Fronteiras que matam: Autoritarismos e homo-transfobias

Giancarlo Cornejo

Doutor em retórica com ênfase em mulheres, gênero e sexualidade pela Universidade da Califórnia, Berkeley (UC Berkeley, EUA). É graduado em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP, Lima, Peru). É um estudioso queer peruano., Universidade da Califórnia, Berkeley, Estados Unidos , Mestre em comunicação, com concentração em mídia e formatos narrativos, pelo programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB, Cachoeira, Brasil). É bacharel em comunicação social com habilitação em jornalismo pela mesma universidade., Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil

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Resumo

Este ensaio explora uma forma de transfobia, a homo-transfobia, que afeta de maneira particular pessoas e comunidade trans. É por isso que analiso um caso específico que diz respeito ao sequestro e à tortura de uma travesti trabalhadora sexual e um cliente no Peru, em 2009. Este estudo mapeia certas tentativas homo-transfóbicas de instaurar fronteiras corporais, espaciais e nacionais, de modo a expô-los a uma necessária e inadiável crítica.

Received: 2019 July 8; Accepted: 2019 October 31

5638. 2020 ; 13(1)

Keywords: Palavras-chave autoritarismo, homofobia, Peru, queer, trabalho sexual, travesti.
Keywords: Keywords authoritarianism, homophobia, Peru, queer, sex work, travesti.

“La violencia no es sólo un llamado al orden cuando el orden se deshace; inventa un orden fabricando diferencias con sus líneas divisorias”.
  —Eric Fassin, Género, sexualidades y política democrática, 2009.

Narrar[1] histórias de autoritarismo implica explorar uma vontade ou vocação radical para delimitar identidades. O autoritarismo parece requerer identidades estáveis, rígidas e imutáveis. E não se trata apenas de identidades subjetivas (tanto individuais como coletivas), mas também de identidades espaciais. O autoritarismo, então, produz e reproduz muitas fronteiras que são postuladas como muros intransponíveis e nas quais se baseia grande parte de sua efetividade tanto política como histórica. Pensar o autoritarismo e a homofobia e suas relações requer a suspensão ou a crítica de muitas dessas fronteiras e das epistemologias que as sustentam.

Autoritarismo e homofobia não são a mesma coisa, porém estão muito longe de serem totalmente diferentes. Os limites de ambas as categorias são porosos. Ao mesmo tempo, não é correto falar de “autoritarismo” e “homofobia” em termos singulares. Sem dúvida, as histórias de autoritarismo, seus mecanismos de poder e as configurações espaço-temporais que produzem são diversas. E o mesmo pode se dizer da homofobia; tanto que talvez seja muito mais produtivo falar de homofobias e de autoritarismos.

A homofobia depende da estabilização, ou fixação, de certas fronteiras conceituais que representam a complexidade do real de uma maneira que se assume como natural, objetiva e inquestionável. A categoria em si alude à dicotomia hétero/homossexual. Isto contribui para que a homofobia pareça evidente, e talvez esse status de obviedade explique parcialmente a falta de valor atribuída aos estudos gays/lésbicos/transgêneros na academia latinoamericana. Frente a isso se faz imperativo reconhecer, como se faz em um recente volume organizado por David A. B. Murray (2009), que se a categoria “homossexual” não tem um significado único, universal e a-histórico, a homofobia também não é tão evidente, nem os seus mecanismos de poder são transparentes. Assim, as homossexualidades (e as heterossexualidades) múltiplas e complexas acompanham homofobias também múltiplas e complexas.

Em “Tirando a fera do armário: Autoritarismo e homofobia” (2010), explorei como diferentes formas de homofobias se produzem e reproduzem na imprensa limenha de baixo custo. A homossexualidade masculina é associada à morte e o lesbianismo ao crime. No primeiro caso, a homofobia não funciona colocando homossexuais em armários, mas em caixões. Uma maricona mata porque é maricona, ou é assassinada pelo mesmo motivo, e portanto sua morte não demanda justiça. No caso da construção de imagens de mulheres lésbicas, os discursos homofóbicos advertem que se você tem perto uma machona, deve cuidar da sua bolsa, pois ela vai querer te roubar. As lésbicas nas páginas desses jornais roubam quase tudo, mas acima de tudo roubam masculinidade.

Nas edições dos periódicos que consultei, correspondentes aos anos 2006 e 2007, ambas as formas de homofobia pareciam ser claramente diferentes e afetar também de maneiras muito distintas homens gays e lésbicas. Porém, os dois “escândalos” que encheram com maior protagonismo as páginas desses periódicos (e de praticamente todos os meios de comunicação massivos no Peru) em 2009 foram os assassinatos da cantora Alicia Delgado e da empresária Miriam Fefer. No primeiro caso, a tese de uma lésbica assassina (Abencia Meza) que matou a sua amante por uma vingança passional foi (e segue sendo) a hipótese mais citada e assumida, uma hipótese compartilhada pelo tribunal que havia lhe sentenciado a trinta anos de prisão. No segundo, uma lésbica adolescente (Eva Bracamonte) e sua parceira (Liliana Castro) são acusadas de serem as responsáveis pelo assassinato da mãe da primeira. Embora esse assassinato tenha ocorrido no final de 2006, o caso se reabriu tanto judicialmente como nas mídias e ganhou ainda mais visibilidade pela coincidência com o assassinato de Alicia Delgado. A maior parte da cobertura midiática, assim como as discussões cotidianas e até aparentemente o tratamento judicial de ambos os crimes, associam o lesbianismo ao crime e à morte. Assim, parece que as duas formas de homofobia que registrei em meu citado ensaio estavam tão vinculadas que era impossível diferenciá-las. Mas, novamente, as homofobias são múltiplas, e variam contextualmente. Então, em um intervalo de tempo relativamente curto (dois ou três anos), pode-se registrar importantes mudanças em suas lógicas e mecanismos.

Continuando em minha ânsia por analisar como funcionam as homofobias em certos contextos espaço-temporais específicos, no presente ensaio explorarei um caso que parece visibilizar ainda mais a importância da delimitação de fronteiras rígidas. Analisarei uma forma de homofobia que não só produz e legitima identidades heterossexuais, mas que também produz espaços heterossexuais “limpos”. Nesta ocasião, também, me interessa complexificar a violência contra as pessoas transgêneras. E falo de homo-transfobia porque em primeira instância suas vítimas tendem a ser pessoas trans, mas também porque me interessa visibilizar as continuidades entre a homofobia e a transfobia, sem negar as múltiplas particularidades que as diferenciam; ademais, porque esses discursos homo-transfóbicos tendem a abordar as pessoas transgêneras como homossexuais (o que pode ser em si mesmo um ato de violência); e finalmente porque algumas pessoas transgêneras e travestis se autoidentificam como homossexuais.

Nos dias 28 e 29 de janeiro de 2009, o canal peruano de televisão América TV exibiu duas reportagens sobre uma brutal tortura a uma travesti trabalhadora sexual chamada Techi Paredes e a um homem com que havia tido relações sexuais, ou com quem estava se correspondendo, na cidade de Tarapoto (na província de mesmo nome do departamento de San Martín). A primeira reportagem foi exibida no programa noturno “Imprensa livre” e sua duração foi de aproximadamente nove minutos, enquanto a segunda reportagem, que apareceu no noticiário matutino “Primeira edição”, só durou um minuto e meio. Antes de continuar, é importante apresentar com mais detalhes os “fatos”. As reportagens não precisam o dia da tortura, porém os fatos ocorreram por volta das duas da madrugada de 24 de janeiro. Nessa madrugada, Techi e seu parceiro sexual foram perseguidos e logo capturados por “rondas de vizinhos” dos bairros Puerto Azul e Señor de los Milagros de Tarapoto. Ambas as pessoas foram sequestradas, despidas, golpeadas e forçadas a fazer exercício físico diante de uma câmera de vídeo que registrava tudo. No entanto, não foram vítimas da mesma violência[2]. Contra Techi, a violência foi muito mais veemente e intensa, chegando à crueldade e à tortura. Os insultos e interrogatórios estavam basicamente dirigidos a ela. Além disso, a câmera foca quase exclusivamente o corpo da jovem travesti.

É verdade que a primeira reportagem é um relato menos evidentemente homofóbico que o segundo. De fato, inclui entrevistas com um ativista gay do Movimento Homossexual de Lima e uma artista gay e drag performer, que chamam essa agressão de um crime de ódio. Além disso, apresenta alguns breves comentários de Techi sobre o acontecido. A segunda reportagem, que é uma versão comprimida e reciclada da primeira, sacrifica vários elementos narrativos: o nome da travesti agredida, qualquer referência de crimes de ódio por homofobia, os comentários de Techi. Essa última versão, porém, afirma que Techi e seu parceiro eventual cometeram um atentado contra as “normas” (embora não se especifique quais normas ou as normas de quem); além do mais, concede a palavra somente aos agressores, de modo que da outra vítima, o parceiro de Techi, ouvimos em todo o minuto e meio uma só coisa: que pagou cinco soles (menos de dois dólares) pelos serviços sexuais de Techi. No que se segue, me centrarei em analisar a segunda reportagem, porque ali o autoritarismo homo-transfóbico exibe seu imprudente poder.

A manchete que acompanha as imagens dessa reportagem diz: “Selvagem punição a casal gay”. A primeira coisa que se deve notar é que a agressão, a tortura, a injúria, a humilhação e o sequestro de que foram vítimas ambas as pessoas são qualificados como “punição”. Consequentemente, também deve-se ter em conta que a reportagem questiona não tanto a legitimidade da punição, mas o seu caráter extremo e “selvagem”. Aqui é pertinente fazer referência à performatividade[3] das normas sociais. O que essa reportagem acredita reportar ou descrever (violência homo-transfóbica), igualmente o produz e reproduz[4]. A reportagem reitera a agressão brutal contra ambas as pessoas e, ao usar a categoria “gay” para falar delas sem levar em consideração nenhuma das complexas subjetividades das protagonistas, novamente as violenta. Além disso, o apelo à categoria “gay” ou “homossexual” faz com que a onda de violência possa potencialmente alcançar mais sujeitos dos quais a reportagem fala. Essa é outra peculiaridade de certos discursos homo-transfóbicos que estou analisando: as fronteiras entre a heterossexualidade e a homossexualidade buscam ser paranoicamente reafirmadas, mas as fronteiras entre a homossexualidade e a transgeneridade são construídas como mais permeáveis para multiplicar precisamente os corpos abjetos e os conseguintes regimes de vigilância e disciplina.

A violência homo-transfóbica tende a se concentrar nos corpos transgêneros e travestis. Assim, seria pertinente começar explorando por que esses homens agrediram essa travesti trabalhadora sexual e por que essa agressão foi tão virulenta. A primeira resposta do senso comum diria: porque é alguém que transgride a “moralidade pública”. Mas o que implica essa “moralidade” pública? A primeira coisa que me vem à mente é a ideia do sexo confinado a espaços privados (quartos de casais heterossexuais ou, em sua versão mais leve, albergues). O sexo em questão não é heterossexual e enquadra-se em um contexto econômico contratual que atenta contra uma noção heteronormativa de temporalidade sexual (que se pode resumir na essencialista associação entre coito heterossexual, casamento/convivência, filhos, netos, propriedades etc.). Um momento-chave do vídeo, em razão de todos os significados que condensa, é quando, entre insultos e golpes, esses homens cortam os longos cabelos da mencionada travesti. Esse é um ato comum, de fato ritualizado, em linchamentos de criminosos, mas nesse caso tem o efeito adicional de um retorno violento à masculinidade heterossexual mais normativa[5]. Assim se postula a heterossexualidade como origem. O retorno somente é possível porque a masculinidade é algo que em algum momento teve que “possuir” Techi. Da mesma maneira, ela é forçada a dizer em voz alta seu nome masculino dado ao nascer. A agressão é uma disciplina do corpo que se evidencia de maneira ainda mais obscena quando obrigam a travesti despida a fazer exercícios, exercícios que se parecem com aqueles que se fazem em treinamentos militares.

Todos esses atos corporais e discursivos buscam instaurar fronteiras corporais. Essa violência homo-transfóbica pretende produzir corpos normativos (normais, saudáveis, limpos) e corpos não-normativos (anormais, doentes, asquerosos, sujos, criminosos). A violência é extrema porque até certo nível os agressores devem instituir a precariedade de suas afiliações identitárias à heterossexualidade mais normativa, ou talvez até possam sentir a precariedade e a instabilidade da própria heterossexualidade. Insisto que procuramos produzir muros intransponíveis entre a heterossexualidade e a homossexualidade-transgeneridade. Isto torna evidente que, quando falamos de fronteiras corporais, estamos nos referindo, como argumenta Leticia Sabsay (2011), à constituição de fronteiras sexuais. Basta nos determos um pouco na construção dos corpos heterossexuais como corpos com valor e nos corpos das travestis como corpos sem qualquer valor ou importância. E aqui a reportagem mencionada é cúmplice também dessa distribuição assimétrica de valor nas materialidades corporais. A única vez que escutamos o outro homem agredido falar é para explicitar (de maneira forçada e violentamente condicionada) que os serviços sexuais de Techi lhe custaram cinco soles. Essa pergunta escolhida dentre muitas outras possibilidades mais urgentes ou pertinentes não é casual, mas busca ressaltar o pouco ou nada que vale o corpo de uma travesti. A reportagem espetaculariza a violência contra Techi ou, nos termos de Sabsay (2005), seu escárnio é apresentado como espetáculo. De tal modo que se pode afirmar que a (hiper)visibilidade constitui grande parte dessa violência homo-transfóbica.

As fronteiras que se estabelecem, além de corporais, também são espaciais. As identidades (heterossexuais e trans) são espacializadas e nesse exercício de espacialização se constroem como mutuamente excludentes. Aqui é importante citar Doreen Massey (1994, 2005), para quem o espaço tem um caráter eminentemente relacional e social. Sobre isso é importante observar que os agressores são definidos como membros de uma “ronda de vizinhos”, isto é, uma organização de bairro. Assim, é a categoria “vizinhos” a que também se institui nessa cena de violência. Se produzem “vizinhos” e “não vizinhos”. Aqui é pertinente fazer referência a Mary Douglas (1973), para quem os mecanismos de contaminação são sistemas de ordem em que se busca distribuir certos elementos espacialmente. Além do mais, a construção excludente de “vizinhos” cria uma analogia literal entre travestis e lixo. O que se questiona é o espaço onde o lixo é colocado. Na visão de todo mundo: crianças sempre assumidas como heterossexuais, adolescentes com muitas fantasias sexuais, mães de família que veem suas feminilidades e seus corpos ofuscados, homens que se descobrem não desejando mulheres etc. Provavelmente o “lixo travesti” poderia estar em um lixão com outros sujeitos do lixão, mas nunca em espaços públicos.

Além disso, essa construção de fronteiras espaciais e de identidades espacializadas que se cristaliza na figura do “vizinho” é funcional para o sistema econômico neoliberal hegemônico. Aqui se reforça uma lógica do espaço público como espaço exclusivo para o residente, isto é, para a pessoa que dispõe do capital econômico e de uma propriedade que lhe permite privatizar “espaços”. Isso às custas de outras lógicas do espaço público que o postulam como espaço de encontro de diferenças e de diferentes. Assim se reafirma a noção de “vizinho” como proprietário e se exclui todos aqueles “não vizinhos” de tais espaços públicos e de usos que podem e devem ser distintos. Aqui podemos ver também que a noção de “vizinho” se produz performativamente como a de um sujeito anterior ao exterior constituinte da “travesti”. Assim, é comum ouvir falar na imprensa massiva, por exemplo, de vizinhos invadidos por travestis, mesmo quando muitas áreas de trabalho sexual tenham muitos anos de tradição e em vários casos essas áreas existam antes da chegada de muitos desses “vizinhos”. Essa estabilização de fronteiras tenta identificar a figura do “vizinho” com a do proprietário e com a do cidadão, excluindo as pessoas trans e as trabalhadoras sexuais, que seriam não vizinhas, não proprietárias e não cidadãs. Então elas não apenas são expulsas dos espaços públicos, mas também se tenta pôr fim à mera possibilidade de reivindicarem direitos políticos e econômicos.

Essa produção de fronteiras apela a idealizações e aspirações sociais marcadas por certos imaginários sociais hegemônicos. No caso das “rondas de vizinhos” que agrediram Techi e seu eventual parceiro, se trata de grupos economicamente desprivilegiados. De fato, na reportagem, tanto Puerto Azul como Señor de los Milagros são identificados como “assentamentos humanos”. Isso quer dizer que são espaços marginais econômica e socialmente, carentes de diversos serviços públicos. E mais, o fato de que exista a ronda de vizinhos é uma prova da carência de serviços públicos e da falta de presença do Estado, já que são os mesmos habitantes do lugar que têm que se proteger e fazer “cumprir” as leis. Então, não se trata unicamente de que os vizinhos dessas localidades se construam a si mesmos como detentores de uma série de direitos, mas que por meio desse exercício eles aspiram a estar mais perto de um ideal de cidadania peruana. Ao mesmo tempo, eles produzem corpos que são radicalmente diferentes da noção de um “cidadão peruano”.

Dessa maneira, podemos ver como além das fronteiras corporais e sociais se produzem fronteiras nacionais. Se constroem por um lado cidadãos peruanos, cidadãos dignos de apelar ao Estado para ter reconhecimento e uma série de direitos sociais, econômicos e políticos; e por outro lado se constroem sujeitos que não podem e nem devem ser reconhecidos pelo Estado, destituídos de todo direito e de toda possibilidade de ter voz pública. De fato, o reconhecimento das pessoas transgêneras e das trabalhadoras sexuais é postulado como um fato que pode demolir as mesmas bases políticas e sociais em que esse Estado foi cimentado. Vemos o caráter eminentemente móvel de qualquer tentativa de produzir fronteiras. Temos aqui alguns cidadãos carentes de muitos direitos que, por meio de sua organização, apelam ao Estado-nação peruano para serem reconhecidos como cidadãos peruanos completos, mas que, ao mesmo tempo, constroem corpos como radicalmente abjetos e ofensivos à própria noção de “nação peruana”.

Continuando com esse argumento, podemos enfatizar a cumplicidade da reportagem com essa produção e delimitação de fronteiras. A breve reportagem conclui com as palavras de um dos agressores, que são mais importantes que as das vítimas, sobretudo as de Techi que nunca são incluídas. Esse agressor diz que, na tentativa de acabar com a “prostituição”, eles agiram adequadamente. E aqui, tanto a reportagem mais longa como a mais curta parecem justificar e ratificar essa ideia. É necessário perguntar, pois, que tipo de repressão ao trabalho sexual de travestis pede o agressor, repressão que a reportagem reitera e exacerba. Ele não pede o mesmo tipo de violência, mas por meio de agentes estatais? Além disso, a reinvindicação ao Estado cujo eco é ouvido exige proteção e respeito às pessoas transgêneras ou exige que seja mais eficiente em sua repressão às sexualidades não heterossexuais nos espaços públicos? A reportagem exige do Estado políticas públicas antiviolência contra pessoas transgêneras e profissionais do sexo ou exige políticas sexuais mais rígidas que garantam a hegemonia pública da heterossexualidade e evitem os excessos de atores “particulares”?

Não deixa de ser paradoxal que ambas as reportagens convoquem o Estado-nação e seus agentes para intervir e suspostamente evitar essa violência contra travestis profissionais do sexo. De fato, conforme relatado por vários repórteres sobre a situação dos direitos humanos das pessoas trans no Peru (BRACAMONTE e ÁLVAREZ, 2006; CORNEJO, 2009), grande parte da violência que de maneira cotidiana enfrentam essas pessoas vem das mãos da polícia e de outros agentes do Estado (como médicos, professores, juízes etc.). Ambas as reportagens levantam esse caso de violência contra Techi como excepcional, quando a única excepcionalidade é que havia sido filmado e transmitido em canal aberto. Vale a pena repetir que essas formas tão extremas de violência são o pão de cada dia de muitas travestis profissionais do sexo. E é o próprio Estado-nação que é chamado a se encarregar de construir essas vidas como vidas sem nenhum valor. É esse mesmo Estado que as precariza e que contribui para a sua morte social e material.

Falar de fronteiras que excluem é falar de processos de produção, reprodução e estabilização de limites. É, além disso, reconhecer que o que é disputado é a categoria da própria “vida humana”, uma categoria que se encontra longe de estar ligada a qualquer essencialismo biológico e que é produto de uma série de disputas políticas. Talvez seja até exagerado falar de fronteiras que matam nesse caso, já que felizmente Techi não morreu. Não obstante, a tortura e sua subsequente reprodução televisiva ampliam os espaços em que essas fronteiras buscam ser produzidas e reificadas; e essa amplificação reitera convenções sociais assassinas que podem ter consequências difíceis de prever com precisão, mas não de imaginar: crimes de ódio, discriminação, violência, e um longo e sangrento etcétera. Obviamente, a agressão e a reportagem não são todopoderosos, nem estão isentas de que seus esforços homo-transfóbicos fracassem. Contudo, não desejo concluir este ensaio concedendo uma agência exagerada a Techi e uma hipotética capacidade subversiva de sua parte. Eu não a conheço e nunca falei com ela, embora espere alguma vez poder fazê-lo, mas acredito que os fatos que se seguem a esse crime dão uma boa imagem dessa situação: embora a Anistia Internacional tenha iniciado uma campanha nacional e internacional de visibilidade do caso, e apesar do fato de que três pessoas foram denunciadas perante o Poder Judiciário por crimes contra a liberdade e a humanidade (JAIME, 2009, p. 99), Techi desistiu do processo por medo das retaliações, mudou-se de cidade ( Idem, 2010, p. 148) e eventualmente o caso foi arquivado. Aqui temos uma irrefutável prova da sistematicidade do funcionamento dos autoritarismos homo-transfóbicos.

Também não quero afirmar aqui que Techi habita ou é forçada a habitar uma série de fronteiras. Argumentei que é precisamente o fato de ela ser forçada a residir nessas fronteiras que radicaliza a violência de que é a vítima, e também que, além disso, essas normas procuram estabelecer corpos homossexuais e transexuais como habitantes exclusivos dessas fronteiras. Então, para esse caso pontual não acredito ser pertinente reivindicar essas fronteiras, nem suas habitantes. Parece-me que em certos espaços e contextos, o que deve ser questionado é justamente essa lógica constitutiva de fronteiras, o que devemos rejeitar é a crença de que a heterossexualidade não é atravessada por múltiplas fronteiras, que a heterossexualidade é um espaço sem fissuras, contradições e tensões.

Para concluir, quero enfatizar que estudar as homofobias e seus mecanismos requer análises locais e contextualizadas que explorem suas particularidades. Meu esforço para relacionar certas homofobias com certos autoritarismos pode parecer nesse sentido contraditório, já que a noção de autoritarismo parece tão unívoca. Não obstante, me junto a Guillermo Rochabrún (2007) em sua afirmação de que não se pode simplesmente pressupor o autoritarismo de certas populações ou tradições para explicar sua permanência. A permanência e reatualização das normas sociais devem ser explicadas teoricamente, não é um processo mecânico e muito menos inevitável. Se não fizermos o esforço de explicar a permanência dessas normas e tradições autoritárias, fazemos-lhes um grande favor, conceituando-as implicitamente como quase onipotentes. E isso é um luxo que não podemos pagar. Aqueles de nós que analisamos as homofobias e os autoritarismos, evidentemente, o fazemos porque queremos contribuir para a sua erradicação; e por essa razão precisamos produzir linguagens complexas e múltiplas que deem conta de sua pluralidade e complexidade. Esse pode ser um primeiro passo na construção de um mundo em que ninguém exija um passaporte heterossexual para viajar por ele.


[1].

fn6Uma primeira versão deste ensaio foi apresenta em junho de 2009 na Universidade de Roskilde (Dinamarca), graças a um amável convite de Christina Hee Pedersen. Também agradeço aos comentários de Felix Lossio, Gonzalo Portocarrero, Sara Rondinel e Letícia Sabsay. Este ensaio foi originalmente publicado em: Sombras coloniales y globalización en el Perú de hoy. Ed: Gonzalo Portocarrero. Lima: Rede para o desenvolvimento das ciências sociais no Perú, 2013. pp. 227-237.

[2].

fn7Don Kulick (2005) analisa um contexto muito diferente em que a homofobia está focada contra os clientes de serviços sexuais.

[3].

fn8A versão de performatividade com que a trabalho é postulada por Judith Butler (2007).

[4].

fn9Letícia Sabsay em Las normas del deseo (2009) havia analisado como certos meios de comunicação no caso argentino não somente produzem, mas também reproduzem uma rígida hierarquização de subjetividades sexuais.

[5].

fn10Ver Lossio (2008) para uma análise de linchamentos no Peru contemporâneo.

Referencias
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