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<P>Garimpos de ouro na fronteira franco-brasileira: Conexões entre o legal e o ilegal </P>
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<H1>Joana Domingues Vargas </H1>
<H1>Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil </H1>
<H1>Jania Perla Diógenes Aquino </H1>
<H1>Universidade Federal de Ceará, Fortaleza, CE, Brasil </H1>
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<Table>
<TR>
<TH>
<P>O artigo analisa garimpos clandestinos que atraem brasileiros à Guiana Francesa, ressaltando suas conexões com atividades comerciais legais no município de Oiapoque, com base em questionários, grupos focais, entrevistas e inserções etnográficas. Buscamos compreender os agenciamentos que possibilitam o contrabando do ouro francês, sua inserção no mercado brasileiro e as relações que atravessam este universo, envolvendo atividades lícitas e ilícitas. Abordamos a corrida do ouro que atravessa a fronteira em direção à Guiana Francesa enquanto rede social que abrange humanos e não humanos e conecta a Amazônia guianense com os mercados internacionais. </P>
</TH>
<TH>
<P>Based on surveys, focus groups, interviews, and ethnographic insertions, Gold mining on the French-Brazilian Borders: Connections between Legal and Illegal analyzes the clandestine gold mining that attracts Brazilians to French Guiana, highlighting their connections with legal activities in Oiapoque. We seek to understand the assemblages that enable the smuggling of French gold, its insertion in the Brazilian market and the relations intertwined in this universe, involving licit and illicit activities. We see the gold rush that leads Brazilians to cross the border as a social network that encompasses human and non-human subjects and connects the Guyanese Amazon with international markets. </P>
</TH>
</TR>
<TR>
<TH>
<P>Palavras-chave: ilegalismos, fronteira franco-brasileira, mineração ilegal, garimpo, Oiapoque </P>
</TH>
<TD>
<P>Keywords: illegalisms, Brazil-France border, illegal gold mining, gold-digging, Oiapoque </P>
</TD>
</TR>
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<P>Uma fronteira entre o Brasil e a França </P>
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A </DropCap>
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<P>fronteira franco-brasileira possui 730 quilômetros de extensão, constitui o maior perímetro lindeiro da República Francesa e é a única região limítrofe entre a América do Sul e a França. Do lado brasileiro, está situada no estado do Amapá, abrangendo, entre outros, os municípios de Laranjal do Jari e Oiapoque. Do lado francês corresponde à Guiana Francesa, departamento ultramarino da França. A maior parte dessa linha de fronteira se constitui de reservas indígenas e parques nacionais. O trecho onde são recorrentes trânsitos e intercâmbios entre as populações dos dois países se situa nas proximidades das “cidades-gêmeas”, Oiapoque, do lado brasileiro, e Saint-Georges-de-l’Oyapock, na Guiana Francesa. </P>
<P>A travessia entre o município brasileiro e a comuna francesa, separadas apenas pelo rio Oiapoque, dura poucos minutos e é percorrida por centenas de pessoas cotidianamente. Durante anos esse percurso foi feito em pequenas embarcações a motor, localmente denominadas catraias. Em março de 2017, foi inaugurada uma ponte binacional possibilitando a passagem da fronteira pela via terrestre. Devido a restrições, como a exigência de visto e cobrança de pagamento para o uso da rodovia que dá acesso ao lado francês da fronteira, a alternativa fluvial continua sendo a mais utilizada por brasileiros. </P>
<P>A partir de meados dos anos 2000, a entrada de cidadãos brasileiros em Saint-Georges tem sido especialmente reprimida e dificultada.
<Link>1</Link>
Fatores como o crescimento vertiginoso da imigração ilegal brasileira para a Guiana Francesa, a intensificação da mineração em garimpos clandestinos e a diretriz de enrijecer os controles em todos as fronteiras da União Europeia, visando ao controle da imigração e, mais recentemente, ao combate a ações terroristas na Europa, seriam as causas do endurecimento das exigências burocráticas e do maior rigor na vigilância para ingresso na Guiana Francesa (GRANGER, 2013). Tamanhos controle e rigidez por parte da França têm feito com que fluxos e interações transfronteiriças ocorram, principalmente, de modo ilegal (SILVA e RÜCKERT, 2009; SILVA, 2013). </P>
<Endnote>
<P>Notas </P>
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<P>1 Embora integre oficialmente a União Europeia, a Guiana Francesa não está implicada no Espaço Schengen, convenção entre países europeus da qual a França é signatária, que envolve políticas de abertura das fronteiras e livre circulação de pessoas. </P>
<P>2 Levantamento apresentado em matéria do portal G1 no Amapá (SANTIAGO, 2014). </P>
<P>3 Informações e dados veiculados em uma matéria do programa semanal Fantástico, da Rede Globo (G1, 2014). </P>
<P>4 Trata-se de cooperação entre o Brasil e a França instituída em 2008 com o objetivo de prevenir e reprimir o garimpo ilegal na Guiana Francesa envolvendo autoridades judiciárias, administrativas e militares dos dois países. </P>
</Endnote>
<P>Dezenas de catraias circulam durante o dia e a noite pelo rio Oiapoque e são vitais para o funcionamento da cidade de mesmo nome. Uma parcela considerável dessas embarcações que dali partem em direção à Guiana Francesa não tem como destino Saint-Georges ou cidades como Kouru ou a capital Cayenne, mas diversos pontos, às margens do rio, que dão acesso a centenas de garimpos ilegais, espalhados pelas florestas e montanhas do país. Entre os dois lados do rio, trafegam pessoas, alimentos, utensílios domésticos e equipamentos para mineração, mas também ambições, sonhos e esperança de uma vida melhor por parte dos que se engajam nos garimpos. Esses percursos são, ademais, atravessados por várias modalidades de violências e ilegalismos. </P>
<P>O governo da Guiana Francesa estima que, atualmente, funcionem em suas florestas e montanhas cerca de 479 garimpos clandestinos, em que trabalhariam aproximadamente 10 mil brasileiros em situação ilegal.
<Link>2</Link>
Desde meados dos anos 1990, têm sido recorrentes os trânsitos e as migrações para a Guiana Francesa, visando ao engajamento na mineração ilegal. A partir dos anos 2000, devido aos recorrentes aumentos da cotação do ouro no mercado internacional, a presença brasileira no país vizinho multiplicou-se. </P>
<P>Este artigo visa problematizar as conexões e os pontos de contatos entre garimpos clandestinos na Guiana Francesa e atividades comerciais legais no município brasileiro do Oiapoque. Interessa-nos analisar as idas e vindas de garimpeiros e outros personagens do universo dos garimpos entre a cidade e a Guiana Francesa, elucidar os vínculos entre o comércio legal do município e os garimpos ilegais no lado francês, enfatizar os agenciamentos que possibilitam o contrabando do ouro francês e sua inserção no mercado brasileiro, e ressaltar as redes de relações desse universo, com atividades lícitas e ilícitas. </P>
<P>Os dados e as questões apresentados neste texto baseiam-se em variadas fontes e no uso de diferentes ferramentas de pesquisa. No primeiro semestre de 2013, fizemos trabalho de campo no Oiapoque em duas ocasiões, somando ao todo três semanas. Nossas duas idas ao município foram possibilitadas pela pesquisa Segurança Pública nas Fronteiras, coordenada pelo Núcleo de Estudos da Cultura, Cidadania e Violência Urbana (Necvu) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Secretária Nacional de Segurança Pública (Senasp). Tratou-se de um grande levantamento que se concentrou nas atividades criminais e nas instituições de segurança pública e da Justiça em toda a faixa de fronteira do Brasil. Encarregadas de pesquisar a região limítrofe da Guiana Francesa com o estado do Amapá, no município do Oiapoque, aplicamos questionários às personagens e instituições encarregadas da segurança pública no Brasil (Polícia Civil, Polícia Militar, Perícia Forense, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal), do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da sociedade civil (conselhos tutelares e outros conselhos). Realizamos entrevistas com alguns representantes dessas instituições e entrevistamos também autoridades francesas do lado guianense. Além disso, realizamos grupos focais e algumas entrevistas com moradores de Oiapoque e registramos em caderno de campo observações e narrativas que nos foram apresentadas por moradores do município em conversas informais. Naquela ocasião, foi possível obter com esses diferentes atores dados sobre a mineração ilegal e a movimentação de pessoas e mercadorias entre Oiapoque e a Amazônia guianense. </P>
<P>Posteriormente, no primeiro semestre de 2016, uma das autoras, Jania Aquino, realizou um levantamento sobre os garimpos clandestinos na Guiana Francesa junto a jornais do Brasil e da França e blogs e vídeos publicados no YouTube. Também pôde obter um importante material de pesquisa em comunidades e fóruns de discussões na rede social Facebook. A partir dessas comunidades e fóruns, pôde, novamente, realizar entrevistas e conversar informalmente com brasileiros residentes no Oiapoque e na Guiana Francesa, utilizando o programa Skype. Juntando todo esse material, conseguimos reunir um importante conjunto de informações e narrativas. </P>
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<P>Garimpos brasileiros na Guiana Francesa </P>
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<P>De acordo com estimativas do governo da França, somente 20% do ouro extraído na Guiana Francesa é resultante da mineração legal. Os garimpos clandestinos seriam responsáveis por cerca de dez toneladas anuais do ouro guianense,
<Link>3</Link>
que seria prospectado ilegalmente por garimpeiros brasileiros, contrabandeado para o Oiapoque e inserido no mercado nacional a partir dos postos de compra do mineral na cidade, em um processo que envolveria variadas etapas e agentes. </P>
<P>Considerando que a França exige visto a brasileiros que queiram adentrar o seu território ultramarino, os garimpeiros que entram em solo estrangeiro sem permissão ou conhecimento das autoridades, de uma perspectiva jurídica, invadem a Guiana Francesa. Lá, a atividade mineradora é amparada pela lei quando uma pessoa física ou jurídica obtém do governo autorização para fazer a prospecção e exploração mineral de uma determinada faixa de terra, cuja extensão e localização devem estar precisamente definidas. Nesse departamento da França, assim como no Brasil, a mineração legal é dominada por ricas empresas multinacionais. Pequenas e médias mineradoras ou cooperativas de trabalhadores que conseguem obter concessões para explorar legalmente o ouro representam uma minoria. </P>
<P>Nos garimpos legais, como em outras empresas, os custos e lucros concernentes à prospecção do mineral são do proprietário. Os trabalhadores são operários, têm salário fixo e carteira assinada. Um de nossos interlocutores de campo, Francisco, trabalhou para uma multinacional da mineração na Guiana Francesa nos anos 1990. Foi a empresa que regularizou a sua situação no país, providenciando junto às autoridades francesas o seu visto de permanência para trabalho. Francisco, que atualmente reside em Laranjal do Jari, no Amapá, e trabalha como mototaxista, ressaltou que, quando era funcionário da mineradora, recebia salário mensal e tinha jornada de trabalho de 40 horas semanais: “O trabalho era durante o dia; a noite era pra descanso. A gente não tinha nada a temer. Se um policial chegasse, era só mostrar o papel da empresa e pronto”. </P>
<P>Se os garimpos legais têm semelhanças com as condições e a rotina de trabalho de outras empresas, os garimpos ilegais formam um universo à parte e têm como desdobramentos algumas situações inusitadas. Riscos e infrações às leis do país vizinho permeiam o cotidiano de seus protagonistas. Garimpeiros que se embrenham sozinhos nas matas e nos leitos de rios, trabalhando individualmente com equipamentos leves de baixo custo, são raros nas florestas guianenses. Os que encaram esse desafio costumam utilizar uma máquina de pequeno porte equipada com detector de metal. Conhecida como “piu-piu”, a tal máquina emitiria um ruído específico quando identifica ouro em suas proximidades. Os perigos de adentrar sozinho a floresta são maiores do que quando a procura pelo ouro ocorre juntamente com outras pessoas. Segundo alguns dos nossos interlocutores, os que garimpam sozinhos estão mais expostos a quadrilhas cujo intuito é assaltar garimpeiros nessas localidades. </P>
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<P>– É mais difícil; tanto é difícil de achar o ouro como é difícil ele ficar mais tempo no mato. Se for carregar comida sozinho, é um trambolho grande. Quanto menos dias você fica, menos ouro você faz. O ouro de um dia não dar pra fazer nada. Pra ter um bom apurado tem que ficar ao menos um mês. Ficar só ou andar com mais um ou dois é mais difícil. Tem muita gente armada tomando ouro de quem encontra. Existe até mesmo outros garimpeiros que fazem isso. Eles vindo em muitos, e achando um desgarrado, se o “cabra” tiver ouro, eles vão depenar. (Jocélio, garimpeiro, 32 anos) </P>
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<P>Tendo em vista a dificuldade de prospectar o ouro sozinho, a maior parte dos que ganham a vida com a mineração ilegal está aglutinada em garimpos grandes ou pequenos. São mais numerosos os garimpos menores, que reúnem de dez a 20 pessoas, mas também são recorrentes os garimpos com centenas de trabalhadores. Ambos se organizam clandestinamente no meio da mata. </P>
<P>Alguns garimpeiros e outros atores locais, como as autoridades francesas, afirmam que os donos dos garimpos ilegais são empresários, comerciantes e até políticos do Oiapoque e de outros municípios do Amapá. Segundo eles, essas pessoas não vão à Guiana Francesa; comandam o negócio a partir de homens de confiança que acompanham toda a rotina do garimpo. Eles pagam todo o maquinário e equipamento necessário para a exploração do mineral, bem como a estrutura no meio da floresta que possibilita a estadia dos trabalhadores. Segundo os garimpeiros, os donos costumam ficar com 70% da produção mineral, ficando cada garimpeiro com apenas 30% do que ouro que conseguem encontrar. </P>
<P>De acordo com “seu” Tião, garimpeiro que já trabalhou em pelo menos cinco garimpos na Guiana: </P>
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<P>– O dono não aparece lá não; ele manda em tudo daqui do Brasil mesmo. Eles botam gente de confiança lá dentro, eles comanda tudo lá dentro: a hora de começar, de terminar. Quem acha alguma coisa eles já sabe. Toda hora o patrão daqui fala com o gerente lá, eles falam pelo rádio. Aí diz o apurado e eles já têm comprador aqui garantido. Aí é só correr para o abraço. É dinheiro demais que eles ganham. (Tião, garimpeiro, 67 anos) </P>
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<P>A maioria dos brasileiros nos garimpos clandestinos na Guiana Francesa é formada por amapaenses, maranhenses e paraenses. Mas chegam ao Oiapoque pessoas de todas as regiões do país, no intuito de cruzar a fronteira e se engajar na mineração ilegal. De acordo com alguns dos nossos interlocutores, a estrutura dos garimpos ilegais é precária. Geralmente, são montados grandes barracões cobertos com lona que funcionam como local para refeições e dormitório. Esses alojamentos costumam ser equipados com fogões, freezers, TV, antena parabólica e rádio de comunicação. Alguns trabalhadores levam suas esposas e filhos, mas a maior parte vai aos garimpos sozinha. Por isso, quase sempre há uma cozinheira encarregada de preparar as refeições de todos. Embora a jornada de trabalho seja longa, chegando por vezes a 24 horas diárias, e as acomodações dos garimpeiros sejam modestas, os geradores levados para a floresta permitem o funcionamento de alguns eletrodomésticos e meios de comunicação. Considerando que, na maior parte dos garimpos, não há sinal ou redes que possibilitem o uso do celular, o contato com o Brasil é feito por meio de frequências de rádio amador. </P>
<P>Devido ao isolamento nas matas do país vizinho, um dos garimpeiros com quem conversamos enfatizou a solidão e a monotonia no cotidiano, sobretudo durante a noite, nos garimpos menores: </P>
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<P>– A gente tira um dinheirim bom, muito melhor do que aqui fora, mas é sofrimento ficar lá. Eu já tive em um garimpo maior que era mais animado, mas por último eu fui em uns pequenos. A gente tem geladeira, televisão, rádio e mesmo assim é difícil; tem que olhar para as mesmas caras todo dia. É como se a gente estivesse numa prisão. (Valdir, garimpeiro, 42 anos) </P>
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<P>De acordo com os nossos interlocutores, os garimpos maiores, que aglutinam cem pessoas ou mais, são animados, com festas e outras atividades recreativas. Também vão a esses redutos de mineração vendedores de alimentos, roupas e perfumes, músicos e prostitutas – todos costumam receber em ouro por seus produtos e serviços. </P>
<P>Jaciele, uma amapaense ex-prostituta, conta que entre 2002 e 2007 viveu em pelo menos oito garimpos na Guiana. </P>
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<P>– É assim, mana, um lugar cheio de homem na mão, tudo carente, sem fazer nada há não sei quantas semanas. Aí a gente chega arrumada, cheirosa, cheia de amor pra dar pra eles. É uma festa só. A gente dança com eles; é uma vida muito sofrida que eles têm. Mana, teve um velhinho do Maranhão que se apaixonou por mim. Ele me dava tudo que ganhava na semana. Eu só não fiquei rica porque teve uma colega minha invejosa que me roubou tudo. (Jaciele, ex-prostituta, 55 anos) </P>
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<P>Há vários registros de jovens menores de idade traficadas do Amapá para a Guiana Francesa e exploradas sexualmente. Elas costumam acompanhar mulheres mais velhas e até mesmo familiares que as persuadem a ir para o país vizinho. Há casos de mulheres, maiores e menores de idade, que são levadas mediante propostas de emprego em outras atividades, mas, quando chegam aos garimpos, são obrigadas a se prostituir (SOARES, 2010). </P>
<P>Nos garimpos maiores, costuma existir uma espécie de vila onde moram os garimpeiros, as chamadas “corruptelas”. Além de moradias dos garimpeiros, esses locais abrigam vendas de mantimentos, bebidas, utensílios domésticos. São recorrentes atividades como bingos, leilões e festas. </P>
<P>A prospecção no leito dos rios não é usual hoje na Guiana Francesa. Quase todos os garimpos por lá extraem ouro do solo. Na maior parte deles são usadas máquinas pesadas e caras. Vale ressaltar, inclusive, que os métodos e equipamentos empregados por garimpeiros brasileiros na mineração ilegal são os mais modernos da América do Sul (THEIJE e HEEMSKERK, 2014). Depois de desmatado um determinado trecho da floresta ou montanha, retroescavadeiras são utilizadas para afrouxar o solo que, em seguida, é umedecido com bombas hidráulicas de grande porte. Juntamente com a água são inseridas na terra grandes quantidades de mercúrio, para facilitar a retirada do ouro. A partir daí, a procura pelo metal é feita com máquinas próprias para esse fim, chamadas “plantas de lavagem”. Todo o solo que recebeu água e mercúrio é examinado, visando à extração de pepitas de ouro (TEDESCO, 2015). </P>
<P>Uma das consequências dos garimpos que mais preocupa governo e instituições de segurança pública na Guiana Francesa é o desmatamento da floresta tropical e o uso do mercúrio, componente químico que causa poluição de grande alcance no ar, no solo e no leito dos rios, provocando a morte de peixes e outras formas de vida nas águas fluviais. Outro ponto que faz com que se intensifique o combate aos garimpos ilegais é o aumento dos crimes violentos nas regiões em que se localizam tais redutos de mineração. Segundo o comando da Gendarmerie, a polícia militar francesa, em Saint-Georges, em 2012 foram registrados na Guiana Francesa 80 homicídios (em uma população de 250 mil habitantes), a maioria deles ocorridos na selva em disputas envolvendo garimpeiros brasileiros. E isso sem contar o encontro de ossadas. Os conflitos mais comuns que resultam em morte são disputas por mulheres e desentendimentos – geralmente na presença de álcool e, eventualmente, de crack –, justiçamentos e outros. </P>
<P>Além de envolver várias infrações à lei, a mineração ilegal tende a atrair grande quantidade de assaltantes, que adentram a floresta no intuito de atacar os garimpeiros na travessia até o Oiapoque, no Brasil, ou no percurso para cidades da Guiana Francesa. </P>
<P>Por se tratar de uma atividade em que há possibilidade de confrontos entre garimpeiros ou entre eles e assaltantes ou com a polícia francesa, o uso de armas nos garimpos clandestinos é corriqueiro entre homens, mulheres e até crianças. Em uma operação destinada a localizar e desativar garimpos na região de Dorlin, em 2013, dois policiais franceses foram mortos a tiros quando desciam de rapel de um helicóptero. A ocorrência teve grande repercussão na Guiana e causou constrangimentos diplomáticos ao Brasil. Um dos nossos colaboradores de pesquisa, seu Tião, afirmou: </P>
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<P>– Eu conheço garimpos em todos os lugares, mas lá é mais perigoso: o povo se arma até os dentes. Até criança anda armada lá. Acho que é porque não tem cidade perto, o garimpo é proibido, não tem ninguém para olhar por nós. Aí a gente bota a confiança na arma. (Tião, garimpeiro, 67 anos) </P>
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<P>Embora parte do armamento utilizado por brasileiros em garimpos na Guiana Francesa seja levado do Brasil, a maioria das armas, sobretudo as de grande porte, é adquirida no próprio país, onde é liberado o comércio de espingardas para caça, tendo estas grande poder de destruição. </P>
<P>Quanto à logística de deslocamento entre os garimpos nas florestas e as margens dos rios, o transporte mais utilizado nos garimpos são quadriciclos com tração nas rodas traseiras, que carregam dezenas de quilos de ouro até a margem do Oiapoque e trazem variados tipos de mantimentos, utensílios, objetos e equipamentos utilizados nos garimpos. </P>
<P>O ouro retirado na Guiana costuma ser vendido em Oiapoque, onde, já na beira do rio, encontram-se pelo menos 12 postos comerciais de compra do mineral. O proprietário de uma dessas casas, residente em Macapá, assegurou que </P>
<P>– (...) sempre vai haver comprador pra esse ouro. Tem muita procura e muita venda. A gente não tem como saber de onde vem; a pessoa chega na casa de câmbio pra vender, eu não tenho como saber de onde ela extraiu. Minha função é comprar. Eu sou comerciante, eu compro ouro. Aí você me diz “vem da Guiana, é ilegal”, e eu respondo “eu não tenho nada a ver com isso, quem tinha que ter impedido ele de chegar na minha porta era a polícia da Guiana ou a nossa”. Depois que o cara chegou no meu estabelecimento com o ouro dele, ele pode dizer o que quiser. (Proprietário de posto comercial) </P>
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<P>Dentre os postos de compra de ouro no Oiapoque, apenas cinco são casas autorizadas pelo Banco do Brasil e declaradas na Receita Federal, procedimento que torna legal o metal comercializado por elas. Vale ressaltar que na documentação apresentada para regularizar o ouro que compram e vendem, esses postos comerciais afirmam ser Oiapoque o local originário do metal, mesmo sendo amplamente sabido que não há mais garimpos no município. E isso é apenas a ponta do iceberg, pois a maior parte do ouro prospectado ilegalmente e contrabandeado da Guiana sequer é declarado: circula ilegalmente por postos de compra e joalheiras. </P>
<P>Conforme afirmaram alguns entrevistados, alguns comerciantes chegam a enviar subordinados até os garimpos das florestas da Guiana Francesa para transportar o metal até o Oiapoque. O pagamento ao dono do garimpo e aos garimpeiros é feito por meio de depósitos em conta bancária. Nesses casos, há uma participação direta e efetiva dos postos de compra no contrabando do ouro para o Brasil, além da receptação do recurso natural trazido ilegalmente do país vizinho. Um dos garimpeiros que entrevistamos afirmou: </P>
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<P>– Pra gente é bom fazer desse jeito, primeiro porque chegar até aqui com ouro, a gente fica sujeito a assalto. Teve camaradas nossos que já morreram no meio da mata. E também porque com uma conta eu faço assim: deixo o cartão com minha mulher. Eu tenho dois cartões, um Credicard e outro, Visa. Eu fico com o Visa e minha mulher, com o Credicard. Assim eu digo a ela: “Tem tanto”, e ela vai lá e tira. Aí eu não preciso vir aqui toda semana deixar dinheiro da feira; ela mesmo tira no banco. (João, garimpeiro, 37 anos) </P>
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<P>Tanto o ouro em barra como peças do metal já trabalhadas costumam ser vendidos a joalherias de Macapá ou em outros estados. Um dos nossos interlocutores descreveu um esquema de venda e transporte ilegal de ouro em que barras sairiam do Oiapoque em caminhonetes off road localmente denominados “piratas”, que levam pessoas e mercadorias da cidade até a capital. De Macapá, o metal seguiria para sofisticadas joalherias de São Paulo, transportadas ilegalmente por funcionários de uma companhia aérea, sem declaração ou registro no aeroporto de partida ou no de chegada. </P>
<P>Os comerciantes da cidade, assim como quase toda a população, sabem a destinação dos mantimentos e equipamentos de mineração comprados em Oiapoque. Todo o material atravessa a fronteira sem documentos oficiais, o que torna ilegal sua saída. Lojas especializadas em materiais para a mineração vendem canos, bombas d'água, geradores e outros produtos. </P>
<P>O dono de loja de material de mineração com quem conversamos se isentou de responsabilidade com os ilícitos transfronteiriços relacionados aos garimpos. </P>
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<P>– É o seguinte: a gente vende esse material, a gente paga impostos; toda a mercadoria é certinha. A gente não vende droga, a gente não vende armas. O que o cliente vai fazer com o que ele compra é da conta dele. Eu vendo na minha loja. Eles vêm comprar aqui. É tudo muito honesto. (Dono de loja de material de mineração) </P>
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<P>Tanto a mercadoria para os garimpos como o ouro chegam e saem do Oiapoque em catraias. Os catraieiros levam pessoas e equipamentos até determinados trechos da floresta, de onde os garimpeiros partem a pé para os garimpos. O trânsito de mercadoria, em sua maior parte, ocorre no escuro da noite, mas, quando se trata de pessoas e equipamentos de pequeno porte, as idas e vindas se dão durante o dia. </P>
<P>Máquinas como retroescavadeiras e bombas d’água envolvem maiores cuidados e custos para chegar até os garimpos. Dada a extensão dos rios e da floresta, a repressão aos garimpos e ao trânsito de pessoas e mercadorias que ele envolve se torna bastante difícil para as polícias francesas. As ações mais comumente empreendidas são a destruição do material de abastecimento do garimpo apreendido na passagem para o território francês e a explosão de equipamentos nos sítios de extração instalados na Guiana Francesa. </P>
<P>Sem substancializar o legal e o ilegal como domínios previamente dados, nossa análise orienta-se pela reflexão foucaultiana acerca dos dispositivos jurídicos. Em Vigiar e punir, Foucault (1997) desloca a discussão da oposição entre legal e ilegal para se concentrar nos modos como as leis operam, não para prevenir ou reprimir os ilegalismos, mas para diferenciá-los: “riscar os limites de tolerância, dar terreno para alguns, fazer pressão sobre outros, excluir uma parte, tornar útil outra, neutralizar estes, tirar proveito daqueles” (FOUCAULT, 1997, p. 226). As leis são apresentadas como campos de força que podem se redefinir e se deslocar de acordo com as formas de controle e critérios de incriminação dessas práticas e atividades, oscilando entre tolerância e repressão conforme contextos e conjunturas políticas. Em lugar desta oposição, o autor chama a atenção para uma “economia política dos ilegalismos”, que não tem a ver com universos paralelos, muito menos com o par de opostos lícito e ilícito. É nas suas intersecções e pontos de contato que se circunscrevem jogos de poder, relações de força e campos de disputa. Deste modo, leis e codificações passam a ter efeitos de poder. Essa forma de considerar a lei pode ser observada em Rabossi (2004): </P>
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<P>O ilegal, longe de ser o resultado do funcionamento anormal ou amoral da sociedade, faz parte das possibilidades abertas em um mundo definido pela lei. Isto é, legal/ilegal não é uma clivagem que permita diferenciar a priori setores do funcionamento do social ou universos preexistentes, mas sim que constitui o operador através do qual se produzem distinções, se reproduzem desigualdades e se aproveitam oportunidades. (RABOSSI, 2004, p. 16) </P>
<P>O autor inspira-se na noção de Foucault, para quem </P>
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<P>o ilegalismo não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. É um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel está previsto na estratégia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo dispõe de espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros enfim, em que as infrações são sancionadas. (...) Ao final de contas, a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de tornear a própria lei. (FOUCAULT, 1994[1975], p. 80) </P>
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<P>Segundo esse raciocínio, os ilegalismos correspondem a um conjunto de atividades de diferenciação, categorização e hierarquização acionadas por dispositivos que fixam e isolam suas formas e tendem a organizar a transgressão das leis em uma tática geral de sujeições (Idem, 1997). </P>
<P>É justamente nos agenciamentos de contorno da lei que práticas e personagens abordados na nossa pesquisa transitam e produzem conexões entre os universos do lícito e do ilícito. A noção foucaultiana de ilegalismo possibilita a compreensão desse trafegar incessante entre o legal, o informal e o ilegal, operada por diferentes agentes entre os garimpos na Guiana Francesa e a cidade de Oiapoque. São ilustrativas dessa noção as rotinas de variados personagens atuantes no espaço fronteiriço franco-brasileiro: garimpeiros, empresários e políticos do Oiapoque donos de garimpos na Guiana, compradores de ouro, comerciantes de equipamentos para a mineração, prostitutas, donos de postos de compra de ouro, pessoas que vendem mantimentos nos garimpos, catraieiros, entre outros. Estão todos a se equilibrar nos limites borrados entre o lícito e o ilícito ao longo de percursos descontínuos, mobilizados conforme o momento e as circunstâncias, e parecem transitar em tênues fronteiras jurídicas e morais, exercitando o que Telles (2009) chama de “arte do contornamento”, ou seja, agenciamentos mobilizados para evitar os riscos alojados nas dobras de “fronteiras porosas” entre o que está fora e o que está dentro da lei (TELLES, 2009). </P>
<P>Quando observamos, portanto, as redes de relações que possibilitam o funcionamento dos garimpos clandestinos na Guiana Francesa, chamam atenção os pontos de contato e vínculos entre atividades legais e ilegais. Tais experiências assumem relevância para a análise porque subvertem “grandes divisores” (GOLDMAN e LIMA, 1999) ou “fissões” que o senso comum e até mesmo as ciências sociais instituem a partir de categorias como “mundo do crime”, “submundo”, “economia legal”, entre outras. Tais elaborações, que fazem pensar em uma separação categórica entre um suposto mundo das práticas legais e outro das ilegalidades, por vezes tido como subterrâneo ou marginal, deixam de fazer sentido (AQUINO, 2010). A mineração ilegal evidencia cruzamentos entre atividades lícitas e ilícitas. Conforme demonstram narrativas e informações obtidas, o universo dos garimpos projeta redes de relações que atravessam pessoas e objetos e interseccionam o legal e ilegal (LATOUR, 2005). </P>
<P>Junto com a categoria foucaultiana de ilegalismos, a ideia de “rede” de Latour (2005) é uma inspiração bastante relevante para pensarmos as práticas e os agentes implicados na corrida do ouro na Guiana Francesa. Projeta-se uma complexa rede, conectando donos de garimpos e seus homens de confiança, garimpeiros, escavadeiras, motores, bombas d’água, cozinheiras, mantimentos, barracas, rios, catraieiros, policiais franceses, compradores de ouro, comerciantes do Oiapoque, prostitutas, armas, assaltantes, entre outros personagens e objetos atuantes. Decerto, o agente responsável por dar impulso a essa rede e garantir o seu funcionamento é o ouro guianense, e é por causa dele que brasileiros se embrenham nas matas da Guiana Francesa. </P>
<P>O ouro conecta jazidas desse mineral vindo do país vizinho e homens provenientes do Brasil com a economia mundial e as oscilações de preços do mercado internacional. Dependendo dessas variações, há maior ou menor procura das joalherias e dos postos de compra e, consequentemente, o valor do grama do ouro diminui ou aumenta. Também são agentes dessa rede bancos e bolsas de valores do mundo, que interferem decisivamente no valor do ouro. O que conecta o ouro imerso nas florestas da Guiana Francesa e as longas jornadas de trabalho ilegal realizado em condições precárias com riscos variados são sonhos, desejos e ambições dos garimpeiros. Esses homens não buscam apenas um trabalho que lhes garanta o sustento; eles sonham com as imensas e valiosas pepitas de ouro capazes de lhes tornar, subitamente, homens ricos (LATOUR, 2005). </P>
<P>Efetivamente, pessoas e práticas situadas nos supostos domínios do legal e do ilegal estão conectadas pela corrida do ouro. O funcionamento dessa rede que estabelece pontos de contato entre florestas da Guiana e o mundo depende não só dos brasileiros que adentram ilegalmente o país vizinho para prospectar, também ilegalmente, seu ouro, mas também de um conjunto de outros personagens e atividades legalizadas e regulares que dão suporte à mineração ilegal na Guiana Francesa. São removidas fronteiras entre a entidade que costumamos denominar “sociedade” ou “mundo do não-crime” e o domínio de relações considerado “submundo” ou “mundo do crime”. Tais categorias de análise abstratas e substancialistas, que instituem fissões entre pretensos domínios, tendem a perder sua razão de ser quando confrontadas com situações e exemplos concretos (AQUINO, 2010). </P>
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<P>Brasil e França: tensões internacionais entre vizinhos </P>
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<P>A existência de grande quantidade de garimpos clandestinos protagonizados por brasileiros nas florestas da Guiana Francesa, além de endurecimento nas normas e na vigilância em relação aos trânsitos transfronteiriços, tem resultado em embaraços nas relações diplomáticas entre Brasil e França. Desde meados dos anos 2000, o governo francês tem pressionando o Brasil por colaboração e auxílio no combate à mineração ilegal. Em 2008, durante uma visita dos presidentes Lula e Nicolas Sarkozy à região, foi firmado um acordo de cooperação entre autoridades judiciárias, administrativas e militares dos dois países para prevenir e combater a exploração ilegal de ouro em áreas protegidas da floresta. Desse acordo resultou a operação Harpie.colaboração e auxílio no combate à mineração ilegal. Em 2008, durante uma visita dos presidentes Lula e Nicolas Sarkozy à região, foi firmado um acordo de cooperação entre autoridades judiciárias, administrativas e militares dos dois países para prevenir e combater a exploração ilegal de ouro em áreas protegidas da floresta. Desse acordo resultou a operação Harpie.colaboração e auxílio no combate à mineração ilegal. Em 2008, durante uma visita dos presidentes Lula e Nicolas Sarkozy à região, foi firmado um acordo de cooperação entre autoridades judiciárias, administrativas e militares dos dois países para prevenir e combater a exploração ilegal de ouro em áreas protegidas da floresta. Desse acordo resultou a operação Harpie.</P>
<P>Apesar de ter representado um avanço diplomático nas relações entre Brasil e França, o acordo desencadeou certa tensão entre poderes nacional e local. O prefeito de Oiapoque e alguns vereadores com quem conversamos se mostraram descontentes com o fato de o governo federal não ter ouvido a população da cidade nem seus representantes políticos antes de fazer negociações com a França. </P>
<P>Depois de firmado o acordo, as polícias brasileiras, sobretudo a Polícia Federal, passaram a ter uma relação mais próxima com as polícias francesas e se tornaram mais rígidas no combate aos garimpos ilegais na Guiana Francesa. Como resultado, foi instalado na unidade da Gendarmerie, em Saint-Georges, um centro de cooperação policial que conta com um oficial de ligação brasileiro, da Polícia Federal, e um oficial de ligação francês, da Gendarmerie. A cooperação no centro consiste principalmente em trocas de informações em tempo real. Por meio dos oficiais, as informações em bancos de dados ou inteligência de cada país são acessadas legalmente. Embora a iniciativa seja vista positivamente do lado brasileiro, há o entendimento de que prevalecem os interesses franceses na cooperação. Na prática, isso vem resultando em vigilância constante às embarcações que transitam pelo rio Oiapoque. Catraias transportando pessoas e equipamentos com destino a garimpos nas florestas da Guiana francesa vêm sendo interceptadas, catraieiros e tripulantes, detidos e os equipamentos de mineração, destruídos. </P>
<P>A postura do Estado, manifestada na atuação das polícias Federal e Civil, de equipes da Força Nacional, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), tem desagradado políticos e a população do Oiapoque. Ambos vêm fazendo duras críticas aos governos estadual e federal, vistos como ausentes e desinteressados em apresentar alternativas para o desenvolvimento econômico e social do município. Na fala de algumas pessoas com quem conversamos, transparece a opinião de que forças do Estado nacional estão agindo contra interesses locais, tanto de poderosos políticos e comerciantes, que lucram com a mineração, como de trabalhadores pobres, que encontram na atividade ilegal um meio de subsistência. </P>
<P>Embora reconheçam que os garimpeiros brasileiros na Guiana Francesa transgridem leis internacionais e causam danos ao meio ambiente, as pessoas com quem conversamos deram mais ênfase ao fato de se tratar de trabalhadores explorados; muitos ressaltaram que quem realmente ganha com a mineração ilegal são os donos de garimpos, que os trabalhadores são explorados e que é predominante o entendimento de que a adesão aos garimpos é decorrente da falta de opções de trabalho na região. Outro ponto que contribui para que garimpeiros sejam moralmente absolvidos nessas falas é a truculência da polícia francesa com cidadãos brasileiros. Os moradores de Oiapoque que vão a Saint-Georges fazer compras ou tentam adentrar o território ultramarino da França em busca de trabalho têm uma imagem negativa da polícia do país vizinho, tida como opressora e arrogante. Desse modo, colocar-se ao lado dos garimpeiros é um meio que encontram de repudiar a Police aux Frontières (PAF) e também a Gendarmerie. </P>
<P>Por estar localizado no extremo norte do território brasileiro, cercado por parques nacionais e reservas indígenas, o município do Oiapoque, 590 quilômetros distante de Macapá, acaba experimentando uma condição de isolamento em relação a outras cidades e estados do Brasil. Diante das dificuldades de deslocamento, já que as vias terrestres são precárias e inexistem voos comerciais ligando a cidade a outras partes do país, há uma forte demanda de acesso às cidades da Guiana Francesa, onde os serviços médicos e assistenciais são bastante superiores, por se tratar de departamento ultramarino francês. A exigência de visto para entrar no país e a excessiva vigilância da PAF acabam agravando o isolamento do município, que, na fala de alguns moradores, foi apresentado como o “lugar onde o cão perdeu as botas” e para onde “só vem quem tem negócio”. A atuação das polícias francesas na fronteira franco-brasileira tem resultado em recorrentes episódios de hostilidade, interpretados como humilhação, com moradores que vão a Saint-Georges atraídos pelo comércio e os catraieiros, protagonistas do transporte fluvial internacional. Esses brasileiros colecionam narrativas de situações em que a PAF aparece como intransigente, injusta e intolerante. As autoridades que comandam a instituição se justificam afirmando saber que o garimpeiro constitui o lado fraco da rede, mas, como não conseguem pegar os donos da atividade ilegal, que nunca pisam na Guiana Francesa, concentram-se em destruir o seu abastecimento. </P>
<P>Na perspectiva legal que orienta os Estados francês e brasileiro, a condição de ilícito transfronteiriço dos garimpos clandestinos tem peso forte, já que a atividade, além de envolver a obtenção ilegal e o contrabando do ouro francês, ocasiona a devastação da floresta tropical. Desse ponto de vista, os brasileiros engajados em garimpos clandestinos da Guiana Francesa aparecem como criminosos internacionais, agentes predatórios que estariam, ainda, atrapalhando as relações entre Brasil e França, sendo, assim, prejudiciais e inconvenientes à política externa brasileira. </P>
<P>Por outro lado, quando consideramos a perspectiva local, os garimpeiros, como vimos, são vistos com certa condescendência, em parte motivada pela antipatia dos moradores de Oiapoque com as polícias francesas. Ademais, há na cidade uma visão disseminada de que os garimpos, sejam legais ou ilegais, são economicamente relevantes para o município, garantindo a sobrevivência de milhares de pessoas. Estando a emancipação e a trajetória do Oiapoque vinculadas a surtos de mineração, os garimpeiros, não raro, são apontados como os fundadores da cidade. Em larga medida, a recorrente simpatia e relativização moral com tais personagens e a amenização do fato de que subvertem fronteiras internacionais e prospectam ilegalmente o ouro de um país estrangeiro ocorrem porque os garimpeiros são vistos não só como corajosos, dominados e sofredores, mas também como próximos. Por outro lado, a visão da França e do próprio governo federal está associada à alteridade, à distância física e simbólica. É recorrente entre os moradores da cidade o sentimento de que são esquecidos pelo Estado brasileiro e tidos como indesejáveis pela França. </P>
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<H1>Referências </H1>
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<P>JOANA DOMINGUES VARGAS (jovargas@uol.com.br) é professora associada do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Direitos Humanos (PPDH) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA), todos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil). É coordenadora de pesquisas do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da UFRJ, pesquisadora de produtividade do CNPq e atualmente coordenadora brasileira do Capes/Cofecub “Passagens de Fronteiras e Cidades Seguras: Questões históricas e contemporâneas”. Possui doutorado em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, Brasil), mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, Brasil) e graduação em história pela Universidade de Brasília (UnB, Brasil). </P>
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<P>JANIA PERLA DIÓGENES AQUINO (perladiogenes@hotmail.com) é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Ceará (UFC, Fortaleza, Brasil) e do Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da UFC e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). É pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da UFC. Integra como professora e pesquisadora o Capes/Cofecub “Passagens de Fronteiras e Cidades Seguras: Questões históricas e contempo-râneas”, com </P>
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<P>estágio pós-doutoral no Centre de Recherche Sociologique sur le Droit et les Instituitions Pénales (Cesdip/UVSQ, França). É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil), mestre pelo PPGS da UFC e graduada em ciências sociais pela mesma universidade. </P>
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<P>Recebido em: 15/03/2019 Aprovado em: 08/04/2019 </P>
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