DOI: https://doi.org/10.35520/flbc.2009.v1n1a17154

ISSN:1984-7556


A estetização do erotismo em Caio Fernando Abreu


Rafaela Simões*


Ao elegermos a temática erótica como objeto de estudo, arriscamo-nos a perder o foco da análise ou privilegiarmos ques- tões extraliterárias. Quando o assunto envolve homoerotismo o risco se amplia, uma vez que a abordagem pode gerar equívocos interpretativos passíveis de reduzir uma rica obra ficcional a texto supostamente panfletário.

Tal ressalva nos ajuda a pensar que, para darmos a devida importânciaànarrativade Caio Fernando Abreu, precisamosatentar para os aspectos propriamente estéticos. É o que tentamos aqui por meio da análise do conto “Sargento Garcia” (1982), em esforço para demonstrar o rendimento literário do processo de transformação e autodescoberta trilhado pelo protagonista Hermes, a partir de sua iniciação sexual com o personagem-título, Sargento Garcia.

Comecemos trazendo a advertência de Afrânio Coutinho de que não se deve confundir a apreciação de material literário com qualquer valoração ética ou moral:


Confundir as duas esferas [ética e estética] é que nos conduz a toda sorte de fanatismos [...]. A crítica literária, à qual cabe o julgamento estético das obras literárias, não pode subordinar-se a qualquer outro corpo de valores senão os estéticos (1979, 34).


* Graduanda em Letras (UFRJ).



O texto erótico se caracteriza por representar o fenômeno cultural da sexualidade através do trabalho com a linguagem. De acordo com Jesus Antônio Durigan, “o erotismo não imita a sexualidade, ele é sua metáfora. O texto erótico é a representação textual dessa metáfora” (1986, 8).

Ao se vincular à representação metafórica, a manifestação do erotismo se distingue essencialmente da mera pornografia. Esta, por sua vez, limita-se a simples descrição de atos despida de qualquer preocupação estética, portanto sem interesse para os estudos literários.

Narrado em primeira pessoa, o conto de Caio evidencia um desdobramento do narrador em “eu narrante” e “eu narrado”, estabelecendo assim uma mediação em que os eventos vividos se organizam por meio da consciência do narrador no momento da enunciação. O relato das experiências é feito em tom confessional, mediante o qual o enunciador descreve percepções provocadas pela experiência no contato com o elemento externo.

Sobre tal prática, afirmou Michel Foucault:


Para nós, é na confissão que se ligam a verdade e o sexo, pela expressão de um segredo individual. [...] A confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala coincide com o sujeito do enunciado (1988, 61).


De fato, no conto em questão a consciência do protagonista marca fundamentalmente a expressão de sua subjetividade e o leva a confessar – por meio do discurso interior – as sensações e efeitos provocados pela experiência. A escassez de diálogos entre os personagens confirma a importância da voz interna do narrador.



É por intermédio da verbalização do pensamento do sujeito narrante que se percebe a natureza empírica da realidade exterior, a experiência transformada em discurso.

A angústia evidenciada pelo personagem em sua iniciação num novo mundo revela o conflito entre a vontade e o receio. Tal fato se torna ainda mais visível nos momentos em que há uma confluência de ações, memórias e percepções que, juntas, conferem densidade ao discurso, ratificando a desordem provocada pela experiência transgressora:


Pegou na minha mão. Conduziu-a até o meio das pernas dele. Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase es- tourando a calça verde. Moveu-se quando toquei, e inchou mais. Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-exci- tadas. Meu primo gritou na minha cara: maricão, mariquinha, quiáquiáquiá (p. 85).


O desenvolvimento da manifestação erótica atinge seu auge a partir do efetivo enlace de Hermes com Sargento Garcia. O uso de recursos estilísticos ligados ao campo dos sentidos se soma à assunção da perspectiva narrativa de Hermes para construir uma atmosfera em que a intensidade dos acontecimentos se revela através de sensações decorrentes da entrega ao outro.


Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre a minha boca. Ele empurrou, gemendo. Sem querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta (p. 88).



A representação metafórica manifesta o encontro do “eu” com sua própria identidade, num momento de autodesco- berta. As imagens transformadas em metáforas se tornam sím- bolos a relacionarem experiência externa e sensações interiores. A imagem da lanterna, envolvida em um campo semântico de luz, claridade e razão, contrapõe-se à imagem da caverna, em que as trevas representam a ignorância e o desconhecido. À medida que a luz penetra a obscuridade, Hermes passa a visualizar o que antes pertencia a um mundo desprezado.

Da mesma forma, as representações simbólicas da realidade exterior revelam o estado de espírito do protagonista, que, a partir da entrega ao outro, demonstra naturalidade, como se se sentisse livre do peso que sua confusa consciência carregava até então. Ao lavar as ruas, a chuva é igualmente símbolo a purificar o interior de Hermes:


Vai chover amanhã, pensei, vai cair tanta água e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas (p. 90).


É possível, portanto, observar que a experiência de entrega ao outro se torna motivação para um movimento de mudança dos aspectos narrativos, fazendo do erotismo uma temática com grande potencial literário. Para além da simples representação, Caio Fernando Abre se mostra ficcionista imune a rotulações, o que nos permite perceber plenamente o valor de sua verve.


Referências


ABREU, Caio Fernando. “Sargento Garcia”. In: . Morangos mofados. [1982]. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

COUTINHO, Afrânio. Erotismo e literatura (O caso Rubem Fonseca).

Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.

DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1986.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.