Espera-se dos juízes, promotores e defensores maior sensibilidade ao, diante da pessoa em audiência, decidir sobre a manutenção ou conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, de modo a que não se orientem unicamente pela folha do auto de prisão em flagrante (APF), enquanto uma regra do raciocínio prático dos operadores do direito (SANANDRES e GERALDO, 2016). Ainda é grande o distanciamento deles com a realidade de quem é preso. Segundo um promotor de Justiça ouvido por nossa pesquisa, o trabalho em uma vara criminal ou nas audiências de custódia “é mais fácil porque é distante de nossa realidade, se comparado com uma vara de família, por exemplo”. </P>
<P>Realizada entre junho de 2017 e maio de 2018, a pesquisa de campo consistiu na observação das audiências de custódia e das audiências criminais de instrução e julgamento e no acompanhamento do juiz em suas atividades ordinárias. As conversas informais durante as atividades foram importantes para verificar a diferença entre as audiências do ponto de vista dos membros institucionais e compreender as dificuldades de acesso aos lugares da pesquisa. A estratégia de pesquisa multissituada (MARCUS, 1995) permitiu identificar como a organização da audiência no tribunal e na cadeia tornou o ritual mais restrito ao público externo quando realizada na Cadeia. </P>
<P>A autorização para a realização desta pesquisa foi franqueada pelo magistrado responsável pelo projeto das audiências de custódia. Durante a reunião, esse magistrado explicou a necessidade de informar aos membros do Judiciário que trabalhavam na Cadeia que as regras de segurança da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) deveriam ser respeitadas independentemente das posições e hierarquias que cada profissional ocupava. E por conta dessa característica, quando questionado inicialmente sobre a autorização para realização da pesquisa, respondeu: “Não posso autorizar ninguém a entrar na casa que não é minha”. A Ceac tem, portanto, uma dupla administração, pois a Seap é responsável pelas condições de cumprimento da execução da pena e o TJRJ a fiscaliza por meio dos processos de execução penal. Isso produz duas organizações institucionais com formas de fiscalização distintas: os processos disciplinares no âmbito da cadeia e os processos de execução penal no tribunal. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Reformas da Justiça e as políticas públicas judiciárias </P>
<P> </P>
<P>No Brasil, as reformas da Justiça apontaram um recrudescimento do poder do Judiciário de intervir nas questões sociais e políticas no período da redemocratização (WERNECK VIANNA et al., 1999). Esse fenômeno produziu uma centralização do poder de organizar os rituais de administração de conflitos, a partir da ideia de celeridade no andamento dos processos para desafogar o sistema de Justiça (SADEK, 2004a). Essas mudanças foram acompanhadas por uma intervenção dos operadores do direito com a finalidade de modificar os procedimentos judiciais. Segundo Sadek e Dantas (2000), a reforma da Justiça foi orientada por técnicos do direito. Isso significou uma alteração em tecnicalidades processuais, às quais se creditava uma redução do contencioso nos tribunais superiores, como a súmula vinculante e a cláusula de repercussão geral nos recursos. </P>
<P>O fenômeno tem por fundo disputas de um campo mais amplo de intervenção sobre as instituições de Justiça (ALMEIDA, 2015). A prática reformadora brasileira prevaleceu ao se modificar as instituições jurídicas acreditando que as mudanças na Lei transformam a sociedade, um cacoete jurídico-político há muito descrito por Oliveira Vianna (1999). </P>
<P>O contexto de trabalho de analistas e juízes transformou-se nos últimos anos. A criação do CNJ produziu um controle sobre as políticas de gestão do Judiciário, um movimento de modernização da Justiça que buscou a racionalização (FONTAINHA, 2012). Aliás, a gestão dos recursos humanos e financeiros dos tribunais foi uma das questões catalisadoras da reforma da Justiça de 2004, que criou o CNJ, entre outros dispositivos de centralização do julgamento das ações. Sinhoretto (2011) demonstra como a chamada crise da Justiça foi construída a partir dos escândalos de corrupção envolvendo o Judiciário trabalhista. A reforma culminou em um controle maior sobre a temporalidade do fluxo de processos judiciais. A celeridade se tornou um referencial para a transformação da Justiça brasileira. </P>
<P>A criação de instâncias de acolhimento de demandas, embora anterior a 2004, se deu com o objetivo de desafogamento do Judiciário e garantia do acesso à Justiça. O surgimento dos juizados especiais significou para os juristas uma forma de dar efetividade ao acesso à Justiça (FONTAINHA, 2009). Ao mesmo tempo, foi um indutor de práticas de conciliação em um contexto fortemente dominado por um formalismo jurídico (LEITE, 2003). A administração dos conflitos de proximidade redundou rapidamente em um acúmulo de processos nessas instâncias, que se tornaram um ambiente para gerir muitas demandas entre grandes empresas e seus consumidores (AMORIM, 2008; MELLO e MEIRELLES, 2010). Ao contrário do que se esperava, os juizados não socializaram a sociedade com as práticas conciliatórias e participativas no âmbito da Justiça. Os juizados especiais se orientaram igualmente por um referencial de celeridade, em que o conhecimento da dimensão do conflito foi substituído por imposições de acordos para se encerrarem os processos mais rapidamente (AMORIM, KANT DE LIMA e BAUMANN BURGOS, 2003). Os juizados criminais também não conseguiram atender a uma demanda de explicitação dos conflitos para que estes fossem tratados (AZEVEDO, 2001). </P>
<P>Soma-se a isso um forte caráter tutelar da Justiça brasileira em torno da proteção aos “hipossuficientes”. Essa categoria jurídica controversa tornou os procedimentos menos participativos para os cidadãos, substituídos pela autoridade do Estado sendo impedidos de manifestar seu interesse no âmbito das demandas judiciais (AMORIM, 2008). </P>
<P>Ora, esse contexto de transformação da atividade judiciária teve efeitos importantes sobre as identidades profissionais (BONELLI, 2002; FONTAINHA, 2012; SILVA, 2001). No entanto, o Judiciário não se tornou permeável às práticas republicanas que socializam os cidadãos com as regras do convívio da sociedade civil. Como explica Maria Stella de Amorim: </P>
<P> </P>
<P>De mobilizadores da democratização judicial e de instituições capazes de romper com concepções tradicionalmente arraigadas no Direito e na Justiça brasileiros, os Juizados Especiais vão se tornando mais caracterizados pelos parâmetros delimitadores de práticas judiciais tradicionais, minimizando ou suprimindo os procedimentos mais flexíveis que lhes foram atribuídos pela legislação que os criou e que permanece vigente. Imaginados como microssistemas capazes de provocar rupturas com o passado e de mitigar traços antirrepublicanos e antidemocráticos que ainda se insinuam no presente, estão os juizados brasileiros adotando padrões já ultrapassados na contemporaneidade e conciliando-se com a tradição (AMORIM, 2006, p. 129). </P>
<P> </P>
<P>Essas transformações reforçam um movimento de autonomia do Poder Judiciário. A “reforma silenciosa”, de que trata Joaquim Falcão (2009), se refere às formas de organização racionalizadas pelos micropoderes locais exercidos pelos juízes em diferentes instâncias do Judiciário brasileiro. As experiências de criação de dispositivos de acessibilidade aos serviços de Justiça se orientam por uma lógica voluntarista dos juízes que produz formas diferenciadas de tratamento dos conflitos apresentados à Justiça. Exemplos dessas formas de organização local não faltam aos concursos do Prêmio Innovare, que tem como objetivo identificar, divulgar e difundir práticas de organização dos serviços que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil. Podemos citar as experiências descritas por Sinhoretto (2007) sobre os Centros Integrados de Cidadania em São Paulo, que explicitaram as diferenças de controle social entre o centro e a periferia da cidade. Outra experiência é o Expressinho no Tribunal Fluminense, criado para atender às demandas específicas contra empresas de telefonia, como descreveu Veronese (2015). As dinâmicas locais são um ponto importante para compreender a organização da Justiça brasileira, embora a reforma tenha centralizado o poder de definição do direito (SADEK, 2004b). </P>
<P>No esteio dessa autonomia, o CNJ recomendou aos tribunais de todo o país a implementação das audiências de custódia. Elas estão previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, e foram implementadas durante 2015. Desde então, há uma grande discussão envolvendo a legalidade das audiências de custódia, por não estarem previstas em lei. Diversas associações de policiais, promotores de Justiça e alguns políticos manifestaram-se publicamente contra sua realização, o que demonstra como o próprio Poder Judiciário organiza autonomamente a prestação dos seus serviços à sociedade. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>O deslocamento do serviço de Justiça: a transferência da Ceac </P>
<P> </P>
<P>A primeira questão a ser compreendida é a forma pela qual estão distribuídas as Ceacs no estado do Rio de Janeiro, aqui considerada uma política pública judiciária (GERALDO, 2010), ou seja, a própria distribuição será compreendida em sua organização social em uma dimensão dos serviços de Justiça. </P>
<P>Em todo o estado do Rio de Janeiro, são três Ceacs. Estão localizadas nos municípios de Campos dos Goytacazes, Volta Redonda e Rio de Janeiro. Todas funcionam no interior de unidades prisionais. No entanto, o atendimento não corresponde à disposição administrativa das comarcas, tampouco dos Núcleos Regionais (NUR). Além disso, os territórios das jurisdições não correspondem aos serviços de custódia. </P>
<P>A Ceac de Benfica (no município do Rio de Janeiro) atende aos autos de prisões em flagrantes lavrados pelas delegacias da capital (1º, 12º e 13º NURs), Região Serrana (3º NUR), Baixada Fluminense (4º NUR), Região Metropolitana (2º NUR), Região dos Lagos (11º NUR) e parte da 9º NUR até a cidade de Nova Friburgo. A Ceac de Campos dos Goytacazes atende às delegacias do Norte (6º NUR) e Noroeste fluminense (10º NUR e parte do 9º NUR). E, por fim, a Ceac de Volta Redonda atende à parte sul fluminense (5º, 7º e 8º NUR). </P>
<P>Os NURs correspondem à divisão administrativa das comarcas e fóruns regionais. Cada um possui mais de uma comarca do TJRJ. Podem também abrigar os fóruns regionais de grande porte da capital, como é o caso do 12º, que abriga os fóruns regionais da Ilha do Governador, Leopoldina, Madureira, Méier e Pavuna, e do 13º, com Bangu, Barra da Tijuca, Campo Grande, Jacarepaguá e Santa Cruz. </P>
<P>Os autos de prisões em flagrantes lavrados nas delegacias de cada área são encaminhados juntamente com os presos para a Ceac correspondente. Depois de realizada a audiência de custódia, o processo é destinado ao juízo natural da vara criminal competente pela área em que ocorreu a prisão para a instrução e julgamento do processo. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>A transferência das audiências de custódia </P>
<P> </P>
<P>A principal finalidade da transferência era a otimização dos recursos públicos. O movimento contrasta com a experiência, descrita Sinhoretto (2005), dos Centros de Integração da Cidadania, que tiveram por objetivo ampliar o acesso aos serviços de Justiça na periferia da cidade de São Paulo. </P>
<P>O local tem difícil acesso, sob vários aspectos. O primeiro é o acesso a qualquer unidade prisional, já identificada em outras pesquisas (BARBOSA, 2005; DIAS, 2013). Além disso, essa unidade, em específico, está em área de notórios conflitos armados. A poucos metros do portão principal, há uma base da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Arará, implementada em 2013, responsável pelo policiamento da favela de mesmo nome, que circunda a unidade prisional. Outro fator dificultador é a existência de uma ala destinada aos empresários e políticos presos na Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. O decreto do interventor federal na segurança pública do Rio de Janeiro, publicado em 7 de maio de 2018, promoveu alterações na estrutura da Seap, determinando a transferência desses presos para o complexo prisional de Gericinó, em Bangu. Mas a cadeia ainda é vistoriada de forma frequente pelo Ministério Público, já que foi, por diversas vezes, alvo de denúncias de irregularidades quando do período em que o ex-governador Sérgio Cabral esteve lá. </P>
<P>Há uma particularidade que merece ser destacada pelo fato de o Rio de Janeiro realizar as audiências de custódia dentro de uma unidade prisional: a administração prisional fica sob a responsabilidade da Seap, órgão do Poder Executivo estadual; a Ceac é coordenada pelo Tribunal de Justiça, órgão do Poder Judiciário. Assim, o TJRJ e a direção da Cadeia estão encarregadas da administração dos conflitos que podem surgir entre os operadores do direito e os guardas prisionais no trabalho cotidiano. </P>
<P>A distribuição desses serviços não é organizada de forma sistêmica. A desarticulação é, de fato, uma característica das nossas instituições de Justiça e de polícia (COELHO, 1986; KANT DE LIMA, 1995; PAES, 2013; PAES e RIBEIRO, 2014; VARGAS e RODRIGUES, 2011). Além disso, as pesquisas apontam para uma competição profissional intra e extraprofissionais no mundo do direito (BONELLI, 2010b) que indica tensão entre profissionais ligados ao Estado. </P>
<P>A condição da realização das audiências de custódia dentro de uma unidade prisional é percebida de diferentes maneiras pelos juízes. Após a liminar do CNJ que suspendeu o pagamento do adicional aos juízes para a realização das audiências de custódia, uma equipe de 15 juízes se organizou e pediu demissão coletiva, como forma de protesto contra a suspensão do pagamento. Um dos argumentos utilizados pelos magistrados em favor da manutenção do adicional era exatamente o fato de as audiências ocorrerem dentro de unidade prisional e, portanto, fora do local de trabalho. </P>
<P>Do portão para dentro, a segurança é de responsabilidade da Seap. Os agentes penitenciários se encarregam da segurança para entrada dos visitantes, da organização dos serviços no pátio externo, da informação sobre estacionamento para os magistrados e promotores. A responsabilidade dos magistrados limita às instalações das salas de audiência. Por essa razão, a presença de alguns seguranças a serviço do TJRJ para prestar segurança aos magistrados é perceptível. Por outro lado, todo o trabalho de logística, transporte e fluxos de presos para a realização das audiências é coordenado pelos agentes penitenciários. </P>
<P>Há diferentes versões dos próprios magistrados para explicar a transferência da Ceac para a cadeia de Benfica. Para uma juíza que trabalhou na Central, a transferência significa “uma política de higienização do Tribunal de Justiça”. O grande número de presos e familiares dentro do prédio do Fórum Central estaria causando incômodo ao Tribunal. Institucionalmente, para o magistrado responsável pela mudança, a transferência seria uma “ideia casada”: o TJRJ levou as audiências até os presos dentro da cadeia, visando maior eficiência. Nesse sentido, teve por objetivo evitar o transporte e a circulação dos presos pela região central da cidade e otimizar os recursos, principalmente por parte da Seap, que se encontra em situação financeira crítica. </P>
<P>Esse é um desafio de racionalização em dois níveis: primeiro, articular os serviços da Justiça para torná-los compreensíveis pelos cidadãos; por outro, explicitar, por meio de suas práticas, as formas de administração de conflitos, para que os cidadãos possam entender seus direitos e se orientar segundo seus interesses diante dos constrangimentos institucionais desses serviços. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>A dimensão pública da Justiça: as rotinas de atendimento </P>
<P> </P>
<P>Do lado de fora, em frente ao portão da cadeia, o barulho das grades e dos cadeados vindo de dentro da unidade prisional se mistura ao das crianças da escola localizada no outro lado da rua. À direita do portão da entrada, no local onde antes havia apenas um telhado, a Ordem dos Advogados do Brasil levantou uma parede junto ao muro externo para fazer uma pequena sala com ar condicionado. Ali os advogados poderiam aguardar o pregão do dia realizado pelos agentes penitenciários para autorização de entrada na unidade prisional e as audiências de seus clientes. </P>
<P>Na rua em frente, há um pequeno trailer que comercializa salgados e café. Na mesma calçada, os familiares aguardam por informações dos parentes presos. Normalmente, ficam totalmente desinformados. Uma vez ou outra, um dos familiares vai ao portão da cadeia solicitar informação. A maior dúvida é se os parentes estão mesmo naquele local. Familiares de presos não assistidos por advogados têm grande dificuldade para localizar os presos. No portão, o agente penitenciário ou policial militar orienta que liguem para o número do serviço de localização de presos da Seap, impresso em folhas de papel coladas no portão, ou pede para aguardarem a impressão da pauta, disponibilizada por volta de 12h30. Nela consta a lista de presos que chegaram para as audiências de custódia. Essa é a única orientação recebida pelos familiares. Quando as audiências eram realizadas no Fórum Central, eles aguardavam nos corredores do nono andar e eram atendidos por técnicos que eventualmente saíam aos corredores. Na cadeia, o atendimento é realizado na rua ou no portão por policiais ou agentes penitenciários. </P>
<P>Um pouco depois das 12h30, a pauta é liberada. Um agente penitenciário com a lista em mãos atravessa a rua e caminha lentamente em meio aos familiares, dirigindo-se até a sombra da maior árvore, onde as pessoas se abrigam do sol. Nela, há um arame com um monte de folhas penduradas, com o restante da pauta dos dias anteriores. Do “mural”, ou do arame propriamente dito, o guarda prisional arranca as folhas velhas para pendurar a lista do dia. Enquanto isso, em uma ação ordenada, os familiares, pouco a pouco, vão se aglomerando em torno da lista. Um a um, folheiam as páginas em busca do nome de seu parente. </P>
<P>Depois da entrada, é preciso, para chegar à Ceac, atravessar o pátio externo onde ficam estacionadas as viaturas da Polícia Civil que chegam com os presos das delegacias e os caminhões pretos do Serviço de Operações Especiais/Grupamento de Serviço e Escolta (SOE/GSE) em que os presos são transportados entre as unidades prisionais da Seap. À direita do pátio fica a entrada da unidade prisional. Nela estão custodiados os presos em flagrante. Nessa unidade, funciona a triagem. Segundo um dos agentes penitenciários, se a prisão em flagrante for convertida para prisão preventiva, os presos aguardam por aproximadamente uma semana até serem transferidos para as penitenciárias. </P>
<P>Do outro lado do pátio, de frente para o portão de entrada, está localizada a estrutura da Ceac, que dispõe de uma pequena sala para o cartório, Defensoria Pública e Ministério Público, além de um pequeno espaço perto do banheiro e do bebedouro para os advogados. Ao lado direito, fica a área destinada para a realização das audiências, localizada na parte direita da Central de Custódia do TJ. </P>
<P>Há seis salas para a realização das audiências: a primeira, no corredor de entrada com uma porta à esquerda; as outras cinco, na primeira curva à direita do mesmo corredor, com um banheiro no final. Nos minutos que antecedem o início das audiências, por volta de 13h, as salas e os corredores são limpos. Os secretários chegam mais cedo para adiantar o trabalho do dia. Um funcionário fica no corredor com um rascunho escrito à mão com a divisão do número de salas para os respectivos juízes do dia. </P>
<P>Um agente penitenciário assume uma mesa e se senta na cadeira na esquina onde os corredores entre a primeira e as demais salas se juntam. Ele fica responsável por coordenar o trabalho de transporte dos presos que saem da unidade para a carceragem e, depois, para as salas de audiências. A lista fica em posse desse agente penitenciário, e a ordem de chamada dos custodiados é responsabilidade dele. Ao término de cada audiência, o juiz pode perguntar o nome do próximo preso a esse agente; de dentro da sala, o juiz, o promotor, o defensor e o secretário separam o procedimento do respectivo custodiado da próxima audiência. A comunicação é feita por rádio por todos os agentes penitenciários. Quando eram realizadas no Fórum, esse trabalho era realizado por policiais militares; na cadeia, são os agentes penitenciários. </P>
<P>No pátio externo, os presos são retirados da unidade prisional em grupos de 15 a 20, todos algemados, em dupla ou em trio. Para os agentes penitenciários, é importante que os presos sejam algemados juntos, pois isso reduz as chances de fuga. As algemas entre os braços reduzem a mobilidade dos presos. Em fila, os custodiados são colocados na carceragem, onde aguardam suas audiências. Para cada “bonde”, termo utilizado pelos agentes penitenciários para se referir ao conjunto de presos algemados juntos, são quatro agentes penitenciários: um no início da fila, outro ao final e os outros dois cercando pelas laterais da fila, resguardando, de um lado, o portão da cadeia, e, do outro, a Ceac. </P>
<P>Dentro da Central, os promotores, defensores e juízes vão chegando aos poucos. Como em um ritual, assim que chegam, antes do início das audiências, todos circulam entre as salas e cumprimentam uns aos outros. As salas são pequenas e mal comportam todos os integrantes. Todas são interligadas por portas atrás da mesa onde se sentam o juiz, o promotor e o secretário. Alguns deles a utilizam em lugar dos corredores, atravessando as salas no meio das audiências para se comunicar com quem está nas duas salas ao lado. </P>
<P>Durante a pesquisa de campo, a observação das audiências foi realizada de pé, por falta de espaço em algumas ocasiões. A sala 1, por exemplo, além da mesa reservada a juiz, promotor e secretário, tem apenas uma cadeira para o defensor e outra para o custodiado. As demais contam com quatro cadeiras dispostas ao longo da mesa: duas do lado direito, onde se sentam os defensores ou os advogados, uma de frente para o juiz, onde fica o custodiado, e outra do lado esquerdo. Em audiências com grande número de advogados, apenas o que faz a arguição fica sentado. O mesmo acontece quando são dois ou mais custodiados. </P>
<P>A dificuldade de observação das audiências é também estendida aos advogados em sua atividade profissional. A Ceac não dispõe de uma estrutura que comporte o número de advogados presentes. O espaço destinado à espera tem apenas cinco cadeiras e nenhuma mesa. É vedada a permanência deles na área externa. Quando algum descumpre essa regra, é advertido pelos agentes penitenciários. Em um dia da pesquisa de campo, a lista contava com 87 advogados aguardando do lado de fora da cadeia. Devido à falha na comunicação entre servidores da Ceac e agentes penitenciários, observamos audiências sem a presença do advogado, embora ele estivesse presente na unidade. </P>
<P>Se a estrutura não comporta nem sequer os integrantes das audiências, pessoas externas não são bem vistas no local. Pesquisadores sem vínculo com o TJRJ ou a Seap precisam, a todo momento, dar explicações para inúmeras pessoas sobre o motivo de sua presença. Apesar do caráter público das audiências judiciais, essas dificuldades tornam restrito o acesso às audiências de custódia. </P>
<P>Em fevereiro de 2018, o responsável pelo projeto das audiências de custódia no TJ deu uma ordem explícita ao grupo de juízes que compunham a equipe da Ceac, proibindo a presença de estudantes ou estagiários nas audiências de custódia. Outra dificuldade enfrentada é o tratamento dispensado pelos guardas e agentes penitenciários no plantão. Alguns, muito receosos, dificultam a entrada e se mostram pouco disponíveis a ouvir os motivos da presença do pesquisador. </P>
<P>Nesse contexto, a grande rotatividade dos operadores do direito e dos guardas prisionais na escala de serviço contribui para a falta de rotinas e protocolos de atuação bem definidos. Segundo um dos interlocutores, além dos funcionários do cartório, o profissional com mais tempo de trabalho na Ceac não tinha dois meses ainda. Por parte dos guardas, além da escala de trabalho, a rotatividade colabora com possíveis falhas na comunicação, pois eles não sabem qual regra está valendo. Um desses guardas admitiu que a cada plantão recebe uma informação nova. </P>
<P>Em toda incursão ao campo, as possibilidades de ser barrado no portão são grandes. A comunicação entre servidores do TJRJ, agentes da Seap e policiais militares não é coordenada. A cada troca de plantão, é preciso explicar os motivos. Alguns não autorizam a entrada de maneira alguma; outros se mostram mais dispostos e vão até os juízes confirmar a autorização. </P>
<P>O caráter restrito é reconhecido pelos próprios operadores do direito, que as tratam como uma exceção, especialmente em comparação com o caráter público das audiências judiciais. Em uma audiência criminal de instrução e julgamento, o defensor público, ao perceber a presença de um pesquisador na sala, elogiou a postura do juiz em dar “publicidade aos atos do Judiciário”. Já um magistrado com experiência nas audiências de custódia e interlocutor da pesquisa disse a um colega defensor público, para sua surpresa, que era “impossível” entrar na Ceac sem uma autorização do juiz. </P>
<P>O aprimoramento dos dispositivos de encarceramento </P>
<P> </P>
<P>Apesar da justificava de otimização dos recursos públicos e maior abrangência para a realização das audiências de custódia, a transferência das audiências de custódia aprimora os dispositivos de encarceramento. </P>
<P>Um tribunal, supostamente, é o lugar onde se faz Justiça. Uma cadeia, apesar do discurso da ressocialização, é um local para cumprimento da pena. Os custodiados saem das delegacias e vão direto para o interior de uma unidade prisional, sem um número de processo. Muitas vezes, são pessoas punidas por sua insuficiência financeira: tendo sido arbitrada fiança em sede policial, são mantidas presas por falta de pagamento. </P>
<P>Na Ceac, poucos custodiados eram oriundos de unidade prisional. Muitas vezes eram levados para lá em função do contexto da prisão, como quando há um grande número de pessoas presas juntas, caso de, por exemplo, confrontos de torcidas de futebol ou quando os presos precisavam ficar hospitalizados. Agora, todos os presos em flagrante, sem exceção, saem direto da viatura da Polícia Civil para a unidade prisional, e só depois são apresentados ao juiz. Isso pode ser entendido como uma forma de acelerar o processo de socialização entre pessoas que nunca foram presas com as já reincidentes na prática delitiva e, portanto, familiares à rotina de cadeia. </P>
<P>Em alguns casos, foi possível observar que mesmo a poucos metros da Ceac, os custodiados não eram encontrados para a realização das audiências por conta dos trâmites burocráticos entre funcionários da Ceac e Seap. Alguns custodiados chegaram a aguardar sua audiência por 16 dias, sem a conversão do flagrante em prisão preventiva. Em muitos desses casos, o prazo de 24 horas da prisão em flagrante fora extrapolado sem que o auto de prisão em flagrante fosse apreciado por uma autoridade judicial. Isso tornaria esse tipo de prisão ilegal. Seriam, consequentemente, relaxadas. Mas nem sempre isso acontecia. </P>
<P>Da mesma forma, identificamos custodiados com o nome na pauta do dia que não foram apresentados, por não terem sido localizados dentro da cadeia. Nesses casos, os secretários indagavam aos juízes sobre o que deveria ser feito. Em uma das audiências, a secretária consultou o magistrado sobre a conveniência da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, mesmo sem a realização da audiência. O juiz pediu a ela que registrasse em ata que o custodiado estaria hospitalizado, não podendo ser apresentado. </P>
<P>Os casos de não realização de audiência são informados ao chefe do cartório da Ceac para que ela seja pautada novamente no dia seguinte. Ou seja, mesmo com os presos sob custódia no mesmo espaço, a Seap e o TJRJ não conseguem articular seus serviços de forma a cumprir os prazos legais de duração da prisão em flagrante e apresentação dos presos nas audiências de custódia. Parte disso se deve à falta de estrutura da Ceac, que destoa das instalações luxuosas e exuberantes do Tribunal de Justiça. Além do espaço reduzido, são poucos os funcionários, e faltam materiais básicos de consumo, como papel e copo descartável. </P>
<P>Por parte dos advogados, tem sido constante a reclamação sobre a precariedade da Ceac. Além disso, muitos não têm acesso aos autos e só conseguem contato com os magistrados no momento da audiência. </P>
<P>Em Vigiar e punir, Foucault (2015) apresenta uma crítica ao direito penal, demonstrando como as penas de violência física sobre os corpos em praça pública foram substituídas pelas penas de restrição de liberdade. Espera-se que o período de reclusão devolva as pessoas “dóceis e úteis” (FOUCAULT, 2015) para a sociedade. Para o autor, os juristas não dizem mais que punem os criminosos, mas que a prisão tem o objetivo de readaptar delinquentes. </P>
<P> </P>
<P>(...) a condenação que marcará o delinquente com a o sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença, quanto a execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distância tendendo sempre a confiá-la a outros sob a marca do sigilo. É indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que a impõe. A execução da pena vai-se tornando um setor autônomo, em que um mecanismo administrativo desonera a justiça, que se livre desse secreto mal-estar por um enterramento burocrático da pena (Ibid., p. 15). </P>
<P> </P>
<P>No entanto, as instituições brasileiras de Justiça apresentam uma modalidade alternativa à descrita por Foucault. Para os nossos promotores e juízes, as anotações criminais – mais que a condenação em si – já são suficientes para marcar os presos com o sinal negativo. Ao que parece, promotores de Justiça pedem pela pena de prisão apenas pelo desejo de castigar a pessoa que cometeu o crime, tendo plena ciência de que o encarceramento não cumpre com o objetivo de ressocialização. </P>
<P>Dessa forma, não há nenhuma publicidade e transparência dos atos nas audiências de custódia, uma vez que são realizadas dentro de uma unidade prisional e sua observação é de acesso restrito até mesmo para profissionais do direito como os advogados. </P>
<P>O carrasco, antes responsável pela execução do suplício e dos castigos físicos, ganhou uma nova representação na Ceac. Como observado em uma audiência, a imagem do carrasco é hoje atribuída ao juiz que “mantém todo mundo preso”. </P>
<P>Apesar disso, para alguns promotores a prisão tem por objetivo a aplicação de um castigo para a pessoa que cometeu o ato criminado, retirando-a do convívio social e evitando que ela volte à prática delitiva no período determinado de reclusão. Para um desses promotores, deveria ser extinta a progressão de regime, e a pena determinada em sentença pelo juiz, cumprida em sua integralidade. </P>
<P>Diversas vezes, os custodiados chegam com sinais claros de agressões sofridas no momento da prisão, mas o promotor de Justiça sequer faz menção a essas irregularidades. O mesmo promotor disse, em uma outra ocasião, durante uma audiência de instrução e julgamento, que “apanhar faz parte da profissão do vagabundo”. Do mesmo modo, a violência no momento da abordagem é naturalizada pelos custodiados, que em parte concordam com o promotor quando recebem tapas na cara: “nada de mais; só tapa na cara”, disse um deles em audiência. </P>
<P>Nesse sentido, há uma dimensão moral que influencia o resultado das decisões. Uma vez que os custodiados já estão presos em uma unidade prisional, inverte-se o questionamento feito pelos juízes. Em lugar de decidirem sobre a manutenção da prisão cautelar dos acusados, se interrogam sobre quando devem soltar, levando em conta uma dimensão moral para além dos critérios previstos no Código de Processo Penal. </P>
<P>Com a apresentação dos presos nas audiências, o CNJ esperava maior sensibilidade do juiz ao decidir pela manutenção da prisão ou a concessão da liberdade provisória. No entanto, a corporalidade (SINHORETTO, 2005) dos operadores do direito marca a distância da realidade dos custodiados, como bem colocado pelo promotor ao dizer que o trabalho em uma vara criminal era mais fácil porque está distante de sua realidade. </P>
<P>Por outro lado, a centralização das audiências de custódia contraria o objetivo da otimização dos recursos públicos, uma vez que policiais civis e presos se deslocam por grandes distâncias. Entretanto, os fóruns regionais não realizam essas audiências antes de os presos ingressarem no sistema prisional. Assim, a relação seria apenas entre a Polícia Civil e a Justiça, encaminhando os presos para a Seap após a decisão de manutenção ou conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva pelo juiz da custódia. Isso demonstra como os serviços das instituições de segurança pública e de Justiça estão desarticulados, prejudicando a garantia de direito dos cidadãos. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Conclusão </P>
<P> </P>
<P>Este artigo mostrou como a transferência das audiências de custódia para a cadeia pública no Rio de Janeiro decorre de uma política de organização dos serviços de Justiça orientados para a otimização dos recursos, segundo os próprios membros das instituições. Na condição de política pública judiciária, o objetivo das audiências de custódia seria produzir uma supervisão sobre o trabalho da polícia nos casos de prisão em flagrante. A política surgiu de uma regulação do Conselho Nacional de Justiça e não está prevista em uma lei aprovada pelo Congresso Nacional. A transferência de local atende a razões de natureza organizacional das instituições de segurança pública e de Justiça, sem que isso produza maior acesso a direitos ou a uma melhor compreensão dos serviços institucionalizados de administração de conflitos por parte dos cidadãos. </P>
<P>A organização do serviço limita ainda mais o acesso ao local onde as audiências se realizam. As salas de audiência são ainda menores, comportando poucas pessoas. O caráter público da audiência é prejudicado, já que é restrito àqueles autorizados a permanecer na cadeia pública e apenas na sala de audiência. </P>
<P>As audiências reservam o ritual apenas aos membros institucionais e aos custodiados. Os juízes lidam com custodiados que já estão presos em uma cadeia e não em outro dispositivo prisional ao qual é levado com esse fim. Os juízes deliberam sobre a liberdade de alguém que está preso de fato. Assim, o que está em jogo não é a possibilidade da liberdade, mas a necessidade de manter os custodiados presos. O dilema moral é favorecido por essa forma de organizar o serviço de Justiça. </P>
<P>A otimização dos recursos parece uma justificativa frágil diante das consequências políticas que a mudança implica. A transferência das audiências de custódia para uma cadeia pública parece se apresentar mais como um aperfeiçoamento do dispositivo de punição da Justiça, que busca prolongar a permanência de presos nas cadeias, evitando, assim, a circulação dos corpos aprisionados em espaços que reservamos para a realização da Justiça. </P>
<P> </P>
<H1>Referências </H1>
<P> </P>
<P> </P>
<P>ALMEIDA, Frederico de. Intelectuais e reforma do Judiciário: Os especialistas em direito processual e as reformas da Justiça no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 17, p. 209-246, 2015. </P>
<P>AMORIM, Maria Stella de. Juizados especiais na região metropolitana do Rio de Janeiro. Revista da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, v. 17, p. 107-131, 2006. </P>
<P>AMORIM, Maria Stella de. Conflitos no mercado de bens e serviços: Consumidores e consumidos. Trabalho apresentado na 26a Reunião da Associação Brasileira de Antropologia (ABA): Desigualdade na diversidade, Brasília, 2008. </P>
<P>AMORIM, Maria Stella de; KANT DE LIMA, Roberto; BAUMANN BURGOS, Marcelo (orgs.). Juizados especiais criminais: Sistema judicial e sociedade no Brasil. Niterói: Intertexto, 2003. </P>
<P>AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Juizados Especiais Criminais: Uma abordagem sociológica sobre a informalização da Justiça penal no Brasil. RBCS, v. 16, n. 47, p. 97-110, 2001. </P>
<P>BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e dar fuga: Biopolítica, sistema penitenciário e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. </P>
<P>BONELLI, Maria da Gloria. Profissionalismo e política no mundo do Direito. São Carlos: EdUFSCar/Sumaré, 2002. </P>
<P>BONELLI, Maria da Gloria. As interações dos profissionais do direito em uma Comarca do Estado de São Paulo. In: SADEK, Maria Tereza (org.). O sistema de justiça. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2010a, p. 24-70. </P>
<P>COELHO, Edmundo Campos. A administração da Justiça Criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967. Dados: Revista de Ciências Sociais, v. 29, n. 1, pp. 61-81, 1986. </P>
<P>DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC: Hegemonia nas prisões e monopólio da violência. São Paulo: Saraiva, 2013. </P>
<P>FALCÃO, Joaquim. A reforma silenciosa. Revista Conjuntura Econômica, v. 63, n, 11, p. 74-75, 2009. </P>
<P>FONTAINHA, Fernando. Acesso da Justiça: Da contribuição de Mauro Capelletti à realidade brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. </P>
<P>FONTAINHA, Fernando. Juízes empreendedores: Um estudo a partir da informatização dos tribunais brasileiros. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. </P>
<P>FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 2015. </P>
<P>GERALDO, Pedro Heitor Barros. A gestão da ‘Justiça de Proximidade’ na França: A análise da política pública judiciária. Revista da SJRJ, v. 18, n. 30, 2010. Disponível em: http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/view/190. </P>
<P>KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: Seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995. </P>
<P>LEITE, Ângela Moreira. Em tempo de conciliação. Niterói: EdUFF, 2003. </P>
<P>MARCUS, George. Ethnography in/of the World System: The Emergence of Multi-Sited Ethnography. Annual Review of Anthropology, n. 24, p. 95-117, 1995. </P>
<P>MELLO, Marcelo Pereira de; MEIRELLES, Delton Soares. Juizados Especiais: Entre a legalidade e a legitimidade – Análise prospectiva dos juizados especiais da comarca de Niterói, 1997-2005. Revista Direito GV, v. 6, n. 2, p. 371-398, 2010. </P>
<P>O GLOBO. Central de Audiência de Custódia é inaugurada dentro de presídio em Benfica. O Globo, Rio, 02 out. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/central-de-audiencia-de-custodia-inaugurada-dentro-de-presidio-em-benfica-21898574 </P>
<P>PAES, Vivian Gilbert Ferreira. Crimes, procedimentos e números: Estudo sociológico sobre gestão dos crimes na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2013. </P>
<P>PAES, Vivian Gilbert Ferreira; RIBEIRO, Ludmila. Produção acadêmica sobre práticas de segurança pública e justiça criminal: Estudos empíricos sobre instituições, interesses, decisões e relações dos operadores com o público. Confluências: Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, v. 16, n. 3, p. 9-33, 2014. </P>
<P>SADEK, Maria Tereza. Judiciário: Mudanças e reformas. Estudos Avançados, v. 18, n. 51, p. 79-101, 2004a. </P>
<P>SADEK, Maria Tereza. Poder Judiciário: Perspectivas de reforma. Opinião Pública, v. 10, n. 1, p. 1-62, 2004b. </P>
<P>SADEK, Maria Tereza; DANTAS, Humberto. Os bacharéis em Direito na reforma do Judiciário: Técnicos ou curiosos? São Paulo em Perspectiva, v. 14, n. 2, p. 101-111, 2000. </P>
<P>SANANDRES, Luiza Barçante; GERALDO, Pedro Heitor Barros. ‘Acusados’ e ‘bandidinhos’: Uma abordagem praxeológica sobre a produção dos pareceres realizada no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. In: KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lucía (orgs). Pensando o Rio: Administração policial e judicial de conflitos. Niterói: Intertexto, 2016, p. 227-266. </P>
<P>SILVA, Cátia Aida. Justiça em jogo: Novas facetas da atuação dos promotores de justiça. São Paulo: Edusp, 2001. </P>
<P>SINHORETTO, Jacqueline. Corpos do poder: Operadores jurídicos na periferia de São Paulo. Sociologias, n. 13, p. 136-161, 2005. </P>
<P>________. Reforma da justiça (estudo de caso). Tempo Social, v. 19, n. 2, p. 157-177, 2007. </P>
<P>________. A justiça perto do povo: Reforma e gestão de conflitos. São Paulo: Alameda, 2011. </P>
<P>VARGAS, Joana Domingues; RODRIGUES, Juliana Neves Lopes. Controle e cerimônia: O inquérito policial em um sistema de justiça criminal frouxamente ajustado. Sociedade e Estado, v. 26, n. 1, p. 77-96, 2011. </P>
<P>VERONESE, Alexandre. Informalização da justiça informal: O Expressinho no Estado do Rio de Janeiro. In: FONTAINHA, Fernando de Castro; GERALDO, Pedro Heitor Barros (orgs.). Sociologia empírica do direito. Curitiba: Juruá, p. 355-400, 2015. </P>
<P>VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999. </P>
<P>WERNECK VIANNA, Luiz; MELO, Manuel Palácios Cunha; CARVALHO, Maria Alice Rezende de. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. </P>
<P> </P>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P> </P>
<P> </P>
</TH>
<TH>
<P>JOÃO VITOR FREITAS DUARTE ABREU (joaovitorabreu@id.uff.br) é mestrando em ciências jurídicas e sociais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil) e graduado em segurança pública e social pela UFF. É membro do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito (NSD) da mesma universidade. </P>
<P> </P>
<P>PEDRO HEITOR BARROS GERALDO (pedrogeraldo@id.uff.br) é professor adjunto do Departamento de Segurança Pública (DSP) e professor permanente do PPGSD, ambos da UFF. Coordena o NSD da UFF e é vice-diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) da mesma universidade. Bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Doutor em ciência política pela Université Montpellier 1 (França), mestre pelo PPGSD da UFF e graduado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil). </P>
</TH>
</TR>
<TR>
<TH>
<P> </P>
</TH>
<TD>
<P> </P>
</TD>
</TR>
</Table>
<P> </P>
<P> </P>
<P>Recebido em: 07/02/2019 Aprovado em: 14/02/2019 </P>
</Sect>
</TaggedPDF-doc>

Apontamentos

  • Não há apontamentos.


Direitos autorais 2022 Ao submeter um texto, o(s) autor(es) declara(m) aceitar todos os termos e condições da revista e cede(m) a ela os direitos de publicação impressa e digital. Os direitos autorais dos artigos publicados são do autor, porém com direitos da DILEMAS - Revista de Estudos de Conflito e Controle Social sobre a primeira publicação.

Licença Creative Commons
Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

               

APOIO: