O tempo da Barra da Tijuca: Concepções de passado, presente e futuro na narrativa midiática sobre o bairro
Doutora em antropologia social pela University College London (UCL, Londres, Inglaterra), mestre em comunicação social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, Brasil) e graduada em comunicação social pela mesma universidade. Atualmente é pós-doutoranda no Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e Honorary Research Associate do Departamento de Antropologia da UCL., Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo
O artigo investiga as concepções de passado, presente e futuro apresentadas pelo jornal O Globo para narrar a expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro em direção à Barra da Tijuca, Zona Oeste, no final dos anos 1960 e 1970. Observa-se a adoção de um discurso que associa a região a concepções de “progresso”. Um progresso que, no entanto, viabilizaria o retorno a um passado natural: a Barra como uma nova antiga maneira de viver que evitará a contaminação sofrida por Copacabana. Argumenta-se que estratégias de expansão da cidade combinadas à atuação da mídia produzem uma narrativa de construção espacial que continuamente nega a mudança.
Received: 2019 May 15; Accepted: 2019 August 29
Keywords: Palavras-chave Barra da Tijuca, tempo, modernismo, jornal, urbanismo.
Keywords: Keywords Barra da Tijuca, temporality, modernism, newspaper, urbanism.
Introdução
Este artigo analisa discursos e ideias apresentados em peças publicitárias e matérias do jornal O Globo sobre a expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro em direção à região da Zona Oeste entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970. A análise apresentada busca entender como peças midiáticas constroem uma noção específica de lugar, inventando assim a Barra da Tijuca. Pretende-se investigar principalmente as concepções de passado, presente e futuro utilizadas, e a lógica temporal que as mesmas constroem.
Veremos aqui a maneira como um discurso de modernização urbana se fez bastante presente em matérias e anúncios sobre a expansão para a Barra, trazendo consigo noções de progresso e futuro. Essa narrativa surge em um contexto bastante específico, quando a América Latina e o Brasil são vistos em meados do século XX como laboratórios para a experimentação de projetos desenvolvimentistas que visavam construir uma espécie de “paraíso” urbano (GORELIK, 2005). Além disso, os ideais modernistas também apresentam uma grande afinidade com a prática das forças militares, ambos valorizando o ordenamento e racionalização do espaço (FERNANDES, 2006). Argumento que todos esses fatores juntos contribuem para uma lógica espaço-temporal que inviabiliza mudanças históricas e remete à noção de “cultura prescritiva” de Marshall Sahlins (1985, p. xi). Também veremos como essa lógica possui grande afinidade com a sensibilidade construída pelos meios de comunicação de massa (SOUZA e RIBEIRO, 2014).[1]
Neste artigo, entende-se, portanto, o pensamento social modernista, a lógica militar e a estética das mídias de massa como agentes formadores de uma concepção de tempo a-histórica sobre a Barra da Tijuca. A narrativa midiática sobre a Barra, ao repetir um discurso de progresso já usado para Copacabana, impede uma experiência de transformação e evolução temporal. Isso porque tudo aquilo que foge à narrativa de progresso, em lugar de provocar uma revisão da mesma, é enquadrado sob categorias culturais já existentes – ideias de contaminação e desordem.
Este texto começa discutindo algumas peças da mídia sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro, passa ao contexto de surgimento de um desenvolvimentismo urbano, para então analisar a lógica temporal presente em todo esse processo a partir de um ponto de vista antropológico.
Barra da Tijuca: uma promessa de progresso e modernização
Segundo os urbanistas Vera Rezende e Gerônimo Leitão (2003), a partir de 1930 ideais modernistas começam a influenciar arquitetos brasileiros, até que nos anos 1940 essa influência passa a assumir manifestações concretas, principalmente no planejamento da futura capital, Brasília. Segundo os autores, esse movimento propunha uma nova etapa da civilização, em que a arquitetura viabilizaria uma renovação social. Isso seria marcado por uma busca pela racionalidade que imprimiria ordem ao espaço urbano.
Os modernistas projetavam uma cidade estruturada de forma diversa das tradicionais, com a ausência, por exemplo, de lotes e quadras, e propondo uma separação entre a circulação de pedestres e a de veículos. Enquanto na Zona Sul os ideais modernistas podiam ser testados apenas em áreas restritas, já parceladas e edificadas, na Barra da Tijuca haveria oportunidade para que os projetos fossem testados em uma escala maior, já que boa parte da região permanecia rural (REZENDE e LEITÃO, 2003).
O bairro da Barra da Tijuca é, então, resultado de um conjunto de fatores específicos: um plano piloto modernista desenhado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa, que buscava a criação de uma nova cidade, em oposição ao modelo arquitetônico tradicional da Zona Sul (SÁNCHEZ, 2009); projetos paisagísticos que visavam reconstruir ecossistemas inteiros e alcançar uma paisagem natural pré-urbana (PATERMAN, 2017); e forte especulação imobiliária (REZENDE e LEITÃO, 2003).
Isto é, visando promover ajustes necessários aos interesses do setor imobiliário, o poder público permitiu uma gradual alteração do planejamento modernista proposto por Lúcio Costa. Um exemplo é a autorização para a ocupação mais intensa e diversificada da orla marítima. Outra característica do bairro não prevista pelo projeto modernista foi a emergência de empreendimentos comerciais que são a recriação cenográfica da cidade tradicional, com ruas e passeios privados que confundem o papel do cidadão e do consumidor e onde coexistem lado a lado “o neocolonial de influência espanhola, o ‘pós-moderno’ inspirado em Miami e a arquitetura ‘high-tech’ com arrojadas estruturas metálicas” (REZENDE e LEITÃO, 2003, p. 12).
Em matérias e propagandas publicitárias do jornal O Globo da época, visualizamos alguns dos ideais modernistas citados por Rezende e Leitão. Por exemplo, na matéria de 17 de novembro de 1969 intitulada “Verde-selvagem é o tom da nova Barra da Tijuca” espera-se uma “cidade mais humana”, onde as “crianças do futuro poderão correr sem medo” (O GLOBO, 17/11/1969). Ou seja, um discurso de renovação social. A peça trata a expansão em direção à Barra como “o momento certo [em] que o presente passará a ser futuro”, um “futuro que poderá começar dentro de seis meses” ( Idem ). Esse futuro, associado à noção de progresso, é contraposto à “explosão desordenada que se registrou na Zona Sul” ( Idem ), isto é, contrasta com o modelo arquitetônico tradicional aplicado em outras áreas da cidade.
A matéria citada também trata a Barra da Tijuca como um espaço até então rural e selvagem:
As obras já começaram a mudar um pouco o ar selvagem da Barra, marcando certamente seu instante de transição: vacas cochilam perto de tratores, patos selvagens se assustam com o movimentar das dragas, pescadores tranquilos cruzam a todo instante com operários suados, ou seguem, a cavalo e em passo displicente, sobre as marcas molhadas de pneus que pronunciam a chegada do futuro ( Idem, 1969).
Nas fotos da matéria, vemos vacas convivendo com os caminhões das obras, além de imagens de pessoas montadas em cavalos ou pescadores jogando as suas redes. Na legenda de uma foto dos túneis em construção, lê-se: “a favela da Rocinha é um problema no caminho da Barra” ( Idem ).
Já em uma propaganda de 16 de dezembro do ano seguinte, sob o destaque “Foi um inferno! Vendemos 30 milhões do paraíso”, argumenta-se que morar na Barra da Tijuca é “o negócio da sua vida”, uma “nova forma de viver” com os “mais modernos conceitos arquitetônicos”: “A cidade integrada e sem ruídos. O ar sem poluição. O mar e a montanha. O encontro do homem com a natureza” desenvolvida pelo arquiteto “gênio” Lúcio Costa (O GLOBO, 16/12/1970). Trata-se de um “paraíso [que] pode ser também seu” e que permitirá “ao seu filho o direito de ser criança” ( Idem ).
Em meio às diversas tipografias e chamadas, vemos uma imagem 3D dos prédios a serem construídos, a ilustração de uma criança feliz em meio a adultos na praia e um mapa da Estrada Lagoa-Barra, “o caminho do paraíso” ( Idem ). Mais uma vez, observa-se a adoção de um discurso que associa a região da Barra a concepções de futuro, modernidade e progresso. Essa nova forma de viver “planejada” por Lúcio Costa é comparada à poluição e aos ruídos da Zona Sul. A consequência desse planejamento é alcançar o “paraíso” e dar às crianças o direito de brincar na praia.
Vemos assim nas matérias e propagandas do jornal O Globo no final dos anos 1960 e início dos 1970 uma reprodução dos valores modernistas citados por Rezende e Leitão (2003). Tais concepções modernistas, no entanto, são fruto de um processo mais amplo, que impactou não apenas a cidade do Rio de Janeiro, mas também diversas outras da América Latina. A próxima seção investiga o contexto que propiciou o surgimento desse entendimento espacial.
O discurso do ‘paraíso’ latino-americano
Adrián Gorelik (2005) usa a noção de “categoria histórica” para se referir à maneira com que condições históricas especiais se articularam para viabilizar o surgimento de determinadas categorias de pensamento e discurso. No caso do urbanismo brasileiro, o autor destaca a presença histórica e a relevância analítica da noção de “cidade latino-americana”. O termo, segundo Gorelik, surgiu em um contexto de formação de uma rede internacional de especialistas em ciências sociais e estudos urbanos, que envolveu desde a Escola de Chicago[2] até membros da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (a Cepal, criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas com o objetivo de estimular a cooperação econômica dos seus membros). Segundo Gorelik, a categoria “cidade latino-americana”, bastante usada em projetos urbanos desenvolvimentistas entre os anos 1950 e 1970, demonstra como as cidades brasileiras foram enquadradas em uma relação de oposição às cidades europeias, o “continente” latino-americano sendo assim entendido como “novo”, “sem história”, “vazio” e, por isso, uma oportunidade para um “laboratório de experimentação social e política” (GORELIK, 2005, p. 133).
Segundo o autor, houve, desde o início desse processo desenvolvimentista, uma postura ambígua em relação à formação das cidades. Ou seja, elas eram tratadas como sinônimo da negativa explosão urbana que havia acontecido na Europa durante o período industrial e, no entanto, também eram vistas como “motor da [positiva] modernização social” ( Ibid., p. 117).
Até os anos 1980, a visão positiva prevalece no discurso urbanístico brasileiro. O autor argumenta, então, que, seguindo essa estratégia de modernização, nos anos 1950 se difunde no Brasil um modelo de desenvolvimento universal que entendia a cidade como “máquina de tração de pautas modernas” ( Ibid., p. 118). Trata-se de um discurso marcado por um otimismo e pela esperança de que um planejamento moderno das cidades latino-americanas pudesse evitar os males causados pelas forças do mercado não reguladas, conforme havia acontecido na Europa durante os séculos XVIII e XIX. Em outras palavras, o conceito de “moderno” é entendido como uma capacidade de planejamento da dinâmica social e espacial que pudesse evitar os traumas sofridos nas primeiras concentrações urbanas europeias.
Os adeptos do desenvolvimentismo viam, portanto, na América Latina, no Brasil e, mais especificamente em Brasília, a possibilidade de se construir um paraíso, distante do caos que havia se instaurado na Europa – valores esses que vimos serem explicitamente reproduzidos no discurso urbano sobre a expansão da cidade em direção à Barra da Tijuca. Isto é, nos artigos de jornal, observamos diversas das “categorias históricas” mencionadas por Gorelik: a noção de um espaço “vazio e novo” – ocupado apenas por vacas –, prestes a alcançar o seu potencial “moderno” e assim se tornar o “paraíso”. O autor nos ajuda a posicionar esse discurso da mídia dentro de um contexto histórico mais amplo em que as cidades da América Latina são classificadas como opostas às europeias.
Nelson Fernandes (2008), no entanto, problematiza essa oposição entre cidades latino-americanas e cidades europeias. Ainda que o discurso sobre a oposição seja predominante, Fernandes argumenta que existem diversas afinidades entre as fases urbanas dos diferentes continentes e que essas conexões foram pouco exploradas:
Olhar apenas para o que não reproduz o capitalismo central é parte da ideia central do mecanismo do desenvolvimento do subdesenvolvimento, não se observando o que é continuidade e reprodução simultânea das cidades em cada grande ciclo secular do capitalismo (FERNANDES, 2008, p. 8).
Ou seja, para o autor, os “ciclos do capital” que marcaram tão fortemente as cidades europeias também podem ser observados no Brasil. No caso do Rio de Janeiro, destaca: a relação entre mercantilismo e o projeto de policiamento, embelezamento e saneamento conduzido pela “clarificação barroca” implementada pelo Império Português ainda no século XVIII, seguido do liberalismo econômico que se instaurou na cidade e culminou em forte crescimento urbano e suburbanização entre o século XIX e o início do século XX, até a reforma urbana de Pereira Passos entre 1903 e 1906. Segundo o autor, já existia, desde o início do processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, um mito de “não planejamento” – algo que veremos se repetir em diferentes estágios da urbanização da região.
Em seguida, ao longo do século XX, o Rio de Janeiro se torna palco de diversos projetos modernistas marcados por uma forte intervenção do Estado no planejamento urbano e social, assim como havia acontecido com os modelos fordistas na Europa e, principalmente, nos EUA. Fernandes discorre sobre as características desses projetos modernistas, permitindo assim uma maior compreensão desse movimento. Segundo o autor, tais modelos são fortemente marcados por uma racionalização do espaço:
a ideia modernista da máquina do morar, de novos hábitos de consumo, de uma família menos numerosa, para quem o tempo livre deveria ser vivido fora de casa, não mais ocupado de jardins e de hortas como previsto nos primeiros projetos de suburbanização do proletariado (FERNANDES, 2008, p. 10).
A partir do final dos anos 1970, no entanto, esses modelos, que são fortemente marcados por uma política de bem-estar social e que preveem uma grande intervenção do Estado, fracassam, e vemos assim o aparecimento de modelos urbanos neoliberais. O período de expansão da Barra da Tijuca mencionado nas peças do jornal O Globo citadas parece estar situado na passagem entre a valorização de modelos urbanos modernistas e a sua derrocada diante da pressão neoliberal, apontadas por Fernandes (2008). Nos anúncios discutidos, por exemplo, vemos as máquinas modernistas do morar analisadas por Fernandes, empreendimentos que viabilizam uma cidade “integrada”, como diz o anúncio. Encontramos, também, a forte influência dos altos prédios americanos, que passam a integrar as imagens veiculadas pela mídia.
Além disso, ao tratarmos das “categorias históricas” (GORELIK, 2005, p. 112) que parecem permear o discurso sobre a cidade no Brasil e na América Latina na segunda metade do século passado, é importante considerarmos que durante o período de publicação de grande parte dos anúncios e matérias mencionadas, o Brasil estava sob o regime militar.[3] No mais, ainda que o Rio de Janeiro tivesse deixado de ser a capital do Brasil nos anos 1960, ainda acomodava uma forte concentração das Forças Armadas, o que potencialmente o torna um locus privilegiado para a investigação de processos e discursos que norteiam o país naquele momento. Segundo Fernandes (2006), a cidade do Rio de Janeiro é central para pensarmos a relação entre uma sociologia militar e o seu desdobramento espacial, ou seja, as Forças Armadas como agente modelador do espaço urbano da cidade.
Por meio da contextualização viabilizada pelos argumentos de Gorelik (2005) e Fernandes (2006, 2008) podemos enxergar a existência de dois agentes fundamentais no surgimento das concepções de cidade que vemos nos anúncios e artigos de jornais. De um lado, o ideal modernizador, fortemente influenciado por um debate internacional, e, do outro, a presença militar. Vale ressaltar ainda que esses dois agentes compartilham diversas afinidades. Fernandes destaca, por exemplo, o processo de modernização e profissionalização das Forças Armadas no início do século XX:
É importante destacar que o pensamento militar modernizador tinha consciência que seus objetivos dependiam de uma reordenação do espaço nas mais diferentes escalas. Assim, como observou Fonseca Filho (1961, p. 18) a respeito da educação do “soldadocidadão”, aspecto capital da modernização das forças armadas, a sua formação não poderia se dar em qualquer ambiente: “Com o serviço militar obrigatório, vem a necessidade de quartéis higiênicos, confortáveis e campos de instrução. A maioria dos corpos está aquartelada em casarões que não preenchem as exigências do conforto e da sociabilidade indispensáveis à vida dos conscritos, nos quais se encontrará o mais rude camponês com o mais sofisticado intelectual” (FERNANDES, 2006, p. 5).
Em outras palavras, há, tanto na lógica militar quanto nos projetos de modernização, uma preocupação com a racionalização e o disciplinamento dos corpos, isto é, ambos têm discursos em que noções de ordem são predominantes. São valores que também aparecem em abundância no jornal para discutir a expansão urbana em direção à Barra da Tijuca. Como vimos acima, transformar a Barra da Tijuca em um paraíso implicava a contenção dos ruídos e poluição da Zona Sul. Consequentemente, a noção de ordem é modernizadora e intimamente conectada a uma concepção militar e disciplinadora dos corpos.
Vemos também nos anúncios a manutenção de um imaginário da Barra como lugar “sem história” – onde vacas e pescadores ainda podem ser encontrados – que aguarda a força modernizadora prestes a chegar. Assim, o vazio que permeava as esperanças desenvolvimentistas sobre a América Latina também se reproduz nos anúncios mencionados. Particularmente interessante, no entanto, é que, segundo as peças do jornal O Globo, essa modernização em alguma medida também viabilizaria uma espécie de retorno ao passado. Esse é o tema da próxima seção.
Um futuro de retorno
Uma peça publicitária divulgada pelo jornal O Globo em 8 de dezembro de 1969 associa a expansão da Barra à ideia de progresso e futuro: “Nasce hoje o Rio ano 2000” (O GLOBO, 08/12/1969). Vemos, também, na matéria de 20 de julho de 1973 uma proposta estética que, por meio da sua diagramação, reproduz visualmente a associação da Barra como aquilo “que vem depois” – o futuro. Isto é, a diagramação inclui duas fotos: uma rente à margem esquerda da folha, com a praia de Copacabana tomada por uma grande quantidade de prédios; e outra do lado oposto da página, rente à margem direita, mostrando a praia da Barra da Tijuca, sem prédios. O título explica a oposição: “O Rio em busca da paisagem perdida” ( Idem, 20/07/1973). A própria diagramação propõe uma oposição entre os locais, que, no entanto, parecem se conectar pela faixa de areia de ambas as fotos, que quase se tocam. Talvez não por acaso, o argumento temporal da narrativa – uma expansão em direção à Barra – segue o da diagramação: seguindo o curso do texto na página, começamos pela imagem de Copacabana para assim, no correr dos olhos pela página da esquerda para a direita, chegarmos à Barra.
Nota-se ainda que não existe nada de natural no fato de as fotos serem tiradas do ponto de vista de quem está no continente. Se tivessem sido tiradas do ponto de vista de quem está no mar, Copacabana estaria à direita da Barra, e isso implicaria uma outra diagramação de página e outra experiência sensorial das imagens. Assim, a escolha de design da página colabora com o sentido proposto pelo conteúdo do texto.
No entanto, trata-se de um futuro que possui uma relação bastante específica com o passado: “O plano de circulação devolve ao homem o seu espaço natural: nunca um pedestre cruzará com um veículo” ( Idem, 08/12/1969). Espera-se, aqui, que instrumentos de modernização e desenvolvimento devolvam o homem a um estágio anterior e natural, onde não se tenha que conviver com carros.
Além disso, trata-se de um passado bastante associado à infância. Uma outra peça publicitária, datada de 10 de julho de 1975, sob o título “Estou indo à escola. Fique sossegada, mamãe”, argumenta que na Barra os moradores teriam de volta o “direito à infância”: “Nova Ipanema vai trazer de volta essa cena de um passado não muito distante” com “(…) inteira segurança para que seus filhos possam ir e vir a pé, como antigamente” ( Idem, 10/07/1975). A peça publicitária conclui: “[A] nova antiga maneira de viver é isto”. Ou seja, o futuro ou o “novo” disponível na Barra pretende ser uma volta a uma antiga maneira de viver em que crianças podiam brincar tranquilamente nas ruas.
Em uma peça de 14 de dezembro de 1970 do mesmo jornal, leitores são chamados a dar ao “filho o direito de ser criança” em um ambiente “limpo”, “tranquilo” e “bem frequentado,” que se distancia da epidemia que contagiou a Zona Sul ( Idem, 14/12/1970). Na Barra, moradores também poderiam usufruir de um agreste natural: “É a volta do homem à natureza” ( Idem ). O progresso de que se fala viabilizaria, então, o retorno a um passado natural e evitaria a contaminação da natureza sofrida na Zona Sul, principalmente no bairro de Copacabana.
Em seu estudo sobre concepções de paisagem no discurso de arquitetos paisagistas da Barra da Tijuca, Rachel Paterman (2017) elabora a maneira como o projeto modernista de Lúcio Costa para a Barra reforça uma oposição entre o vazio e futuro. Essa oposição se conecta a um imaginário comum do século XX, que opõe o sertão “atrasado” porém “autêntico” a uma ideia de “civilização” (PATERMAN, 2017, p. 342). As novas técnicas construtivas implementadas na Barra deveriam, portanto, permitir a conquista desse ideal civilizatório. No entanto, o projeto modernista de futuro não nega por completo o passado, valorizando um recorte específico desse estado natural: “Trata-se de um passado anterior não apenas ao Brasil Colônia, mas ao próprio Descobrimento. É a paisagem, ‘cenário paradisíaco’” ( Ibid., p. 343). “Costa se posicionava entre um passado tido como hierarquicamente superior em relação ao presente, e um futuro almejado como contínuo em relação a essa dimensão de origem, relativa sobretudo aos tempos de colônia” ( Ibid., p. 342).
Podemos ver essa narrativa presente nas peças mencionadas, nas quais o futuro civilizado é quase um instrumento de retorno. Nesse discurso, existem pelo menos dois passados possíveis: um passado próximo, o desordenamento de Copacabana, e um passado anterior a esse, que envolve uma existência naturalmente boa – a volta à natureza. No projeto espacial divulgado pela mídia, vemos um ideal romântico que entende o mundo como naturalmente bom, mas desviado por determinadas formas de ocupação – como é o caso de Copacabana.
Nesse processo, o papel do desenvolvimento, do progresso e de alguns instrumentos modernos é viabilizar o retorno a um estado naturalmente bom do humano, o que muitas matérias chamaram de “humanização” da Barra da Tijuca (O GLOBO, 27/02/1970). Aqui, talvez possamos falar de uma afinidade com a ideia de natureza rousseauniana, que entende que o homem nasce bom e é corrompido por alguns modelos de sociedade (MARCONDES, 1997, p. 200). Nesse sentido, encontramos na construção da Barra da Tijuca a socialização e a celebração de um entendimento muito particular do tempo: um tempo anterior, natural e diretamente associado às crianças. E apesar de ser um tempo natural, requer planejamento moderno e ordenamento urbano para se desenvolver, algo que de alguma maneira supera as vacas no pasto e os pescadores jogando as suas redes.
Trata-se, então, de uma narrativa que acaba por negar o curso histórico de transformações, já que busca dissociar o bairro de movimentos de ocupação anteriores – por exemplo, o que acontecera em Copacabana – e o vincular a um passado a-histórico, original e natural. Esse projeto, no entanto, não é inovador: vemos nele traços dos mesmos ideais que no início do século XX haviam sido divulgados para justificar a expansão em direção à Copacabana.
A pesquisa de Julia O’Donnel (2013) sobre a expansão urbana do Rio de Janeiro entre o final do século XIX e início do século XX é centrada em Copacabana, que na época figurava como a nova região de ocupação. A partir de uma análise de documentos e notícias de jornais e revistas, a autora demonstra como o processo de expansão envolveu fortemente o capital privado, que não mediu esforços para associar o bairro litorâneo a uma “moderna aristocracia”. Silenciando outras representações que o bairro pudesse vir a ter, como a dos pescadores que até então viviam na região, Copacabana surge no imaginário construído pela mídia como um bairro “futuroso”, seguindo as melhores modas internacionais e provendo as condições de salubridade necessárias a uma almejada civilidade, inviáveis no então densamente populoso Centro da cidade do Rio de Janeiro.
A pesquisa de O’Donnell reforça o argumento de Maurício Abreu (2007) de que a evolução urbana do Rio de Janeiro envolveu uma luta de classes que se reflete nos processos de apropriação e exclusão do espaço. Ou seja, a narrativa sobre a Copacabana da época também apresentava o bairro como um “vazio” a ser ocupado pelo “progresso” (O’DONELL, 2013, pp. 56-81). Nesse caso, o futuro “civilizado”, “moderno” e “salubre” era então contrastado ao passado de “infecção” e “nevrose” dos cortiços no Centro do Rio de Janeiro ( Ibid., pp. 56-57). Já então os edifícios figuravam como sinônimo de progresso, e Copacabana deveria ser a herdeira legítima de Botafogo, zona de status e prestígio da elite. Além disso, o discurso sobre a expansão na virada do século XX também fazia fortes referências à natureza da região: um “areal desértico”, uma “natureza intocada”, algo “pré-civilizatório” ( Ibid., p. 32).
Podemos, então, ver na narrativa sobre a Barra da Tijuca que critica a contaminação de Copacabana a mesma lógica antes empregada para a expansão urbana do Centro em direção ao litoral. Trata-se de um discurso de progresso e desenvolvimento que prevê, em alguma medida, o retorno a uma condição de existência mais natural, argumento que se repete em diferentes estágios da urbanização do Rio de Janeiro.
Nota-se, portanto, a contínua repetição ao longo das décadas de um projeto de futuro que prevê um retorno. Essa estratégia discursiva parece também estar alinhada aos formatos e sensibilidades proporcionados pelos novos meios de comunicação de massa, como será discutido na próxima seção.
O tempo (a-histórico) das mídias de massa
Se Gorelik (2005) atentou para o contexto internacional de planejamento social urbano que impulsionou o projeto modernista de desenvolvimento no Brasil a partir dos anos 1950, Gabriel Souza e Otávio Leonídio Ribeiro (2014), por sua vez, irão tratar da centralidade das mídias de massa nesse processo. Para Souza e Ribeiro ( Idem ), a arquitetura é uma maneira de compreender certas partes do mundo edificado, e as mídias de massa têm um papel não apenas “difusor”, mas “formador” do campo. Isto é, a mídia se configura como espaço físico de experimentação espacial:
As mídias modernas, afinal, foram vitais na construção de sensibilidades complementares à nova arquitetura – pelo cinema, pela relação entre imagem e texto impressos, pelo próprio design das publicações. A presença em catálogos, cartões postais, revistas, filmes e anúncios de jornais remodelou as formas de percepção e representação da arquitetura desde o início do século XX (...) e criaram um tipo de percepção propriamente moderno com o qual a arquitetura passou a dialogar (SOUZA e RIBEIRO, 2014, pp. 60-61).
Ou seja, as mídias viabilizam a construção de uma percepção sensível do espaço pautada pelos debates da arquitetura. Os autores se referem, por exemplo, às diferentes combinações de imagens (colagem, justaposições e sobreposições), às experimentações tipográficas, às narrativas propostas pela diagramação das páginas – todas influenciadas não só por artistas modernistas, mas também pelos elementos publicitários. Além disso, falam também da importância da fotografia, que combina criação e fatualidade. Ou seja, ainda que a fotografia viabilize novas percepções do espaço (outros ângulos, novas relações de luz e transparência), possui a autoridade de “real”: “um rastro físico de uma realidade efetiva” ( Ibid., p. 61).
Nesse sentido, as mídias de comunicação de massa, que vão continuamente se popularizando ao longo do século XX, não estavam apenas reproduzindo, mas produzindo o visível. Segundo Souza e Ribeiro (2014), existe, portanto, um vínculo original entre técnicos da modernização, as mídias de comunicação de massa e uma linguagem publicitária.
Se antes havíamos entendido que projetos modernizadores e a sociologia militar atuavam como agentes formadores das categorias espaciais comumente utilizadas, agora entendemos a centralidade do papel da mídia nesse processo. Nas reportagens mencionadas, podemos observar isso a partir da diagramação das páginas que também reproduzia o movimento em direção à Barra. Essa experiência estética, segundo os autores (SOUZA e RIBEIRO, 2014), não é apenas um instrumento de divulgação desse novo espaço urbano, mas atua como agente formador de uma nova experiência espacial.
Em outras palavras, quando um anúncio mostra a ilustração de um prédio, não está apenas divulgando um novo empreendimento, mas construindo uma percepção de espaço específica – que, por exemplo, sugere ao leitor olhar para o alto quando trafegar pela cidade. É uma percepção que envolve diversas inovações em termos de relações sensíveis com o espaço. Um desdobramento dessa relação, segundo Souza e Ribeiro ( Idem ), é, por exemplo, uma crescente valorização de um projeto urbanístico ou arquitetônico em termos da sua fotogenia. Segundo os autores, os profissionais da arquitetura vão crescentemente se dedicar às mídias e à exploração inovadora e criativa de textos e imagens em detrimento da concreta realização de obras, tornando-se “produtores da história antes mesmo disso ser criado” (I bid., p. 73). Ou seja, essa prática começa a instaurar não apenas uma nova relação com o espaço, mas também uma nova relação com o tempo.
Alguns autores já haviam apontado para a relação entre determinadas linguagens midiáticas e concepções de tempo específicas. Em Sociedade de consumo, Jean Baudrillard (2008) argumenta que o próprio formato dos meios de comunicação de massa, por apresentarem consecutivamente cortes de notícias variadas, historicamente desconectadas e intercaladas por peças publicitárias, desvincularia os fatos (notícias) de seu contexto histórico e político. Evidencia, portanto, que, mesmo no âmbito da veiculação, até as notícias que deveriam ser um reflexo da realidade seriam transformadas, naquilo que ele definiu como “signo”: abstração que independe do mundo real, “esgotando-se na própria duração e nunca apontando para algo além de si mesma” (BAUDRILLARD, 2008, p. 161). Em outras palavras, signos remeteriam apenas a outros signos. Nesse contexto, Baudrillard defenderá que não será mais tão importante o vínculo da notícia com a história, mas apenas a manutenção de uma coerência na forma como as imagens são apresentadas:
A verdade dos meios de comunicação de massa é a seguinte: a sua função consiste em neutralizar o caráter vivido, único e de evento do mundo, para lhe substituir o universo múltiplo dos meios de comunicação mutuamente homogêneos enquanto tais, significando-se e referindo-se reciprocamente uns aos outros (BAUDRILLARD, 2008, p. 159).
Talvez seja relevante mencionar aqui, por exemplo, a diferenciação que Charles S. Pierce (1991) faz entre índices e signos. Enquanto ambos são elementos de um código, o índice assume sentido por possuir semelhanças e relação direta com o objeto que deu origem à palavra. O índice seria um elemento do código “motivado” pelo que acontece no mundo. Enquanto isso, os signos assumem o seu significado em relação a outros signos. Nesse sentido, quando Baudrillard (2008) menciona o predomínio de signos na linguagem das mídias de massa, ele atenta para a forma como esse código estimula uma abstração da linguagem em relação ao mundo vivido. Segundo o autor, foi a própria noção de real que mudou: “Foi na forma que tudo mudou: em vez do real, substitui-se em toda a parte um ‘neo-real’, inteiramente produzido a partir da combinação de elementos do código” (BAUDRILLARD, 2008, p. 164).
Outros estudiosos dos meios de comunicação de massa também discutem o regime de tempo específico adotado por essas linguagens. Ao desenvolver um estudo antropológico sobre a narrativa e prática publicitária, Everardo Rocha (1985) argumenta que o papel da publicidade é inserir um objeto industrialmente produzido e, portanto, impessoal, dentro de narrativas que lhe atribuam valores e significados sociais. Isto é, esses objetos raramente são discutidos de acordo com a sua origem de produção e histórico industrial. São, portanto, inseridos em narrativas publicitárias que lhes atribuirão uma personalidade de gênero e classe social. Por exemplo, por meio de anúncios publicitários, cervejas que, muitas vezes, tiveram origem em uma mesma fábrica são diferenciadas ao serem associadas a práticas e valores diversos. A semelhança histórica é ofuscada por uma diversidade simbólica.
Se na publicidade os elementos perdem parte do seu significado histórico (BAUDRILLARD, 2008; ROCHA, 1985), e esse tipo de narrativa possui caráter formador das práticas urbanísticas (SOUZA e RIBEIRO, 2014), não é por acaso que encontramos nas peças midiáticas sobre a expansão do Rio de Janeiro uma desconstrução do tempo histórico. Da mesma forma que a publicidade rompe com a história, o discurso sobre a Barra também elabora uma temporalidade que desafia a linearidade do tempo histórico. O tempo da Barra é um tempo de progresso, mas que busca um “retorno” e que não deixa de ser uma repetição do que ocorreu em Copacabana. Por se repetir continuamente, é uma narrativa que desarticula o elemento transformador da história. Dessa maneira, podemos enxergar uma aproximação com aquilo que Sahlins (1985) chamou de “estruturas prescritivas” ou culturas a-históricas.
A estrutura prescritiva do projeto urbano do Rio de Janeiro
Segundo Sahlins (1985), as estruturas culturais e os eventos históricos não deveriam ser compreendidos como uma oposição, já que a estrutura se reproduz na mudança. Em outras palavras, cada vez que a estrutura é atualizada para responder a um novo contexto empírico, ela se renova. Nesse sentido, categorias culturais existentes estão sempre sujeitas a contextos empíricos que podem causar a sua transformação histórica. O processo histórico é resultado dessa revisão das convenções a partir do contingente. Diante de cada caso empírico, ocorre uma reavaliação funcional das categorias culturais (SAHLINS, 1985, p. 140).
Além disso, o autor argumenta que existem pelo menos dois perfis de estrutura cultural: umas mais abertas para os contextos empíricos e outras mais fechadas. Estruturas performativas tendem a se adequar às circunstâncias contingentes, transformando-se. Por outro lado, as estruturas prescritivas absorvem as circunstâncias que poderiam desafiá-las, negando o que há de inesperado e transgressor no evento. Ou seja, diferentes culturas são mais ou menos vulneráveis às transformações históricas: umas assimilam e outras negam o contingente.
No caso dos projetos de expansão urbana para o Rio de Janeiro, podemos observar a maneira como uma mesma narrativa (contaminação versus ordem e progresso) é continuamente projetada sobre novas formas empíricas, primeiro em Copacabana e depois na Barra da Tijuca. Ou seja, uma descrição da construção social e espacial que nega a sua autorrevisão e mudança. O “outro” e seu potencial transgressor são sempre enquadrados como uma reaparição da já conhecida contaminação e, assim, são contidos pelo sistema simbólico. Este, portanto, impede a sua transformação ao longo do tempo, construindo um tempo a-histórico, um tempo que não se transforma. Como dito, trata-se de uma narrativa que se alia às próprias características dos meios de comunicação de massa (BAUDRILLARD, 2008; ROCHA, 1985), agentes centrais para o desenvolvimento urbano (SOUZA e RIBEIRO, 2014).
Em momento nenhum se investiga a possível existência de uma relação causal e linear entre o projeto urbano proposto para Copacabana, sua relação com a Barra e a desordem. No discurso, a desordem ou a contaminação parecem surgir quase que inesperadamente, como se não possuíssem menor relação com os elementos do próprio modelo de urbanização – o que reivindicaria a sua revisão. Inquestionado, o modelo urbano segue se repetindo ao longo do tempo.
Essa experiência do tempo poderia lembrar aquilo que François Hartog (2013, p. 11) chamou de “estagnação de um presente perpétuo”, já que ignora o processo de transformação histórica. Também inspirado na teoria de Sahlins, Hartog ( Ibid.) cria o termo “regimes de historicidade” para se referir às variadas categorias de passado, presente e futuro que são acionadas por narradores de diferentes sociedades para ordenar e dar sentido à experiência do tempo. Segundo o autor, a partir da Revolução Francesa, a sociedade europeia moderna experimentava um regime de historicidade movido pela ideia de progresso, orientado para o futuro. No entanto, com as guerras do século XX, o projeto de futuro entra em crise. No mundo ocidental e ocidentalizado experimenta-se então “um presente onipresente, onipotente, que se impõe como único horizonte possível e que valoriza só o imediatismo” ( Ibid., p. 15). Hartog, portanto, contrasta o “futurismo” moderno com o “presentismo” contemporâneo ( Ibid.).
Curioso é que a estagnação no presente descrita por Hartog é consequência de uma crise no modelo futurista, uma “brecha” em que a ordem do tempo é posta em questão. No entanto, nas diferentes narrativas de expansão urbana do Rio de Janeiro, essa crise da ordem cultural e experiência do tempo não se apresenta. Os diferentes projetos urbanos para a cidade, desde o final do século XIX, instauram um mesmo tipo de experiência do tempo (contaminação versus o novo). Seja Copacabana ou Barra, trata-se um modelo bastante similar, que se repete. A desordem não é parte de uma ruptura na estrutura cultural, mas já integra a própria estrutura. Dessa forma, não ocorre uma crise no pensamento urbano e na temporalidade implícita e, por isso, a mesma narrativa se repete em diferentes contextos espaciais.
Ainda que Hartog ( Ibid.) diferencie futurismo e presentismo, estabelece uma relação causal entre ambos: é quando o primeiro é posto em questão que o segundo surge. Na narrativa midiática sobre a expansão urbana para a Barra da Tijuca, no entanto, é exatamente esse tipo de reavaliação funcional das noções culturais (SAHLINS, 1985, p. 140) que não acontece. Se tanto no Rio de Janeiro quanto na Europa estamos estagnados no tempo, lá parece ser em função de o modelo (performativo) não ter funcionado e entrado em crise[4], e aqui, em função de o modelo (prescritivo) funcionar “bem” demais.
Não é surpreendente, portanto, que, já no final dos anos 1980, o plano para a Barra da Tijuca comece a não se comportar conforme o paraíso esperado, e as matérias passem a divulgar a luta do bairro para não virar Copacabana: “Lúcio Costa, mais uma vez, ‘segura’ a Barra” (O GLOBO, 04/08/1988). Isto é, a repetição recomeça, e agora a Barra começa a ser a associada à contaminação para que um novo projeto de paraíso venha a surgir.
Conclusão
A partir da análise de matérias e anúncios sobre a expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro em direção à Barra da Tijuca e da pesquisa bibliográfica sobre o contexto disciplinar para o desenvolvimento de determinadas “categorias históricas” (GORELIK, 2005, p. 112), vemos uma associação entre modernismo e mídia de massa para a produção de uma narrativa espacial que continuamente recria um tempo a-histórico. É importante ressaltar que essa lógica possui algum nível de afinidade com a prática militar. Isso, no entanto, não implica necessariamente uma relação causal entre mídia, militares e modernismo, mas uma afinidade entre lógicas espaço-temporais. Em outras palavras, não argumento aqui que a mídia tenha, por exemplo, causado os enquadramentos modernos ou vice-versa. Este artigo se concentra na maneira como esses fenômenos se fortalecem reciprocamente.
As narrativas midiáticas propõem uma lógica temporal bastante específica: uma sucessiva repetição de oposições (vazio versus civilizado; sertão versus cidade; desordem versus ordem; retrógrado versus moderno; Copacabana versus Barra; Centro versus Copacabana), em vez de um desenvolvimento progressivo do tempo (Centro para Copacabana para Barra). Além disso, nesse confuso jogo temporal, a noção de progresso é associada a um retorno ao natural. Trata-se, consequentemente, de uma narrativa sobre progresso que nega o progresso como uma ação temporal de movimento e transformação. A repetição substitui a transformação nos mais diferentes níveis.
A pergunta que fica é sobre o papel das ciências sociais nesse contexto cultural “prescritivo” (SAHLINS, 1985, p. xi), no qual o contingente e o processo histórico são negados. Pode a academia, portanto, como espaço de reflexão e produção de saber, dar amplitude a narrativas que desafiem essa lógica temporal que parece nascer da dualidade entre EUA/Europa e América Latina? Ou seja, podemos pensar o espaço acadêmico como aquele capaz de desafiar uma lógica temporal que herdamos de uma visão externa sobre o Brasil? E que tempo seria esse da nossa história?
Nos anos 1970, ao revisarem o projeto desenvolvimentista proposto nos anos 50, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (1975) argumentam que o projeto do pós-guerra não deu certo, tanto por uma questão sociológica (diferença de classes) como política. Nesse sentido, defendem que não é viável pensar o modelo econômico sem pensar o político, ou seja, reconhecer as relações de dependência e dominação entre classes e países. O modelo econômico de desenvolvimento europeu, portanto, não daria conta da realidade latino-americana.
Meu ponto, no entanto, é que novas ações e relações econômicas, políticas e sociais talvez só sejam possíveis a partir de novos enquadramentos e entendimentos. O social é entendido por Cardoso e Faletto ( Ibid.) do ponto de vista da economia política: hierarquias sociais, diferença de concentração de renda etc. Como demonstra o debate antropológico sobre concepções históricas – por exemplo na obra de Sahlins (1985) –, precisamos expandir o que entendemos por social, para também incluir variadas concepções de tempo. Ou seja, a dependência se dá não apenas em função das relações econômicas e políticas, mas também a partir dos enquadramentos que são dados aos acontecimentos.
O termo América Latina em si, como argumentou Gorelik (2005), já carrega uma oposição binária em relação ao centro/Europa, e contribuiu para obscurecer determinadas relações entre as regiões. A categoria propaga uma mentalidade em que o “novo” (América Latina) não é visto em uma relação de sucessão histórica com o “velho” (Europa), mas como elemento espacial distinto e temporalmente simultâneo. Assim, é como se a situação da Europa não tivesse relação causal com a situação da América Latina. Como argumentou Fernandes (2008), a dependência é reforçada quando categorias de pensamento ignoram as relações existentes entre as regiões – uma estratégia de pensamento que neste artigo também vemos se reproduzir na relação entre Copacabana e Barra. Os eventos empíricos no Centro, Copacabana ou Barra que fogem às explicações concedidas pelo sistema cultural vigente nunca contribuem para uma revisão das categorias culturais e, consequentemente, para uma transformação histórica. Tudo que é “outro” é enquadrado sob a já conhecida concepção de contaminação. Trata-se de uma ordem temporal de sucessivas repetições.
fn5Agradeço à colega e amiga antropóloga Roberta Sampaio Guimarães pelas valiosas sugestões e trocas que inspiraram alguns dos argumentos aqui apresentados.
fn6Durante o século XX, a Escola de Chicago foi responsável for inaugurar um novo campo de pesquisa, centrado exclusivamente nos fenômenos urbanos, que daria início à chamada sociologia urbana.
fn7Refiro-me aqui ao regime político comandado por membros das forças militares e instaurado no Brasil entre abril de 1964 e março de 1985.
fn8Baseada em pesquisas etnográficas desenvolvidas no litoral da Inglaterra (BALTHAZAR, 2017), eu questionaria, inclusive, a validade do modelo proposto por Hartog para explicar a totalidade da experiência do tempo nas sociedades europeias. Meu ponto é: ao se centrar em narradores “oficiais” do tempo (historiadores, intelectuais, autores etc.), o autor generaliza uma experiência do tempo que não é compartilhada, por exemplo, por diferentes classes sociais inglesas. No entanto, não cabe discutir essa questão neste artigo.
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