BIBLIOTECONOMIA:UMA PROFISSÃO DEFINIDA PELA TEORIA DAS PROFISSÕES
RESUMO: Este artigo apresenta, inicialmente, algumas correntes da teoria das profissões a partir da leitura de Dubar, Rodrigues e Freidson, trazendo a discussão para o profissional bibliotecário. O objetivo é mostrar a profissionalização de acordo com duas correntes teóricas, funcionalismo e interacionismo. Metodologicamente, este trabalho envolveu uma abordagem qualitativa, de caráter indutivo, sendo um estudo empírico, humano e social, de natureza exploratória. Tratando-se de um estudo do tipo bibliográfico e exploratório. Em um primeiro momento, destacam-se as definições e características das profissões, em seguida são apresentados alguns pontos de vista da sociologia das profissões, mais especificamente sobre profissionalização, poder das profissões, desprofissionalização e proletarização. Por fim, tenta-se mostrar como pode-se inferir que a Biblioteconomia, embora com suas peculiaridades e características ainda bastante tecnicistas, tem sua identidade como profissão definida pela teoria da Sociologia das Profissões.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria das Profissões. Funcionalismo. Interacionismo. Profissão Bibliotecária.
ABSTRACT: This article initially presents some trends in the theory of professions taken from a reading of Dubar, Rodrigues, and Freidson, and discusses them in relation to professional librarians. The objective is to demonstrate professionalization according to two theoretical perspectives: functionalism and interactionism. Methodologically, this work involved a qualitative approach of an inductive character, being an empirical, human and social study, of exploratory nature. This is a bibliographic and exploratory study. First, the definitions and characteristics of the professions are highlighted, followed by some points of view on the sociology of the professions, more specifically on professionalization, power of professions, de-professionalization, and proletarianization. Finally, we attempt to show how it can be inferred that Library Science, even though its peculiarities and characteristics are still quite technical, has its identity as a profession defined by the theory of the Sociology of Professions.
Keywords: Theory of Professions. Functionalism. Interactionism. Librarian Profession.
1 Introdução
Várias características são levantadas na teoria da Sociologia das Profissões para definir o que é uma profissão. Nesta revisão de literatura são apresentadas essas características de acordo com as correntes do Funcionalismo e do Interacionismo. Com base em Dubar, Rodrigues e Freidson, é tratada a questão da profissionalização, bem como o poder das profissões, a desprofissionalização e/ou a proletarização. Essa discussão se insere, ainda, no contexto da Biblioteconomia e do desenvolvimento desta profissão no Brasil.
Metodologicamente, este trabalho envolveu uma abordagem qualitativa, de caráter indutivo, tratando-se de um estudo empírico, humano e social, de natureza exploratória, na qual foi adotada a lógica da análise fenomenológica.
No desenvolvimento do estudo foram adotadas como etapas do processo metodológico a pesquisa do tipo bibliográfico (quanto ao material utilizado para obter conteúdo que permitisse a formação do embasamento) e a pesquisa de tipo exploratório (quanto aos objetivos pretendidos de apresentar algumas correntes da teoria das profissões a partir da leitura de Dubar, Rodrigues e Freidson e mostrar a profissionalização de acordo com duas correntes teóricas: funcionalismo e interacionismo).
Assim sendo, neste artigo são apresentadas as definições e características das profissões, que são a profissionalização e a formação especializada, resposta às necessidades sociais, associações profissionais, códigos de conduta ética, desenvolvimento de conhecimento e sua aplicação, motivação econômica.
Também são apresentadas as principais correntes da teoria das profissões, que são as correntes funcionalistas com suas tentativas de definir um “tipo ideal” de profissão e as correntes interacionistas, compreendendo a ideia da profissionalização como um processo natural de afirmação de ocupações.
Por fim, é destacado o desenvolvimento da profissão da biblioteconomia no Brasil, que teve seu início com forte influência norte-americana, sendo sua origem, portanto, eminentemente técnica e distanciada da cultura geral e humanística.
Em 1970 formou-se outra preocupação na área, relacionada com a formação de pessoal e que introduziu uma perspectiva diferente. Houve significativa melhoria para a profissão no país. Entretanto, mesmo sendo a Biblioteconomia uma das profissões mais antigas, não atingiu, em termos de Brasil, suficiente maturidade teórica e prática e, no presente momento, face à globalização da informação, torna-se cada vez mais uma profissão nebulosa e pouco discernível.
Mas, embora com suas peculiaridades e características ainda bastante tecnicistas, tem sua identidade como profissão definida pela teoria da Sociologia das Profissões. Ou seja, a Biblioteconomia é definida como profissão de acordo com as características apresentadas pelas correntes do Funcionalismo e do Interacionismo na Sociologia das Profissões.
2 Metodologia
Quanto ao tipo de pesquisa, pode-se dizer que há metodologias de abordagem qualitativa que buscam o sentido que um discurso verbal possibilita e também há a abordagem quantitativa que busca compreender o que significa a frequência de manifestação de um dado fenômeno. No estudo foi adotada a abordagem qualitativa.
Além disso, diferentemente do método dedutivo no qual as explicações surgem de várias alternativas de resposta até que uma delas seja deduzida como a correta, conforme uma teoria já existente sobre o assunto, esta pesquisa é de caráter indutivo, no qual o pesquisador parte de uma base de ideias em busca de uma resposta, ou seja, induz para uma resposta de forma a ir compondo uma explicação.
Também pode ser denominada como uma pesquisa empírica, humana e social, de natureza exploratória. Nesse tipo de pesquisa, Teixeira (2005) destaca que o pesquisador procura usar a lógica da análise fenomenológica, ou seja, da compreensão dos fenômenos pela sua descrição e interpretação. As experiências pessoais do pesquisador são elementos importantes na análise e compreensão dos fenômenos estudados.
Dessa forma, a pesquisa qualitativa permite a análise e interpretação dos dados com base em um referencial na literatura que possibilita a apresentação dos resultados de forma reflexiva e teoricamente fundamentada. Visa ampliar a compreensão que o pesquisador tem do fenômeno investigado, de acordo, principalmente, com o estudo, neste caso, da teoria das profissões. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que parte de um paradigma fenomenológico.
Segundo Braga (2007), o paradigma fenomenológico parte da premissa de que a realidade social também está dentro do pesquisador e, por isso, a ação de investigá-la gera também um efeito sobre ela. Isso significa que a subjetividade do indivíduo, tanto do pesquisador quanto dos textos estudados na pesquisa, deve ser levada em consideração.
Portanto, no desenvolvimento do estudo foram adotadas como etapas do processo metodológico a pesquisa do tipo bibliográfico (quanto ao material utilizado para obter conteúdo que permitisse a formação do embasamento) e a pesquisa de tipo exploratório (quanto aos objetivos pretendidos de apresentar algumas correntes da teoria das profissões a partir da leitura de Dubar, Rodrigues e Freidson e mostrar a profissionalização de acordo com duas correntes teóricas, funcionalismo e interacionismo).
3 Definições e características das profissões
Através de estudos de Dubar (2005) é possível fazer um resgate histórico da origem e do desenvolvimento das profissões na sociedade e da função e/ou missão social destas. Destaca-se a origem do termo “profissão” derivado da chamada “profissão de fé” cumprida nas cerimônias rituais de admissão nas corporações instituídas em meados do século XV, ritos de juramento do cumprimento de deveres que permanecem até hoje na formação profissional, assim como os segredos de relações e transações entre clientes e profissionais. Também são diferenciados os termos Ofício e Profissão. Enquanto o Ofício é associado à ideia de trabalho braçal e mecânico, a Profissão seria desenvolvida pelo intelecto e, portanto, seria mais bem reconhecida pela sociedade.
Rodrigues (1997) explica que na tentativa de entender e conceituar as profissões e responder questões – como o que é uma profissão, que traços ou características as distinguem de outras ocupações –, surgiram várias teorias para buscar tais respostas.
Em uma vertente de discussão amparada pelo funcionalismo, vários autores concentraram esforços para definir um “tipo perfeito” ou “ideal” de profissão através da classificação de suas características para verificar se estas se aproximavam ou se afastavam do “modelo ideal”.
Rodrigues (1997), ao citar Carr-Saunders e Wilson, diz que as características necessárias para a profissionalização seriam a formação especializada, resposta às necessidades sociais, associações profissionais, códigos de conduta ética, desenvolvimento de conhecimento e sua aplicação, profissões orientadas por motivação econômica conforme a teoria do utilitarismo. Tais questões seriam necessárias para uma profissão porque seria a sociedade que concederia às profissões autonomia em troca da capacidade de controle.
No âmbito dessa discussão, vários autores funcionalistas buscaram sintetizar a abordagem funcionalista em três pressupostos definidores do conceito de profissão: estatuto profissional fundamentado em valores e ética de serviços; reconhecimento social da competência fundamentada em formação longa; instituições profissionais voltadas para as necessidades sociais.
Conforme Dubar (2005), a profissionalização está pautada em três fundamentos principais: Especialização, Associações e uma Teoria Sistematizada, caracterizada por uma formação intelectual longa. Além disso, a profissionalização se dá em três fases distintas: engajamento, afirmação ou consolidação de uma identidade, e busca de determinados Modelos de Referência.
Numa tentativa de síntese das abordagens funcionalista e interacionista, a profissão é entendida por Rodrigues (1997) como uma ocupação que exerce autoridade e jurisdição exclusiva sobre uma área de formação ou conhecimento. Tanto o conhecimento técnico quanto o científico podem servir de base para o profissionalismo. Nesse processo de profissionalização vai-se do amadorismo para a ocupação por inteiro. Esse processo seria controlado através da formação institucional, amparado pelas associações profissionais e pela proteção legal, sendo também orientado pelo código de ética.
Em contrapartida, Rodrigues (1997) destaca o ponto de vista de Abbott ao considerar que evidências empíricas de algumas pesquisas provariam que as profissões evoluem em muitas direções, a ritmos e com consequências diferentes aos níveis local/nacional, mostrando que o processo de profissionalização não ocorre de forma unilinear e que várias questões de valores e de ética também são variáveis conforme os diferentes contextos histórico-sociais.
Na opinião de Freidson (1999), o profissionalismo seria o processo pelo qual uma ocupação poderia obter o direito exclusivo de realizar um trabalho, seu controle, acesso e a forma de realizá-lo. Pela complexidade que envolve o processo de profissionalização, o problema de definição de profissão, conforme o autor, não pode ser resolvido pelos esforços para formular uma definição única que se espere vir a ser aceita globalmente.
Seja como for, existe sempre uma base na responsabilidade social, ou seja, a função social do profissional de dar um retorno à sociedade através da produção de conhecimentos a serem aplicados ou da prestação de serviços. No fim, todas buscam atender às necessidades sociais.
4 Principais correntes da teoria das profissões
Nos textos de Dubar (2005) é possível verificar as correntes funcionalistas com suas tentativas de definir um “tipo ideal” de profissão por meio de determinadas características, e também as correntes interacionistas compreendendo a ideia da profissionalização como um processo natural de afirmação de ocupações. O autor também trata da burocratização das carreiras através do diploma conquistado por uma formação institucionalizada que permite legitimar o poder interno da profissão.
Além disso, destaca a questão do fechamento do espaço profissional através do monopólio do conhecimento que caracteriza o poder das profissões. Demonstra como as relações de trabalho encontram-se associadas à relação salarial e profissional que correspondem aos poderes de capital e de saber. Ademais, apresenta os modelos de profissão: operário e oficial, fundamentados na burocratização das instituições e o modelo físico e/ou profissional, fundamentado na expertise e em seu poder como especialidade. Dubar (2005) formula uma hipótese de polarização das qualificações, onde cada modelo corresponde a uma configuração particular em busca da construção, reprodução e transformação das qualificações profissionais.
Conforme Rodrigues (1997), no final da década de 60, o funcionalismo começa a ser fortemente criticado devido ao contexto social e ideológico da época, marcado pelo antiprofissionalismo. Considerava-se que as profissões delimitavam o mercado de trabalho e detinham monopólio sobre as áreas do conhecimento. Nesse contexto, a ética profissional era entendida como uma forma de silenciar críticas acerca de tais monopólios, privilégios e poder. A partir dessa discussão surgem as críticas mais duras ao conceito de profissionalismo; trata-se da desprofissionalização e/ou proletarização.
Segundo Rodrigues (1997), desprofissionalização é a perda, pelas ocupações profissionais, das suas qualidades únicas, seu monopólio do conhecimento, sua autonomia no trabalho e sua autoridade sobre o cliente, devido à crescente divisão e especialização na formação educacional (fragmentação do conhecimento), às novas tecnologias, à informação disponível para todos que souberem recuperá-la, e à massificação e aumento numérico de diplomados sem qualidade de ensino.
Proletarização, conforme Rodrigues (1997), é a transformação dos profissionais, ao adentrarem as organizações, em assalariados sem controle sobre o processo e o produto do seu trabalho. Estes estariam sendo comandados pelo poder burocrático-administrativo capitalista, enquanto a gestão estaria retendo o conhecimento do processo de produção, reduzindo os trabalhadores em meros executantes do trabalho.
Freidson (1999) critica as duas correntes de discussão. Este considera que as instituições utilizadas pelos profissionais para manter o controle sobre a formação se mantêm intactas e que o poder profissional não foi fortemente afetado pelas transformações sociais.
Dubar (2005) também discute questões de desprofissionalização considerando a perda, pelas ocupações profissionais, das suas qualidades únicas, seu monopólio do conhecimento, sua autonomia no trabalho e sua autoridade sobre o cliente, além da transformação dos profissionais, ao adentrarem as organizações, em assalariados sem controle sobre o processo e o produto do seu trabalho.
Segundo Rodrigues (1997), outros autores por ele citados (Derber e Schwartz, Meiksins, Watson e Meikins, Smitth, Crawford, Whalley, Zussman, Duprez) criticam as teses de proletarização afirmando que, mesmo assalariados, os profissionais inseridos em organizações continuariam tendo o poder de autonomia, podendo controlar a seleção de casos ou clientes, horas e ritmo de trabalho, técnicas e procedimentos empregues.
Em função dessas discussões, buscou-se a revisão dos estudos sobre profissões e suas instituições, pois considerava-se que os primeiros sociólogos teriam seguido suas próprias ideologias (interesses dos grupos profissionais), fazendo defesa aos próprios interesses para justificar a situação de privilégio, poder e monopólio que possibilitavam o controle da sociedade a qual supostamente serviam.
Segundo Rodrigues (1997), na teoria do interacionismo a profissionalização é entendida como um processo natural de afirmação de ocupações e também aborda a ética profissional como um pressuposto desse processo. Nessa teoria é considerado mais importante identificar as circunstâncias que levaram uma ocupação a se tornar uma profissão do que definir o que é uma profissão.
As escolas e os professores são identificados como instituições centrais nos processos de profissionalização, pois são estas que conferem as licenças permitindo a atuação profissional. Assim, as profissões são ocupações que adquirem e mantêm a posse de títulos. Outra característica relevante nesse processo, apontada por Richardson, seria a competição inter-profissional.
Um dos principais autores dessa corrente é Freidson (1999). O autor parte da problemática sobre definir o que é profissionalização e apresenta uma análise de caráter fenomenológico, buscando pela essência do fenômeno, o contexto histórico e ideológico das profissões que, em processo de profissionalização, formam um sistema e se influenciam dependendo sempre do capital e do poder político, bem como do reconhecimento pela sociedade.
Nesse sentido, seria necessário evitar o uso de alguma definição fixa e, em vez disso, examinar as diversas perspectivas sobre as ocupações chamadas profissões, ou ainda criar um construto intelectual que permita usar um único padrão para apreciação de diversos estudos comparativos e fenomenológicos. O caráter fenomenológico de uma profissão, então, não é determinado unicamente pelos membros de ocupações que realizam seu trabalho de modo a levar outros a tratá-los como profissionais.
Logo, surge outra questão para nortear uma nova discussão: até que ponto as profissões dominam? Para Freidson (1999), uma profissão é um tipo de ocupação que se distingue das outras por seu conhecimento e competência especializados, que são necessários para a realização das tarefas numa divisão de trabalho.
Esse conhecimento é adquirido através de uma formação especializada que é dada pelo ensino superior, sendo o monopólio desse conhecimento uma condição para se ter acesso ao mercado de trabalho. O controle rigoroso da formação e do exercício profissional é a base do poder das profissões e dos privilégios que são garantidos pelas universidades, pelas associações profissionais e pelo Estado.
Freidson (1999) destaca três pilares necessários para o poder das profissões: a autonomia, onde o trabalhador individual, soberano e decide sobre o próprio trabalho; a expertise, que é o monopólio do conhecimento abstrato; e o credencialismo, que permite o controle institucionalizado, de modo que as profissões possam controlar o acesso aos domínios, julgar e solucionar os problemas que surgirem.
Com essa discussão, Freidson (1999) propõe que se veja a divisão do trabalho como um processo de interação social limitado pela própria organização social. Apresenta três modelos diferentes de análise da divisão do trabalho: trata-se do modelo econômico clássico de Adam Smith, o modelo ecológico de Émile Durkheim e o modelo organizacional e ocupacional de Max Weber.
Primeiramente, fundamentando-se em Smith, Freidson (1999) apresenta a divisão do trabalho em duas formas distintas: produtiva, envolvendo tarefas mutáveis, demanda do trabalho e trabalhos individuais; e não produtiva, abrangendo tarefas estabilizadas, papéis sociais e grupos sociais. Freidson também faz uma abordagem um pouco mais socialista, apresentando o ponto de vista de Durkheim, o qual considera que a divisão do trabalho é essencialmente um fenômeno social e trata-se do rateio das funções, ou seja, da especialização.
Desse modo, não é a diferenciação lógica ou funcional de tarefa que constitui a realidade histórica da especialização, mas a diferenciação social do trabalho produtivo que é interpretada como diferenciação de tarefa. Freidson também apresenta considerações pautadas em Weber, que compreende a divisão do trabalho racionalmente e de forma burocrática, na qual, numa instituição ou sociedade planificada, uma inteligência monocrática planeja em detalhes formais e racionais qual será cada tarefa e quem estará qualificado para realizá-la.
Nessa discussão, todos os autores apresentados reconhecem o poder das profissões, mas o debate se divide entre aqueles (Galbraith, Touraine, Bell, Freidson) que consideram a importância crescente da ciência, do conhecimento científico e das profissões como forma de organização social, valorizando positivamente o poder profissional conforme Freidson (1999), e aqueles (Larson, Foucault, Derber e Schwartz, Johnson, Bourdieu) que “prospectivam a sua erosão”, ou seja, valorizam negativamente tal poder, de acordo com Freidson (1999).
5 A Profissão da biblioteconomia no Brasil
O campo das práticas bibliotecárias, segundo Souza (2009), começou a se desenvolver no Brasil no século XVI através da organização das coleções de livros que estavam começando a formar as primeiras bibliotecas dos colégios jesuíticos instalados no país naquela época. Entretanto, conforme o autor, o Brasil pouco se destacou pelos grandes movimentos voltados à transmissão e transformação de sua cultura através de canais formais de comunicação nos anos que antecederam o século XX. Isso se deve à tradição portuguesa que durante séculos valorizou pouquíssimo a transformação do mundo material por meio de saber científico e saber técnico (SOUZA, 2009).
Partindo daí, e para entender como se desenvolveu a Biblioteconomia no Brasil no século XX, Souza (2009) considera alguns fatos marcantes na área em questão. Primeiramente destacam-se: a) a vinda da base do acervo da Biblioteca Nacional (BN) por meio da chegada da corte portuguesa em 1808; b) as inovações tecnológicas aplicadas ao catálogo do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro; c) as iniciativas de intelectuais brasileiros em melhorar a BN e d) a contínua melhoria da Biblioteconomia no Brasil como recurso para a capacitação de profissionais para atuação em bibliotecas num primeiro momento, e em informação científica e técnica no momento seguinte.
Segundo Souza (2009), com relação aos primeiros 15 anos do século XX, o fato mais marcante visando proporcionar a capacitação de pessoal especializado foi a criação, em 1911, e posterior extinção, em 1922, do Curso de Biblioteconomia da BN que, inclusive, viria a ser aberto nove anos depois com várias alterações curriculares.
Já no fim dos anos de 1920 e primeiros anos da década de 1930 predominou a influência norte-americana, que trouxe como consequência a criação da Escola de Biblioteconomia da divisão de bibliotecas da Prefeitura Municipal de São Paulo em 1936, sob uma orientação enfaticamente tecnicista e de caráter racional.
Segundo o autor, no fim da década de 1940 o Brasil já contava com cinco cursos direcionados à formação de bibliotecários. Em 1950 foi lançada, através da Fundação Getúlio Vargas, a Bibliografia Econômica Social.
Além disso, houve um crescente desenvolvimento técnico e científico que se concretizou por meio de eventos e congressos acadêmicos e, em 1954, deu-se a criação do Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), que mais tarde seria transformado em Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT).
De acordo com Souza (2009), ainda em 1959, os bibliotecários, que desde a década anterior lutavam pela definição de símbolos atribuidores de status para a profissão no Brasil, conseguiram, por fim, o reconhecimento pelo Ministério do Trabalho.
Nesse período, a Biblioteconomia estava em crise, alertava Lasso de la Veja, segundo Castro (2000). A origem da Biblioteconomia estava na formação do bibliotecário, eminentemente técnica e distanciada da cultura geral e humanística, o que requeria urgentes reformas a fim de atender ao crescimento da ciência e das fontes de saber. Os motivos desta crise eram diversos. Conforme Castro (2000), entretanto, os mais evidentes pareciam ser:
a) Ausência de um currículo mínimo;
b)Supostamente a “incapacidade dos bibliotecários” em acompanhar
tecnicamente a acelerada produção científica mundial;
c) Baixo reconhecimento social do papel do bibliotecário;
d) Ensino eminentemente técnico.
De acordo com Souza (2009), as duas vertentes da educação em Biblioteconomia no Brasil (França e Estados Unidos) se unificaram na década de 1950, dando origem ao “ensino predominantemente técnico” e de formação generalista que continuou nos anos seguintes, a fim de atender ao crescimento das necessidades que o desenvolvimento econômico requeria. Por isso, ainda conforme o autor, no início dos anos 1960 havia dez cursos de Biblioteconomia em funcionamento. No final da década, esse número atingiu 18 cursos.
Castro (2000) aponta que até 1962 os bibliotecários brasileiros encontravam-se no dilema de não terem garantidos os seus direitos pela ausência de uma lei que regulamentasse a profissão. Era o que faltava para consolidar os avanços que vinham ocorrendo, mesmo timidamente, desde os anos 1930: ampliação do número de escolas e associações de classe, organização de eventos científicos e reconhecimento da Biblioteconomia como profissão de nível superior, dentre outros. Assim, com o objetivo de terem sua profissão reconhecida, os “bibliotecários-líderes” utilizaram-se de favores políticos para alcançarem essa finalidade, julgada mais que necessária e imprescindível para o exercício da profissão (CASTRO, 2009).
Ainda de acordo com Castro (2000), com a aprovação da Lei 4084/62 que regulamentou a profissão do bibliotecário, entendeu-se que o exercício da profissão bibliotecária tinha as seguintes finalidades: a) resguardar e garantir o mercado de trabalho; b) legalizar e estruturar de modo eficiente o “cartório profissional” através da criação dos Conselhos de Classe; c) dar ao ensino de Biblioteconomia respaldo legal, equiparando-o as demais carreiras de nível superior e; d) conquistar a valorização de status profissional reivindicado pelos bibliotecários.
Todavia, a lei tão esperada não garantiu o alcance desses objetivos e muito menos contribuiu para minimizar os problemas que afetam a Biblioteconomia brasileira: a integração entre os bibliotecários e ausência de divulgação ampla e real da Biblioteconomia. Além da falta de divulgação, o maior problema da Biblioteconomia brasileira estava na ausência de nomenclaturas para definir o campo e os profissionais que dele fazem parte.
De qualquer forma, é necessário lembrar que, em grande parte, o mérito da aprovação da Lei 4084/62 é da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB), por ser a instituição agregadora de todas as associações de classe que impulsionaram, direta ou indiretamente, o reconhecimento da profissão do bibliotecário e a inclusão da Biblioteconomia entre as carreiras de nível superior.
Além de congregar todas as associações de classe, a proposta da FEBAB consistia em solucionar problemas biblioteconômicos de diversas naturezas, dentre elas: intercâmbio profissional e associativo, divulgação dos assuntos de interesse dos bibliotecários e estabelecimento de um Código de Ética Profissional (CASTRO, 2000).
Segundo Castro (2000), caberia à FEBAB: a) contribuir para a solução dos problemas relativos à Biblioteconomia, quer fosse nacional ou local; b) prestar assistência direta às associações filiadas; c) atuar como centro de documentação e informação das atividades biblioteconômicas no país; d) congregar as Associações Bibliotecárias do país com o objetivo de defender a classe.
Com base em Souza (2009), pode-se perceber que, desde 1970, formou-se outra preocupação na área, relacionada com a formação de pessoal e que introduziu uma perspectiva diferente. Houve significativa melhoria dos cursos de graduação através do apoio desenvolvido pela assessoria de planejamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Nessa década, começaram a ser implantados os Cursos de Mestrado na área, com a denominação de Ciência da Informação (IBBD) e Biblioteconomia (UFMG, PUCCAMP, UFPB E UNB). Devido à implantação dos cursos de mestrado, também passaram a ser realizadas pesquisas, especialmente aquelas direcionadas para a produção das dissertações com vistas à obtenção da titulação, que contribuíram significativamente na melhoria do ensino de Biblioteconomia no país.
Segundo Castro (2000), a especialização na Biblioteconomia se dá, portanto, com a criação do IBBD, fazendo surgir uma outra polêmica que “coloca à baila o campo da Biblioteconomia”, agora em torno da Ciência da Informação, que transcendia tanto este campo como a Documentação.
Com a expansão do ensino, o crescimento da produção científica nacional, a criação do IBBD e a ampliação do campo universitário, os bibliotecários buscam a especialização na perspectiva de se igualarem aos cientistas e pesquisadores, sendo sua atividade principal a elaboração de Bibliografias. Assim, as bibliotecas universitárias e especializadas tornaram-se o locus privilegiado de atuação profissional, uma vez que as demais bibliotecas ficariam a cargo dos bibliotecários generalistas. Com essa mudança de perfil, os bibliotecários acreditavam que atingiriam valorização e status profissional na medida em que contribuiriam para o desenvolvimento da ciência nacional (CASTRO, 2000).
Todavia, esse avanço pouco significava uma vez que a Biblioteconomia ainda não era uma profissão reconhecida legalmente. Para sanar essa deficiência, os bibliotecários apadrinharam-se com políticos, notadamente os paulistas representados pela FEBAB, na figura de Laura Russo, a quem é atribuída a redação do anteprojeto que resultou na Lei 4084/62.
Para dar maior respaldo à carreira, além dessa lei, os bibliotecários lutam para incorporar a Biblioteconomia no campo universitário, de modo a garantir e dar respaldo acadêmico e científico à área, igualando-se a Medicina, Direito e Engenharia, carreiras que os bibliotecários tomavam como parâmetros de comparação. Para tanto, fazia-se necessário estabelecer um currículo mínimo que uniformizasse os saberes escolares e eliminar as dicotomias e diversidades entre as escolas e cursos.
Segundo Castro (2000), a Biblioteconomia no Brasil se estabeleceu para resolver problemas de bibliotecas escolares (Mackenzie College), públicas (Mário de Andrade) e da Biblioteca Nacional. Portanto, não houve pretensões mais amplas, isto é, de estabelecer um corpo teórico e atender às necessidades sociais mais vastas. Dessa forma, a Biblioteconomia atingiu estabilidade como campo, sem, contudo, refletir em torno das necessidades e perspectivas informacionais do público e das bibliotecas de um país extremamente desigual.
Mesmo sendo a Biblioteconomia uma das profissões mais antigas, não atingiu, em termos de Brasil, suficiente maturidade teórica e prática. No presente momento, face à globalização da informação, ao acelerado crescimento da produção científica e tecnológica e à crise nos paradigmas em todos os campos do saber humano, torna-se cada vez mais uma profissão nebulosa e pouco discernível (CASTRO, 2000).
Por fim, com esses dados, nota-se que a conjuntura social, econômica e política do país é capaz de influenciar e orientar as práticas profissionais. No Brasil, a Biblioteconomia começou a firmar-se com mais força a partir da década de 1950, quando condições materiais se encontravam estabelecidas para que a Biblioteconomia como profissão pudesse se tornar uma realidade mais consolidada. Logo, uma parte dos profissionais bibliotecários passou a contar com mais condições de aprimoramento acadêmico e profissional.
Neste contexto do desenvolvimento da profissão da Biblioteconomia no Brasil, é possível observar a presença de várias características utilizadas nas correntes funcionalistas e interacionistas da Sociologia das Profissões para definir ou conceituar uma profissão.
Percebe-se, por exemplo, os esforços concentrados para a criação e melhoria dos cursos de Biblioteconomia, e o ensino desta de acordo com a ideia da necessidade de uma teoria sistematizada, caracterizada por uma formação intelectual longa que requer uma profissão, bem como das motivações para os programas de pós-graduação, permitindo a especialização deste profissional.
Outra característica é o estatuto profissional fundamentado em valores e ética de serviços, considerando a implantação de instituições profissionais voltadas para as necessidades sociais. Nesse caso, também, a Biblioteconomia não foge à regra. As temáticas abordadas nos eventos desta profissão estão fortemente ligadas às questões de gestão.
Algumas pesquisas recentes, apresentadas nos textos do Primeiro Simpósio Brasileiro de Ética da Informação realizado em 2010, apontam para o crescente aumento do interesse desta categoria profissional nas questões relacionadas à função social do bibliotecário, em especial ao que concerne a ética da informação (direito autoral, liberdade de expressão, plágio, divulgação científica, desenvolvimento de políticas capazes de viabilizar o acesso à informação sem discriminação, a relação da ética com a gestão e com os rápidos fluxos da informação, etc.), assuntos decorrentes do advento das novas tecnologias da sociedade da informação.
Desta forma pode-se inferir que a Biblioteconomia, embora com suas peculiaridades e características ainda bastante tecnicistas, tem sua identidade como profissão definida pela teoria da Sociologia das Profissões, o que não poderia deixar de ser, uma vez que estas correntes teóricas buscam justamente o entendimento do processo ou da forma pela qual se dá a constituição das profissões na sociedade.
6 Considerações finais
Com base nas correntes teóricas da Sociologia das Profissões, com fundamentos em Dubar, Freidson e Rodrigues, pode-se afirmar que as profissões constituem um segmento específico de representação da força de trabalho, como um tipo de ocupação que consegue especial atenção da sociedade. As profissões, portanto, são formadas por grupos de pessoas com conhecimentos e competências específicas adquiridas através de formação longa e sistematizada. Esses grupos definem suas regras e as relações que estabelecem com a sociedade e com as outras profissões por meio de códigos de ética.
A profissão da Biblioteconomia fundamenta-se numa atividade intelectual, requer de seus membros a posse de um conhecimento, tem objetivos bem definidos, possui técnicas que podem ser comunicadas, possui uma organização própria e motivada (talvez não no princípio) pelo desejo de trabalhar pelo bem estar da sociedade. Ou seja, a Biblioteconomia é definida como profissão de acordo com as características apresentadas pelas correntes do Funcionalismo e do Interacionismo na Sociologia das Profissões.
Referências
BRAGA, K. S. Aspectos relevantes para a seleção de metodologia adequada à pesquisa social em ciência da informação. In: MUELLER, S. P. M. (Org.) Métodos para a pesquisa em ciência da informação. Brasília: Thesaurus, 2007. p. 17-38.
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FREIDSON, E. Renascimento do profissionalismo. São Paulo: EDUSP, 1999.
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SOUZA, Francisco das Chagas de. O ensino da biblioteconomia no contexto brasileiro: século XX. Florianópolis: EDUFSC, 2009.
TEIXEIRA, E. As três metodologias: acadêmica, da ciência e da pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2005.
LIBRARY SCIENCE: A PROFESSION DEFINED BY THE THEORY OF PROFESSIONS
Katiusa Stumpf
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3641-1066
Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
katiusa.stumpf.ks@gmail.com