Infodemia e Ciência da Informação no Brasil: perspectivas e reflexões
Infodemia and Information Science in Brazil: perspectives and reflections
Maytê Luanna Dias de Melo
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7310-2572
Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba, Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil.
Email: lumeloo@yahoo.com.br
Sergio Rodrigues Santana
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1286-0775
Doutorando em Ciência da Informação e Mestre em Ciência da Informação, ambos pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI/UFPB), Brasil.
lEmail: sergiokafe@hotmail.com
RESUMO: Cientistas e pesquisadores têm concentrado esforços para conter a pandemia do novo coronavírus, entender seus riscos à saúde dos indivíduos e à economia das nações. O acesso às tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs) têm facilitado a produção, o compartilhamento, a disseminação e o uso de informações, neste contexto. Este aumento na quantidade e variedade de informações de qualidade e credibilidade duvidosas provocou uma infodemia, ou seja, uma pandemia de informações, que gera danos irreparáveis e põe em questão o propósito da informação, que é informar. Este ensaio objetiva, portanto, refletir sobre as ações de enfrentamento e o posicionamento da Ciência da Informação enquanto área científica que estuda as propriedades que regem os fluxos informacionais nos mais variados contextos, a infodemia (fake news, a desinformação e pós-verdade), as práticas sociais informacionais e como seus reflexos têm sido sentidos nesta seara. O estudo apresenta caráter quali-quantitativo, e sua metodologia se ancora na necessidade de considerar a epistemologia da Ciência da Informação, bem como seu fluxo e compartilhamento em meio à pandemia e as consequências do excesso informacional neste terreno. Considerando que a Ciência da Informação é responsável pelo estudo das propriedades e do comportamento da informação, percebe-se que a práxis tem se distanciado do que outrora foi proposto por Borko em 1968. Além de não reivindicar seu papel de protagonismo científico nos espaços midiáticos reservados para estas discussões, em torno da infodemia, no contexto da pandemia no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: infodemia; desinformação; pandemia.
ABSTRACT: Scientists and researchers have concentrated efforts to contain the pandemic of the new coronavirus, understand its risks to individuals’ health and the economy of nations. Access to digital information and communication technologies (DICTs) has facilitated the production, sharing, dissemination and use of information in this context. This increase in the amount and variety of information of dubious quality and credibility has provoked an infodemia, that is, a pandemic of information, which generates irreparable damage and calls into question the purpose of the information, which is to inform. This essay aims, therefore, to reflect on the confrontation actions and the positioning of Information Science as a scientific area that studies the properties that govern information flows in the most varied contexts, infodemia (fake news, disinformation and post-truth), informational social practices and how their reflexes have been felt in this field. The study presents a quali-quantitative character, and its methodology is anchored in the need to consider the epistemology of Information Science, as well as its flow and sharing in the context of the pandemic and the consequences of informational excess in this sphere. Considering that Information Science is responsible for the study of the properties and behavior of information, it is perceived that praxis has been distant from what was once proposed by Borko in 1968. Besides not claiming its role of scientific protagonism in the media spaces reserved for these discussions, around infodemia, in the context of the pandemic in Brazil.
Keywords: infodemia; disinformation; pandemic.
1 Introdução
O novo coronavírus (SARS-CoV-2), responsável por causar uma doença respiratória aguda grave (COVID-19), tem estimulado reflexões sobre a informação enquanto elemento emancipatório, conscientizador, disseminador e mediador do conhecimento. Bem como provocado debates sobre discursos, fatos científicos publicados e disseminados, além de novas tendências que permeiam a informação, tais como as fake news, a pós-verdade, a desinformação e a infodemia.
A infodemia é entendida pelo aumento na quantidade e variedade excessiva de informações de diferentes qualidade e credibilidade – falsas, imprecisas, baseadas em evidências ou fora de contexto. Ela tem dificultado pessoas a encontrarem orientação e fontes confiáveis quando necessitam de informação, representando riscos à saúde global (KALIL & SANTINI, 2020).
A COVID-19 é uma doença altamente contagiosa, sendo considerada uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), e tem sido o âmago dos estudos de pesquisadores das diversas áreas do conhecimento no mundo todo, que analisam desde a caracterização do vírus, seus efeitos na saúde individual e coletiva até a economia mundial, suas formas de transmissão, impactos e letalidade até a criação e disponibilização de vacinas para a imunização da população e contenção da doença. Estes estudos são publicados em tempo real, revistas científicas prestigiadas, sobretudo da área da saúde, publicam artigos quase diariamente, no modelo de publicação contínua/corrente. Muitos outros são publicados em repositórios de acesso aberto como os preprints, isto é, mesmo antes da revisão por pares (BELDARRAÍN CHAPLE, 2020).
Em vias paralelas a este contexto, têm crescido a produção, o compartilhamento e a disseminação de diversas informações de caráter duvidoso e apelativo, nutridas de crenças e valores e, muitas vezes, contrárias à verdade, que afetam diretamente o contexto pandêmico e suas relações, desde o contágio até o acesso à vacina. Impedindo o entendimento do verdadeiro surgimento do vírus, os mecanismos de combate e enfrentamento à doença, pondo em dúvida o conhecimento científico, contestando os órgãos internacionais oficiais de saúde e inviabilizando todo o plano de prevenção e contágio, justificando-se, deste modo, a execução desta pesquisa.
Estas informações se relacionam às circunstâncias nas quais os fatos são menos influentes na formação da opinião alheia que os apelos à emoção e à crença pessoal. Uma política da pós-verdade, ou até mesmo uma nova era da pós-verdade, onde as opiniões individuais são mais importantes que o conhecimento científico publicado (OXFORD DICTIONARIES, 2018).
A informação é o objeto de estudo de algumas áreas científicas, porém há uma, em específico, que trabalha com os diversos modos que os seres humanos produzem, usam, assimilam, organizam e compartilham os diferentes registros do conhecimento por meio da informação. Ela emergiu num contexto entre guerras para possibilitar a organização e recuperação da informação assolada pelo caos documental e informacional que aflorou no pós Segunda Guerra Mundial e início da Guerra Fria. Essa área científica é a Ciência da Informação.
Portanto, o objetivo geral deste estudo é refletir acerca das ações de enfrentamento e posicionamento da Ciência da Informação em relação à infodemia (fake news, a desinformação e pós-verdade), às práticas sociais informacionais e como seus reflexos têm sido sentidos nesta seara.
2 Metodologia
A pesquisa se caracteriza como bibliográfica e documental com caráter quali-quantitativo. A busca pelas produções científicas citadas no estudo resultou-se da necessidade de considerar a epistemologia do estudo das propriedades e comportamento geral da informação, bem como seu fluxo e compartilhamento em meio à pandemia do novo coronavírus e as consequências da profusão informacional neste âmbito.
As principais fontes consultadas foram o site oficial da Organização Mundial da Saúde (https://www.who.int/pt), do mesmo modo que o site do Ministério da Saúde do Brasil (https://www.gov.br/saude/pt-br), no intuito de contrastar as informações disseminadas em ambos os espaços. Não houve termos específicos empregados na busca, a coleta dos dados analisados se deu no intuito de contrastar com as informações disseminadas pelo governo brasileiro. O recorte temporal foi o período de culminância da pandemia do coronavírus no Brasil, 2020-2021.
3 A Pandemia no Brasil e no mundo: Aspectos descritivos
Na terceira semana de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disponibilizou o relatório de atualização epidemiológica semanal da COVID-19 informando que 4,7 milhões de novos casos foram relatados em relação à semana anterior, um declínio de 6% no número de casos em todo o mundo. No entanto, o número de novas mortes subiu para 93.000 – um número recorde –, um aumento de 9% em relação à segunda semana do mesmo mês. Aproximadamente 2 milhões de pessoas perderam a vida em consequência da COVID-19 (OMS, 2020). Pode-se observar, por meio da ilustração 1, como a curva da doença se comportou.
As regiões das Américas, Europa e Sudeste Asiático mostraram quedas em relação ao número de novos casos, com a Europa mostrando um declínio um pouco mais acentuado, 15%, conforme o relatório, e as regiões das Américas e Sudeste Asiático mostram baixas mais moderadas, de 2% e 1%, respectivamente. Por outro lado, as regiões do Mediterrâneo Oriental, África e Pacífico Ocidental relataram aumentos de novos casos, o Pacífico Ocidental apresenta um aumento maior, em torno de 14%. Todas as regiões, sem exceção, relataram aumentos no número de mortes. A incidência de casos continua a ser um dos principais fatores de mortalidade devido a o número de hospitalizações e mortes relacionadas à COVID-19 seguir em crescimento em intervalos de tempo muito curtos (OMS, 2020).
Concomitantemente, os cinco países que notificaram o maior número de casos foram os Estados Unidos da América (EUA) (1.583.237 casos, uma redução de 11%); Brasil (379.784 casos, um aumento de 21%); o Reino Unido da Grande Grã-Bretanha; Irlanda do Norte (339.952 casos, uma redução de 19%); Federação Russa (166.255 casos, 1% aumento); e França (125.279 casos, um aumento de 2%) (OMS, 2020). Atentando ao fato de os EUA terem uma estimativa de 333 milhões de habitantes1, e o Brasil, 211 milhões2, o país da América do Sul apresentou um aumento de 21% no número de casos da doença, em detrimento dos Estados Unidos, que reduziram em 11% o número de casos.
Em janeiro de 2021, o Brasil somou mais de 217 mil mortes (BRASIL, 2020a) desde o início da pandemia. Esses números fazem ascender discussões em torno das circunstâncias e critérios adotados quanto aos cuidados referentes à prevenção e contenção da doença, tais como o uso de máscaras, o distanciamento e o isolamento social, que estão intimamente ligados com a produção, a disseminação, o compartilhamento e o uso da informação. Em 2018, nas eleições presidenciáveis brasileiras, observou-se o aumento da propagação e o fortalecimento dos discursos de ódio reverberados por entre as redes sociais virtuais, intensificado pela descrença dos indivíduos quanto ao cenário político mundial que, por intermédio de um sistema de disseminação de fake news, fortaleceu um fenômeno de compartilhamento de informações de ordem difusa e/ou improcedente que, somadas às crenças e aos apelos pessoais, são propagadas, sobretudo, por meio das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). Esse fenômeno de disseminação e compartilhamento de informações falsas e difusas tem se fortalecido mediante a legitimação e notoriedade de discursos de membros políticos e adeptos ao cenário da negação à ciência, às universidades e à pesquisa científica, como um todo.
[...] entre o dia 10 e 31 de março, ocorreram uma série de testes, recuos e o compartilhamento de desinformação por parte do governo e da presidência. O caso mais significativo se deu após a Justiça ter proibido a veiculação da campanha “O Brasil Não Pode Parar” pela SECOM (Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República). Em seguida, o próprio órgão apagou os posts das redes sociais e chegou a afirmar que a campanha nunca existiu e que o vídeo veiculado em seu canal oficial havia sido “produzido em caráter experimental”. (KALIL & SANTINI, 2020, p. 2-3, grifos dos autores)
O governo brasileiro tem fomentado, diariamente, o caos informacional devido ao compartilhamento indevido de informações difusas e desaconselhadas por órgãos institucionais de saúde, tais como a OMS. O próprio órgão de saúde declarou que existe uma infodemia de informações sobre o coronavírus e a COVID-19 (OMS, 2020). Este processo infodêmico é percebido devido ao aumento da quantidade e variedade de informações de diferentes contextos com credibilidade duvidosa, falsa e imprecisa que dificultam a orientação correta sobre a pandemia e impedem a busca em fontes de informação científica, confiáveis e institucionalizadas, representando um risco sócio-econômico-político global na contenção da doença (KALIL & SANTINI, 2020).
Existe consciência e intencionalidade por parte dos órgãos e sujeitos envolvidos no processo de criação e proliferação de fake news, isto não ocorre em decorrência de um erro ou equívoco; o objetivo da construção, produção e divulgação destas informações é unicamente desinformar.
Essas informações falsas, distorcidas, difusas apoiam-se em opiniões, rumores, versões alternativas de fatos e teorias da conspiração, nunca em evidências científicas resultantes de estudos acadêmicos, na prática da checagem de fatos ou em trabalhos de instituições científicas ou especialistas institucionalizadas (CANTUÁRIO, 2020).
Sabendo que há informação e há intencionalidade de desinformar, reitera-se que a informação se constitui num elemento indispensável para as forças que governam os discursos que precisam ser estabelecidos nos regimes de verdade da sociedade (da informação). Parece contraditório, mas não é, vive-se numa Sociedade da Informação onde o regime de verdade tem se estabelecido na desinformação, no caos informacional.
Na década de 1960, ascendia uma área científica responsável por resolver problemas informacionais, de ordem pós-custodial, estabelecidos devido à explosão informacional vivida no cerne da revolução técno-científica do pós Segunda Guerra Mundial (ARAÚJO, 2018). Ela, por natureza interdisciplinar, seja de áreas, de teorias e de autores, está inexoravelmente ligada às TDICs e tem participação ativa e deliberada na evolução da sociedade da informação (SARACEVIC, 1996), essa área é a Ciência da Informação.
4 A Ciência da informação e a pandemia
A Ciência da Informação tem um legado histórico-epistêmico indiscutível quanto às problemáticas sociais informacionais, contudo, compreende-se que na atual conjuntura da pandemia, há uma ausência física da área frente aos debates sobre informação, desinformação, infodemia, nos meios de comunicação de massa.
Enquanto área que participa ativa e deliberadamente na sociedade da informação, a Ciência da Informação precisa ocupar os espaços da coletividade e propor uma educação libertária para a informação, uma espécie de mediação educacional informacional, pensada como uma aproximação do público sem competência informacional (ou alfabetização informacional) à informação científica institucionalizada, sendo esta considerada como um processo educativo e o acesso à informação científica, consequentemente, uma atividade sócio-política transformadora.
É necessário definir os percursos de apoio e responsabilidade social, debater a expansão do pensamento negacionista no Brasil e assumir o compromisso de facilitar o acesso aos meios de comunicação científica por parte dos indivíduos sem acesso às universidades ou às pesquisas.
4.1 Ciência da informação e os percursos de apoio à sociedade
A Ciência da Informação teve sua origem no bojo da revolução científica e técnica que aconteceu no período entre guerras, a saber, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, acompanhando o processo de especialização, surgimento de novas áreas e aperfeiçoamento de conexões interdisciplinares de áreas científicas antigas para corresponder às demandas do desenvolvimento tecnológico e as necessidades de governos e exércitos.
Quatro disciplinas antecederam o surgimento da área, a Biblioteconomia, a Museoconomia (Museologia), a Documentação e o Jornalismo, no entanto, elas centram suas práticas na organização e conservação e apresentam um interesse particular no suporte em detrimento da informação (LE COADIC, 2004). Devido ao desenvolvimento tecnológico, iniciado nas décadas de 1920 e 1930 e percebido pelo uso dos microfilmes e ascensão dos computadores, o conceito de informação foi se separando da ideia de suporte e documento ao passo que um item físico de informação poderia ser convertido em dígitos, preservado, transmitido, transportado e reproduzido.
Então, tinha-se um contexto marcado pelas demandas do desenvolvimento tecnológico, governos e exércitos requeriam sistemas de informação mais eficientes e questões inicialmente colocadas pelas disciplinas antecedentes não eram solucionadas convergindo para a construção de uma nova disciplina que contemplasse essas demandas e questões.
No ano de 1945, Vannevar Bush publica o artigo As we may think, que considerava o problema da explosão informacional, os obstáculos provenientes da dificuldade de recuperação e acesso às informações e uma possível solução pautada na automatização dos processos de recuperação da informação, o Memex – um mecanismo de memória extendida (BUSH, 1945).
Já em 1951, Mooers (1951, apud SARACEVIC, 1996) sugeriu a elaboração de uma disciplina chamada Recuperação da Informação, que englobava os aspectos intelectuais da descrição da informação e suas especificidades de busca, além de sistemas, técnicas e máquinas que desempenhassem tais operações.
As atividades relacionadas à recuperação da informação foram responsáveis pela origem e desenvolvimento da Ciência da Informação como campo científico e profissional e constituem seu núcleo. Além do mais, elas foram essenciais para a emergência e evolução da indústria informacional (SARACEVIC, 1996).
As discussões, decorrentes dessas décadas, estimularam a criação de uma conceituação para fundamentar a nova área. Borko (1968) sintetizou estes debates, e o conceito de Ciência da Informação ficou conhecido por uma:
[...] disciplina que investiga as propriedades e o comportamento da informação, as forças que governam seu fluxo, e os meios de processá-las para otimizar sua acessibilidade e uso. A CI está ligada ao corpo de conhecimentos relativos à origem, coleta, organização, estocagem, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e uso de informação... Ela tem tanto um componente de ciência pura, através das pesquisas dos fundamentos, sem atentar para a sua aplicação, quanto um componente de ciência aplicada, ao desenvolver produtos e serviços.
Estando a Ciência da Informação ligada à origem, coleta, organização, estocagem, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e uso da informação, ela se coloca numa condição de ciência indispensável para atender às demandas informacionais da indústria da informação e entender os contextos informacionais da sociedade da informação. A questão é que a conjuntura de origem da área muito se difere das condições atuais em que se encontra essa mesma sociedade socialmente, politicamente, informacionalmente.
Embora os pressupostos teóricos, as demandas e o escopo fundacional da área permaneçam análogos, eles coexistem com outras vertentes, outras demandas e novas tendências de estudo e pesquisa, que emanam da nova forma de se fazer ciência do paradigma emergente (SANTOS, 1989), visto que a ascensão das TDICs solucionou diversos problemas, mas desencadeou inúmeros outros.
Uma das tendências que emerge nas últimas décadas é o fim do paradigma de balcão, ou seja, um modelo onde os sistemas de informação se constituem de espaços que atendem os usuários com necessidade de informação que se dirige a eles. Porém, por meio das possibilidades advindas das tecnologias da informação e comunicação, atualmente os sujeitos não querem apenas satisfazer suas necessidades de informação, mas também produzir, disseminar, compartilhar, classificar e indexar (folksonomia) os conteúdos disponíveis na internet (ARAÚJO, 2018). No âmbito computacional esta mudança é representada pelo esquema de Web 2.0, uma nova dimensão caracterizada por uma arquitetura que propicia a participação do usuário, considerando-o autor, editor e organizador de/da informação (FURTADO, 2009).
A vicissitude oportunizada por essa tendência desencadeia um caos informacional. Esse uso/produção/disseminação/transmissão/indexação de informações, potencializado pelas novas formas de acesso de produção de conteúdo, tem facilitado o consumo e acelerado o compartilhamento de informações falsas, manipuladas, deturpadas e fora de contexto que servem às mais diversas finalidades pessoais, institucionais e até mesmo governamentais.
4.2 Ciência da informação e as problemáticas informacionais atuais
A ascensão de termos como fake news, pós-verdade, desinformação, infodemia tem desencadeado apreensão devido à veracidade e à confiabilidade das informações disseminadas nas redes sociais digitais. Com a popularização das TDICs somada à queda do monopólio da informação da mídia coorporativa brasileira, outras fontes de informação ganham prestígio na internet, estes canais de disseminação de informação vão desde sites institucionais, blogs e pages de organizações não governamentais (ONGs) e partidos políticos às páginas pessoais de políticos e influenciadores digitais.
As informações ora disponibilizadas nesses espaços podem não corresponder com a veracidade e/ou sofrer manipulação e/ou ter suas estruturas adulteradas, por sua vez, elas são responsáveis pela formação de opiniões e constroem conhecimentos hipotéticos e irreais, baseados em informações falsas, descontextualizadas e imprecisas.
Num contexto de pandemia, que se estabeleceu numa esfera mundial desde o ano de 2019, quando foi registrado o primeiro caso da doença em Wuhan, na China (OMS, 2020), os sistemas e redes, os canais formais e informais de informação são espaços elementares no incentivo a prevenção e a contenção da doença, e no combate a propagação do vírus. Os estudos, as pesquisas e as informações científicas devem ser a base medular destas estruturas.
O problema é que se vive dentro de uma infosfera, ou seja, num ambiente cultural e social, constituído de cultura humana, onde habitam, interagem, se replicam ou se extinguem diversos gêneros de informações nos mais variados suportes (DENNETT, 1998; FLORIDI, 2002). Nesta infosfera se produz, de forma constante, continuamente, uma vasta quantidade de informação, de modo que o próprio sujeito parece não ser capaz de interpretar e refletir sobre demanda informacional disponibilizada a todo momento, em todos os espaços, suportes e redes.
Para além da explosão informacional, da enxurrada de informações que são disponibilizadas e disseminadas nos mais diversos meios info-comunicacionais, tem-se ainda o desafio de selecionar, interpretar e diferenciar as informações verídicas das informações e dados falsos, que são propagados, muitas vezes, de forma negligente e até intencional por influenciadores, políticos e órgãos do governo fazendo acreditar que estas informações e/ou dados são institucionalizados, verídicos e oficiais.
Tem-se também um debate importante a ser feito e aprofundado acerca da produção do regime da verdade que foi e é instaurado, atualmente, em circunstâncias específicas. O regime da verdade, sob a perspectiva de Dunker et al. (2017, p. 109), é o regime de produção da crença, do que seria real, do que é considerado certo e seguro, substancial e ontológico, ou melhor, do que deveria ser percebido desse modo. “E que é produzido por meios específicos de produção da comunicação, da informação e do discurso com esse objetivo.”. Estando e sendo produzida por meios específicos de produção da comunicação dos discursos, essa informação disseminada é intencional. Ela tem foco, alvo, finalidade e propósito.
Em vista disso, é necessário que existam estratégias de desinformação, e sabe-se que elas são constituintes das normas de conduta em ações de guerra das forças armadas, estando inclusas, fundamentalmente, nas condutas de operações de informação (OI). Para isso, a disseminação de informações falsas, deturpadas, exige deliberação, planejamento e agilidade de decisão e, portanto, dentro dessas operações, existem as operações psicológicas (PSYOP) que são estratégicas e centrais para o sucesso das OI, conforme assinala Kalil & Santini (2020).
Dessa forma, preparar o terreno para uma campanha de “desinformação computacional”, que utiliza as redes sociais como principal campo de batalha, inclui testar e identificar narrativas que possam ser facilmente absorvidas e compartilhadas por uma parcela significativa dos usuários on-line; construir influenciadores e trolls e testar sua capacidade de infiltração cultural; fabricar robôs antecipadamente para “envelhecer” a conta e evitar a detecção; multiplicar fontes de informação hipersegmentadas com conteúdo de baixa qualidade para atingir seguidores e novos usuários; e criar métodos que permitam experimentações em tempo real para promover campanhas de persuasão. Porém, as estratégias de desinformação são mais bem sucedidas quanto mais caótico for o ambiente informacional. Ou seja, a desinformação produz a “infodemia” e é produzida por ela em um ciclo vicioso. (KALIL & SANTINI, 2020, p. 5-6, grifos dos autores).
Conforme a perspectiva de Kalil & Santini (2020), há de forma intencional a preparação do terreno para uma campanha de desinformação, ela se inicia através das TDICs, por meio das redes sociais, testando e identificando narrativas que possam ser facilmente compartilhadas, multiplicando conteúdos de qualidade duvidosa, promovendo campanhas de persuasão e instaurando o caos informacional. O binômio que sustenta a infodemia é a necessidade de informação e as estratégias de desinformar. Se por um lado há um usuário que busca por dados, informação e conhecimento, por outro lado, há ferramentas, artifícios e estratagemas que desestabilizam e dificultam essa busca.
No cerne da pandemia da COVID-19, instaurou-se uma carga de tensões em torno da informação, suas propriedades e processos. Isso se deve, em partes, à descredibilidade dos veículos de imprensa e comunicação formais e do conhecimento científico e, por outro lado, ao crescimento de movimentos populistas, à ascensão das mídias informais, à notoriedade de mitos publicamente reconhecidos por estabelecerem discursos autoritários e nacionalistas em detrimento de órgãos e organizações científicas que legitimam a ciência e as intersubjetividades.
5 Considerações: perspectivas e reflexões
Observando que, desde sua origem, a área da Ciência da Informação é, em grande medida, responsável pela investigação das propriedades e comportamentos da informação, além das forças que governam seu fluxo e os meios de processamento e otimização de acessibilidade e uso da informação (BORKO, 1968), por que os(as) cientistas da informação não figuram nos espaços midiáticos reservados para essas discussões em torno da infodemia que se evidencia diariamente no Brasil?
As ações empregadas no combate à proliferação e disseminação das fake news devem fundamentar-se no conceito de alfabetização digital, que, na perspectiva de Sousa Júnior, Petroll e Rocha (2019), consiste em educar a população para identificar a veracidade das informações por meio da checagem das fontes e referências, educar para a percepção da possibilidade de alteração (em foto, vídeo ou texto) do conteúdo original e, sobretudo, para a intencionalidade com a qual tal informação está sendo veiculada. Dessa forma, debater e levar ao conhecimento do público estudos sobre produção e comunicação científica, representação e organização da informação, estudos sobre o comportamento dos sujeitos (usuários da informação) são imprescindíveis. Contudo, a área da Ciência da Informação não protagoniza os espaços e mesas de discussões, nas grandes emissoras de televisão e rádio, em torno da volatilidade da informação.
Porque, enquanto ciência social aplicada, a Ciência da Informação não têm sido área pioneira na criação das agências brasileiras de checagem de informações falsas, as fact-checking? Não tem produzido aplicativos que possibilitem diferenciar opiniões de conhecimento científico? Não desenvolve de maneira interdisciplinar, em conjunto com áreas como a Ciência da Computação e a Ciência da Comunicação, mecanismos e sistemas de informação com acesso livre, rápido e fácil à informação científica?
Levando em consideração Santos (1989), que entende que a ciência pós-moderna deve estimular a popularização do conhecimento científico enquanto senso comum, e Araújo (2018), que entende que uma das características da Ciência da Informação é ser uma ciência pós-moderna, como a Ciência da Informação pode converter em informação popular/pública/comum as informações científicas?
É importante enfatizar que esses são pontos de reflexão quanto à praxis da área, à ação destinada a resolução de problemas, quanto ao fazer, implementar ações concretas, criar, viabilizar meios físicos, materiais e tangíveis. E também sobre a poiesis, o impulso de criar a partir da imaginação, da ideação, da criatividade, do se posicionar como área ativa, de destaque, protagonista das reflexões sobre origem, coleta, organização, estocagem, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e uso da informação (BORKO, 1968).
Não é um questionamento de que nada é feito, publicado, problematizado ou discutido, muito pelo contrário, a área da Ciência da Informação se constitui por um programa disciplinar forte e consistente, com eventos científicos, periódicos, grupos de pesquisa e grupos de trabalho (GTs) vigorosos, importantes, detentores e produtores de conhecimento científico. Os pesquisadores, docentes e discentes dos Programas de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCIs) espalhados pelo país fornecem pesquisas e estudos abastecidos de conhecimento, sobretudo nesse período da pandemia.
Mas, é sobre colocar-se enquanto área protagonista de atuação numa Sociedade da Informação. É sobre ocupar os espaços midiáticos, ser agente deliberante das mudanças que precisam ser feitas. É sobre assumir a tarefa apontada pelo Goffman (1970) de educar(-se) sobre as propriedades dos processos comunicacionais que devem ser traduzidos de um sistema de informação apropriado para uma dada situação física. É sobre combater a desinformação, as fake news, o negacionismo que tanto tem dificultado a contenção da doença e possibilitado o aumento do número de mortes, neste contexto. É sobre isso, pessoas têm morrido devido ao consumo desenfreado de desinformação propiciada pela infodemia.
A Web 2.0 tem configurado para a Ciência da Informação o que Thomas Kuhn (1996) entende por quebra-cabeça do paradigma. Tem-se o paradigma informacional afamado numa sociedade das redes, mas não se têm meios de lidar com as vicissitudes que por ele são incorporadas. É preciso encontrar a resolução para o quebra-cabeça, encontrar as peças-chave, entrelaçá-las de modo que não sobrem espaços vazios, não podendo cortá-las ou colocá-las em outros lugares que não lhes cabem.
Deste modo, considera-se que a área necessita refletir sobre a possibilidade de melhorias na facilitação do acesso rápido e competente por usuários de/em Sistemas de Recuperação da Informação (SRI), ao conhecimento científico por meio de informações institucionalizadas relevantes. Pensar em conjunto com outras áreas científicas, na criação de aplicativos que monitorem e alertem sobre as fake news, suas origens e danos nas redes sociais digitais. Participar mais ativa e deliberadamente, se fazendo presente nos espaços midiáticos hegemônicos, fortalecendo a construção e o desenvolvimento de uma sociedade empoderada informacionalmente. Utilizar da interdisciplinaridade para construir mecanismos digitais informacionais de combate a discursos negacionistas, autoritários e discriminatórios. Fortalecer as mídias informais que trabalham com disseminação e compartilhamento de informação científica. Manifestar-se enquanto Ciência da Informação.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
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Fonte: OMS, 2020. (file:///C:/Users/Not/Desktop/Weekly_Epidemiological_Update_23.pdf)
Gráfico 1 – Casos de COVID-19 relatados semanalmente por Região e mortes globais
1
O United States Census Bureau realiza anualmente projeções de população para os Estados Unidos. Em 2020, a população dos EUA está projetada para ser 333.546.000. Disponível em: <https://www.census.gov/programs-surveys/decennial-census/2020-census.html> Acesso em 25 jan. 2021.
2
Dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que divulgou em 27 de agosto de 2019, as estimativas da população do Brasil, um total de 211.755.692 milhões de pessoas. Disponível em:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28668-ibge-divulga-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para-2020> Acesso em 25 jan. 2021.