O mito da punitividade
A principal hipótese apresentada por Matthews em seu artigo é de que há uma alegação, na literatura criminológica, de que vivemos contemporaneamente uma “onda punitiva” na sociedade global. Em outras palavras, para o autor, essa literatura promove a ideia de que há forças sociais que atuam, quase de forma coerciva, pressionando os sistemas penais para que se puna cada vez mais.
Ressalte-se, entretanto, que historicamente as sanções punitivas baseadas em emoções sociais[1], no glamour social da retribuição, estiveram presentes em qualquer sistema de justiça criminal. Por isso, Matthews questiona: “O que há de novo dentro deste cenário?”, “O que, de fato, mudou?” (MATTHEWS, 2005, p. 178). Para iniciar sua análise, ele se volta para o significado do termo punitividadee argumenta que não há, no âmbito da criminologia, uma noção-chave do que é punitividade. O autor afirma que há um equívoco relacionado à etimologia da palavra e que, devido a isso, o termo tem uma natureza ambivalente, ou seja, não se tem uma noção-chave do que venha a ser punitividade. Assim, o conceito permaneceu, ao longo dos anos, amplamente indefinido, gerando confusões teóricas e imprecisões científicas (
Ibid., p. 179).
Matthews entende que para sabermos se estamos vivenciando um aumento na punitividade, é necessário primeiramente solidificar seu conceito. Tentativas passadas de conceituar esse fenômeno, como ele mostra, passaram pela formulação de propostas que intentaram relacioná-lo com a modernidade e a industrialização tardia. O autor acredita que mudanças estruturais evidenciadas no âmbito do controle formal, associadas à globalização, de fato ocorreram e modificaram os ditames tradicionais do crime e do controle social. Porém, atualmente, vislumbra que as experiências da globalização e da modernidade são mais sentidas hoje em relação à reestruturação do mercado de trabalho e no âmbito da informação, da comunicação e da tecnologia, e que não contribuem para que haja mudanças bruscas nem para saber como a sociedade experiencia as formas de controle, a disciplina, o monitoramento, a vigilância e o castigo (
Ibid., p. 180).
De acordo com Matthews, há um crescente número de agências e instituições que, desempenhando diferentes papéis, com discursos e especialidades distintas, formam uma rede complexa de controle do criminal. Porém, nessa dimensão ampla e às vezes confusa, revela-se justamente um dos problemas em questão: a falta de um norteamento teórico bem delimitado, baseado na unilateralidade dos fenômenos investigados, que possa servir como alicerce para construção de proposições teóricas válidas, aptas a levarem contribuições práticas. Em outras palavras, não se desenvolveu uma abordagem nítida, com ferramentas conceituais coerentes que tratem da punitividade e de suas consequências diretas de maneira mais eficaz, completa e realista (
Ibid., p. 178). Infelizmente, esse desencontro conceitual e científico não impediu que a sociedade adotasse amplamente esse termo e dissemine seu uso.
Para construir seu esboço teórico, Matthews centra sua discussão na perspectiva conceitual de Stanley Cohen (1994), para quem a punitividade é caracterizada pela coerção, pelo formalismo, pelo moralismo, pela inflição da dor[2]. Cohen concentra suas análises nas formas de regulação mais contínuas e menos perceptíveis do controle social (MATTHEWS, 2005, p. 179). Matthews utiliza então as análises de Cohen relativas ao papel dos controles administrativos penitenciários, em especial os aspectos intrainstitucionais, no que concerne ao monitoramento, à vigilância e ao castigo. Ele situa a noção de punitividade como essencialmente reativa e não consequencialista, e vislumbra a interdependência e a conectividade dos fenômenos envolvidos com o fenômeno e como eles contribuem para formar um suposto paradigma de aumento ou diminuição da criminalidade.
Matthews entende que sem qualquer conhecimento da gravidade dos crimes e de, seus dados concretos, e sem alegações sobre o aumento efetivo da punitividade, não se pode formar uma base teórica sólida para compreendê-la (
Ibid., p. 180). Ele argumenta que uma análise trabalhada nesses termos, ou seja, sem a consideração adequada para relacionar a punitividade com outros fatores — taxas de vitimização, nível de satisfação social e níveis de insegurança, por exemplo — influenciará na receptividade social das sanções impostas, que poderão ser percebidas como arbitrárias ou não. Para confirmar que houve um aumento da punitividade seria necessário demonstrar dados dos crimes específicos, bem como suas sentenças, para então a partir disso averiguar se aumentaram. Matthews reconhece que as categorias jurídicas, entre elas os processos de criminalização e descriminalização, estão sempre mudando e caminham no mesmo ritmo da mutação social.
O uso da custódia, especialmente, em seu modo segregativo, é visto como um indicador para a dosimetria do fenômeno da punitividade. Matthews assevera que a relação entre as estratégias prisionais e a punitividade pode indicar sintomas de certas questões, como: o aumento das populações carcerárias; o porquê de determinado sistema jurídico optar pela aplicação de sentenças mais duras e longas; o fascínio de determinada sociedade pelo castigo; e como se constitui uma política tolerância zero[3] em determinada sociedade.
Matthews acredita que estamos presenciando, contemporaneamente, o aumento de outra modalidade de castigo, as sanções alternativas, baseadas na intervenção comunitária sobre a persecução penal, com o intuito de descaracterizar a “dureza” do castigo. Geralmente, são aplicáveis nos crimes de menor potencial lesivo, ou os cometidos sem grave ameaça ou violência à pessoa. As sanções não punitivas representam alternativas para os modos tradicionais de custódia. Entretanto, atualmente, verificamos o aumento dessa modalidade de sanções. Sobre isso, o autor questiona: o aumento da utilização desse tipo de sanção pode ou não ser caracterizado como aumento da punitividade?
Segundo Matthews, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, nas últimas décadas o número de pessoas condenadas a sanções alternativas aumentou tanto quanto o encarceramento. Isso significa houve um aumento simultâneo em ambas as modalidades, segregativas e alternativas (não punitivas) (CAPLOW e SIMON, 1999; MATTHEWS, 2005) Assim, somos obrigados a perceber que, mesmo com a rápida expansão das estratégias de vigilância e de monitoramento, em relação às sanções alternativas, não há melhora. A modalidade não contribui para diminuir a modalidade segregativa. E mais: ela, por si só, não para de crescer.
Na literatura criminológica, o populismo[4] é visto como combustível que alimenta a chamada virada punitiva (punitive turn). Matthews (2005) acredita que a maioria dos acadêmicos defende a influência do público geral no aumento[5] da punitividade. Eles defendem a perspectiva de que a população abriga profundos sentimentos de medo, ansiedade e insegurança urbana e que esses sentimentos se manifestam em um senso social baseado na retribuição exacerbada e no revanchismo (MATTHEWS, 2005, p. 176).
O populismo não é uma forma intrinsecamente atrasada ou patológica de mobilização política. Pelo contrário, dever ser vista como um método de controle da atuação estatal lançada pela própria democracia (CANOVAN, 1999). Segundo Matthews (2005), no âmbito da criminologia, o conceito de populismo continua confuso, e os acadêmicos, ao citá-lo, não discutem as maneiras como foi mobilizado para limitar a opressão do Estado, promover a igualdade e defender os direitos humanos (p. ex. casos de Stephen Lawrence e Rodney King) (MATTHEWS, 2005, p. 177). O autor acredita que o público, em geral, tem sido capaz de expressar seus pontos de vista mais abertamente e influenciar o desenvolvimento da política penal de maneira positiva. Diante disso, o populismo, por sua essência, deveria ser conceituado como uma ferramenta positiva dentro da sociedade.
A disseminação do gerencialismo é vista como oposta à perspectiva dos acadêmicos criminológicos que acreditam no aumento da aplicação dos castigos baseados na emoção. Matthews argumenta que a principal mudança na política penal global[6] foi o desenvolvimento de mais estilos administrativos, impessoais, de regulação, controle formal, disciplina e castigo (
Ibid., p. 178) Essa nova forma de gerencialismo tem seu maior fundamento na análise de risco.
A gestão prisional pode ser vista como um mecanismo de gestão eficiente em questões de segurança. Ao gerencialismo, corresponde o novo discurso da criminologia atuarial, que propõe uma mudança de paradigma. Sobre isso, podemos citar o abandono do discurso correcionalista, característico do welfare state, a instituição de um binômio risco versus bem-estar e a gradação de periculosidade (BORA, 2018).
Presenciamos um crescimento de perspectivas teóricas quem a racionalidade, a relação custo benefício como fundamentais para entender, explicar e combater de maneira efetiva a atividade a atividade criminal. Conforme Matthews, esses empreendimentos pseudocientífico mascara o moralismo e o subjetivismo, ao mesmo tempo que fornecem uma contribuição extremamente limitada para aprimorar a segurança e o bem-estar dos presos e das comunidades (HUDSON, 2003; MATTHEWS, 2005).
Matthews monstra que na criminologia, existe uma tendência a considera as dimensões das estratégias de controle como condicionadas a uma divisão de classe, ou seja, entre um grupo dominante e outros dominados. Nessa divisão, os grupos menos favorecidos se veem cada vez mais vulneráveis à aplicação de sanções penais punitivas (FEEKEY e SIMON, 1992). Matthews (2005) acredita que a prisão moderna, desde que foi criada no século XIX, esteve sempre desproporcionalmente preocupada com a exclusão de certos grupos minoritários vulneráveis, e cita como exemplo a prisão do lumpemproletariado, das “classes perigosas”, dos pobres e dos vadios (MATTHEWS, 2005, p. 185). A pergunta que coloca é: algo mudou? O encarceramento sempre foi direcionado, principalmente, às classes menos favorecidas, e discursos atuais não parecem sinalizar uma mudança significativa a esse respeito (
Idem
).