Gestão de bibliotecas comunitárias: experiências bem-sucedidas no Brasil

Management of community libraries: successful experiences in Brazil

Georgia Fernanda Rodrigues Maia

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8017-6561

Bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil.

Email: gfrmaia@hotmail.com

Jaqueline Santos Barradas

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0932-9764

Doutora em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia-Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT-UFRJ) Brasil.

Email: jaqueline.barradas@unirio.br

RESUMO: Investiga a gestão de bibliotecas comunitárias no Brasil a partir de três experiências bem-sucedidas: a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), a Biblioteca do Paiaiá e a Favelivro. Apresenta um breve histórico e o conceito de bibliotecas comunitárias estabelecido na literatura. Sistematiza oito elementos estruturantes para o planejamento e a gestão de bibliotecas comunitárias, tendo como referência o documento Diretrizes da IFLA/UNESCO sobre os serviços para Bibliotecas Públicas, entre outros. São eles: adaptação da infraestrutura; composição do acervo; dinamização das atividades; composição da equipe; recursos financeiros; processamento técnico; planejamento e gestão; e adequação em função da pandemia. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório, iniciada por uma pesquisa bibliográfica; a coleta de dados empíricos se deu por meio de entrevistas. A análise dos resultados aponta que o diferencial das bibliotecas comunitárias investigadas são as atividades culturais oferecidas ao público e que as maiores dificuldades residem na escassez de recursos financeiros e na manutenção dos espaços. Entretanto, com o empenho de profissionais reunidos em redes, sejam elas sociais, de apoio ou de efetivo trabalho como a RNBC, os resultados tornam-se positivos. As experiências descritas na pesquisa são incentivadoras e trazem esperança de dias melhores. Por fim, sugere-se que os oito pontos de atenção sirvam de roteiro para bibliotecas comunitárias instaladas ou em fase de criação, considerando, no que couber, as peculiaridades e as demandas de cada comunidade.

PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca Comunitária; Gestão; Biblioteca do Paiaiá; Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias; Favelivro.

ABSTRACT: This paper investigates the management of community libraries in Brazil from three successful experiences: the Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), the Paiaiá Library and Favelivro. It presents a brief history and the concept of community libraries established in the literature. It systematizes eight structuring elements for the planning and management of community libraries, having as reference the document IFLA/UNESCO Guidelines on services for Public libraries, among others. They are: adaptation of the infrastructure; composition of the acquis; dynamic activities; team composition; financial resources; technical processing; planning and management; and adequacy according to the pandemic. This is an exploratory research, initiated by a bibliographic research; empirical data were collected through interviews. The analysis of the results indicates that the differential of community libraries investigated are the cultural activities offered to the public and that the greatest difficulties lie in the scarcity of financial resources and in the maintenance of spaces. However, with the commitment of professionals gathered in networks, whether social, supportive or effective work like RNBC, the results become positive. The experiences described in the research are encouraging and bring hope for better days. Finally, it is suggested that the eight points of attention serve as a road map for community libraries installed or in the creation phase, considering, where it fits, the peculiarities and the demands of each community.

Keywords: Community library; Management; Paiaiá Library; Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias; Favelivro.

1 Introdução

As bibliotecas comunitárias vêm se multiplicando aos poucos, refletindo o desejo das comunidades por um espaço de interação, diálogo, trocas e propagação do conhecimento e da informação.

Prado (2019) considera o surgimento de bibliotecas comunitárias um fenômeno muito recente não somente no Brasil, mas também no continente americano em geral. O termo é citado pela primeira vez na literatura da área em 1978 por Carmina Nogueira de Castro Ferreira, ao se referir à experiência americana do início do século XX, ao tratar da integração da biblioteca pública com a escolar.

Bastos e Almeida (2011, p. 95) afirmam que no Brasil as bibliotecas comunitárias “têm se apresentado como novos espaços de informação e leitura, mas que na maioria das vezes não contam com profissionais da informação a frente de seus trabalhos, mas sim membros dessas comunidades”. Geralmente são espaços criados por iniciativa da comunidade, sem intervenção do poder público, visando preservar a memória local e dar acesso à informação, proporcionando o desenvolvimento sociocultural local.

Devido ao crescimento de bibliotecas comunitárias e o desafio de mantê-las em funcionamento, ações de planejamento, coordenação e avaliação precisam ser observadas e adotadas para garantir uma gestão efetiva e, até mesmo, evitar um fechamento precoce dessas unidades, já que na maioria dos casos elas são montadas por pessoas com senso de comunidade, boa vontade, porém leigas e, muitas vezes, sem experiência no campo da Biblioteconomia.

Considerando o exposto, o presente artigo tem por objetivo investigar a gestão de bibliotecas comunitárias no Brasil, a partir de três experiências bem-sucedidas: a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), a Biblioteca do Paiaiá e a Favelivro.

Tais ilustrações foram escolhidas em função de reconhecido papel que vêm cumprindo junto às comunidades: a RNBC pelo escopo e abrangência de sua atuação; a do Paiaiá pela grandiosidade do acervo, considerada como a maior biblioteca comunitária rural do mundo; e a Favelivro, pela forma inovadora como vem se constituindo.

Além dessa introdução, na próxima seção são descritos os procedimentos metodológicos adotados, seguidos de um breve histórico e do conceito de biblioteca pública, diferenciando-a da biblioteca comunitária. Na sequência, expõem-se as experiências de bibliotecas comunitárias pesquisadas. Adiante, são sistematizados oito elementos estruturantes para o planejamento e a gestão de bibliotecas, seguidos dos resultados e suas respectivas análises, considerando as entrevistas, antecedendo as considerações finais.

2 Procedimentos metodológicos

A pesquisa caracteriza-se por ser de natureza exploratória que, segundo Gil (2002), proporciona maior familiaridade com o problema, e cujo objetivo principal é o aprimoramento de ideias. Iniciou-se a partir de uma pesquisa bibliográfica na Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (BRAPCI), cujo objetivo é subsidiar estudos e propostas na área de Ciência da Informação, fundamentando-se em atividades planejadas institucionalmente (BUFREM, et al., 2010).

A busca na BRAPCI com o termo “biblioteca comunitária”, no campo palavra-chave, recuperou 45 artigos. Na busca com o mesmo termo, no campo título, foram recuperados 32 artigos. Em uma busca composta unindo os termos “biblioteca comunitária” e “planejamento”, utilizando o operador booleano AND foram recuperados quatro artigos, no campo título. Ao final, após leitura técnica de títulos, palavras-chave e resumos, foram selecionados 10 deles, lidos integralmente, que serviram de arcabouço teórico da pesquisa.

Para a coleta de dados sobre as bibliotecas estudadas foram realizadas entrevistas on-line, previamente agendadas com os mantenedores dos espaços, via Google Meet. O formulário de questões foi composto por oito perguntas abertas sobre temas como a criação das unidades, os elementos estruturantes para o planejamento e a gestão dos espaços, entre outras curiosidades compartilhadas pelos entrevistados. Parte dos depoimentos compuseram a seção descritiva sobre as bibliotecas e outras partes são expostas na análise dos resultados.

Cabe ressaltar que os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de acordo com a Resolução nº 510/2016, Art.15:

O Registro do Consentimento e do Assentimento é o meio pelo qual é explicitado o consentimento livre e esclarecido do participante ou de seu responsável legal, sob a forma escrita, sonora, imagética, ou em outras formas que atendam às características da pesquisa e dos participantes, devendo conter informações em linguagem clara e de fácil entendimento para o suficiente esclarecimento sobre a pesquisa (BRASIL, 2016).

3 Bibliotecas públicas e bibliotecas comunitárias

Para dar início à pesquisa, faz-se necessário fundamentar teoricamente o tema, iniciado a partir de uma revisão da literatura abordando o histórico e o conceito de biblioteca comunitária no Brasil, como se organiza, sua finalidade e onde estão localizadas.

Para Machado (2008), а dificuldade de conceituar biblioteca comunitária se deve ao fato do termo ser empregado, pela sociedade em geral, como um sinônimo de biblioteca pública e biblioteca popular. Sendo assim, cabe-nos apresentar o conceito de biblioteca pública e de biblioteca popular e diferenciá-las. Machado (2008) define bibliotecas públicas como:

[...] espaços públicos. No Brasil são criadas por lei estaduais e municipais e possuem vínculo direto com um órgão governamental, estado, município ou federação, os quais respondem por sua manutenção por meio de recursos humanos, financeiros e materiais. Atendem as demandas da população que reside ou frequenta a região em que está localizada (MACHADO, 2009, p. 85).

De acordo com a Fundação Biblioteca Nacional (FNB), dar apoio ao processo de educação continuada é uma das suas prioridades, além de “atuar como um centro de informação de cultura popular promovendo a melhor integração comunidade/biblioteca, [...] é instrumento essencial para transformar a informação em conhecimento” (FBN, 2010, n.p.). A primeira biblioteca pública do Brasil foi criada em 1811, na cidade de Salvador, Bahia.

As bibliotecas públicas devem ser registradas no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), estrutura importante para a Biblioteconomia Pública. Criado em 1992, após algumas alterações institucionais ao longo dos anos, está subordinado ao Departamento do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB), na Secretaria Nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural (SEDCEC) da Secretaria Especial da Cultura (SECULT) do Ministério do Turismo (MTur) (SNBP, 2021). O SNBP tem como objetivo “proporcionar à população bibliotecas públicas estruturadas”, estimulando a leitura e o desenvolvimento sociocultural no Brasil (SNBP, 2021, n.p.).

Tais instituições têm por objetivo atender a todos os públicos, independente de idade, condição física, disponibilizando um acervo e serviços de diferentes interesses de leitura e informação da comunidade em que estão localizadas, ampliando o acesso à informação, à leitura e ao livro, de forma gratuita, e tem como base as recomendações do Manifesto da IFLA/UNESCO (SNBP, 2021).

Segundo tal Manifesto (IFLA/UNESCO, 1994, n.p.), “a biblioteca pública é um centro local de informação, tornando prontamente acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento e a informação de todos os gêneros”. Dentre as missões principais, base das bibliotecas públicas, pode-se elencar: criar e consolidar hábitos de leitura nas crianças desde os primeiros anos; apoiar a educação, tanto individual como autodidata, bem como a educação formal em todos os níveis; fornecer possibilidades para o desenvolvimento pessoal criativo; estimular a imaginação e a criatividade; promover o conhecimento do patrimônio cultural, a valorização das artes, as realizações e inovações científicas; facilitar o acesso às expressões culturais de todas as manifestações artísticas; promover o diálogo intercultural e favorecer a diversidade cultural; apoiar a tradição oral; garantir aos cidadãos o acesso a todo tipo de informação comunitária; fornecer serviços de informação, assim como facilitar o progresso no uso da informação; apoiar e participar de programas e atividades de alfabetização para todas as faixas etárias (IFLA/UNESCO, 1994).

Com a intenção de aproximar as bibliotecas públicas de suas comunidades, alguns estados e municípios passaram a chamá-las de bibliotecas populares. Entretanto, para Machado (2008, p. 85) há uma outra leitura a ser observada:

[...] ao substituir pública por popular, parece-nos que o estado espera, com isso, fazer com que o imaginário da sociedade capture esse termo e o incorpore ao espaço público da biblioteca como uma qualidade de experiências sociais, políticas e culturais. No entanto, essas bibliotecas continuaram as mesmas, ou seja, as mudanças ficaram apenas no campo semântico e não foram suficientes para garantir a sua incorporação no campo da prática ou da ação (MACHADO, 2008, p. 85).

De acordo com a autora, a biblioteca popular não é uma tipologia de biblioteca, mas uma denominação que o Estado adotou para chamar atenção da sociedade para o espaço público da biblioteca, das experiências sociais, políticas e culturais (MACHADO, 2008).

Bibliotecas comunitárias surgem de uma manifestação individual ou coletiva, com a intenção de suprir a carência das bibliotecas públicas em locais onde elas não chegam. Para Machado (2008) a biblioteca comunitária é um

Projeto social que tem como objetivo estabelecer-se como entidade autônoma, sem vínculo direto com instituições governamentais, articuladas com as instâncias públicas e privadas locais, lideradas por um grupo organizado de pessoas, com o objetivo comum de ampliar o acesso da comunidade à informação, à leitura e ao livro, com vistas a sua emancipação social (MACHADO, 2009, p. 91).

Uma característica das bibliotecas comunitárias é sua forma de constituição. Segundo Kipper, Vergueiro e Machado (2010, p. 6) “são bibliotecas criadas efetivamente pela e não para comunidade”, resultado de uma ação cultural, para combater a exclusão informacional. Blank e Sarmento (2010) sugerem pensar a biblioteca comunitária como alternativa social à desigualdade e às injustiças sofridas por um determinado grupo social.

Para explicar sua existência, Bastos e Almeida (2011, p. 95) afirmam que as bibliotecas comunitárias nascem “diante da ausência de bibliotecas e a privação da informação”. Para Cavalcante e Feitosa (2011, p. 123), “a motivação para a criação de bibliotecas comunitárias no País é a inexistência ou a ineficácia das bibliotecas públicas nos municípios ou nas comunidades carentes [...]”. De acordo com Horta (2017), embora a motivação para a construção de uma biblioteca comunitária seja fomentada por ideais semelhantes, cada biblioteca desenvolve-se de forma diferente, de acordo as necessidades e os anseios da comunidade.

Segundo Prado e Prado (2018, p. 55), a biblioteca comunitária deve ser

um espaço aberto à participação democrática não apenas dos membros do local onde está sediada, mas das pessoas comprometidas com a consolidação da cidadania, da integração social e da democracia do país (em especial crianças e adolescentes mesmo que estejam fora da escola oficial) que queiram utilizá-las através da leitura crítico-criativa (que ainda está muito pouco desenvolvida no país) e demais atividades socioculturais e educacionais (PRADO; PRADO, 2018, p. 55).

Desse modo, diminuir a desigualdade social, proporcionando acesso à informação e incentivo à leitura são os seus objetivos. A escassez de espaços culturais e bibliotecas públicas próximos às comunidades estimulam a criação de ações sociais. Fernandez, Machado e Rosa (2018, p. 33) defendem que

A ausência de equipamentos culturais, teatros, museus, centros de cultura e bibliotecas públicas municipais apresenta-se como uma característica dos territórios onde as bibliotecas comunitárias estão localizadas, fazendo com que ocupem um lugar importante como ponto de referência no local e com um projeto de ampliação de oportunidades para os moradores (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 33).

Portanto, “a relevância das bibliotecas comunitárias reside no fato de que elas podem levar à comunidade informação de todos os tipos, possibilitando o desenvolvimento crítico, literário, filosófico e muito mais” (GOMES; ROSA; 2019, p. 589). Desse modo, a construção de bibliotecas comunitárias em regiões carentes assume um papel transformador na vida das crianças, jovens e adultos, como um espaço de aprendizado, crescimento e lazer.

Na próxima seção iremos relatar experiências com bibliotecas comunitárias, destacando sua importância para o desenvolvimento cultural e informacional nas comunidades às quais atendem.

4 Experiências de bibliotecas comunitárias

O campo empírico da pesquisa é composto por três experiências escolhidas por representarem um diferencial no contexto nacional, descritas a seguir.

4.1 Rede nacional de bibliotecas comunitárias (RNBC)

A Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) surgiu em 2015, em um Encontro Nacional do Programa Prazer em Ler (PPL)1, com a principal função de dar alcance nacional às bibliotecas comunitárias em redes locais, que atualmente contam com a colaboração, parceria e investimentos do Itaú Social.

Sua finalidade reside em promover a troca de experiências e construção de projetos coletivos junto aos seus componentes; tem por missão a disseminação do conhecimento, da cultura e ser reconhecida pela sociedade civil e pelo poder público como espaços de crescimento humano (RBNC, 2021).

Atualmente, a RNBC é formada por 11 redes locais de bibliotecas, composta por 115 bibliotecas comunitárias, reunidas horizontalmente, trocando experiências em nove estados brasileiros: Bahia, Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo (RNBC, 2021).

A Rede conta o Mapa da Leitura, um aplicativo que conecta as bibliotecas comunitárias entre si e os leitores, voluntários e parceiros. Foi desenvolvido por um grupo de jovens de Porto Alegre e, posteriormente, aprimorado e lançado pela RNBC. Além disso, o mapa pode ajudar na localização das bibliotecas comunitárias espalhadas por todo Brasil e que não estão cadastradas nas redes locais. O aplicativo é uma ferramenta para ampliar a visibilidade desses espaços de promoção de leitura, fortalecendo seu trabalho na formação de leitores (RNBC, 2021).

A RCBC foi escolhida para figurar na pesquisa pelo escopo e abrangência de sua atuação, como pode ser observado anteriormente.

4.2 Biblioteca do Paiaiá

A Associação Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado, mais conhecida como Biblioteca do Paiaiá, situada no pequeno povoado de São José do Paiaiá, município de Nova Soure – Bahia, é a realização de um dos sonhos do Historiador, Professor e Doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Geraldo Moreira Prado (NOVAES et al., 2020).

De acordo com Prado, foi em uma conversa com seu sobrinho José Arivaldo, “Vadinho”, formado em Letras e em Biblioteconomia, que nasceu a ideia da biblioteca, um espaço onde crianças e adolescentes pudessem melhorar o aprendizado (PRADO, 2019).

A biblioteca está situada em duas casas compradas por Prado e foram reformadas com a ajuda de seu sobrinho, conforme declarado a seguir:

Em 2004, comprei uma casa por R$ 2.000,00 (dois mil reais), depois comprei a casa vizinha por R$13.000,00 (treze mil reais), e, contando com o grande apoio do meu sobrinho Vadinho, fiz uma reforma para ampliar o espaço da Biblioteca. Construímos na parte do fundo de uma das casas três pavimentos, sendo que o último é um modesto conjugado onde me hospedo quando estou por lá, e por ser o imóvel mais alto do povoado, ironicamente o apelidei de Paiaiá Empire State (PRADO, 2019, p. 82-83).

Segundo Prado (2019, p.78), parte do acervo era de sua biblioteca particular e foi doado com registro em Cartório para a Biblioteca. O acervo é composto por livros atuais e raros; recortes de publicações em periódicos de vários países; fotografias; documentários em CDs, DVDs e vinil e equipamentos como telão e câmeras fotográficas e cinematográficas. Atualmente é composto por mais de 125.000 itens. A Biblioteca do Paiaiá foi escolhida para descrição e análise nesta pesquisa por ser considerada a “maior biblioteca comunitária rural do mundo” (BENEDITO, 2020, p. 230).

A biblioteca possui caraterísticas inovadoras, dando voz aos usuários que participam com opiniões e críticas, como pode ser lido na missão da Biblioteca:

Proporcionar conhecimento integral aos seus usuários, em especial crianças e adolescentes, dentro de uma visão holística (social, histórica, cultural, ecológica de sustentabilidade e diversidade), respeitando as particularidades e a visão de mundo de cada um (PRADO, 2019, p. 86).

A grande preocupação de Geraldo Prado é que a biblioteca não vire um depósito de livros (BENEDITO, 2020). Por isso, são desenvolvidos projetos de leitura para diversas faixas etárias, capacitação de professores do Ensino Fundamental dos povoados rurais no município, exposição de livros, formação de mediadores de leitura para atuarem em comunidades rurais, projetos culturais, festas literárias, visitas a instituições de ensino, ciclo de palestras e projeção de filmes (PRADO, 2019). Ainda segundo seu mentor, faz parte dos objetivos da biblioteca classificar e informatizar seu acervo literário, promover ateliês de pintura e oficina de bonecas de pano, escolinha de xadrez e atividades esportivas para crianças e adolescentes.

O professor Geraldo, ao descobrir as cinco leis de Ranganathan, identificou a Biblioteca do Paiaiá como um órgão vivo, em permanente crescimento, e ressalta que a 5ª Lei é a que mais se aplica - A biblioteca é um organismo em pleno crescimento (PRADO, 2019).

4.3 Favelivro

Trata-se de uma experiência carioca, que tem como objetivo “incentivar e educação e a cultura criando bibliotecas e atividades literárias em comunidades e escolas públicas do Rio de Janeiro” (FAVELIVRO, 2021, n.p.). É uma iniciativa voluntária de criação de bibliotecas comunitárias em que são realizadas contação de história, rodas de bate-papo, distribuição de livros gratuitos, entre outras ações, com o objetivo de democratizar a leitura (MARCILIO, 2021).

De acordo com depoimento de Verônica Marcilio (2021), professora de Literatura da Rede Municipal do Rio de Janeiro e contadora de história, em um encontro casual na Barreira do Vasco, em 2021, com Demézio Batista, livreiro aposentado, dois apaixonados por livros, nasceu a Favelivro. Demézio fazia parte do Projeto Hora do Come Livro desde 2010, cujo objetivo era estimular a leitura por meio de distribuição de livros nas favelas e comunidades para todas as faixas etárias, e Veronica, que, por iniciativa própria, visitava as comunidades para contação de histórias.

A Favelivro além de atender moradores das comunidades e periferias, também leva seu trabalho para as escolas públicas, onde esse processo é mais demorado devido à “burocracia das instituições” (MARCILIO, 2021).

Segundo Marcilio (2021), o projeto é um movimento gratuito de doação de livros e funciona da seguinte maneira: a Associação de Moradores entra em contato com a Favelivro solicitando a criação de uma biblioteca e, durante um período, alguns pequenos projetos são realizados para incentivar a leitura até a montagem definitiva da biblioteca.

O projeto conta com a parceria de figuras públicas, denominados patronos da biblioteca, e que são escolhidos pelas comunidades. Em 2021, durante a pandemia, algumas bibliotecas foram inauguradas: Biblioteca Sandra de Sá, na Vila Olímpica em Acari; Biblioteca Miriam Leitão, na Comunidade Agrícola de Higienópolis; e a Biblioteca Flavia Oliveira, no Morro da Congonha, em Madureira, sempre com a presença de seus patronos (MARCILIO, 2021). Em 2022, no primeiro semestre, mais comunidades foram contempladas como: no Complexo do Alemão, com a Biblioteca Thalita Rebouças; no Catumbi, Biblioteca Isabel Salgado; na Vila Turismo, Biblioteca Paulinho Moska; no Complexo do Caju foi reinaugurada a Biblioteca Infantil Helio de la Penã; no Cantagalo, Biblioteca Milton Cunha; no Morro da Penha, em Niterói, Biblioteca Luciana Savaget; no Engenho de Dentro, a Biblioteca Infanto Juvenil Trigueiro, que tem como patrono o jornalista André Trigueiro, que também dará seu nome para outra biblioteca voltada para o público adulto (FAVELIVRO, 2022, n.p.).

De acordo com a curadora Verônica Marcilio (2021), a Favelivro é “um grande local de troca de experiências [...]. Desenvolver o gosto para leitura, dar acesso ao livro, onde o poder aquisitivo é escasso, é uma das metas da Favelivro”.

Dito isso, a próxima seção se encarregará de expor alguns elementos importantes a serem considerados para a funcionamento das bibliotecas comunitárias.

5 Elementos estruturantes para o planejamento e gestão

Nessa seção, são discutidas orientações sobre planejamento e gestão, com vistas à criação, instalação, manutenção e adequação das bibliotecas comunitárias. É importante ressaltar que não foram localizadas nesta pesquisa diretrizes apropriadas para esta tipologia de bibliotecas, sendo assim, foram utilizadas, no que couber, as Diretrizes da IFLA/UNESCO sobre os serviços da Biblioteca Pública (2013); a publicação, Biblioteca Pública: princípios e diretrizes da Fundação Biblioteca Nacional (2010), assim como a pesquisa O Brasil que lê: bibliotecas comunitárias no Brasil: impacto na formação de leitores (2018).

Neste contexto, são definidos oito pontos de atenção denominados, para efeito desta pesquisa, elementos estruturantes para o planejamento e gestão de bibliotecas comunitárias: adaptação da infraestrutura, composição do acervo, dinamização das atividades, composição da equipe, recursos financeiros, processamento técnico, planejamento e gestão e adequação em função da pandemia.

5.1 Adaptação da infraestrutura

De acordo com as Diretrizes da IFLA/UNESCO (2013), o prédio da biblioteca deve estar, sempre que possível, em lugares de fácil acesso para a comunidade e ser flexível para agregar novos serviços e mudanças. Para tanto, a biblioteca deverá possuir:

a) Espaços com diferentes funções visando atender crianças (incluindo bebês), jovens, adultos e famílias;

b) Espaço confortável para a equipe da biblioteca;

c) Acesso fácil para os portadores de diferentes tipos de deficiência;

d) Boa iluminação, ventilação e sinalização;

e) Bom isolamento acústico;

f) Estantes abertas e adaptáveis a diferentes estaturas;

g) Mobília adequada para crianças;

h) Equipamentos eletrônicos (computadores, projetores, etc.);

i) Acesso à internet (wi-fi);

j) Climatizador de ar para manter uma temperatura confortável;

k) Controle de umidade;

l) Equipamentos de segurança (alarmes, extintores de incêndio, saídas de emergência, simulação periódica de evacuação);

m) Sanitários;

n) Estacionamento.

Fernandez, Machado e Rosa (2018, p. 36) entendem que a infraestrutura da biblioteca são os espaços físicos, equipamentos e acesso à internet, que tais espaços podem ser “pequenas casas, espaços comerciais, garagens, galpões, igrejas, terreiros ou até uma antiga casa do coveiro dentro de um cemitério na região de Parelheiros, São Paulo, onde está instalada a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura” (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 36).

Além disso, estantes organizadas de maneira que possam chamar a atenção dos leitores, computadores conectados à internet e banheiros também são dados que aparecem na pesquisa de Fernandez, Machado e Rosa (2018).

5.2 Composição do acervo

Segundo as Diretrizes da IFLA/UNESCO (2013, p. 57), a “biblioteca deve disponibilizar acesso ao patrimônio cultural da sociedade em que se integra e promover recursos e experiências culturais diversas”.

Importante ressaltar que a criação de uma política de desenvolvimento e gestão de coleções, elaborada por profissionais, com normas para bibliotecas, baseada nas necessidades e interesses da população local, torna-se essencial (IFLA/UNESCO, 2013).

De acordo com a Fundação Biblioteca Nacional (2010), além de atender as necessidades da comunidade, alguns critérios básicos devem ser levados em consideração na formação de um acervo como:

a) Atualização;

b) Reposição: renovar os materiais bibliográficos consultados com frequência;

c) Demanda: atender, na medida do possível, as sugestões do usuário;

d) Qualidade: obter contribuições significativas nas diversas áreas do conhecimento;

e) Pluralidade: respeitar a diversidade.

Segundo o Manifesto da IFLA/UNESCO (1994, n.p.), “as colecções e os serviços devem ser isentos de qualquer forma de censura ideológica, política ou religiosa e de pressões comerciais”. A biblioteca pública deve disponibilizar uma ampla variedade de materiais em diversos formatos e em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades e os interesses da comunidade (IFLA/UNESCO, 2013). Nesta direção, deve ser composto por obras de referência (dicionários, atlas, manuais); obras gerais; literatura (romances, poesias e outros gêneros literários); materiais especiais (coleções em braile, gibis); além de periódicos (jornais, revistas, artigos).

Entretanto, vale destacar no resultado da pesquisa realizada por Fernandez, Machado e Rosa (2018), o acervo das bibliotecas comunitárias se dá por meio de doações e é formado, principalmente, por livros de literatura. Obras de referência, livros de História, Artes, Ciências Sociais e coleções de autores locais também fazem parte do acervo, nem sempre em quantidade suficiente. Vale salientar que é importante, ainda, a biblioteca manter uma desiderata, construída a partir dos interesses do seu público.

5.3 Dinamização das atividades

Segundo a FBN (2010, p. 112), a participação da comunidade no planejamento e organização das atividades culturais é fundamental, porque gera um comprometimento com a biblioteca. Apresentação de peças teatrais, de artistas locais, clubes de leitura, concursos literários, exposições, hora do conto, lançamentos de livros, são alguns exemplos de atividades possíveis.

Fernandez, Machado e Rosa (2018) relatam que, além de mediação da leitura, atividades como oficinas temáticas, dança, capoeira, teatro, brincadeiras, jogos, desenho e pintura fazem parte da rotina das bibliotecas comunitárias pesquisadas.

No que diz respeito ao horário de funcionamento e da disponibilização das atividades, estes devem ser convenientes para os frequentadores.

5.4 Composição da equipe

Segundo as Diretrizes da IFLA/UNESCO (2013), nas bibliotecas públicas podem ser encontradas as seguintes categorias de pessoal: bibliotecários; assistentes de biblioteca; pessoal especializado (profissionais de informática, área administrativa e marketing); e pessoal de apoio (vigilantes, motoristas, funcionários de limpeza e de segurança).

É importante destacar que os voluntários são permitidos, desde que exista uma política que defina as tarefas e “não devem ser utilizados em substituição do pessoal remunerado” (IFLA/UNESCO, 2013, p. 72).

De acordo como a FBN (2010), nos municípios com mais de 5.000 habitantes, a equipe deve ser composta por, no mínimo, um bibliotecário e dois técnicos em Biblioteconomia.

Entretanto, na pesquisa supracitada, as equipes em bibliotecas comunitárias são formadas por mediadores de leitura e, na sua grande maioria, são moradores da própria comunidade.

Os mediadores são, portanto, leitores e escritores, envolvidos com a comunidade, muitos foram frequentadores da BC antes de atuarem nessa função e aprendem na BC a fazer mediação de leitura. A BC é um local de formação que conecta com outras instâncias formativas e profissionais e é lá onde conquistam letramentos múltiplos, com oportunidades de vivenciar diversas práticas de leitura e de escrita (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 68).

Para as autoras supracitadas, “além de mediadores de leitura, as bibliotecas comunitárias contam com outros profissionais atuando em seus espaços de leitura, tais como bibliotecários, coordenadores, facilitadores de oficinas, entre outros (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 50).

5.5 Recursos financeiros

No Manifesto da IFLA/UNESCO sobre Bibliotecas Públicas (1994), esta

é da responsabilidade das autoridades locais e nacionais. Deve ser objeto de uma legislação específica e financiada pelos governos nacionais e locais. Tem de ser uma componente essencial de qualquer estratégia a longo prazo para a cultura, o acesso à informação, a alfabetização e a educação.

Ainda segundo o Manifesto, é necessário a cooperação das bibliotecas, definindo e promovendo uma rede nacional de bibliotecas, com padrões de serviços. Além disso, “uma das alternativas é a apresentação de projetos para financiamento pelas leis de incentivos fiscais federais, estaduais ou municipais ou pelas companhias federais ou estaduais de financiamento de projetos” (FBN, 2010, p. 39).

Todavia, no que se refere às bibliotecas comunitárias, os recursos financeiros são oriundos da própria comunidade. Fernandez, Machado e Rosa (2018) evidenciam tal realidade:

[...] foi possível conferir múltiplos movimentos para levantamento de recursos: festas, bingos, rifas, brechós e uma diversidade de cursos para arrecadar recursos para a subsistência diária desses espaços. Além disso, organizam mutirões para resolver problemas ou melhorar suas condições de espaço e ambiente, bem como para agilizar o tratamento do acervo (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 112).

Percebe-se que as bibliotecas comunitárias se diferenciam também por não terem recursos próprios, dependendo, na maioria das vezes, de outros, de colaborações diversas, ou, quando conseguem, de apoio por editais de incentivo à cultura.

5.6 Processamento técnico

O processamento técnico do acervo refere-se ao

serviço interno, de responsabilidade do profissional bibliotecário, consistindo na classificação e na catalogação de uma obra. A catalogação descreve fisicamente a publicação e a classificação descreve o tema, o assunto; aquilo de que trata a obra (FBN, 2010, p. 81).

Para a FBN (2010, p. 81), a Classificação permite a ordenação dos assuntos de uma obra através de um código denominado número de classificação. O sistema mais conhecido e utilizado internacionalmente é a Classificação Decimal de Dewey (CDD), que divide as áreas de conhecimento em 10 classes principais. Já a Catalogação é a transcrição dos elementos que identificam uma obra ou outro material em uma ficha catalográfica.

A ficha principal reúne um conjunto de informações que possibilitam a identificação e a localização da obra no acervo (n° de chamada, autoria, título, descrição física e pista). É utilizada como base para elaboração das demais fichas secundárias. Quando a obra não tiver autor, a ficha principal terá entrada pelo título (FBN, 2010, p. 83; 88).

Os Catálogos são um conjunto de fichas ou registros (no fichário manual, listagem ou base de dados) que representam as publicações do acervo de uma biblioteca. São quatro tipos de catálogos: título, autor, assunto e topográfico (FBN, 2020, p. 89).

Segundo Fernandez, Machado e Rosa (2018, p. 45), apesar da maioria das bibliotecas comunitárias que participaram da pesquisa “afirmarem que fazem o registro bibliográfico de seus livros, nem todas possuem catálogos bibliográficos como meio de controle e difusão do acervo”. Em relação à Classificação, utilizam o sistema de classificação por assunto e/ou por cor. Os softwares Biblivre e Biblioteca Fácil são os mencionados na pesquisa como gerenciadores de acervo (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 45).

5.7 Planejamento e gestão

O planejamento pode ser definido como “um conjunto de técnicas, métodos, procedimentos, que objetiva intervir de forma programada por meio de planos, programas e projetos” (FBN, 2010, p. 35).

Para Barbalho e Beraquet (1995, p. 18):

O processo de planejar determina a direção a seguir, mensurando os recursos disponíveis e os necessários, implicando na compreensão da dinâmica das mudanças oriundas do mercado, bem como da sensibilidade para identificação e canalização destas mudanças de forma positiva para a unidade de informação.

Planejamento é um processo dinâmico, composto por etapas, ações, em que prazos são estipulados e recursos definidos sempre em busca do objetivo. Segundo Almeida (2011):

Começa pela análise das condições presentes para determinar formas de atingir um futuro desejado. Isso implica escolher metas, prever, influenciar e controlar a natureza e a direção de mudanças e, finalmente, rever criticamente os resultados obtidos, avaliando a eficiência e eficácia dos programas e atividades em relação aos objetivos e metas fixados. [...] decisões planejadas ajudam a dar estabilidade à organização e, consequentemente, criam um ambiente mais equilibrado e mais produtivo (ALMEIDA, 2011, p. 2-3).

De acordo com as Diretrizes da IFLA/UNESCO (2013, p. 75), as competências que deverão ser observadas no processo de gestão são: liderança e motivação; gestão financeira; planejamento e definição de políticas; criação e manutenção de redes com outras organizações; gestão de recursos; gestão de pessoal; planejamento e implementação de gestão de bibliotecas; marketing; análise das necessidades da comunidade; monitorização e avaliação.

O resultado da pesquisa de Fernandez, Machado e Rosa (2018, p. 49-50) apresentou uma gestão participativa nas bibliotecas comunitárias, em que a comunidade atua geralmente de forma voluntária, ajudando na procura de parcerias para obtenção de recursos.

A caracterização das Bibliotecas Comunitárias pesquisadas quanto à gestão identificou questões que envolvem a estrutura organizacional, os mecanismos de gestão, o pessoal que atua nessas bibliotecas, horário de atendimento, formas de divulgação, parcerias e forma de obtenção de recursos, o que envolve a sua sustentabilidade (FERNANDEZ; MACHADO; ROSA, 2018, p. 49).

Vale ressaltar que para um efetivo planejamento e manutenção dos processos de trabalhos nas referidas bibliotecas é essencial a figura do bibliotecário, nem sempre presente nesta tipologia de bibliotecas.

5.8 Adequação em função da pandemia

No Brasil, em março de 2020, os serviços não essenciais foram obrigados a fechar devido à pandemia da Covid-19, e as bibliotecas constavam dessa lista. A Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA) publicou uma carta no dia 07 de abril de 2020, com informações enviadas por diversos países, sobre A COVID-19 e o Setor de Bibliotecas em Termos Mundiais, expondo experiências e adequações realizadas.

Wellichan e Rocha (2020) relatam que, inicialmente, as bibliotecas reduziram o horário de funcionamento com as equipes fazendo rodízio, mas, logo depois, com a suspensão das atividades presenciais, precisaram realizar as atividades em casa, conhecido como home office. Algumas medidas precisaram ser adotadas como intensificar a comunicação com a equipe e usuários via aplicativo, como o Whatsapp, e o uso das redes sociais, principalmente o Instragram e o Facebook, como fontes de informação. As atividades culturais foram suspensas a fim de evitar aglomerações e, consequentemente, surgiram as lives e demais eventos on-line.

Em 2021, iniciou-se a vacinação em massa e a partir dos números decrescentes de infectados e mortes, houve a flexibilização e reabertura de muitos espaços públicos, porém, em 2022, muitas bibliotecas ainda permanecem fechadas ou atendendo parcialmente seus usuários, exigindo uma adequação no funcionamento e entrega de serviço.

6 Análise dos resultados

Os resultados e suas respectivas análises são apresentados na mesma sequência descrita anteriormente, baseados nos oito pontos de atenção para a gestão efetiva de bibliotecas comunitárias, apoiados no arcabouço teórico identificado na pesquisa e na realidade evidenciada nas entrevistas realizadas com a bibliotecária Yasmin Wink, da RNBC, e os professores Geraldo Prado e Verônica Marcilio, respectivamente, da Biblioteca do Paiaiá e da Favelivro.

6.1 Adaptação da infraestrutura

Primeiramente, em relação à adaptação dos espaços físicos, os três entrevistados relataram que obras estruturais ou de adequação foram necessárias, mesmo que em pequena escala. Na RNBC, as bibliotecas ocupam tendas, salas, galpões e pequenas adaptações são feitas por voluntários da comunidade. A Biblioteca do Paiaiá ocupa duas casas que estão precisando de reformas por serem antigas e estarem danificadas devido às chuvas, contudo faltam recursos para operacionalização. As bibliotecas da Favelivro ocupam salas cedidas pelas associações de moradores das comunidades, e normalmente têm as paredes pintadas e os pisos trocados, doados por voluntários ou pelos patronos das bibliotecas.

Considerando que, na maioria das vezes, os espaços são doados ou emprestados, há que se avaliar a necessidade de reformas e promover as adaptações necessárias. Neste sentido, torna-se essencial transformar o ambiente em um local agradável, funcional e com espaços para interação e criação.

Em relação ao mobiliário, a maioria possui estantes, cadeiras e mesas. Em alguns casos, pufes e tapetes são também utilizados nas bibliotecas por ocuparem pequenos espaços (FAVELIVRO; RNBC, 2021). Também foram citados o uso de equipamentos eletrônicos, muitos fora de uso por falta de manutenção ou problemas com adaptação à rede elétrica.

Para o mobiliário, é necessário a aposição de estantes adequadas à estatura dos usuários, redes, almofadas, entre outros, para criar um ambiente agradável. No que se refere ao layout, é esperado o uso de placas de sinalização para indicar a ordenação do acervo, assim como espaços livres dentro do ambiente para viabilizar atividades diversas. A disponibilização de equipamentos eletrônicos como computador, telão, televisão e redes de wi-fi são bem-vindos e desejados pelos usuários.

É importante ainda destacar a questão de acessibilidade para as pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida, com a instalação de rampas, corrimão, portas largas e piso tátil. Deve-se ainda atentar para uma boa ventilação no ambiente e iluminação adequados, assim como uma localização, preferencialmente, perto de transporte público e ciclovias.

6.2 Composição do acervo

O acervo, na maioria das vezes, é doado por anônimos. Nas bibliotecas que fazem parte da RNBC, o acervo é montado de acordo com as doações, mas sempre fazendo um “garimpo”, ou seja, uma seleção de acordo com as realidades locais. Na Biblioteca do Paiaiá foi formado pelo acervo pessoal do mentor. Em alguns momentos, por meio de edital público, consegue-se comprar alguns livros. As bibliotecas da Favelivro são montadas inicialmente com ١٠٠٠ livros divididos entre infantis, romances e literatura, a partir de doação recolhidas por contatos divulgados em redes sociais. Há ainda doação de acervo por parte dos patronos das bibliotecas e sua rede de contatos. Pode-se destacar como um grande diferencial, a logística promovida pela Favelivro para a retirada as doações disponibilizadas no local indicado pelo doador.

Este deve ser composto considerando a diversidade, tanto no que se refere à tipologia documental quanto à temática. Livros de literatura infantojuvenil e adulta, contos, quadrinhos, biografias, mapas e fotografias, buscando incluir autores nacionais, estrangeiros e locais, empoderando pessoas da própria comunidade. Deve-se contemplar o interesse do público, que pode ser originado a partir de estudos de usuários e de comunidades. Entre as temáticas, é importante incluir assuntos como cidadania, História do Brasil, empoderamento feminino, autores negros, indígenas, entre os desejados pelas comunidades.

Como na maioria dos casos, o acervo é formado por doações, torna-se fundamental a manutenção de uma desiderata, a partir de uma lista que registre os títulos sugeridos pelos usuários, que possibilitará uma triagem (“garimpo”) entre os livros doados. É possível também estabelecer uma comunicação com editoras solicitando doações dos títulos desejados pelos usuários.

Em se tratando de comunicação, outra importante iniciativa é disponibilizar para outras bibliotecas comunitárias da rede aqueles livros não aproveitados na unidade ou em duplicata. Em nenhum dos relatos houve a menção de uma política de desenvolvimento das coleções, o que pode ser explicado pela formação baseada em doações.

6.3 Dinamização das atividades

Quanto às atividades culturais oferecidas, a contação de história é citada pelos três entrevistados como a dinâmica mais comum praticada nos espaços. Nas bibliotecas da RNBC, aulas de inglês, de informática, reforço de português e capoeira; na Biblioteca do Paiaiá, festas literárias, curso de pintura, jogos de xadrez e futebol também fazem parte das atividades. Por fim, na Favelivro, mediação de leitura e vivência literária.

Na programação da biblioteca deve haver uma variedade de atividades culturais, algumas já citadas anteriormente, como a contação de história seguida de vivências literárias, com o objetivo de desenvolver o gosto pela leitura. Outras são sugeridas, como o “Dia do Profissional”, onde pessoas da comunidade atuantes em áreas diversas possam compartilhar sua rotina de trabalho; “Dia da Comunidade”, para conhecer melhor o seu vizinho; “Dia da Navegação”, baseado em pesquisa na internet, como parte de ações de letramento informacional; exposições e lançamento de livros de artistas e autores locais; “Semana da Troca”, quando livros e objetos podem ser trocados; projeção de filmes, assim como palestras sobre temas de interesse das pessoas.

Entretanto, o fato mais relevante é ouvir a comunidade a fim de criar dinâmicas que atendam suas necessidades. Para Lankes (2016), a biblioteca é um lugar onde sonhos e habilidades se misturam, proporcionando nova dinâmica:

[...] um espaço comunitário – um lugar para troca de ideias e para criação de conceitos inteiramente novos. [...] um edifício sozinho não pode fazer nada. [...] abarrotar uma linda construção com uma quantidade enorme de livros não é fazer uma biblioteca. É preciso um compromisso da comunidade e um grupo de facilitadores dedicados [...]. Felizmente esses facilitadores existem e são chamados de bibliotecários (LANKES, 2016, p. 131).

Importante ressaltar que as atividades serão sempre acompanhadas pelos responsáveis pelo espaço e, preferencialmente, realizadas no contexto da biblioteca, conectando as pessoas com o acervo.

6.4 Composição da equipe

Mediadores são os responsáveis pelas bibliotecas da RNBC, acompanhados e orientados por bibliotecários contratados pela Rede. A Biblioteca do Paiaiá possui na equipe um bibliotecário recém-formado, um diferencial em se tratando de bibliotecas comunitárias, além do professor Geraldo e mais três voluntários. Nas unidades da Favelivro, após a montagem e inauguração das bibliotecas, elas são entregues à comunidade, onde geralmente um morador local assume as funções de manutenção do espaço. Na maioria das vezes, por falta de um orientador, existe a dificuldade em seguir com as atividades.

Formar uma equipe em bibliotecas comunitárias é um grande desafio, considerando o fato de que são, em sua maioria, formada por voluntários. Ademais, a escassez de recursos financeiros impede a manutenção de uma folha de pagamento. Soma-se a isto o fato de que as comunidades, muitas delas, localizam-se em lugares de difícil acesso, em zonas periféricas e distante do controle social da segurança do Estado, dificultando muitas vezes até ações de voluntariado. Consequentemente, os moradores locais acabam assumindo os papéis de mediadores e de mantenedores dos espaços.

Diante disso, a adoção de um bibliotecário consultor pode ser uma alternativa, um profissional que possa dedicar horas voluntárias ao projeto a fim de se tornar um ponto focal, para orientar as equipes (mediador, morador da comunidade) para o exercício das ações necessárias de manutenção. Isso também torna possível a participação de estagiários do curso de Biblioteconomia, já que é necessário um bibliotecário para supervisionar a prática discente.

Outra possibilidade é formar auxiliares de biblioteca, a partir da capacitação de pessoas da própria comunidade. As universidades públicas costumam oferecer esses treinamentos em projetos de extensão universitária. Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) há o projeto de extensão Oficina de Biblio, que cumpre este papel junto às comunidades desde 2017 (UNIVERSIDADE, 2018).

6.5 Recursos financeiros

Aqui reside um dos grandes gargalos da manutenção dos serviços, já que as bibliotecas comunitárias não recebem recursos públicos, nem são mantidas por prefeituras, governos locais ou pelo Estado. Normalmente, os recursos advêm de doações, parcerias ou editais, como é o caso da RNBC e da Biblioteca do Paiaiá. Logo, os resultados confirmam o que é citado na literatura.

Como não há destinação orçamentária prevista, face às características anteriormente mencionadas, é necessário usar a criatividade, como organizar eventos locais para angariar recursos como rifas, brechós, pequenas festividades, entre outros. Desenvolver ações junto com a comunidade pode ser uma opção, como oferta de cursos locais. Outras possibilidades advêm da participação de editais de fomento público, e até mesmo criar parcerias com o comércio local ou empresas para doação via Imposto de Renda.

Convidar uma personalidade cultural para ser um patrono, normalmente uma pessoa com presença nas mídias sociais, como feito pela Favelivro, é uma saída inteligente, pois gera um crescimento orgânico nas referidas redes, o que ajuda a empoderar a biblioteca e fazê-la conhecida, atraindo outros recursos.

6.6 Processamento técnico

No que diz respeito ao processamento técnico, as bibliotecas da RNBC usam o Sistema Classificação por Cores para a Literatura de Ficção e Poesia, de Cida Fernandez, bibliotecária da Rede. Na Biblioteca do Paiaiá, os livros estão separados por área de conhecimento e depois organizados por autor. “A parte infantil está livre”, segundo palavras do professor Geraldo. Na Favelivro, o acervo é separado nas estantes por tipologia.

Segundo relatos observados nas entrevistas, no Paiaiá e na Favelivro não há registro de usuários. Os livros podem ser levados e não devolvidos. Na Favelivro, uma frase comum, repetida como chavão nas bibliotecas ése você levou e não me devolveu hein, é sinal de que a literatura venceu!” (autor desconhecido). Já na RNBC, o registro de usuários precisa ser potencializado com mais dados sobre a comunidade, já que eles também são usados para alimentar os cadastros sociais locais.

Apesar de todas as dificuldades observadas ao longo da pesquisa, processar o acervo e cadastrar usuários é uma forma de preservar a existência da biblioteca, portanto, torna-se essencial tal prática. A simplicidade é palavra de ordem: é necessário fazer um processamento técnico básico, minimamente separando as obras por assunto e, posteriormente, em ordem alfabética de autores ou de títulos (em acervos para adultos), ou por cor (em caso de acervos infantis). Em caso de automação, normalmente são utilizados softwares gratuitos e livres, citados anteriormente.

Igualmente importante é cadastrar os usuários a fim de conhecer os frequentadores da biblioteca e assim garantir um acesso mais próximo a eles.

6.7 Planejamento e gestão

Nas entrevistas foram identificadas a carência de um plano de gestão para acompanhamento e manutenção das bibliotecas após sua criação. Na RBNC são citados documentos norteadores de gestão compartilhados para uso de todas as bibliotecas da Rede.

Todos os entrevistados foram unânimes em reconhecer a importância e a necessidade de um instrumento que os auxilie a acompanhar o processo de gestão das bibliotecas após sua criação ou inauguração.

A gestão de uma biblioteca comunitária deve ocorrer dentro do contexto da localidade. Realizar um diagnóstico da biblioteca, analisando suas forças e fraquezas é o mais indicado. Ouvir os usuários e a comunidade já seria um bom começo. Formar uma comissão com moradores locais que auxilie nesta tarefa é um exercício para aproximar a biblioteca e seus usuários.

Sugere-se ainda adaptar as diretrizes da IFLA para Bibliotecas Públicas (2013) e criar um regulamento para funcionamento com as regras estabelecidas para conhecimento e cumprimento da comunidade atendida, que defina o que pode e o que não pode ser realizado no espaço, tendo em vista a manutenção da ordem local, além de estabelecer dias e horários disponíveis para funcionamento.

Igualmente importante é traçar um plano de acompanhamento da gestão, bem como um plano de marketing para atrair pessoas de dentro e de fora da comunidade também pode ser uma boa estratégia para angariar patrocínio externo, gerar visibilidade e uma mídia positiva.

Em se tratando de manutenção, é requerido uma revisão periódica dos equipamentos disponíveis nas unidades, das condições do acervo físico, assim como do prédio onde está instalada. Higienização do local também é determinante para manter o espaço saudável, tanto no que diz respeito às pessoas quanto ao acervo.

6.8 Adequação em função da pandemia

Com a instalação da pandemia e a consequente paralisação das atividades oferecidas pelas bibliotecas, houve uma intensificação de ações para atendimento às necessidades básicas das comunidades. A RNBC distribuiu cestas básicas, itens de higiene e uma mala de leitura, contendo 15 livros para serem devolvidos em 30 dias. O mediador da comunidade era o responsável pela distribuição. A Favelivro criou o Kit Vacina Literária, contendo sete livros, máscara, álcool em gel, sabonete, chocolate e biscoito. A Biblioteca do Paiaiá não deixou de atender se alguém procurasse. Ou seja, de uma forma humanitária continuaram alcançando suas comunidades.

Após um longo período de pandemia, para o retorno com segurança deve-se adotar medidas preventivas já amplamente divulgadas, como manter o local ventilado, evitar aglomeração, disponibilizar álcool em gel, limpar diariamente o local, dispor placas sinalizadoras sobre o uso de máscara e manutenção do distanciamento sanitário visível no layout do espaço físico. Na medida do possível, manter algumas atividades ainda de forma on-line.

É importante ainda acompanhar as atualizações da Organização Mundial da Saúde (OMS), dos órgãos locais competentes, cobrar o “passaporte da vacina” e atentar para evitar a veiculação de notícias falsas, denominadas fake news.

Ao final desta seção pode-se observar que, em alguns casos, mesmo sem o conhecimento das Diretrizes da IFLA/UNESCO sobre os serviços da Biblioteca Pública (2013) e a publicação Biblioteca Pública: princípios e diretrizes da Fundação Biblioteca Nacional (2010), elas foram adaptadas e minimamente inseridas.

Por fim, pode-se identificar que o diferencial dessas bibliotecas são as atividades oferecidas, e a maior fragilidade, a manutenção dos espaços doados, assim como a escassez de recursos financeiros.

7 Considerações finais

As bibliotecas comunitárias ainda são consideradas um acontecimento novo no Brasil, criadas atendendo aos desejos dos moradores de uma determinada localidade, em regiões onde os serviços de extensão e cultura não chegam, como as bibliotecas públicas.

Os resultados evidenciam que o diferencial das bibliotecas pesquisadas são as atividades oferecidas ao público, assim como as maiores dificuldades residem na escassez de recursos financeiros e na manutenção dos espaços doados. A ausência de bibliotecários dedicados é uma realidade, contudo muitas contam com o empenho de profissionais reunidos em redes, sejam elas sociais, de apoio ou de efetivo trabalho, como no caso da RNBC.

As experiências descritas na pesquisa, a partir das entrevistas com seus representantes e dos relatos de pessoas comprometidas com a propagação do conhecimento e cultura, são incentivadoras e nos traz a esperança de dias melhores.

Sugere-se que os oito pontos de atenção trabalhados em forma de elementos estruturantes para o planejamento e gestão de bibliotecas comunitárias sirvam de roteiro para bibliotecas comunitárias instaladas ou em fase de criação, considerando, no que couber, as peculiaridades e as demandas de cada comunidade.

Espera-se que o resultado desta pesquisa abra caminho para novas discussões sobre a gestão de bibliotecas comunitárias, ampliando os estudos aqui iniciados, como o aprofundamento e a expansão do roteiro.

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1

Em 2006, o Instituto C&A lançou a Programa Prazer em Ler (PPL), com o objetivo de promover a educação de crianças e adolescentes através do incentivo e do direito à leitura (RNBC, 2021).