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<P>Letalidade e ilegalismos de negócios em uma tríplice fronteira sul-americana: Primeira aproximação </P>
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<H1>Daniel Veloso Hirata </H1>
<H1>Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil </H1>
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<P> </P>
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<Table>
<TR>
<TH>
<P>Este artigo versa sobre as relações entre ilegalismos e letalidade por meio de pesquisas realizadas na cidade de Tabatinga – AM, localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Inicialmente, são apontados três aspectos que recorrentemente aparecem associados para caracterizar Tabatinga como um lugar problemático: homicídios, mercados da cocaína e densidade institucional. Uma hipótese alternativa é formulada para re-situar a questão sob outros parâmetros empíricos-analíticos, buscando iluminar as redes político-econômicas que regulam o mercado da cocaína e produzem efeitos letais através do fenômeno da pistolagem e dos grupos de extermínio. </P>
</TH>
<TH>
<P>Lethality and Business Illegalisms on a Triple South American Border: A First Approximation discusses the relationship between illegalisms and lethality through research conducted in the city of Tabatinga (AM), located in the border between Brazil, Colombia, and Peru. Firstly, it introduces three aspects often associated with the city and used to characterize it as a problematic place: homicides, cocaine markets, and institutional density. Secondly, an alternate hypothesis is formulated to re-situate the issue under different empirical-analytical parameters, seeking to highlight the political and economic networks that regulate the cocaine market and produce lethal effects through pistolagem and extermination groups. </P>
</TH>
</TR>
<TR>
<TH>
<P>Palavras-chave: fronteira, Tabatinga, letalidade, mercados, ilegalismos </P>
</TH>
<TD>
<P>Keywords: borders, Tabatinga, lethality, markets, illegalisms </P>
</TD>
</TR>
</Table>
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<P>Introdução </P>
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<DropCap>
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E </DropCap>
</P>
<P>ste texto
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é uma primeira tentativa de sistematização do material produzido por meio da pesquisa Segurança Pública nas Fronteiras (NEVES et al., 2016). Em seguida da entrega do relatório técnico ao Ministério da Justiça, o esforço da equipe do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tem sido fazer proveito e desdobrar a enorme riqueza dos dados produzidos ao longo desses últimos anos de trabalho.
<Link>2</Link>
Neste artigo, vou me concentrar em avançar uma das principais conclusões apresentadas ao governo federal: a maior circulação de mercadorias ilícitas nos municípios de fronteira não está relacionada a “problemas de segurança pública”. </P>
<Endnote>
<P>Notas </P>
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<P> </P>
<P>1 Este artigo é a primeira parte de um texto cuja continuação será publicada em seguida. Agradeço a um grande amigo, a quem não posso nomear, pelos valiosos comentários. </P>
<P>2 O Grupo Retis, UFRJ, compilou dados secundários de cunho socioeconômico e demográficos, além de informações de convênios, orçamentos e operações. O Necvu realizou survey com os operadores de todas as instituições de segurança pública e defesa em 178 cidades e em 55 cidades-gêmeas, onde também fizemos entrevistas semiestruturadas, grupos focais, conversas informais e observação participante, com duração média de dez a 15 dias em cada cidade, com retornos em alguns casos. Cabe destacar também que, pela primeira vez em pesquisas oficiais de segurança pública nas fronteiras, foram incluídas as vozes de representantes da sociedade civil, como diretores de escolas, postos de saúde, lideranças indígenas, e de trabalhadores urbanos e rurais, formais, informais e ilegais. A pesquisa foi desdobrada em projetos para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Capes-Cofecub. Os dados de apreensões foram atualizados graças à Lei de Acesso à Informação e a prestativa resposta da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Amazonas (SSP/AM) e do Departamento de Polícia Federal (DPF). </P>
<P>3 Na chave da migração, ver o excelente artigo de Bela Feldman-Bianco (2018). Para alguns apontamentos muito mais restritos, ver Hirata (2015). </P>
<P>4 Tive a oportunidade de estar por três vezes na cidade entre 2012 e 2014, em períodos de cerca de 15 dias. Minha atuação nas pesquisas realizadas pelo Necvu se concentrou na supervisão do trabalho de pesquisa na Região Norte do Brasil, especialmente no estado do Amazonas. </P>
<P>5 Ver a excelente reportagem de Bruno Paes Manso (2017). </P>
<P>6 Dado que uma parte importante dos autores vem encontrando uma forte associação entre aumento da densidade populacional e homicídios, chama a atenção que o aumento da importância relativa dos homicídios no interior do Amazonas ocorra no mesmo período em que Manaus passa a ter uma concentração populacional ainda maior, com mais da metade da população do estado. Ver Beato Filho et al. (2001). Ainda como ponderação que reforça o crescimento do peso relativo do interior do estado, a concentração proporcional da população no Amazonas em Manaus é feita sobretudo em zonas urbanas, o que também indica que as hipóteses de aumento das taxas de homicídios baseadas no grau de urbanização parecem não se aplicar no estado. Ver Nascimento (2012). </P>
<P>7 Ver Schor e Butel (2017). </P>
<P>8 Sobre a cosmologia da polícia, ver Kokoreff, Coppel e Peraldi (2018). </P>
<P>9 Entre muitos outros, ver Andreas e Greenhill (2010). </P>
<P>10 Existe uma particularidade a ser destacada em futuro artigo: as apreensões do DPF no Amazonas são superiores às das polícias estaduais, o inverso do que acontece em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo. Levanto como hipótese a </P>
</Endnote>
<P>A ideia que subjaz – contra a qual nos posicionamos – é que fragilidade das instituições de segurança permitiria a circulação de cocaína e produziria tais problemas. A solução circular sempre proposta para uma dita “disfunção institucional” seria um aumento do efetivo, da estrutura e do equipamento das instituições – continuamente o ponto central que orienta o orçamento das políticas de segurança pública e, recentemente, das políticas para a fronteira –, com vistas a diminuir a circulação de drogas que ocasionariam os problemas de segurança pública.políticas de segurança pública e, recentemente, das políticas para a fronteira –, com vistas a diminuir a circulação de drogas que ocasionariam os problemas de segurança pública.políticas de segurança pública e, recentemente, das políticas para a fronteira –, com vistas a diminuir a circulação de drogas que ocasionariam os problemas de segurança pública.</P>
<P>Em nosso relatório, destacamos que, na maior parte dos municípios de fronteira, onde sabidamente circulam drogas e/ou contrabando, não foi possível observar “problemas de segurança pública”. Mas, então, a pergunta que se coloca é por que essa relação entre fragilidade institucional, mercados ilegais, fronteiras e violência emerge com tanta força em matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos, e orienta as recentes políticas públicas para as fronteiras? </P>
<P>Aparentemente, isso acontece porque se toma o que supostamente ocorre em algumas cidades específicas como a dinâmica geral fronteiriça. Para traçar o argumento, vou me concentrar na cidade de Tabatinga, no Amazonas, situada na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.
<Link>4</Link>
</P>
<P>No primeiro dia de 2017, o massacre no complexo penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, detonou uma dupla injunção que reforçava essa associação entre letalidade, fraqueza estatal, força do crime organizado e as rotas da cocaína naquela região de fronteira: o massacre havia ocorrido por conta de uma guerra de facções de Rio de Janeiro (Comando Vermelho - CV), de São Paulo (Primeiro Comando da Capital - PCC) e do Amazonas (Família do Norte - FDN) pelo controle das rotas de pasta base e cloridrato de cocaína, sobretudo a chamada Rota do Solimões, cujo epicentro seria Tabatinga. A rota do Solimões seria importante para a estruturação econômica da FDN e um alternativa do CV frente às dificuldades de abastecimento de cocaína provenientes do Centro-Oeste do Brasil impostas pelo PCC. Dado o horror do massacre e a difusão de imagens de dentro das prisões,
<Link>5</Link>
a associação entre fraqueza de Estado, fronteiras, drogas, crime organizado e violência agora ganhava mais pertinência que nunca, e ligou o sinal vermelho mais uma vez para aquela região do país. </P>
<P>Tabatinga é, portanto, uma das cidades de fronteira onde aparentemente fragilidade institucional, letalidade e mercados da cocaína se conjugam, servindo de tempos em tempos como combustível para o imaginário jornalístico e estatal que vê as fronteiras como lugares perigosos. Confunde-se a existência de um diferencial fronteiriço (ALBUQUERQUE, 2015), que implica uma intensa circulação de pessoas e mercadorias situadas nos limiares entre legalidade e ilegalidade (RABOSSI, 2004; ALBUQUERQUE e PAIVA, 2015), com “perigo” ou “risco” à segurança pública, sem perceber-se que isto situa-se “desde a sua construção êmica, política e simbólica, territorializada, ao mesmo tempo discursiva, imagética e intensamente material, mobilizada pelos mais diversos agentes em tensão” (OLIVAR, 2015). </P>
<P>Para ir direito ao ponto, Tabatinga é uma das cidades-exceção, mas que projeta uma generalização para toda a fronteira. Cabe analisar essa cidade-exceção, contudo, para que possamos não apenas reforçar a não relação entre letalidade e mercados ilegais como dinâmica geral fronteiriça, mas também traçar algumas hipóteses para o entendimento da relação, quando ela aparece de forma particular. A aposta é que entender essa singularidade projetada como generalidade nos ajudará a questionar a generalização projetada sobre as cidades situadas nas fronteiras. </P>
<P>Para tanto, em primeiro lugar, vou expor sumariamente os três aspectos que recorrentemente aparecem associados para caracterizar Tabatinga como um lugar problemático: homicídios, mercados da cocaína e a densidade institucional. Em seguida, vou formular hipóteses alternativas que possibilitem ressituar a questão sob outros parâmetros empíricos-analíticos. </P>
<P> </P>
<P>Letalidade </P>
<P> </P>
<P>Segundo um ranking que considerou as taxas médias de homicídios em municípios brasileiros e sua comparação com os municípios fronteiriços, Tabatinga aparecia no 511° lugar, considerando a totalidade dos municípios brasileiros, e em 67° lugar entre os municípios de fronteira (SALLA, ALVAREZ e OI, 2011). A taxa média de 28.1 homicídios por 100 mil habitantes, contudo, posiciona a cidade como a segunda maior taxa média do Amazonas – depois de Manaus – e a maior taxa média entre os municípios de fronteira do estado (Idem). Nesta primeira parte do artigo, a proposta é situar a cidade de Tabatinga na Região Norte e no estado do Amazonas, dentro de um período mais longo, a fim de atualizar e estender a abrangência desses dados. </P>
<P>A variação da taxa de homicídios é um primeiro dado que chama atenção: ao longo dos anos 2000, é possível ver um crescimento constante e, em 2006, a Região Norte ultrapassa a média brasileira. Essa tendência persiste durante os anos 2010, quando a diferença com a média brasileira aumenta. Dessa forma, se em 1992 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes era de 17.6 para a Região Norte e 18.7 para o Brasil, em 2006, ela passa a ser de 27.6 para a Região Norte e 26.4 para o Brasil, diferença que aumenta nos dez anos subsequentes: em 2016, a taxa é de 47.4 para a Região Norte e 30.2 para o Brasil. </P>
<P> </P>
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<P>Gráfico 1: Taxa de homicídios (Brasil e Região Norte) </P>
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<P>Fonte: Datasus. </P>
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<P>Dentre os estados situados na Região Norte, é possível dizer que o Amazonas segue o crescimento dos homicídios de forma bem próxima à da região, ou seja, uma média de um pouco menos de 20 por 100 mil habitantes até a metade dos anos 2000, quando essa média aumenta consideravelmente. Ao nos concentrarmos nos municípios do Amazonas, vê-se que a capital, Manaus, é especialmente importante por seu peso populacional nos registros de homicídios. Durante todo o período, a capital possui taxas de homicídios significativamente maiores que o todo o interior. Por outro lado, cabe destacar que, se entre 1992 e 1999 Manaus concentrava em média 90% de todos os homicídios do estado, passa para uma média de 78% durante o intervalo entre 2000 e 2016. Isso significa que, apesar de a capital continuar a concentrar a maior parte dos homicídios do estado durante todo o período analisado, encontramos um peso crescente dos municípios do interior exatamente no momento em que as taxas de homicídios aumentam no Amazonas como um todo.
<Link>6</Link>
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<P>Gráfico 2: Porcentagem dos homicídios (Manaus/interior) </P>
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<P>Fonte: Datasus. </P>
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<P>Nessa direção, é importante olhar para Tabatinga, que sempre figura entre os municípios com maior ocorrência dos registros de homicídios do estado, ao lado de Manaus, Itacoatiara, Manacapuru, Presidente Figueiredo e Coari. Tabatinga se destaca sobretudo quando consideramos que os outros municípios de alto registro de homicídios se encontram conectados a Manaus por via terrestre – à exceção de Coari –, sofrendo os efeitos mais intensos da proximidade com a capital e núcleo mais urbanizado do estado.
<Link>7</Link>
</P>
<P>Entre os municípios do interior, Tabatinga sobressai tanto pelo volume quanto pela taxa de homicídios. Se, de 1979 a 1991, foram registrados apenas seis homicídios em Tabatinga, entre 1992 e 1999, temos uma média de três registros de homicídios por ano; entre 2000 e 2010, a média é de 13 por ano; e, entre 2011 e 2016, a média é de 22.3. Olhando as taxas de homicídio em todo o período, percebemos, apesar da irregularidade dos dados, dois patamares, com taxas médias de homicídios de 10.4 por 100 mil habitantes entre 1992 e 1999, 30.3 entre 2000 e 2010 e 35 entre 2011 e 2016. </P>
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<P>Gráfico 3: Taxas de homicídio em Tabatinga </P>
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<P>Fonte: Datasus. </P>
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<P>Assim, que durante o período disponível para a consulta de dados, de 1992 a 2016, encontramos: </P>
<P> </P>
<P>1) Aumento expressivo de registros de homicídios na Região Norte, quando comparados à média brasileira; </P>
<P>2) Diminuição do peso relativo de registros de homicídios entre Manaus e o interior do estado do Amazonas; </P>
<P>3) Aumento expressivo de registros de homicídios na cidade de Tabatinga, em comparação com o Amazonas. </P>
<P> </P>
<P>Mercados da cocaína </P>
<P> </P>
<P>Há fortes evidências de que Tabatinga ocupe um lugar estratégico nas rotas e nos corredores de circulação de cloridrato de cocaína e pasta base da Região Norte. Segundo alguns autores, isso decorre da “posição geográfica estratégica e da hierarquia urbana da cidade”: Tabatinga é caracterizada como uma das cidades-chave de rotas e corredores da Bacia Amazônica, especificamente do chamado Trapézio Amazônico, a maior região produtora de cocaína do mundo (MACHADO, 2003). </P>
<P>Seguindo a cosmologia policial,
<Link>8</Link>
o tráfico de pasta base e cloridrato de cocaína é majoritariamente atacadista, destinado ao consumo interno e à exportação. A Polícia Federal acredita que passam de 100 a 150 toneladas por ano de cocaína, somente em Tabatinga. A estimativa do preço do quilo de cloridrato de cocaína vendido nos países vizinhos varia de 1.000,00 a 2.000,00 reais, valor que permite a compra de grandes quantidades da droga. A parte brasileira da rota segue de Tabatinga até Manaus, onde se encontra o maior porto fluvial do país, seguindo para Santarém, Belém e, depois, para o Nordeste, especialmente São Luís, Fortaleza e Recife. O consumo interno no Brasil se dá nas regiões Norte e Nordeste, e a exportação é feita para os EUA, pelo Caribe, e, sobretudo, para a Europa, pela África e Holanda, por meio do porto de Roterdã. </P>
<P>Segundo ainda essa mesma cosmologia policial, que, via de regra, direciona as reportagens de jornais e emissoras de rádio e televisão, o impacto desse grande corredor de transporte de pasta base e cloridrato de cocaína na letalidade transfronteiriça pode ser explicado em parte pela articulação que o tráfico de drogas faz entre os três países que estabelecem fronteira na região. O tráfico mais organizado localiza-se já há algum tempo de forma predominante na Colômbia e no Peru. Na Colômbia, dada a formação de redes mais antigas e estruturadas, encontram-se alguns dos grandes laboratórios de refino da folha de coca e, sobretudo, os grupos financiadores do tráfico, inclusive com ramificações na atuação como prestamistas (agiotas) em um grande circuito que conecta também Manaus e Iquitos. No Peru, atualmente um grande produtor da folha de coca, localizam-se laboratórios de menor porte, mas há grandes plantações na região conhecida como Vrae, formada pelos vales dos rios Apurímac e Ene, e, de forma mais próxima do Brasil, no rio Javari e na calha do Solimões. Essa configuração atual decorre da convergência entre a maior dificuldade dos grupos colombianos em atuar em seu próprio território, graças à grande presença militar colombiana e americana, e também das inovações agrícolas do plantio de coca, que permitiram um aumento de produtividade e a emergência de grupos de traficantes peruanos. </P>
<P>Assim, os conflitos entre grupos peruanos e colombianos é muito frequente na região da tríplice fronteira, onde as rotas confluem em Tabatinga para seguir pela calha do rio Solimões. Segundo policiais e moradores entrevistados, no Brasil, os grupos envolvidos com o comércio desse tipo de droga se ocupam basicamente de seu transporte, por meio de duas modalidades diferentes. Por um lado, o transporte tipo “formiga”, por meio de “mulas” que ganham por volta de 1.500,00 reais pela passagem de poucos quilos da droga – por volta de 20 quilos. Ou seja, mobiliza-se uma população pobre e vulnerável para fazer a parte perigosa do processo, justamente por sua precariedade. Por outro, o transporte pode ser feito em grandes embarcações, portando um volume muito maior. Tais grupos são muito mais organizados, a ponto de, por vezes, passarem a se ocupar também do plantio e do beneficiamento. Eles podem esconder a droga em embarcações de transporte de passageiros ou realizar escoltas de embarcações próprias, carregando entre 300 e 400 quilos de pasta base. As escoltas podem ser fortemente armadas. Há, inclusive, relatos de confrontos violentos com morte de agentes da Polícia Federal. </P>
<P>Seja em sua forma capilar ou em grandes carregamentos, ambas as formas de transporte são comandadas e disputadas por grupos muito organizados de traficantes nacionais e internacionais, compostos por barqueiros, comerciantes, políticos e policiais. No que diz respeito aos grupos criminais brasileiros, foi relatada a intermitência de cooperação e conflito entre o PCC e a FDN. A relação desses grupos com os colombianos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e paramilitares, na Colômbia, e do Novo Sendero, no Peru, não é de natureza muito conhecida, mas pode-se imaginar que não seja muito diversa do que foi retratado até aqui: acordos parciais e instáveis, que variam entre a cooperação comercial e a competição militarizada nas disputas e negociações envolvidas nesse grande mercado. </P>
<P>O comando desses grandes grupos nacionais e internacionais ocorre nas três cidades mais importante da região: Manaus (Brasil), Iquitos (Peru) e Letícia (Colômbia). Em Manaus, estão situados os grupos mais organizados do lado brasileiro. Lá ocorre a divisão de tarefas entre o produtor, o distribuidor e o revendedor em suas formas de articulação com geometrias variadas, ou seja, em redes que podem ou não se ligar no atacado e no varejo, conformando-se diversos esquemas diferentes. Muitos dos conflitos em Manaus têm ressonância em Tabatinga, como a morte de conhecidos traficantes da capital nos anos de 2013 e 2014, que acabou por alterar a dominância dos grupos que atuam na fronteira. Esse tipo de situação serve como exemplo da maneira pela qual as redes de transporte conectam as duas cidades. </P>
<P>Deslocando-nos um pouco da cosmologia policial, uma questão decisiva é o fato de não existirem dados confiáveis sobre os mercados da cocaína. Seria um erro utilizar os dados de apreensões policiais para estimar os mercados da droga.
<Link>9</Link>
No entanto, utilizarei os dados disponibilizados pelo Departamento da Polícia Federal,
<Link>10</Link>
fazendo, sobre eles, algumas considerações. </P>
<Endnote>
<P>diferença entre a circulação de grandes quantidades em cidades do interior, sobretudo Tabatinga, diferentemente dessas outras capitais, onde o volume se dá em apreensões varejistas. </P>
<P>11 Ver os relatórios disponíveis no site do DPF. Disponível em:
<Link>http://www.pf.gov.br</Link>
</P>
<P>12 Para uma excelente análise da densidade nas áreas de proteção social e educação, ver Melo (2018). </P>
<P>13 Uma diretriz central da Enafron foi a integração entre as instituições de segurança pública brasileiras. Mas é importante destacar que esse foi o primeiro grande esforço de integrar instituições que funcionam como um arquipélago, já que as iniciativas de trabalho conjunto tendem a ser pontuais, tensas, instáveis, quando não totalmente improvisadas. </P>
<P>14 Em ambas as operações, a troca de informações se mostrou muito eficaz em desbaratar grupos ligados ao tráfico de drogas, sobretudo o transporte de drogas em grandes quantidades realizado nos rios da região, mas também, pontualmente, foram realizadas operações de controle de plantações. </P>
<P>15 Ver os relatórios disponíveis no site do DPF. Disponível em:
<Link>http://www.pf.gov.br</Link>
</P>
<P>16 As hipóteses foram construídas por meio do trabalho de campo em Tabatinga – incluindo aqui percepções obtidas no survey, grupos focais, entrevistas, conversas informais e observação participante –, bem como do aprendizado com a literatura historiográfica sobre o tema. A separação entre operadores das instituições de segurança pública e sociedade civil foi mais operatória que analítica, cabendo destacar mais uma vez que foi a primeira pesquisa de segurança pública nas fronteiras que ouviu a sociedade civil. </P>
<P>17 Em dado momento, o autor diz: “entre o ilegalismo propriamente econômico e a transgressão quase política da autoridade do poder, há um continuum, e é difícil fazer a distinção entre eles” (FOUCAULT, 2013, p. 133). </P>
<P>18 Nessa direção, é fundamental o deslocamento de uma perspectiva de exploração analítica de um território Estado-centrado e nacional-centrado, própria das pesquisas, e dados produzidos para construir a hipótese contra a qual se levanta este texto, na direção de práticas associativas de escalas e sedimentações temporais e espaciais situadas em uma perspectiva transnacional. </P>
<P>19 Em um dos poucos estudos sobre o tráfico atacadista de drogas, feito por meio do relatório da CPI do narcotráfico, as conclusões foram bem parecidas. Ver Sinhoretto (2015). </P>
<P>20 De forma generalizada para toda a fronteira, a pesquisa entregue ao Ministério da Justiça também encontrou uma maior percepção de que o tráfico atacadista nas fronteiras era mais organizado e menos violento (“a droga que passa”), ao passo que o tráfico varejista estaria mais associado a problemas de roubo, furto e homicídios (“a droga que fica”). Ver Neves et al. (2016). </P>
<P>21 Essas representações são próximas daquelas encontradas por Luis Fabio Paiva (2019, p. 12): “Menos do que o traficante, os pistoleiros aparecem como as figuras que retratam melhor o que os moradores compreendem como um ‘verdadeiro bandido’”. </P>
<P>22 Nome ficcional. </P>
<P>23 Nome ficcional. </P>
<P>24 O termo não é alusivo, pois o caso acaba de virar uma série de televisão no canal Space (AMAZONAS ATUAL, 17/06/2016) e no canal neflix (TERRA, 02/07/2019). </P>
<P>25 O apresentador do programa, Francisco Wallace Cavalcante de Souza, conhecido como Wallace Souza, havia sido policial civil do estado do Amazonas. Foi expulso da corporação em 1987, tendo sido candidato a vereador por Manaus em 1996 e depois eleito deputado estadual em 1998. Oriundo de uma influente família manauara, seu irmão havia sido vice-prefeito de Manaus. Preso em 2009, veio a falecer em 2010 dentro da prisão. Sua história será contada na segunda parte deste artigo. </P>
</Endnote>
<P>Em primeiro lugar, é importante olharmos em conjunto o número de apreensões e de operações no período: em 2003, foram realizadas 18 operações e apreendidos 9.882,97 quilos de cocaína e pasta base; em 2010, foram 252 operações e 27.074,214 quilos; em 2016, 590 operações e 39.311 quilos. Ou seja, podemos dizer que o número de operações possui uma associação com – e pode ajudar a entender – o número de apreensões, antes de afirmar que houve um aumento do volume de drogas traficadas. </P>
<P>Assim, é prioritariamente como parte do trabalho policial que os dados de operação devem ser entendidos. A Polícia Federal, por meio dos seus relatórios anuais e de gestão, organiza esses dados dessa maneira, mostrando as relações entre o plano plurianual de metas, o orçamento, os programas, projetos e as ações – incluindo, nesse último, o número de operações como indicador de efetividade e o volume de apreensões como indicador da produtividade.
<Link>11</Link>
Portanto, para a própria Polícia Federal, o número de apreensões é um indicador de produtividade policial e não se confunde com a descrição de mercados – essa última feita por meio do trabalho de investigação e expressa nos seus inquéritos e relatórios de inteligência. </P>
<P>Apesar de diversos pesquisadores e instituições utilizarem os dados de apreensão como descrição de mercado, neste trabalho tais números serão analisados prioritariamente como indicadores do trabalho policial. O incremento que mostram pode ocorrer por um aumento da capacidade de ação da polícia ou por um direcionamento de ações estratégicas para certos lugares. Nesse último caso, poderiam, secundariamente, indicar a presença de mercados concretos. </P>
<P>Dessa forma, para uma série ampla e em escala nacional, cabe mostrar de apreensões Polícia Federal brasileira. É possível observar que existe um aumento constante e bastante impressionante das apreensões ao longo das décadas de 1990, 2000 e 2010. </P>
<P> </P>
<Table>
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<P>Gráfico 4: Apreensões de cloridrato de cocaína e pasta base pela Polícia Federal (Brasil) </P>
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</TR>
<TR>
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<P>Fonte: DPF/UNODC. </P>
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</TR>
</Table>
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<ImageData></ImageData>
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<P>Quanto às apreensões de cocaína feitas pela Polícia Federal na Região Norte no período de 2000 a 2017, é possível identificar também claramente a importância do Amazonas, sempre o estado com o maior volume de apreensões. Se durante o período o Amazonas concentra quase sempre 50% do volume das apreensões da região, entre 2008 e 2017, essa concentração chega a mais de 60% do total. </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P>Gráfico 5: Apreensões de cloridrato de cocaína e pasta base pela Polícia Federal (estados da Região Norte) </P>
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<P>Fonte: DPF. </P>
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</Table>
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<P> </P>
<P>Quando comparamos os estados que estabelecem fronteiras com outros países, percebemos que o Amazonas é bastante importante, dado que figura frequentemente entre os três com maior volume de apreensões em quase todos os anos que constituem a série. </P>
<P> </P>
<Table>
<TR>
<TH>
<P>Gráfico 6: Apreensões de cloridrato de cocaína e pasta base pela Polícia Federal (estados de fronteira) </P>
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</TR>
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<P>Fonte: DPF. </P>
</TH>
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</Table>
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<P> </P>
<P>Por meio desses dados é possível dizer que o Amazonas teve um incremento e um direcionamento das ações da Polícia Federal a partir da segunda metade dos anos 2000. Finalmente, quando comparamos as apreensões realizadas nas cidades de Tabatinga e Manaus, percebemos que, apesar da importância da capital e de seu peso populacional, Tabatinga tem posição de destaque, com uma média no período de 25% de todas os registros de apreensões no estado, com mais de 500 quilos por ano. </P>
<P> </P>
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<P>Gráfico 7: Apreensões de cloridrato de cocaína e pasta base pela Polícia Federal (porcentagem entre Manaus e Tabatinga) </P>
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<TR>
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<P>Fonte: DPF. </P>
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</TR>
</Table>
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</Figure>
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<P>Aqui três aspectos devem ser destacados: </P>
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<P>1) Seguindo a cosmologia policial, Tabatinga é um centro nevrálgico do tráfico de drogas nacional e internacional, conectando três cidades: Manaus, Letícia e Iquitos. </P>
<P>2) Seguindo uma visão partilhada entre policiais e moradores, a parte operacional predominantemente brasileira desse grande circuito internacional é o transporte, com uma frente de microtraficantes pobres e precários locais e outra de grandes traficantes de Tabatinga e Manaus associados à atuação de grandes embarcações e ao comércio de produtos legais. </P>
<P>3) As apreensões, significando primariamente incremento do trabalho policial e, secundariamente, a atuação estratégica na passagem de cocaína em território brasileiro, têm aumentado no país. O Amazonas tem um grande volume de apreensões quando consideramos os estados de fronteira, e o maior volume quando consideramos a Região Norte. E, finalmente, dentro do estado, Tabatinga tem um peso relevante no volume de apreensões. </P>
<P> </P>
<P>Densidade institucional </P>
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<P>O terceiro aspecto a ser considerado é a caracterização de Tabatinga como um local “sem Estado, sem lei e sem ordem”, ou seja, o problema viria de uma “leitura feita por políticos, jornalistas, policiais e funcionários da Receita Federal [que] tem estabelecido uma relação causal entre as fronteiras ‘abertas, frágeis e desprotegidas’ do Brasil e o aumento da violência e criminalidade” (ALBUQUERQUE, 2014). Dado o gigantismo dos quase 17 mil quilômetros da fronteira brasileira, é evidente que as condições de trabalho dos operadores de segurança pública serão sempre insuficientes em termos de efetivo, infraestrutura e equipamentos se o objetivo for controlar todas as circulações de pessoas e mercadorias. Contudo, diversos países com fronteiras menos extensas e com maior capacidade de investimento que o Brasil não conseguiram controlar completamente seus limites (REUTER, 1988; BIGO, 2010). Por essa razão, parece melhor estabelecer alguns parâmetros para se qualificar o que poderíamos chamar de “fraqueza ou força institucional estatal”, comparando com outras cidades da fronteira brasileira. Seguindo esse critério, Tabatinga apresenta uma densidade institucional alta (NEVES et al., 2016).</P>
<P>As instituições federais de segurança pública em Tabatinga são singulares no âmbito do estado, pois a cidade tem a única delegacia da Polícia Federal do Amazonas – a superintendência localiza-se em Manaus –, além de um posto e um comando operacional da mesma instituição. São exemplos dos investimentos da Polícia Federal em Tabatinga: a melhoria da infraestrutura do prédio da delegacia e a compra de embarcações rápidas, armadas na proa com metralhadoras Ponto 762 e placa de proteção balística. A Polícia Federal é apoiada frequentemente pela Força Nacional, que utiliza como base para as suas operações a delegacia da Polícia Federal e a base de fronteira. Cabe destacar que Tabatinga é a cidade com o maior número de operações da Força Nacional em toda a faixa de fronteira. Por fim, a cidade ainda conta com a única inspetoria classe A da Receita Federal do Amazonas fora de Manaus. </P>
<P>Quanto às instituições estaduais de segurança pública, Tabatinga é a única cidade de fronteira do estado que dispõe de um batalhão e dois postos fixos da Polícia Militar e duas delegacias da Polícia Civil. A cidade apresenta o maior contingente de policiais (civis e militares) em números absolutos e a melhor taxa de efetivo pela população (um policial civil para cada 4.188 habitantes e um policial militar para cada 537 habitantes). </P>
<P>No que diz respeito às instituições municipais de segurança pública, Tabatinga é uma das poucas cidades de todo o Arco Norte que apresenta Plano Municipal de Segurança Pública, Conselho Municipal de Segurança Pública, Fundo Municipal de Segurança Pública e Guarda Municipal. </P>
<P>Um elemento importante da configuração institucional de Tabatinga é a presença precária das instituições de Justiça. A cidade conta formalmente com Promotoria, juízes, Defensoria Pública e conselheiros tutelares. Contudo, seus representantes têm condições precárias de atuação, e muitas vezes sequer se encontram presentes na cidade durante toda a semana. </P>
<P>Embora as Forças Armadas não sejam instituição de segurança pública, é inegável que atuam na área, e isso vem cada vez mais ganhando contornos oficiais. Localizam-se na cidade o 8º Batalhão de Infantaria da Selva (Bis), o Destacamento de Controle do Espaço Aéreo de Tabatinga, ligado ao Quarto Centro Integrado de Defesa Aéreo e Controle de Tráfego aéreo e a Capitania Fluvial de Tabatinga, compondo a presença do Exército, da Aeronáutica e da Marinha. Especialmente o Exército tem atuação importante, dado que seu efetivo é bastante considerável no local, sobretudo depois de formalizado seu poder de polícia na faixa de fronteira e de vultuosos investimentos durante o período desta pesquisa (MONTEIRO, 2014). </P>
<P>Para caracterizar a densidade institucional, tão importante quanto essa breve descrição da presença das instituições de segurança pública, feita de forma muito mais pormenorizada no relatório apresentado ao Ministério da Justiça, são as relações entre elas. Por meio de uma série de perguntas que constavam no survey aplicado, procuramos compreender quais dessas instituições se relacionavam e em que medidas, a fim de identificar redes mais ou menos densas de atuação integrada.
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<P>A Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (Enafron) produziu integração em uma certa direção importante de ser destacada, para compreendermos a construção da densidade institucional nas fronteiras. É bastante significativo que em Tabatinga a Polícia Militar seja a instituição que mais vínculos tem com outras, e a Polícia Federal, a mais insular. </P>
<P>A Polícia Militar é a instituição mais central na rede institucional local, dado que é a que estabelece mais vínculos com os outros órgãos da área de segurança pública e com participação mais intensa em operações e programas de integração. Os maiores parceiros da Polícia Militar nas operações realizadas em Tabatinga são o Poder Judiciário, a Força Nacional e a Polícia Federal, mas com atuações conjuntas também com a Receita Federal, a Polícia Civil e com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A Polícia Militar também apoia e participa de grupos de patrulhamento e operações de fronteiras, além de atuar em comandos binacionais de segurança, baseadas em trocas de informações. Como pôde ser observado no trabalho de campo, o Exército e a Polícia Militar foram as instituições centrais da Enafron e das operações Sentinela e Ágata. Entre todas as instituições de segurança pública, certamente é a que atua de forma mais estreitamente voltada à integração dos órgãos de segurança pública, inclusive apresentando uma forte percepção de que essa participação em coletivos de gestão melhora as condições de atuação no município. </P>
<P>Muito mais restrita e periférica é a integração da Polícia Federal com as demais instituições. Ela atua de forma mais próxima apenas das Forças Armadas, da Receita Federal e da Força Nacional. A Polícia Federal participa de maneira muito intensa de comandos binacionais, inclusive com um agente instalado permanentemente em Letícia e com visitas muito regulares a Iquitos, embora não em Santa Rosa, localizada no lado peruano da fronteira. Cabe destacar o convênio com a polícia peruana, a chamada Operação Trapézio, e também o convênio com a polícia colombiana, a Operação Cobra.polícia colombiana, a Operação Cobra.polícia colombiana, a Operação Cobra.</P>
<P>Esse quadro ilumina partes em que a insularidade institucional é maior e outras em que os órgãos de segurança pública atuam de forma mais integrada. Ao mesmo tempo, indica quais são as instituições que atuam de forma mais central na malha institucional e quais atuam de forma mais periférica. Ainda uma hipótese a ser trabalhada, em Tabatinga as partes mais judiciárias das instituições de segurança pública aparentemente têm maior insularidade, enquanto as partes com atuação mais ostensiva têm maior número de conexões. Isso não somente comparando a Polícia Federal e a Polícia Militar (e o Exército), mas também considerando a baixíssima integração da Polícia Civil, do Ministério Público, do Conselho Tutelar e até da Receita Federal. </P>
<P>Essa integração operativa e ostensiva e não judicial e investigativa, parece, foi ampliada com os importantes recursos destinados pela Enafron. Na Polícia Federal, há uma visão de que a Enafron retirava recursos que deveriam ser destinados ao fortalecimento da instituição, considerada internamente a mais vocacionada a trabalhar nas fronteiras e nos crimes internacionais. Ainda que o orçamento da Polícia Federal tenha aumentado gradativamente ao longo de toda a década de 2000 – passando de algo ao redor de 1,5 bilhão de reais para mais de quatro bilhões em 2010 –, na primeira metade dos anos 2010, esse patamar ficou estagnado, sofrendo até mesmo uma retração a partir de 2013, ou seja, durante o período da Enafron. No que tange aos investimentos, a queda seguiu praticamente contínua durante todo o período, à exceção de 2005.
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</P>
<P>Do ponto de vista da Polícia Militar, a Enafron foi uma grande janela de oportunidade para o seu fortalecimento institucional. Esses investimentos estão vinculados ao programa da Estratégia Estadual de Segurança Pública nas Fronteiras (Esfron), que utiliza recursos da Enafron mas não dá visibilidade a ela. A Esfron é uma estratégia de segurança pública específica do estado do Amazonas, que espelha a estratégia federal em suas diretrizes e metas principais. Ao utilizar recursos federais com contrapartidas estaduais, não apenas faz chegar recursos, como permite a criação de instituições específicas de controle dos ilícitos transfronteiriços, como unidades especializadas de fronteira, a renovação da frota de veículos, a compra de armamentos e munição, além de sistemas de informação mais atualizados. A atuação da Esfron nas fronteiras ocorre basicamente como um reforço da Polícia Militar em operações na linha de fronteira como bloqueios. </P>
<P>Também é importante destacar que, em 2014, o programa estadual Ronda no Bairro foi implementado em Tabatinga, trazendo investimentos importantes para a Polícia Militar. Por meio de georreferenciamento, foram mapeadas as diferentes necessidades e modalidades de apoio policial em cada área do município, subdividido em áreas urbanas e rurais. </P>
<P>Nesta terceira parte, ressalto três pontos importantes: </P>
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<P>1) As instituições de segurança pública estão presentes em Tabatinga. Pode-se considerar que a cidade tem um arranjo institucional denso. </P>
<P>2) A densidade institucional é construída via um tipo de integração muito mais em função de atividades operativas e ostensivas que judicial e investigativa. Por isso, é clara a centralidade que a Polícia Militar e o Exército ocupam, em detrimento das polícias Federal e Civil. </P>
<P>3) Os investimentos da Enafron consolidaram esse arranjo institucional, com aportes importantes na Polícia Militar, estagnação e retração orçamentaria e de investimentos na Polícia Federal, e pouco impacto (por meio da Esfron) na Polícia Civil. </P>
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<P>A questão recolocada </P>
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<P>Mercados criminais transfronteiriços e fraquezas estatal e institucional fazem parte da combinação perfeita para o cenário de uma cidade “violenta”. A solução seria, então, um reforço institucional para reprimir os mercados ilegais, o que automaticamente faria a letalidade ser controlada. No entanto, pelo que expomos rapidamente até aqui, podemos dizer que na “cidade-exceção” de Tabatinga a taxa de homicídios é alta, a circulação de cocaína é importante, mas as instituições estão presentes. Mas, então, algo parece não se encaixar no raciocínio circular padrão. </P>
<P>Se as instituições estão presentes, o que explica que o mercado de cocaína continue a atuar? Por que os homicídios não param de aumentar em Tabatinga? </P>
<P>Poder-se-ia argumentar que, mesmo em comparação com outras cidades brasileiras de fronteira, a densidade institucional relativa de Tabatinga ainda é insuficiente para o trabalho dos operadores das instituições de segurança pública. Poder-se-ia prospectar também – e essa hipótese consta do relatório apresentado ao Ministério da Justiça – que o problema não seria o tamanho das instituições estatais presentes, mas a qualidade e a efetividade de sua atuação. Em nossa pesquisa, todos os operadores das instituições de segurança e muitos membros da sociedade civil apresentaram a percepção de que este seria o problema maior: a infraestrutura física, as instalações internas, os recursos em funcionamento, os equipamentos, armamentos e as contratações eram inadequados ou insuficientes, e seu incremento era considerado fundamental para que o trabalho fosse realizado com maior eficiência (NEVES et al., 2016). Todas essas considerações são efetivamente verdadeiras da perspectiva de uma única relação entre Estado e crime, que considera exclusivamente que as leis penais, o aparelho de controle, a repressão e a punição servem para cumprir as leis e combater a transgressão da ilegalidade. O ponto de vista que orienta este texto, porém, é mais especifico: na “cidade-exceção”, onde encontramos homicídios, mercados ilegais e presença estatal, quais são as relações entre crime e Estado, ou, de forma mais exata, quais são as relações entre tráfico de cocaína e controle estatal que nos ajudam a pensar as dinâmicas da letalidade? </P>
<P>O pacote explicativo dessa relação deve ser mais bem qualificado, pois se trata de </P>
<P> </P>
<P>chamar a atenção para a existência, no Norte ou em qualquer outra ”região” do Brasil, de uma gigantesca zona de fronteira que não se confunde com as fronteiras nacionais e na qual a miríade de dispositivos que fazem o Estado se mistura aos mil movimentos que fazem o crime (CANDOTTI, MELO DA CUNHA e SIQUEIRA, 2017). </P>
<P> </P>
<P>Neste artigo, vou procurar explorar apenas alguns dos “mil movimentos” que fazem do Estado e do crime entes relacionais, a fim de estabelecer alguns parâmetros para se pensar a relação entre fronteira, letalidade e mercados de droga em Tabatinga. O caminho apontado não é o único, mas sim exploratório, servindo para refletir sobre dinâmicas que já apontei em detalhes no caso de um único ponto de venda de drogas em São Paulo (HIRATA, 2015b) e em perspectiva comparada do mercado varejista de drogas em São Paulo e Rio de Janeiro (HIRATA e GRILLO, 2017). Nessa direção, existem algumas diferenças analíticas com a “grande narrativa” da fronteira brasileira (CANDOTTI, MELO DA CUNHA e SIQUEIRA, 2017) ou com os fantasmas do crime organizado (MISSE, 2006): a regulação desses mercados é pensada como uma atividade entramada entre traficantes de drogas, poderosos interesses de agentes da economia formal e os agentes encarregados de seu controle, como construção conjunta do fazer Estado, fazer mercado e fazer o crime. Assim, o objetivo central deste texto é não apenas apontar se existem relações presentes na cidade fronteiriça de Tabatinga entre mercados ilegais, letalidade e presença estatal, mas sobretudo prospectar qual é a natureza dessas relações. </P>
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<P>Hipóteses e apontamentos </P>
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<P>Como compreender as variações das taxas de homicídios e de apreensões de cocaína, pensadas por meio da sua relação com a densa construção das formas de controle dos mercados ilegais? </P>
<P>Quando perguntados qual o maior problema identificado em Tabatinga, tanto os operadores das instituições de segurança como os membros da sociedade civil
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destacaram a pistolagem. No excelente trabalho de César Barreira (1998) sobre o sistema de pistolagem no Nordeste, o autor identifica como o fenômeno sofreu modificações ao longo do tempo pelo seu deslocamento de zonas rurais para as periferias urbanas e também pela sua circulação nacional. Houve diversificação dos mandantes, dos executores e das suas associações, assim como ampliação do leque de razões de uso desse tipo de serviço. Contudo, “a impunidade destes e a proteção de fortes grupos econômicos mantêm a continuidade do fenômeno” (BARREIRA, 1998, p. 147), ou seja, a articulação entre os interesses político-partidários, policiais e dos grandes negócios se transforma, mas mantendo os poderes constituídos que davam suporte a pistolagem. </P>
<P>Tais considerações das linhas de continuidade do fenômeno, associadas a suas conexões e sobreposições com poderosas redes políticas e mercantis, parecem se aproximar da característica singular do que Michel Foucault chamou de “ilegalismos de negócios”: um arranjo específico entre ilegalismos populares e ilegalismos privilegiados porque é “funcional”, “sistemático”, atuando “em conjunto com os poderes instituídos” e “ao mesmo tempo político e econômico” (FOUCAULT, 2013).
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O ilegalismo de negócios é o que, por um lado, utiliza os ilegalismos populares como delinquência, no sentido específico que Foucault empresta ao termo, e, por outro, tem como apoio o aparelho de Justiça – incluindo a polícia – e o político-partidário para manter o controle de certos mercados, e vice-versa. As diferenças entre mandantes e executores, suas inserções desiguais nas malhas político-partidárias, comerciais e industriais, tal como expostas por Barreira (1998), são exemplares dessa articulação. Ainda, o caráter processual que Foucault (2013) empresta a essa dinâmica na França do século XVIII torna útil pensar os ritmos diferenciados em que isso ocorre ao longo do tempo, nada a dever à maneira cuidadosa com que Barreira mostra as continuidades e rupturas do sistema de pistolagem no Nordeste brasileiro no século XX. </P>
<P>Na região da tríplice fronteira amazônica, me parece, essa mesma sobreposição de diferentes sedimentações e temporalidades das redes político-econômicas poderia ser explorada, a fim de entender o fenômeno da pistolagem. Aí os processos históricos ganham contornos particulares, porque há um (trans)cruzamento de diferentes formações sociopolíticas econômicas e estatais de Brasil, Peru e Colômbia, cada qual tão conectada a outra como singulares e situadas.
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</P>
<P>Ao longo do século XIX e depois, no século XX, o contrabando, a extração da borracha e o tráfico de drogas foram atividades com temporalidades distintas mas que atuaram de forma a conformar uma dinâmica fronteiriça singular. Em seu brilhante estudo sobre a tríplice fronteira, Carlos Zárate (2008) aponta que o contrabando e a economia da borracha transbordavam os três países em prol de atores políticos e econômicos cristalizados na figura do patrón. Lia Osorio Machado (2003), por sua vez, destacou a integração da Bacia Amazônica à econômica mundial realizada pela borracha e pelo tráfico de drogas, em linhas de continuidade com a formação de uma rede urbana transnacional e seus enraizamentos nacionais. João Pacheco de Oliveira (2016) demostra como essa integração foi feita em ritmos diferentes, mas com importância central para a rede de transportes fluviais e de crédito comercial, produzindo linhas de descontinuidade entre o “seringal caboclo” e o “modelo do apogeu”, duas formas de exploração conjunta dos recursos humanos e naturais. Nos três autores, ressaltam-se transformações feitas por meio das simultaneidades das diferentes temporalidades coexistentes, como também certa continuidade na conformação de um imbricamento político e econômico assentado sobre as elites locais e as dinâmicas transnacionais.o “seringal caboclo” e o “modelo do apogeu”, duas formas de exploração conjunta dos recursos humanos e naturais. Nos três autores, ressaltam-se transformações feitas por meio das simultaneidades das diferentes temporalidades coexistentes, como também certa continuidade na conformação de um imbricamento político e econômico assentado sobre as elites locais e as dinâmicas transnacionais.o “seringal caboclo” e o “modelo do apogeu”, duas formas de exploração conjunta dos recursos humanos e naturais. Nos três autores, ressaltam-se transformações feitas por meio das simultaneidades das diferentes temporalidades coexistentes, como também certa continuidade na conformação de um imbricamento político e econômico assentado sobre as elites locais e as dinâmicas transnacionais.</P>
<P>Certamente isso conforma uma agenda de pesquisa histórica a ser realizada em outro momento. Essas referências apontam a provável proficuidade do entendimento das transformações e continuidades de tais redes para se entender as dinâmicas relações entre construção do estado – sua densidade e ritmo do “fazer Estado” –, mercados e ilegalismos – nas diferentes conexões de produtos e suas cadeias de aprovisionamento do “fazer mercado” – e as dinâmicas da letalidade e das mortes na região – o “fazer morrer”. </P>
<P>Em Tabatinga, as percepções generalizadas dos operadores das instituições de segurança pública e dos membros da sociedade civil acerca dos motivos das mortes por pistolagem e da relação entre o mandante e o executor convergem frequentemente para as disputas do tráfico de drogas, particularmente dos negócios da cocaína. Nessa percepção, as redes de pistoleiros são formadas por peruanos, colombianos e brasileiros, como forma de resolução de conflitos ligados ao mercado da cocaína. É importante destacar que tal tipo de crime ocorre há muitos anos, fazendo parte da memória coletiva da região. </P>
<P>É uma narrativa alimentada por meio das histórias do grande Cartel de Letícia, nos anos 1970 e 1980 (STEIMAN, 2002), impulsionador econômico de parte significativa da economia legal da região (MOTTA, 2012). Essa memória da violência emerge quando se fala das execuções durante o dia, sem o uso de máscaras, e da intimidação das pessoas que porventura presenciavam as execuções. Um caso muitas vezes narrado foi o de uma execução à luz do dia em frente ao Fórum de Justiça, na Avenida da Amizade, principal via da cidade. O caso ilustra, na opinião dos moradores da cidade, a ousadia dos criminosos, graças à certeza de que não seriam presos. Não por acaso promotores do Ministério Público de Tabatinga apontaram a falta de segurança como uma das principais dificuldades para exercer seu trabalho. </P>
<P>Ainda assim, no relatório supracitado, para a maior parte dos operadores das instituições de segurança, há a percepção de que “não existe problema de violência”, que Tabatinga seria considerada uma cidade “tranquila”. Isso se justifica pela avaliação de que a pistolagem ocorre majoritariamente entre grupos de traficantes, em “casos pontuais”, e não afetariam os moradores não envolvidos (NEVES et al., 2016). De forma próxima, entre os membros da sociedade civil, foi comum a avaliação de que as mortes por pistolagem são menos importantes que outros tipos de crimes porque os envolvidos e vítimas seriam pessoas associadas ao tráfico de drogas. </P>
<P>Essa percepção é muito semelhante àquela encontrada por Luiz Fabio Paiva em sua pesquisa, durante a qual escutou que em Tabatinga “[a] bala tem nome e endereço certos” e “[s]ó morre quem tem que morrer” (PAIVA, 2015). O autor busca explicar essas falas pelas dívidas pagas com a vida em diferentes situações, concluindo que o problema seria “da droga que fica” e não da “droga que passa”. Nessa direção, explora o pequeno tráfico como um eventual impulsionador do comércio local para pessoas que não necessariamente estruturarão suas vidas em torno de atividades ilícitas.
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</P>
<P>Em Tabatinga, contudo, também é possível levantar algumas hipóteses sobre a relação entre “a droga que passa” e o fenômeno da pistolagem. Este, então, ganha outro nome sem necessariamente se estruturar em redes distintas, com sobreposições e limites semânticos muito porosos: os grupos de extermínio. </P>
<P>Muito menos relatado e somente descrito de forma muito encoberta, a atuação extralegal de policiais parece ter uma história que não é recente na cidade. As ações dos grupos de extermínio é uma das modalidades específicas de Tabatinga na articulação do tráfico de drogas e letalidade. Não por acaso, sobre esse ponto encontramos divergências nas percepções de operadores da segurança pública e membros da sociedade civil. Quando perguntados sobre as diferenças em relação à situação em Letícia, onde acredita-se não haver grupos de extermínio, somente pistolagem, operadores das instituições de segurança consideraram essa ausência em Letícia relacionada com o preparo e a estruturação da polícia colombiana, enquanto os membros da sociedade civil acreditam que isso se dá porque a polícia colombiana é menos corrupta e mais eficiente que a brasileira.
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<P>Os grupos de extermínio aparecem nas percepções de forma recorrente por meio de duas características, que podem estar associadas ou não. São policiais que procuram acabar com os grupos de traficantes e consideram que não o podem fazer por meios legais: avaliam a Justiça como ineficaz, por “colocar traficantes de volta às ruas”, e percebem a situação de fronteira como uma “abertura” para os ilícitos. Alternativamente, são policiais envolvidos com o comércio de drogas que usam de sua posição para conquistar a prerrogativa de participar desses mercados, oferecendo a venda de proteção (MISSE, 2006). A possibilidade de que ambos os tipos tenham convergência no mesmo grupo de extermínio não só é concreta como foi relatada na pesquisa. </P>
<P>Coronel Ricardo,
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comandante do 8° Batalhão da Polícia Militar de Tabatinga, se colocou como alguém que atuava diretamente na “limpeza” de “vagabundos”: </P>
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<P>– A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas deixa tudo com os municípios, os GGIs [Gabinetes de Gestão Integrada] e os prefeitos, mas ninguém sabe o que fazer. Então, tive que resolver por conta própria, personalizadamente, do contrário nada andava. Eu acho que isso é um problema, mas [os “vagabundos”] precisavam entender quem mandava na cidade. Se não fizer isso ninguém te respeita. </P>
<P>Mas ao mesmo tempo, conversas com Júlio,
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delegado da Polícia Civil que estava se retirando da função por “desgosto” e se sentia seguro e estimulado a falar, apontavam que Ricardo era não apenas o chefe do grupo de extermínio de Tabatinga, mas que tinha negócios com o transporte da cocaína e pasta base pelo rio Solimões, recebendo dinheiro de peruanos, colombianos e de grupos brasileiros como o PCC e a FDN. </P>
<P>O que nos foi relatado longamente por Júlio é que se tratava de um grande esquema que conectava Tabatinga a Manaus por meio dos negócios da cocaína. Isso era feito por meio de nomeações de policiais militares para postos de comando na cidade a fim de facilitar o tráfico de cocaína e pasta base, assim atuando em prol de certos grupos de forma variável a depender da conjuntura. As nomeações seriam feitas por influência de vereadores das duas cidades e deputados estaduais e federais que também enriqueciam com o tráfico de droga “que passa”, não somente na operacionalização do transporte e venda de drogas, mas na cobrança de extorsões de diferentes grupos de traficantes e barqueiros. Esse caso, que produziu diversos inquéritos do Departamento de Polícia Federal, incluía ainda funcionários-chave da administração pública de Manaus e Tabatinga, do governo estadual. E, por meio de advogados que atuavam conjuntamente com membros do Poder Judiciário (juízes e desembargadores), o esquema incluía, ainda, a venda de habeas corpus e outras decisões judiciais, “ultrapassando todos os limites éticos de atuação legítima”, segundo inquérito da Polícia Federal. </P>
<P>No caso de Ricardo, nomeado depois de sua passagem pelo comando do batalhão de Tabatinga para diferentes secretarias de Manaus (“depois que paguei pedágio em Tabatinga”, disse), o esquema ainda ganhava contornos cruéis e cinematográficos,
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dado que parte das operações por ele comandadas era filmada para o programa de televisão Canal Livre, apresentado por Wallace Souza,
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que aumentava a sua audiência com imagens de execuções e garantia poderosa influência nos mercados de cocaína e pasta base entre Tabatinga e Manaus. O poderoso clã dos Souza, com o qual a proximidade de Ricardo era notória, é particularmente ilustrativo dessas conexões, extensivas a outras famílias que se revezam nos governos do estado e dos municípios de Manaus e Tabatinga. </P>
<P>O que o caso ilumina é que a pistolagem e os grupos de extermínio não entram em contradição com a suposta tranquilidade de Tabatinga. Ele permite levantar uma hipótese acerca da aparente incongruência entre o aumento da letalidade, o mercado da cocaína e a grande densidade institucional da cidade. As conexões transnacionais historicamente realizadas por meio dos circuitos do contrabando, da borracha e da cocaína, integrando a região aos mercados internacionais, não foram minoradas mas, sim, reforçadas com a construção dos aparelhos de controle de drogas nas últimas décadas, que, de fato, parecem ter se sobreposto às redes que a antecederam. O recurso mais do que potencial ao uso da coerção, quando não da eliminação física e sua exposição, é elemento estruturante e conhecido dessas conexões mercantis. </P>
<P>Nessa direção, talvez possamos levantar hipóteses que sustentem a relação entre letalidade e ilegalismos dos negócios da cocaína ao iluminar redes que de fato regulam os mercados da droga. Tais redes atuam por meio de posições político-policiais e econômicas centrais nos fluxos de poder entre Tabatinga e Manaus, não apenas gerindo os fluxos de pessoas e mercadorias por meio de permissões extralegais, como também no financiamento e lucro dessas atividades. Os ilegalismos de negócios, suas associações com a pistolagem, os grupos de extermínio e o tráfico de drogas, assim como a mecânica dessas conexões, contudo, serão explorados em uma continuação deste artigo, em que me concentrarei na descrição do funcionamento concreto desses mercados ao longo das últimas duas décadas. </P>
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<H1>Referências </H1>
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<P>ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. Fronteiras em movimento e identidades nacionais: A imigração brasileira no Paraguai. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. </P>
<P>ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho. A produção das fronteiras nacionais no telejornalismo brasileiro: Análise de algumas séries especiais de reportagem sobre as fronteiras do Brasil. Segurança, Justiça e Cidadania: Pesquisas Aplicadas em Segurança Pública, v. 4, p. 53-70, 2014. </P>
<P>ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho; PAIVA, Luiz Fábio Silva. Entre nações e legislações: Algumas práticas de “legalidade” e “ilegalidade” na tríplice fronteira amazônica (Brasil, Colômbia e Peru). Revista Ambivalências, v. 3, n. 5, p. 115-148, 2015. </P>
<P>AMAZONAS ATUAL. História do ex-deputado Wallace inspira série de TV. Amazonas Atual, Política, 17 jun. 2016. Disponível em:
<Link>https://amazonasatual.com.br/historia-do-ex-deputado-wallace-souza-inspira-serie-de-tv/</Link>
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<P>ANDREAS, Peter; GREENHILL, Kelly. Sex, Drugs and Body Counts. Nova York: Cornell University Press, 2010. </P>
<P>BARREIRA, César. Crimes por encomenda: Violência e pistolagem no cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de Antropologia da Política, 1998. </P>
<P>BEATO FILHO, Cláudio Chaves; ASSUNÇÃO, Renato Martins; SILVA, Bráulio Figueiredo Alves da; MARINHO, Frederico Couto; REIS, Ika Afonso; ALMEIDA, Maria Cristina de Mattos. Conglomerados de homicídios e o tráfico de drogas em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, de 1995 a 1999. Cadernos de Saúde Pública, v. 17, n. 5, p. 1163-1171, 2001. </P>
<P>BIGO, Didier. Frontières, territoire, sécurité, souveraineté. Ceriscope Frontières, Sciences Po - Ceri, p. 1-13, 2010. Disponível em:
<Link>https://hal-sciencespo.archives-ouvertes.fr/hal-01042221/file/frontieres-territoire-securite-souverainete.pdf</Link>
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<P>DANIEL VELOSO HIRATA (velosohirata@gmail.com) é professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais (GSO), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), todos da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil). Coordena o Núcleo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF e é pesquisador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) e do Núcleo de Pesquisas em Economia e Cultura (NuCEC), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil). É bolsista Jovens Cientistas do Nosso Estado Faperj. Integra como professor e </P>
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<P>pesquisador o projeto Capes/Cofecub “Passagens de Fronteiras e Cidades Seguras: Questões históricas e contemporâneas”. Possui doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil), com estágio doutoral na Universidade de Toulouse-Le Mirail (França) e na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, França), mestrado pelo PPGS/USP e graduação em ciências sociais pela mesma universidade. </P>
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<P>Recebido em: 18/02/2019 Aprovado em: 27/02/2019 </P>
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