Fotografias de Shoah: Reflexões sobre Imagem e Espectadores

Shoah PhotographsH: Reflections on Image and Spectators

Jairo Andre Marques Junior

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6568-8251

Graduando do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Email : jairojr@edu.unirio.br

Claudia Bucceroni Guerra

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8716-6967

Doutora em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT/UFRJ)

Email : guerracla@gmail.com

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo a reflexão sobre o uso e visualização das fotografias do Holocausto a partir da posição dos novos tipos de espectadores de imagens formados com a facilidade de acesso à informação sobre conteúdos de horror através da internet e o papel dos museus e memoriais para a educação deles. Os acervos disponíveis sobre os campos de concentração são formados, em sua maioria, por fotografias feitas no momento em que os soldados Aliados libertaram os prisioneiros. No entanto, com o passar das décadas, a ampla divulgação dessas imagens sem o devido cuidado com seus aspectos formais originais gerou problemas de contextualização, apagamentos e até um certo afastamento do olhar. A metodologia utilizada foi a pesquisa em banco de dados de Museus do Holocausto (United States Holocaust Museum e Yad Vashem) e consequente escolha de fotografias que exemplifiquem o objetivo proposto. Como aporte teórico para a análise das imagens foram consultados importantes autores da teoria fotográfica como Roland Barthes (1984), John Berger (2017) e Georges Didi-Huberman (2018, 2020).

PALAVRAS-CHAVE: Fotografia. Contexto. Campo de Concentração. Holocausto/Shoah. Acervo.

ABSTRACT: This article aims to reflect on the use and viewing of Holocaust photographs from the position of the new types of image viewers trained with the ease of access to information on horror content via the internet and the role of museums and memorials for their education. The collections available over the concentration camps are mostly made up of photographs taken at the time the Allied soldiers released the prisoners. However, over the decades, the wide dissemination of these images without due care for their original formal aspects has generated problems of contextualization, erasure and even a certain distance from the gaze. The methodology used was the search in the database of Holocaust Museums (United States Holocaust Museum and Yad Vashem) and consequently, the choosing of photographs that exemplify the proposed objective. As a theoretical contribution to the analysis of the images, important authors of the photographic theory were consulted, such as Roland Barthes (1984), John Berger (2017) and Georges Didi-Huberman (2018, 2020).

Keywords: Photography. Context. Concentration camp. Holocaust / Shoah. Collection.

1 Introdução

O momento da chegada dos soldados aliados aos campos de concentração, junto com jornalistas e fotógrafos, revelou ao mundo uma série de práticas cruéis e, até então, inclassificáveis, e o poder de destruição de uma nação voltada contra um povo indefeso, tratado e executado como seres desprovidos de humanidade. O apocalipse silencioso que assolou os judeus-europeus seria amplamente divulgado pela imprensa após a libertação dos campos entre 1944 e 1945, expondo uma face da Segunda Guerra Mundial que, mesmo em tempos modernos, é de difícil compreensão acerca de suas motivações.

Os museus do Holocausto têm, em propósito de criação, o objetivo de manter viva a memória de suas vítimas para que, por meio da denúncia e do questionamento, seja possível ressignificar esse período histórico para que as futuras gerações jamais esqueçam. Para isso, são utilizados arquivos que ilustram toda a memória apresentada pelos sobreviventes, tais como documentos, fotografias e filmes.

A importância da criação, permanência e manutenção dos Museus do Holocausto está associada à apresentação do evento para o público geral e a instrução de quem acessa esse tipo de conteúdo. Imagens de horror, como as apresentadas nos acervos sobre a Shoah1, competem hoje com inúmeras outras imagens semelhantes que compõem o modo de vida moderno em quantidade e velocidade de circulação. Segundo a ensaísta Susan Sontag (2004), esse tipo de conteúdo faz parte, hoje, do entretenimento doméstico. Essa afirmação se justifica ao observar que o consumo do infortúnio se faz, a todo momento, por meio de telejornais, jogos eletrônicos, filmes e outros diversos meios. A facilidade de acesso, seja pelo formato físico (jornais, revistas, etc.) ou digital (computadores, dispositivos móveis, etc.) supõe que a sociedade se acostumou com o sofrimento a ponto de torná-lo parte do seu dia-a-dia. Diante desse fato, se torna um desafio para os centros de memória levar ao público a experiência única e impactante que ressalte a importância de seus acervos. Para que não se torne apenas outra informação pesarosa, a utilização de todo o seu potencial para a reconstrução da memória entra em vigor, onde a utilização de imagens se torna um instrumento importante no processo de aprendizado.

A necessidade de revisitar os registros da Shoah para que sejam divulgadas ao grande público as memórias e as consequências dos atos do terrorismo nazista deriva da tentativa de não esquecimento do que aconteceu. Segundo o filósofo e historiador Georges Didi-Huberman (2020), essa ação seria um ato ético em respeito aos milhões de mortos, uma vez que se permite olhar para tudo o que se sabe sobre o Holocausto e, de maneira crítica, entender e questionar os erros do passado.

Mais do que a plena divulgação, o papel que os Museus do Holocausto possuem é o de aproximar os leigos do assunto, apresentar a história e causar impacto através da exploração dos registros disponíveis sem deixar de lado sua aplicação social, onde questões como preconceito, racismo e fascismo são levadas ao presente de quem vê.

2 O Problema dos acervos e museus

Os Museus do Holocausto, apesar de tratarem de um assunto específico, possuem diversas dificuldades em comum com outros tipos de museus e acervos. A gestão da informação visibilizando a transferência do saber de todo o conteúdo que possui para seus visitantes se torna um desafio quando colocado em planejamento. Pois é responsabilidade da instituição que trabalha com acervos sobre a Shoah que o espectador seja inserido em um ambiente onde possa, necessariamente, ter total entendimento sobre o tema, visibilizar plenamente os motivos, causas e consequências além de, obrigatoriamente, sofrer impacto suficiente para levar todo o aprendizado para a sua vida pessoal no que diz respeito ao convívio social e político.

Apresentar esse tipo de tópico para um público leigo ou que esteja inserido na cultura do horror como fonte de entretenimento pessoal exige um árduo trabalho dos gestores de instituições de memória para se adaptarem aos tempos modernos, onde a experiência oferecida no momento do consumo da informação visual se torna mais relevante que a própria temática. Traçar uma rota de apresentação que cumpra com os objetivos pensados para as coleções disponíveis exige pensar previamente nas práticas de seus usuários.

Ao pesquisar acervos físicos constituídos por imagens, um ponto que é possível destacar no momento da visita é a dispersão, que pode acontecer de diversas formas. Seja pela repetição do assunto, quando o visitante, já cauterizado sobre o tema, não consegue extrair novas informações ou ter novas emoções sobre o sofrimento das vítimas; pela falta de contextualização das imagens, quando, com a falta de notas ou de legendas elaboradas, não há conexão com a realidade que deveria ilustrar ou mesmo pela inexistência de uma prática eficaz de divulgação e apresentação do acervo, tornando difícil o acesso dos usuários.

Em ambientes digitais, não diferente do conteúdo físico, a falta de manutenção de websites pode ocasionar na tentativa frustrada de acesso ao conteúdo, onde arquivos estão sujeitos à exclusão e perda, seja por qualquer falha presente em servidores de armazenamento e, também, pela não atualização das páginas às novas tecnologias de navegação na internet.

Tais dificuldades cobram determinados posicionamentos: um melhor planejamento da base de dados e manutenção de acervo, unidos à adaptação do ambiente pela demanda de conteúdo interativo que permita ao usuário o aprendizado pela experiência e pelos impactos sentidos no momento de sua visita aos registros disponibilizados pelas instituições.

3 O Problema das imagens

A fotografia como fonte de estudo sugere a possibilidade de conectar o presente e o passado ao observar e compreender um mundo que não mais existe. Toda imagem carrega consigo as marcas do momento em que foi feito o disparo pela câmera fotográfica. São elas vestígios visuais que comprovam a presença de algo em determinado período temporal. Porém, por mais que sejam consideradas provas documentais, não são capazes de transmitir com autenticidade a essência do registro. Pois, ao confrontar uma imagem, o que chega ao espectador nada mais é do que a informação isolada de realidade palpável, onde a crença no teor de veracidade do registro se faz por meio do tratamento das informações apresentadas. Isso ocorre porque “toda fotografia nos apresenta duas mensagens: uma concernente ao evento fotografado e outra concernente a um choque de descontinuidade” (BERGER, 2017, P. 89).

Olhar e compreender uma fotografia do Holocausto requer conhecimento sobre o tema exposto e “senso histórico” para entender o que a imagem pretende representar. Para tal, a imagem necessita obrigatoriamente de uma legenda explicativa que assume a função de situar a foto em um contexto. A associação do visual com o textual reforça a autenticidade do que se vê, de forma que seja inquestionável e irrefutável. No entanto, a descontinuidade age no momento em que o significado criado no ato de ver e absorver a fotografia generaliza o evento e desvia o espectador de questionamentos do que deveria representar, o privando, de imediato, de pensar sobre o que ela ilustra e qual é a sua mensagem.

Na relação entre uma fotografia e palavras, a primeira anseia por uma interpretação, e as palavras normalmente a suprem. A fotografia, irrefutável como evidência, mas fraca em significado, ganha das palavras um significado. E as palavras, que por si mesmas permanecem no nível da generalização, ganham uma autenticidade específica por meio da irrefutabilidade da fotografia. (BERGER, 2017, P.92)

Tomamos como exemplo uma fotografia do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos:

A fotografia, mesmo com o suporte do elemento textual, não possui força o suficiente para transmitir sua origem. A descontinuidade da imagem separa rostos e histórias, uma vez que é generalizado o evento, se torna impossível captar suas mensagens e seu significado.

A legenda, que tem como função a transmissão rápida da referência temporal, se torna vaga quando assume o papel de expor informação específica. É impossível contar uma história em poucas palavras. E a interpretação, quando auxiliada apenas pelo uso da legenda, força a leitura da imagem longe da evidência fotográfica para se tornar parte do emocional particular do espectador. Isto é, o sentido se faz a partir do conflito de emoções entre a imagem exposta e quem a vê, em um sentido de “eu vejo, eu sinto, eu entendo”. Conforme os conceitos criados por Barthes (1980) em seu conhecido livro, A Câmera Clara:

Uma foto pode ser objeto de três práticas (ou três emoções ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o fotógrafo. O Spectator somos todos nós... E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto. (BARTHES, 1980, P.20)

As intenções da fotografia, teorizada por Barthes, propõem que toda fotografia surge através de uma intencionalidade prévia do fotógrafo (Operator) e que o objeto fotografado se torna uma personagem correspondente a um evento (Spectrum) aos olhos do espectador (Spectator). A exemplo, a fotografia de Juana Bormann, que faz parte de uma série de fotos de prisioneiros e ex-guardas do campo de concentração de Bergen-Belsen, expressa, em primeiro momento, que a intenção do fotógrafo foi documentar o rosto de todos os associados sobreviventes do campo de concentração antes do julgamento de seus crimes. Apesar de haver participação direta com o evento, a fotografia da mulher não tem força o suficiente para causar os mesmos sentimentos oferecidos pelas fotografias de corpos judeus sem vida. Um dos motivos que causam essa seletividade de importância é a estética do documento fotográfico. Uma imagem bonita, característica própria da ação do Operator sobre o objeto, não pode causar a mesma sensação que as imagens de horror, onde facilmente se encontram fotografados montes de corpos em decomposição.

Barthes opera com a questão do sentimento que pode uma imagem fotográfica mobilizar, ao afirmar que: “Como Spectator, eu só me interessava pela fotografia por “sentimento”; eu queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto, noto, olho e penso”. (BARTHES, 1980, P.39)

A utilização de legendas explicativas dá a ideia do lugar e do tempo, mas deixa brechas de interpretação pela falta de narrativa. A descontinuidade adiciona ao registro duplicidade de sentido entre o que pode ser rapidamente lido e o que necessita de tempo para ser compreendido. Segundo Berger (2017):

A descontinuidade sempre produz ambiguidade. Mas frequentemente essa ambiguidade não é óbvia, pois assim, tão logo as fotografias passam a ser usadas ao lado de palavras, elas juntas produzem um efeito de certeza, ou até mesmo de afirmação dogmática. (BERGER, 2017, P.92)

A comparação entre o que está descrito e o que é mostrado na fotografia de Juana Bormann direciona a atenção para uma pergunta básica: Seria ela uma ex-guarda ou sobrevivente?

A falta de uma legenda própria que defina ao todo a imagem da mulher transporta o espectador para a ação imaginária de investigar e presumir qual seja a sua origem. Algumas perguntas podem ser feitas: Se de fato dedicou sua força de trabalho como oficial nazista, quais foram os seus crimes? Teria sido ela capaz de cometer algum ato desumano pela própria vontade ou foi forçada a tal? Ou era ela uma sobrevivente que sofreu os mais diversos males enquanto prisioneira no campo de concentração de Bergen-Belsen?

A gênese do questionamento resulta do processo de conexão entre espectador e imagem que é de natureza do Studium e do Punctum. O primeiro é referente ao que é relevante. Seja pela sua estética ou qualquer peculiaridade que a destaca das outras, que atrai a atenção. Enquanto o Studium pode ser percebido nas características que agradam o observador, o Punctum não se revela com facilidade. Esse segundo é associado ao detalhe intrínseco que incomoda, mas que não é transparente ao olhar. (BARTHES, ١٩٨٠)

Quando não somos capazes de apreender o significado de uma imagem, a objetividade do registro é substituída pela ação subjetiva do olhar em uma difícil tarefa de atribuir uma narrativa que conforte o espectador. O Spectrum contido no retrato de Juanna Bormann é a expressa ligação entre ela e o campo de concentração. O Studium empregado a ela pode ser de natureza educativa, no interesse de entender a personagem para solucionar o mistério proposto pela sua legenda. O Punctum, no entanto, não é percebido na cor e simplicidade de sua roupa, no seu rosto ou no seu cabelo. O sentimento que aflige o imaginário pode ser encontrado na tensão em seus lábios e na dureza de seu olhar, que ainda no plano da subjetividade propõe uma nova pergunta: estaria ela tensa ao confrontar o seu inimigo em um tribunal ou convencida de que a única esperança que poderia esperar para a resolução de seus crimes seria a morte?

A descontinuidade isola o espectador de questionar qual é a sua história e a legenda, que reforça a imagem, conforma o olhar. Apesar de seu aspecto se assemelhar ao de uma camponesa de vida simples, Juana foi julgada pelo tempo de trabalho no campo de concentração em que barbaramente torturou prisioneiros.

Uma das funcionárias mais antigas da SS em Bergen-Belsen, aos 52 anos, Juana Bormann tinha a reputação de sádica. Testemunhas repetiam constantemente como, em Auschwitz, ela colocava seu cachorro em prisioneiros e observava como eles eram despedaçados. Perguntas sobre sua sanidade surgiram durante o julgamento de Bergen-Belsen, mas não foram suficientes para impedir que ela fosse declarada culpada pelo Tribunal Militar Britânico. Ela foi condenada à morte e enforcada em 13 de dezembro de 1945 em Hameln, Alemanha. (Nota anexa à imagem de Juana Bormann no website do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, tradução do autor).

Imagens fotográficas são representações estáticas que tomam forma a partir da proximidade do espectador com o evento fotografado. A análise da figura feminina imóvel que encara diretamente a câmera fotográfica possui diferentes formas de interpretação dependendo de quem a confronta. Para uma vítima do Holocausto, assim como para toda a comunidade composta pela memória dos sobreviventes, a fotografia remete ao conjunto de lembranças que constitui a experiência dos campos de concentração. Em via oposta, o observador inculto quanto ao sentido da vivência relacionada ao tema é inserido na subjetividade interpretativa da imagem. A ambiguidade de sentido torna vaga a leitura, e fotografias de horror que ajudam a construir o senso crítico sobre os erros do passado se tornam objetos passíveis de descontextualização histórica. Uma única fotografia não expressa em si todo o conjunto de acontecimentos e sentimentos necessários para inserir o espectador no mesmo nível de compreensão da vítima. Porém, um conjunto de imagens que se conectam no mesmo espaço auxilia no desenvolvimento da ideia.

Se fotografias desprovidas de informações podem causar problemas de legibilidade, o oposto ocorre em fotografias que as possuem em enorme quantidade.

Imagens expressivas (pela apresentação de todas as evidências no mesmo quadro) constantemente se referenciam pela sua aparência. As diferentes representações dos eventos que cercam o mesmo tema se associam pelas suas características explícitas, formando assim um conceito imagético. Para Berger (2017), quanto mais informações temos sobre determinado tema, mais concreto se torna o conceito.

A fotografia do ex-médico nazista Fritz Klein transporta o observador para a construção narrativa. O olhar distante do fotografado impõe o mistério natural de qualquer imagem presente na descontinuidade. Porém, a quebra da subjetividade acontece pela presença dos soldados britânicos e dos cadáveres expostos. A presença dos elementos visuais que mostram a participação de Fritz Klein nos horrores do campo conduz o spectator barthesiano a imaginar um passado e um futuro previsível. As evidências que denunciam o crime tornam a representação objetiva, consequentemente tornando a legenda capaz de resumir e situar corretamente a imagem em seu contexto.


Assim como na fotografia do ex-médico nazista, as imagens do ex-diretor da SS Wilhelm Dorr e as guardas capturadas se associam pelas suas aparências. O conjunto de suas informações explícitas, tais como os cadáveres e a situação de prisioneiros perante os soldados britânicos, complementa o olhar pela possibilidade de visualizar uma narrativa. A representação visual do campo de concentração de Bergen-Belsen toma forma pela união dessas imagens por pertencerem ao mesmo contexto. Todos os fotografados eram funcionários daquele espaço e possuem alguma relação com os mortos. Essa mensagem, uma vez que se torna legível, possibilita ao imaginário do observador a passagem do tempo desde a libertação do campo, passando pela prisão até o julgamento de seus crimes.

A presença da narrativa contextualiza a imagem estática. A associação do conjunto de informações presentes em cada imagem pertencente ao mesmo tema possibilita a compreensão da representação. Fotografias do Holocausto, assim como qualquer outro horror documentado, necessitam de exata contextualização para que não haja má interpretação ou mal uso da mensagem.

4 Uso dos documentos fotográficos

O papel social que a fotografia visa cumprir ao abordar os principais eventos que cercam o saber sobre o Holocausto se conecta diretamente com o presente do observador. O uso comparativo das características do terceiro Reich pode ser encontrado nos discursos públicos sobre racismo, eugenismo e totalitarismo político.

Apesar da mensagem contida nas diversas coleções sobre a Shoah ser atemporal, isto é, que permanece presente e refletirá no futuro, o que se percebe é o movimento contrário sobre o debate da importância de falar sobre o que de fato representa. O afastamento do discurso público tem como origem, segundo Andreas Huyssen (2014):

As razões empíricas da dispersão e da mobilidade globais do discurso do Holocausto são evidentes e fáceis de resumir: O Holocausto foi uma das bases históricas da convenção de Genebra sobre o genocídio, em 1948, que forneceu a estrutura jurídica dos futuros genocídios e violações maciças dos direitos humanos. Assim é plausível avaliar os genocídios atuais e passados em relação ao Holocausto. [...] Em segundo lugar, o extenso trabalho acadêmico sobre o Holocausto, a mais investigada das catástrofes humanas, oferece modelos capazes de instrumentar as pesquisas sobre outros traumas históricos. [...] Em terceiro lugar, as estratégias e práticas narrativas da literatura ficcional e documental sobre o Holocausto influenciaram as representações de outros traumas históricos. Essa é a dimensão das representações artísticas e estéticas que circulam na cultura contemporânea da memória e lhe dão forma. Especialmente pertinente a isso é a literatura crítica sobre testemunhas, depoimentos e história oral. Um último fator é o alcance da mídia ocidental da imagem, que criou uma profusão de representações cinematográficas, ficcionais e documentais do Holocausto que circulam por todo o globo. (HUYSSEN, 2014, P.184)

Por ser o mais famoso, o campo de concentração de Auschwitz, de fato um complexo de campos localizados no sul da Polônia, tornou-se a representação do Holocausto em si, perdendo a sua própria capacidade de legibilidade autêntica e objetiva. Assim como a forma em que os crimes nazistas foram julgados serviu como base normativa para a estruturação do julgamento de futuros genocídios, o tratamento da imagem da vítima, da narrativa e da contextualização histórica também proporcionaram normas de produção para outras culturas no que diz respeito à representação e pesquisa de seus próprios eventos. Porém, o que associa as diversas memórias globais ao evento-base é a propriedade de dar forma ao que se diz ser inimaginável: o horror do sofrimento humano em sua forma bruta. Nesses termos, o conjunto de acontecimentos que narram a Shoah deixam de ser realidades sólidas para se tornarem imagens que dão forma a outras realidades. O Holocausto se tornou o conceito que resume em imagens o significado do terror, um limite entre a definição do que é humano e o que não é, existindo em prol da comparação de outras dores com o seu próprio infortúnio e Auschwitz é seu lugar de memória por excelência.

O conceito de representação do mau indescritível que foi atribuído à Shoah distancia o espectador da mensagem fundamental dos registros. Paradoxalmente, apesar da representação da vida dos judeus-europeus no contexto da Segunda Guerra Mundial proporcionar bases de debates no âmbito político e social, o seu uso ilustrativo distorce e limita a legibilidade do documento. Segundo o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, a apropriação de imagens do Holocausto como forma de propaganda política nos tempos atuais apenas banaliza os debates atuais sobre o tema e vulgariza a memória dos mortos. A utilização de tais documentos fotográficos nesse contexto tem como objetivo apenas causar impacto apelando para a sua carga emocional.

O distanciamento da narrativa do Holocausto pode ser questionado pela convivência diária com imagens igualmente pesadas. A ampla cobertura de guerras e a experimentação da visualização do sofrimento por meio de diversos tipos de mídias torna o observador menos sensível ao fato. A incapacidade de interferir nos eventos documentados tende a tornar fria a relação entre o espectador e a mensagem. A imagem carrega consigo uma história quando devidamente contextualizada. Porém, a distância temporal, independente do fim de sua narrativa, origina o sentimento de conformismo, onde quem confronta a imagem pode reagir com o desvio de seu olhar ou com a tentativa de visibilizar aspectos positivos que justifiquem o ocorrido, em um pensamento próximo a “tinha que acontecer para melhorar”. A naturalização do sofrimento pode também levar o espectador ao questionamento da veracidade das representações. Onde, em sua incapacidade de comoção e compreensão sobre o sofrimento das vítimas, apenas o nega (SONTAG, 2003).

5 Considerações finais

A vulgarização dos acervos fotográficos sobre a Shoah e sua consequente perda parcial da capacidade de transmissão da mensagem específica de sua representação, em tempos de uso público e indiscriminado na internet, tem como desdobramento o risco da descontextualização. Por isso, se faz necessária a constante manutenção e revisitação de seus arquivos para a educação dos novos espectadores e a reeducação de uma geração que aprendeu a conviver com as mensagens contidas em imagens que expressam a máxima imaginável da expressão do horror. A gestão desse tipo deste tipo de material imagético sempre encontrará problemas em adaptar seu conteúdo para a atual realidade de acesso interativo entre seus usuários de forma que seja relevante. O excesso de uso das imagens do Holocausto gerou o olhar cansado entre os que não mais suportam dar atenção ao tema e se tornou banal aos que foram educados em meio ao mercado midiático da violência. Apesar da dificuldade em estabelecer uma nova forma de chamar atenção para a importância do debate, é necessário realizar uma última reflexão: os sobreviventes deste caótico e trágico acontecimento histórico em breve não mais existirão fisicamente, deixando apenas suas narrativas expressas em todos os documentos conhecidos e reunidos nos muitos museus e memoriais dedicados a eles. O reforço da importância desses arquivos busca a possibilidade de manter viva a memória, em que sempre se pode reconstruir seu significado e explorar as narrativas existentes.

Referênca bibliográfica:

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BERGER, John. Aparências: A ambiguidade da fotografia. In: BERGER, John. Para

entender uma fotografia. São Paulo: Companhia das letras, 2017.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. São Paulo: Editora 34, 2020.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história, II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

HUYSSEN, Andreas. Usos tradicionais do discurso sobre o Holocausto e o colonialismo. In: HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das letras, 2003.

SONTAG, Susan. O mundo-imagem. In: SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

ZERWES, Erika. Tempo de guerra: Cultura visual e política nas fotografias dos fundadores da agência Magnum, 1936-1947. São Paulo: Intermeios, 2018.

O uso impróprio de imagens do Holocausto na atualidade: quando isto pode ser considerado como anti-semitismo? Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/misuse-of-holocaust-imagery-today-when-is-it-antisemitism. Acesso em: 3 nov 2020.

Referência iconográfica:

SILVERSIDE. Juana Bormann, parte de uma série de Mugshots de ex-guardas e prisioneiros do campo de Belsen antes do Julgamento em frente a um Tribunal Militar Britânico = Juana Bormann, part of a series of mug shots taken of former guards and prisoners from the Belsen camp before their trial in front of a British Military Tribunal. 08 ago 1945. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1048404. Acesso em: 3 maio 2021.

Guardado pelas tropas britânicas, o ex-médico da SS Fritz Klein é confrontado com atrocidades nazistas ante de uma cova aberta cheia dos cadáveres dos internos de Bergen-Belsen. = Guarded by British troops, former SS doctor Fritz Klein is confronted with Nazi atrocities before an open grave filled with the corpses of Bergen-Belsen inmates. Fotografia sem autoria identificada. Por volta de 21 abr 1945. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa7608. Acesso em: 3 maio 2021.

Em primeiro plano, Fritz Klein, um ex-médico da SS em Auschwitz e Bergen-Belsen, faz um anúncio para os noticiários britânicos enquanto atrás dele os guardas da SS estão enterrando cadáveres de prisioneiros em uma vala comum = In the foreground Fritz Klein, a former SS doctor in Auschwitz and Bergen-Belsen, makes an announcement for British newsreels while behind him SS guards are bury prisoners’ corpses in a mass grave. Fotografia sem autoria identificada. 21 abr 1945. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1054514. Acesso em: 3 maio 2021.

Wilhelm Dorr, ex-diretor da SS em Sachsenhausen-Oranienburg, Dora-Mittelbau e Bergen-Belsen, é forçado a fazer um anúncio para um noticiário britânico em pé na frente de um caminhão cheio de cadáveres de prisioneiros = Wilhelm Dorr, formerly an SS warden in Sachsenhausen-Oranienburg, Dora-Mittelbau, and Bergen-Belsen, is forced to make an announcement for a British newsreel while standing in front of a truck filled with prisoners’ corpses. Fotografia sem autoria identificada. Entre 21- 28 abr 1945. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa7606. Acesso em: 3 maio 2021.

THOMPSON, Fred. Guardas capturadas estão atrás de uma cerca de arame farpado no campo de concentração de Bergen-Belsen. = Captured female guards stand behind a barbed wire fence in the Bergen-Belsen concentration camp. abr 1945. Disponível em: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1180773. Acesso em: 3 maio 2021.

1

A palavra Shoah significa catástrofe ou desastre no idioma hebraico e tem sido utilizada como sinônimo de Holocausto para referenciar, especificamente, o massacre dos judeus-europeus.

Fotografia 1 – Juana Bormann, parte de uma série de Mugshots de ex-guardas e prisioneiros do campo de Belsen antes do Julgamento em frente a um Tribunal Militar Britânico. 08 de agosto de 1945. Fotografia de Silverside.

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Figura 2 -Fotografia 2 – Guardado pelas tropas britânicas, o ex-médico da SS Fritz Klein é confrontado por atrocidades nazistas ante de uma cova aberta cheia dos cadáveres dos internos de Bergen-Belsen. Por volta de 21 de abril de 1945. Fotografia sem autoria identificada.

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Figura 3 -Fotografia 2 – Guardado pelas tropas britânicas, o ex-médico da SS Fritz Klein é confrontado por atrocidades nazistas ante de uma cova aberta cheia dos cadáveres dos internos de Bergen-Belsen. Por volta de 21 de abril de 1945. Fotografia sem autoria identificada.

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Fotografia 4 – Wilhelm Dorr, ex-diretor da SS em Sachsenhausen-Oranienburg, Dora-Mittelbau e Bergen-Belsen, é forçado a fazer um anúncio para um noticiário britânico em pé, na frente de um caminhão cheio de cadáveres de prisioneiros. Entre 21 e 28 de abril de 1945. Fotografia sem autoria identificada.

Fonte: Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Fotografia 5 – Guardas capturadas estão atrás de uma cerca de arame farpado no campo de concentração de Bergen-Belsen. Abril de 1945. Fotografia de Fred Thompson.