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<P>Apresentação ao dossiê ‘60 Anos do Livro The Presentation of Self in Everyday Life, de Erving Goffman’ </P>
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<P>Em 2019, a publicação do primeiro livro de Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life (PS), completa 60 anos. Baseado na pesquisa de doutorado do autor, o livro contou com uma primeira edição em 1956, mas a edição ampliada e definitiva veio a público em 1959 (BURNS, 1992; TREVIÑO, 2003). Ainda que Goffman possua uma obra extensa, PS permanece sendo seu trabalho mais conhecido na sociologia. É nela que Goffman desenvolve sua conhecida “análise dramatúrgica”, uma proposta de utilizar a metáfora dramatúrgica como ferramenta de compreensão da vida social. Por meio dessa metáfora, o autor define performance em termos situacionais e demonstra que a interação pode ser compreendida sociologicamente como performances realizadas para uma audiência, que requerem um trabalho colaborativo para garantir a definição da situação. </P>
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<P>Foi a publicação desse livro que lançou a reputação de Goffman como sociólogo de estatura internacional e lhe rendeu o prestigiado MacIver Award da American Sociological Association (ASA) como melhor livro da sociologia americana em 1961 (SMITH, 2006; TREVIÑO, 2003). A data oferece uma oportunidade para rememorar a importância de Goffman para a sociologia e demonstrar a atualidade de seu pensamento para o estudo dos temas e problemas sociológicos contemporâneos. A riqueza de suas análises sobre os detalhes da vida cotidiana, a originalidade de sua abordagem, de seus temas de pesquisa e conceitos continuam inspirando pesquisas desenvolvidas no campo das ciências sociais. Entre os sociólogos mais influentes do século XX (COLLINS, 2009), Goffman permanece uma das referências centrais nas ciências sociais contemporâneas. </P>
<P>Definido como interacionista simbólico, dramaturgista maquiavélico ou seguidor da tradição durkheimiana (DAVIS, 1975; COLLINS, 2009), ao se intitular como “etnógrafo urbano” (JOSEPH, 2000) Goffman embaralhou as fronteiras entre diferentes ciências humanas (LEMERT e BRANAMAN, 1997), influenciando diversos trabalhos nas áreas de ciência política, filosofia, antropologia, linguística, psicologia e comunicação (SMITH, 2002; GIDDENS 2009). Apesar de fragmentários, os trabalhos de Goffman atêm-se ao objetivo de descrever e explicar aspectos da interação face a face de uma maneira consistentemente sociológica, ancorando-se em ângulos muito variados (NIZET e RIGAUX, 2016). </P>
<P>Como nos lembra Gilberto Velho (2002), os trabalhos de Goffman são especialmente importantes para o desenvolvimento de análises sobre desvios, divergências, conflitos interpessoais e temas afins, uma vez que revelam uma profunda preocupação com o controle social exercido tanto pelo próprio ator quanto por aqueles que o cercam em situações de interação face a face. Isso porque a unidade elementar da análise goffmaniana é a situação, configurando o que Isaac Joseph chama de “situacionismo metodológico” (JOSEPH, 2000). No Brasil, em particular, a obra de Goffman vem sendo mobilizada por pesquisadores desde a década de 1960 como ferramenta teórica para a compreensão das lógicas de funcionamento de uma série de instituições de controle social, tais como polícia, prisões, hospitais psiquiátricos, instituições de medida socioeducativa, Poder Judiciário, entre outros. </P>
<P>Os artigos que compõem este dossiê são excelentes exemplares da diversidade de temas de pesquisa que permanecem se beneficiando dos conceitos e noções desenvolvidos na obra de Erving Goffman para compreender a sociedade contemporânea, especialmente no campo do desvio, conflito e do controle social. A importância do pensamento desse autor para esse campo de investigações é demonstrada de maneira exemplar pelos trabalhos de Camille Porto e Jacqueline da Silva. O primeiro explora o importante conceito de carreira moral em relação com noções desenvolvidas em PS a partir de uma pesquisa realizada com egressos do sistema penitenciário. O conceito de carreira moral está entre as principais contribuições de Goffman para os estudos sobre o desvio e controle social, destacando o caráter compulsório das definições de si implicadas nas interações que marcam a trajetória dos indivíduos, em especial no que diz respeito às trajetórias impactadas pela passagem por prisões. O segundo artigo do dossiê analisa a organização policial a partir da noção de performance organizacional. Em uma pesquisa empírica sobre a imagem construída pela Polícia Militar de Pernambuco nas redes sociais, Jacqueline da Silva destaca o caráter militarizado das performances dessa organização. O artigo demonstra, assim, o ganho analítico trazido pela utilização de noções desenvolvidas por Goffman em PS para o estudo de organizações e a operacionalidade sociológica que essas noções permitem conceder à “imagem”. </P>
<P>O dossiê traz ainda o artigo de Mauro Koury, que desenvolve uma análise sobre PS buscando traçar paralelos entre a obra de Goffman e a perspectiva de Georg Simmel, a partir de uma análise da noção de fracasso, tema recorrente na obra goffmaniana. Já Jordão Horta Nunes explora outro conceito central para a obra de Goffman relacionado ao livro celebrado neste dossiê: frame. Conceito desenvolvido sobretudo em uma de suas obras mais ambiciosas, Frame Analysis (1974) (Quadros da experiência social [2012]), frame reconstitui conceitualmente um aspecto central do objeto construído em PS, a definição da situação, pensada agora como resultado do emprego de diferentes princípios de organização da experiência, de diferentes frames. A partir de uma análise sociológica dos trabalhos do fotógrafo Artur Felling, conhecido como Weege, Nunes discute a construção do frame do fotojornalismo e demonstra como essa construção está relacionada com a forma como o fotógrafo constrói e apresenta o seu self. </P>
<P>O dossiê conta também com a tradução original e inédita do último e um dos mais importantes artigos de Erving Goffman, The Interaction Order (1983), realizada por Bruna Gisi e Roberta Soares. O artigo foi escrito originalmente para o discurso de posse da presidência da ASA, evento do qual Goffman não chegou a participar devido à piora em seu estado de saúde decorrente do câncer no estômago, que o levaria a falecer ainda em 1982. Nesse último artigo, Goffman opta por sintetizar, pela primeira vez, o empreendimento teórico que subjaz sua obra. O autor argumenta que seu trabalho ao longo dos anos foi uma tentativa de demonstrar a existência e a autonomia do domínio da vida social constituído pelas interações face a face: a ordem da interação. O artigo é dedicado a caracterizar a ordem da interação e sustentar que se trata de um domínio “analiticamente viável” e “substantivo em seus próprios termos” que não pode ser reduzido a determinações da estrutura social. </P>
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<P>Ainda que partindo de temas muito distintos, é possível dizer que os artigos que compõem o dossiê colocam em relevo e nos permitem refletir sobre dois temas centrais de PS: (i) a dinâmica entre aparência e realidade e (ii) o caráter social e processual do self
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. O objeto central do livro celebrado neste dossiê, o manejo das impressões, ganha relevância sociológica a partir da formulação do caráter necessariamente expressivo da vida social e do fundamento intrinsecamente social do self dos indivíduos. Como demonstraremos em seguida, os artigos nos oferecem uma oportunidade para refletir sobre a originalidade da perspectiva de Goffman presente nesses aspectos de PS. </P>
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<P>texto publicado neste dossiê, o principal problema com o título utilizado em português (A representação do eu na vida cotidiana) é que este ignora a discussão colocada pelo interacionismo simbólico sobre o conceito de self, que segundo George Herbert Mead (1972) é uma instância eminentemente social decorrente das relações nas quais os atores se envolvem. Somado a isso, ao optar pelo termo “representação” em vez de “apresentação”, a tradução para a língua portuguesa força a tinta em um ator deliberadamente manipulador. Como se sabe, a metáfora dramatúrgica proposta por Goffman relaciona-se aos diferentes papeis com os quais um ator pode se engajar para apresentar seus selves aos demais participantes de uma interação. </P>
<P>2 Goffman define performance como “a atividade de um indivíduo que ocorre durante um período marcado por sua presença contínua diante de um conjunto particular de observadores e que tem alguma influência sobre os observadores” (GOFFMAN, 1959, p. 32, tradução nossa). </P>
<P>3 Tradução nossa. No original: “While we could retain the common-sense notion that fostered appearances can be discredit by discrepant reality, there is often no reason for claiming that the facts discrepant with the fostered impression are any more real reality than is the fostered reality they embarrass. (…) For many sociological issues it may not even be necessary to decide which is more real, the fostered impression or the one the performer attempts to prevent the audience from receiving. The crucial sociological consideration, for this report at least, is merely that impressions fostered in everyday performances are subject to disruption. We will want to know what kind of impression of reality can shatter the fostered impression of reality, and what reality really is can be left to other students” (GOFFMAN, 1959, p. 72-73). </P>
<P>4 Tradução nossa. No original: “The self, then, as a performed character, is not an organic thing that has a specific location, whose fundamental fate is to be born, to mature and to die; it is a dramatic effect arising diffusely from the scene that is presented, and that characteristic issue, the crucial concern, is whether it will be credited or discredit. (...) In analyzing the self, then, we are drawn from its possessor, from the person who will profit of lose most by it, for he and his body merely provide the peg on which something of collaborative manufacture will be hung for a time. And the means for producing and maintaining selves do not reside inside the peg, in fact these means are often bolted down in social establishments” (GOFFMAN, 1959, p. 245). </P>
<P>5 Tradução nossa. No original: “the structure of those entities in social life that come into being whenever persons enter one another’s immediate physical presence. The key factor of this structure is the maintenance of a single definition of the situation, this definition having to be expressed, and this expression sustained in the face of a multitude of potential disruptions” (GOFFMAN, 1959, p. 246). </P>
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<P>Notas </P>
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<P>1 É por conta dessas especificidades analíticas que neste texto optamos por não seguir o título do livro traduzido para a língua portuguesa pela Editora Vozes – que já conta com dezenas de edições publicadas. Como ressalta Camille Porto em </P>
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<P>Ao analisar a Polícia Militar de Pernambuco a partir de suas performances institucionais, o artigo de Jaqueline da Silva aborda uma dimensão do repertório conceitual desenvolvido em PS ainda pouco explorada: o caráter coletivo e colaborativo do manejo de impressões e da definição da situação. Vale lembrar que já no segundo capítulo do livro, Goffman afirma que o ponto de referência mais pertinente para a análise – em especial no caso de estabelecimentos sociais – não é o indivíduo, mas o “time” (GOFFMAN, 1959, p. 85). O autor argumenta que as performances
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realizadas pelos indivíduos em interação não deveriam ser interpretadas como extensão ou expressão de suas características pessoais, mas como parte do trabalho colaborativo desenvolvido com os demais participantes para a construção e manutenção de determinada definição da situação (Ibid., pp. 83-84). Partindo da ênfase na dimensão coletiva das performances, Jaqueline Silva demonstra a pertinência da abordagem desenvolvida em PS para analisar organizações. </P>
<P>Sob a perspectiva desenvolvida por Goffman, a dimensão declarada e oficial das organizações ganha uma relevância usualmente não presente nos estudos sobre organizações de controle social. É frequente a impressão de que a boa pesquisa sobre instituições e organizações é aquela capaz de revelar as rotinas e os procedimentos não declarados e não admitidos, distantes do oficial. São os elementos e comportamentos que compõem o que Goffman chama de “região dos bastidores” aqueles usualmente tomados como representativos da verdade ou da realidade da instituição. A concentração quase exclusiva nos “bastidores” e na estratégia de análise de “revelação” parte do pressuposto de que a verdade das organizações está naquilo que elas escondem e toma seu lado oficial, visível e desejado como algo não só mentiroso, mas óbvio. </P>
<P>No entanto, conforme Goffman expressa com a epígrafe de Santayana escolhida para PS, “imagens são como conchas, não menos parte integrante da natureza do que a substância que elas recobrem (...)”. O caráter constitutivo atribuído à “imagem” decorre de um dos aspectos centrais da análise dramatúrgica desenvolvida pelo autor: a defesa de que a distinção entre performances “verdadeiras” e “falsas” ou “honestas” e “desonestas” é inadequada do ponto de vista analítico. Ainda que a sinceridade tenha um papel estrutural nas performances, uma vez que a audiência precisa estar convencida de que a impressão passada é verdadeira para que ela possa ter efeitos (Ibid., p. 77), do ponto de vista sociológico, a veracidade não importa. Isso porque a possibilidade de descrédito é um atributo de qualquer performance, não somente das falsas. Para todas as performances, genuínas ou fabricadas, sempre existem informações e fatos que, caso relevados, contradizem aspectos das impressões produzidas. Esse atributo das performances se deve ao fato inescapável de que nenhum encontro social pode conter todas as evidências diretas necessárias para sustentar uma dada definição da situação. Assim, na falta da informação completa a respeito da situação e do outro, é sempre preciso confiar nas aparências, é preciso confiar em sinais que representam o que não está presente. Independentemente da “veracidade” ou “honestidade” do que é apresentado, impressões são efetivamente projetadas e são tratadas como fonte de informação sobre fatos não aparentes que não podem ser verificados ou demonstrados durante a interação, orientando as ações e respostas dos atores. Com essa perspectiva, Goffman torna irrelevante para a análise descobrir se alguma performance é “real” ou não: </P>
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<P>Embora nós possamos reter a noção de senso comum de que aparências produzidas podem ser desacreditadas por uma realidade discrepante, usualmente não existe razão para alegar que os fatos discrepantes com relação a impressão produzida são mais realidade real do que é a realidade produzida que eles embaraçam. (...) Para muitas questões sociológicas pode nem ser necessário decidir qual é mais real, a impressão produzida ou a que o performer tenta evitar que a audiência receba. A consideração sociológica fundamental, ao menos para esse estudo, é meramente que impressões produzidas em performances cotidianas estão sujeitas a ruptura. Nós queremos saber que tipo de impressão da realidade pode destruir a impressão produzida de realidade, e o que a realidade realmente é pode ser deixado para outros estudiosos (Ibid., pp. 72-73)</P>
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<P>Como qualquer performance está sujeita a descrédito, todas as performances precisam garantir que somente as expressões apropriadas serão selecionadas e que aquelas que podem desacreditar as impressões serão excluídas. </P>
<P>O trabalho dos indivíduos para controlar as informações e influenciar estrategicamente as impressões passadas durante as interações é com frequência um dos aspectos mais enfatizados de PS. Como a definição da situação é decisiva não só para a coordenação da ação, mas também para a forma como os participantes serão tratados, é de interesse do indivíduo tentar interferir e direcionar esse processo (Ibid., p. 15). É preciso recordar, no entanto, que Goffman argumenta que os indivíduos sempre expressam mais do que conseguem controlar e que todas as performances estão sempre sujeitas a descrédito, enfatizando a fragilidade da realidade projetada pelas performances dos atores. Ao desfazer a relação intrínseca e necessária entre aparência e realidade (Ibid., p. 77), duas possibilidades contraditórias surgem simultaneamente: a manipulação e fabricação estratégica de impressões e a ameaça perene de que as impressões sejam desacreditadas durante a interação pelo que o indivíduo expressa sem controlar. </P>
<P>As formulações de Goffman sobre essa dinâmica entre aparência e realidade que caracteriza e organiza os encontros sociais têm consequências importantes para o estudo do self. Enquanto o artigo de Jaqueline Silva nos permite refletir sobre a potencialidade da abordagem desenvolvida em PS para o estudo das performances de fachada de organizações, os outros três artigos analisam aspectos centrais da abordagem desenvolvida no livro sobre o self. É preciso lembrar que o processo de definição da situação não diz respeito somente à situação em si ou às atividades desempenhadas, mas também ao próprio indivíduo. Assim, as contingências e determinações que atuam sobre esse processo terão consequências também para o self dos indivíduos. </P>
<P>O processo de construção e apresentação de si, como o próprio título demonstra, é um tema central de PS. Considerando que o self do indivíduo também está sujeito ao risco de que algum gesto ou evento não intencionais possam sinalizar algo não desejado, a coerência expressiva torna-se um imperativo da apresentação de si. Sugerindo certa dualidade na concepção de self (BRANAMAM, 1997, p. xlix), ao comentar sobre a manutenção do controle expressivo como um dos atributos das performances, Goffman argumenta que esse processo indica uma discrepância existente entre nossos selves demasiadamente humanos e nossos selves socializados (GOFFMAN, 1959, p. 63). Se enquanto seres humanos somos criaturas sujeitas a impulsos e variação de humores, enquanto personagens que se apresentam para uma audiência não podemos permitir essas oscilações. Citando novamente Santayana, Goffman argumenta que a socialização é também um processo de “fixação”, responsável por certa “burocratização do espírito” (Ibid., p. 64). A coerência imposta como ideal de construção de si faria do self uma ideia perseguida e construída pelo indivíduo. Ainda que os atributos do indivíduo enquanto ator sejam de natureza psicobiológica, envolvendo impulsos e desejos, sentimento de orgulho e vergonha, não é essa dimensão humana, individual, motivacional que tomamos como nosso self, mas sim o self socializado, o self-como-personagem, produto de processos sociais (BRANAMAN, 1997, p. xlix). </P>
<P>No artigo de Jordão Horta Nunes, as noções de Goffman são mobilizadas para analisar a trajetória de um indivíduo, Arthur Felling (Weegee), em conexão com a emergência de uma nova modalidade de representação da realidade, o fotojornalismo. Para tanto, Nunes explora essa dimensão idealizada do self-como-personagem para analisar o modo como Weegee, fotógrafo conhecido na década de 1940 em Nova York pela cobertura de delitos violentos, contribui decisivamente para a formação de um novo frame – o fotojornalismo – pela incorporação de atributos da nova profissão na apresentação de seu self. No artigo, Nunes demonstra como as estratégias de construção do self de repórter por Weegee compõem os atributos do frame da reportagem fotojornalística. Essas estratégias envolveriam desde a divulgação de sua imagem, segredos e visão de mundo até o uso de fotos dele próprio com legendas e narrativas irônicas. </P>
<P>Nessa chave, o caráter eminentemente social do self fica evidente por sua dimensão expressiva e comunicacional, como ideia produzida em performances públicas. Seguindo o caminho trilhado inicialmente por G. H. Mead and C. Cooley, Goffman avança na construção de uma noção sociológica de self como produto de processos sociais que não se origina no âmago dos indivíduos, mas resulta de performances publicamente validadas. Ainda que o self seja percebido como algo que está localizado no corpo do seu detentor como expressão de sua personalidade individual, Goffman argumenta que o self é uma imagem que o indivíduo busca levar os outros a atribuir a ele. Ainda que a imagem seja do indivíduo, o self não deriva do seu detentor: </P>
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<P>O self, portanto, como um papel interpretado, não é uma coisa orgânica que tem uma localização específica, cujo destino fundamental é nascer, crescer e morrer; é um efeito dramático que emerge de modo difuso da cena que é apresentada, e a questão característica, a preocupação crucial, é se ele será acreditado ou desacreditado. (...) Na análise do self, então, nós desviamos de seu detentor, da pessoa que irá lucrar ou perder mais com ele, pois o detentor e seu corpo meramente proveem o suporte no qual algo manufaturado de modo colaborativo será pendurado por um tempo. E os meios para produzir e manter selves não residem dentro do pino, de fato esses meios são com frequência fixados em estabelecimentos sociais (GOFFMAN, 1959, p. 245)
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<P>O self é concebido, assim, como produto social não só por ser o resultado de performances situadas, mas também e principalmente porque é dependente da validação pública demonstrada pela resposta dos demais participantes que colaboram para o desenrolar da situação (BRANAMAN, 1997, p. xlvi). </P>
<P>Ao compreender o self como produto de um trabalho colaborativo de definição da situação (RAWLS, 2010), Goffman permite considerar a dimensão coercitiva e compulsória da dinâmica de definição de si produzida por diferentes processos sociais e a experiência daqueles que sofrem a imposição de status degradados pelo contexto interacional. A partir dessa dinâmica é possível entender a importância da noção de fracasso analisada no artigo de Mauro Koury. Estabelecendo nexos entre a perspectiva elaborada por Goffman em PS e a tradição teórica inaugurada por Simmel (1998), Koury propõe que a noção de fracasso associado às vulnerabilidades intrínsecas aos encontros sociais é central para a visão de vida social presente no livro. Conforme destacado, o processo de definição da situação e manejo das impressões constitui os selves dos participantes da interação e, portanto, o risco de ruptura é uma ameaça também ao self projetado pelos atores. Os encontros sociais envolvem, assim, uma situação de dependência mútua fundada na vulnerabilidade inevitável das impressões projetadas pelos participantes. Essa dinâmica operada pelas vulnerabilidades da interação seria um elemento central da concepção do autor sobre a moralidade na vida social, compreendida como algo que é fabricado pelas performances e pelos rituais que afirmam ou negam a dignidade humana. </P>
<P>Além das vulnerabilidades e dos riscos intrínsecos à dinâmica institucional, a dimensão colaborativa e coercitiva do processo de emergência do self dos indivíduos permite considerar ainda a experiência dos indivíduos que são privados das condições necessárias para sustentar um self respeitável para si. É o que Ann Branaman sintetiza com a noção de “self confinado”, dimensão explorada de modo exemplar em outros dois livros de Goffman, Asylums (1991) e Stigma (1963). Como o self não é algo que emana do indivíduo, mas é produto de performances publicamente validadas, a identidade pessoal é constituída principalmente pelo enquadramento das experiências do indivíduo pelos outros. A identidade atribuída em interação ao indivíduo não é algo que ele escolhe livremente. O imperativo de haver uma coerência entre o que é atribuído ao indivíduo pelos outros e o que ele reivindica sobre si é desenvolvido mais claramente por Goffman no artigo “The Insanity of Place” (1971). A “insanidade de lugar” descreveria precisamente a situação na qual o indivíduo reivindica atributos e definições sobre si que os demais não podem conceder. Essa discrepância, que caracterizaria os sintomas mentais, teria consequências significativas para o indivíduo e para seus outros recíprocos por desorganizar inteiramente as interações e produzir desordem. É porque a sociedade participa do processo de definição do self que surge a possibilidade de que o indivíduo seja submetido a definições degradadas de si ao não possuir os recursos necessários para sustentar um self respeitável. </P>
<P>A dimensão compulsória do processo de definição de si é exemplarmente trabalhada no artigo de Camille Porto sobre egressos – ou, como a autora chama, “egressantes” – do sistema penitenciário carioca. A partir da noção de carreira moral desenvolvida por Goffman (2010) em Manicômios, prisões e conventos, o artigo aborda como os indivíduos marcados pela experiência do encarceramento se reconhecem na revisão de sua carreira. A noção de carreira moral é formulada por Goffman para dar conta das transformações morais – mudanças no self da pessoa e no seu “esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros” (2010, p. 10) – operadas ao longo da trajetória comum aos participantes de determinada categoria social. A ênfase no caráter social e processual do self é particularmente evidente na formulação dessa noção. Não só por considerar de que maneira a situação e as circunstâncias institucionais às quais o indivíduo é submetido pode alterar coercitivamente seu self, mas também por defender a possibilidade de pensar processos coletivos de alteração do self ligados não ao indivíduo em sua particularidade, mas à categoria à qual pertence. Daí a importância que Goffman atribui à abordagem rigorosamente sociológica no estudo dos doentes mentais. Eles são uma categoria social não porque compartilham uma condição de saúde, porque são doentes, mas porque foram submetidos a uma carreira moral comum que os reúne sob uma mesma categoria. A interpretação psiquiátrica, no caso dos doentes mentais, torna-se relevante, assim, na medida em que “altera o destino social” de indivíduos, na medida em que participa da sua carreira moral. O mesmo se aplica no caso da pesquisa de Camille Porto, já que o que ela investiga é um grupo de indivíduos cujas carreiras morais são marcadas pelo processo de incriminação (MISSE, 1999) e, especialmente, pela passagem por uma instituição total. A autora demonstra como a significação dessa carreira pelos seus atores passa pela mobilização de dispositivos cognitivos moralistas que permitam marcar a distância entre a fase prisional e a nova fase. </P>
<P>Como se pode observar, os artigos do dossiê exploram aspectos fundamentais da abordagem construída por Goffman em PS que demonstram sua originalidade e a potencialidade para a análise de diferentes objetos sociológicos. Como mencionado anteriormente, o dossiê conta também com a tradução do último artigo de Goffman em que ele parece querer explicitar sua contribuição à sociologia. Ao longo de toda sua obra, o autor teria tentado sustentar a posição de que as interações face a face constituem um domínio específico, ordenado e fundamental da vida social e que deve ser estudado sistematicamente pela sociologia. É interessante observar que parte das bases desse projeto já se encontra delineada em PS. Como Goffman argumenta nos parágrafos finais da conclusão do livro, a metáfora dramatúrgica foi mobilizada como um “andaime”, utilizado para construir outra coisa. O objetivo não foi, diz Goffman, destacar características teatrais que podem ser identificadas na vida cotidiana, mas sim formular </P>
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<P>(...) a estrutura daquelas entidades da vida social que emergem sempre que pessoas entram na presença física imediata umas das outras. O fator-chave dessa estrutura é a manutenção de uma única definição da situação, essa definição tendo que ser expressa e essa expressão sustentada diante de uma multiplicidade de possíveis rupturas (GOFFMAN, 1959, p. 246).
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<P>Conforme Goffman desenvolve em “The Interaction Order”, seu objetivo ao longo de sua obra foi justamente sustentar que os encontros sociais, as situações que envolvem co-presença física, são estruturados de maneira sui generis, tornam acentuadas dimensões específicas da vida social e formam um domínio que é objeto privilegiado da sociologia. A centralidade desse domínio está no fato de que quase todos os feitos humanos são socialmente situados. </P>
<P>Em vez de buscar afirmar a originalidade de sua contribuição à sociologia pela defesa de que sua perspectiva oferece a melhor alternativa para a explicação global da sociedade, Goffman o faz reconhecendo um limite. Conforme destaca, a sua defesa da autonomia relativa da ordem da interação não deve ser entendida como um “situacionalismo desenfreado”. Ao longo do artigo, Goffman usa esse limite para construir seu argumento de que a ordem da interação é um domínio próprio, autônomo com relação às entidades macrossociais. A maior parte do texto é, assim, dedicada a demonstrar a interface entre a ordem da interação e a organização social macroestrutural. O argumento fundamental é que as práticas interacionais não devem ser consideradas, como a sociologia costuma fazer, “expressões de” ou efeitos das estruturas. Para Goffman, o que existe é um “acoplamento frouxo” entre práticas interacionais e estruturas sociais, um engate das estruturas em encaixes interacionais operada por regras de transformação que precisam ser estudadas. </P>
<P>Os trabalhos aqui apresentados encontram em Goffman uma caixa de ferramentas analíticas que lhes permite construir e lidar com diferentes objetos sociológicos, como a imagem pública da polícia, o fracasso, o fotojornalismo e as narrativas biográficas de egressos do sistema penitenciário. Apesar de os trabalhos estarem todos atravessados pelas discussões sobre as tensões entre aparência e realidade e sobre o caráter processual do self, outras noções, espalhadas pela obra do autor, como estigma, instituição total e carreira moral, também se fazem eventualmente presentes. De todo modo, os artigos que compõem o presente dossiê exploram aspectos fundamentais da abordagem construída por Goffman que demonstram a originalidade e a atualidade do seu pensamento, especialmente para os pesquisadores que se debruçam sobre as temáticas do conflito e do controle social. </P>
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<P>Juliana Vinuto, Bruna Gisi Almeida e Cesar Pinheiro Teixeira, organizadores do dossiê. </P>
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<P>Referências </P>
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<P>BURNS, Tom. Erving Goffman. Nova York: Routledge, 1992. </P>
<P>COLLINS, Randall. Quatro tradições sociológicas. Petrópolis: Vozes, 2009. </P>
<P>DAVIS, Murray S. Review Frame Analysis. Contemporary Sociology, v. 4, n. 6, pp. 599-603, nov. 1975. </P>
<P>GIDDENS, Anthony: On Rereading The Presentation of Self: Some Reflections. Social Psychology Quarterly, v. 72, n. 4, pp. 290-295, dec. 2009. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates. London: Penguin Books, 1991. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2012. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Frame Analysis. New York: Harper & Row, 1974. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Quadros da experiência social: Uma perspectiva de análise. São Paulo: Vozes, 2012. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. Nova Jersey: Prentice-Hall, 1963. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. London: Penguin Books, 1990. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. The Insanity of Place. In: Relations in public. New York: Basic Books, Inc., Publishers, 1971. </P>
<P>GOFFMAN, Erving. The Interaction Order: American Sociological Association, 1982 Presidential Address. American Sociological Review, v. 48, n. 1, pp. 1-17, feb. 1983. </P>
<P>JOSEPH, Isaac. Erving Goffman e a microssociologia. Rio de Janeiro: FGV, 2000. </P>
<P>LEMERT, Charles; BRANAMAN, Ann. The Goffman Reader. Massachusetts: Blackwell Publishers, 1997. </P>
<P>MEAD, George. Mind, Self, and Society: From the Standpoint of a Social Behaviorist. Chicago: University of Chicago Press, 1972. </P>
<P>MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: Aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, n. 79, pp. 15-38, 2010. </P>
<P>NIZET, Jean; RIGAUX, Natalie. A sociologia de Erving Goffman. Petrópolis: Vozes, 2016. </P>
<P>RAWLS, Anne Warfield. Social Order as Moral Order. In: HITLIN, Steven; VAISEY, Stephen (org.). Handbook of the Sociology of Morality. Nova York: Springer, 2010. pp. 95-121. </P>
<P>SMITH, Greg (org). Goffman and Social Organization: Studies in a Sociological Legacy. Nova York: Routledge, 2002. </P>
<P>SMITH, Greg. Erving Goffman. Nova York: Routledge, 2006. </P>
<P>TREVIÑO, Javier. Goffman’s Legacy. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, 2003. </P>
<P>VELHO, Gilberto. Becker, Goffman e a Antropologia no Brasil. Ilha. Florianópolis, v.4, n.1, julho de 2002, p. 5-16. </P>
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<P>JULIANA VINUTO (j.vinuto@gmail.com) é professora do Departamento de Segurança Pública (DSP) da Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói, Brasil) e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Sujeitos, Sociedade e Estado (NEPSSE) da UFF. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade de São Paulo (USP, Brasil) e graduada em ciências sociais pela USP. </P>
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<P>BRUNA GISI (brunagisi@usp.br) é professora doutora do Departamento de Sociologia (DP) da USP e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da mesma universidade. É doutora e mestre pelo PPGS da USP e graduada em ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, Curitiba, Brasil). </P>
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<P>CESAR PINHEIRO TEIXEIRA (cesarpinheiroteixeira@gmail.com) é pesquisador do Necvu da UFRJ e pesquisador associado ao Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade (Cevis) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj, Brasil) e ao Sociofilo - (Co)Laboratório de Teoria Social da UFRJ. É doutor em sociologia e mestre em sociologia e antropologia pelo PPGSA da UFRJ e graduado em ciências sociais pela Uerj. </P>
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