A REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA DA INTERNET: AS MUDANÇAS DA ESFERA PÚBLICA E AS NOTÍCIAS FRAUDULENTAS NA PANDEMIA DA COVID-19
DEMOCRATIC REGULATION OF THE INTERNET: CHANGES IN THE PUBLIC SPHERE AND FRAUDULENT NEWS IN THE COVID-19 PANDEMIC
Clóvis Ricardo Montenegro de Lima
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6337-3918
Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Doutor em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Pesquisador Titular do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) , Brasil.
E-mail: clovismlima@gmail.com
Lígia Moura Simões de Souza
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1774-1863
Mestre em Gestão e Estratégia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ), Brasil. Coordenadora Operacional de Ensino do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), Brasil.
E-mail: ligiamssouza@gmail.com
Cássia Gabriele de Mello Angiolis
ORCID: https://orcid.org/0009-0005-1324-5060
Graduada em Relações Públicas pela Faculdade de Comunicação Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), Brasil.
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) , Brasil.
E-mail: cassiaangiolis@gmail.com
RESUMO: Neste artigo discute-se a regulação da Internet em uma sociedade democrática e pluralista como modo de controle e prevenção de notícias fraudulentas na Internet. A discussão da regulação se faz em um contexto de nova mudança estrutural da esfera pública, caracterizada por intensa comunicação de muitos para muitos e pela oligopolização das plataformas digitais. As notícias fraudulentas são um tipo específico de desinformação que opera com a não correspondência entre a representação das coisas e o mundo objetivo. As fraudes estão interessadas em produzir ações e reações sociais, políticas e econômicas. A regulação da Internet é uma forma de regulação de mercados em sociedades capitalistas complexas, focada nas operadoras e nos produtos. A operação na Internet está fortemente oligopolizada pelas denominadas “big techs”, que tem como principais produtos o Google, o Facebook e o Twitter. A discussão da regulação da Internet oscila entre o liberalismo que advoga a liberdade empresarial e o republicanismo que fala em nome do interesse geral. Propõe-se a mediação entre estes pólos nos termos da política deliberativa apresentada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas. Espera-se assim viabilizar a defesa da sociedade contra as notícias fraudulentas. Um dos modos dessa defesa é a responsabilização civil das operadoras pela publicação e difusão de notícias fraudulentas e desinformação. Conclui-se que, no quadro da digitalização da esfera pública, pode-se ter uma política democrática efetiva de regulação da Internet para combate à desinformação, particularmente na forma de notícias fraudulentas.
PALAVRAS-CHAVE: esfera pública; desinformação; regulação da Internet; Covid-19.
ABSTRACT: This article aims to discuss the regulation of the Internet in a democratic and pluralistic society as a way to control and prevent fraudulent news on the Internet. The discussion of regulation takes place in a context of new structural change in the public sphere characterized by intense many-to-many communication and the oligomerization of digital platforms. Fraudulent news is a specific type of misinformation that operates with the mismatch between the representation of things and the objective world. Frauds are interested in producing social, political, and economic actions and reactions. Internet regulation is a form of market regulation in complex capitalist societies focused on operators and products. The operation on the Internet is heavily dominated by the so-called “big techs”, whose main products are Google, Facebook, and Twitter. The discussion of Internet regulation oscillates between liberalism advocating business freedom and republicanism speaking in the name of the general interest. This article proposes a mediation between these poles in terms of the deliberative policy presented by the German philosopher Jürgen Habermas. The expectation is that this will enable the defense of society against fraudulent news. One of the modes of this defense is the civil liability of operators for the publication and dissemination of fraudulent news and disinformation. Concludes that, within the framework of the digitization of the public sphere, it is possible to have an effective democratic policy of regulation of the Internet to combat disinformation particularly in the form of fraudulent news.
Keywords: public sphere; desinformation; internet regulation; Covid-19.
1 INTRODUÇÃO
Neste artigo, discute-se a regulação da Internet em uma sociedade democrática e pluralista como modo de controle e prevenção de notícias fraudulentas na Internet. A discussão sobre a regulação ocorre em um contexto de nova mudança estrutural da esfera pública, caracterizada por intensa comunicação de muitos para muitos e pela oligopolização das plataformas digitais.
A discussão sobre a regulação da Internet ganha contornos dramáticos a partir do início da pandemia da Covid-19, quando há uma pandemia de desinformações, especialmente de notícias fraudulentas. Essa pandemia de fraudes vem em ondas: a origem do vírus, a prevenção da doença, o isolamento social, o uso de medicamentos, as vacinas e a vacinação.
As notícias fraudulentas são um tipo específico de desinformação que opera com a não correspondência entre a representação das coisas e o mundo objetivo. Essas fraudes estão interessadas em produzir ações e reações sociais, políticas e econômicas.
No caso da pandemia da Covid-19, as desinformações têm efeitos desastrosos. Deve-se destacar que algumas dessas desinformações são resultado de campanhas orquestradas por grupos políticos, especialmente de extrema-direita. Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplares do fomento às ondas de desinformação, fundadas na negação das evidências científicas.
Cabe destacar que as campanhas de notícias fraudulentas durante a pandemia não são apenas mais episódios de desinformação. Elas têm graves consequências, que podem ser aferidas pelas 700 mil mortes causadas pela Covid-19 no Brasil. São 8% das mortes em 4% da população global, que podem ser creditadas às ondas de desinformação.
A regulação da Internet é uma forma de regulação de mercados em sociedades capitalistas complexas, focada nas operadoras e nos produtos. A operação na Internet está fortemente oligopolizada pelas denominadas “big techs”, que tem como principais produtos o Google, o Facebook e o Twitter.
Tem sido extremamente difícil controlar os conteúdos na Internet. Os oligopolistas defendem seus interesses falando em nome da liberdade individual de expressão. Trata-se de uma grande hipocrisia, pois as empresas se apressam em excluir das redes qualquer coisa que contrarie ou fira seus interesses econômicos, particularmente aqueles relacionados à comercialização e à monetização.
A discussão da regulação da Internet oscila entre o liberalismo, que advoga as liberdades empresarial e de expressão, e o republicanismo, que fala em nome do interesse geral. Frente ao cenário rascunhado propõe-se o desenvolvimento da regulação através da mediação entre os dois pólos, nos termos da política deliberativa apresentada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas.
Espera-se que, com a política deliberativa, seja possível viabilizar regulação da Internet em defesa da sociedade contra a desinformação e as notícias fraudulentas. Um dos muitos modos dessa defesa, que tem sido muito discutido, é a responsabilização civil das operadoras pela publicação e difusão de notícias fraudulentas e de desinformação.
No quadro do que pode ser denominado de digitalização da esfera pública, aposta-se em uma política democrática efetiva para a regulação da Internet. Entende-se que é uma opção pragmática para combater a desinformação, particularmente na forma de notícias fraudulentas.
O artigo está estruturado em torno de três eixos interconectados: a mudança na esfera pública a partir do uso generalizado na Internet, com a comunicação de muitos para muitos; a emergência e a difusão de desinformação nas redes de comunicações; a regulação pública do mercado das telecomunicações, através de políticas deliberativas com as corporações privadas e a sociedade.
2 MUDANÇAS DA ESFERA PÚBLICAS E TECNOLOGIAS DIGITAIS
As mudanças no papel histórico da comunicação acontecem primeiro na migração da comunicação oral para a comunicação escrita; em segundo, na introdução da impressão mecânica; e, em terceiro, nas últimas décadas, na conexão global das redes de computadores, em que qualquer um pode se comunicar de qualquer lugar com qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. A partir dos anos 1960, houveram diversas mudanças nas ofertas de mídias e como elas são usadas. No começo, a televisão tomou o lugar das rádios e dos jornais diários, e atualmente as telas portáteis - sejam celulares ou computadores - tomaram o lugar da televisão.
Habermas (2022) reflete sobre a digitalização da comunicação pública. Os adventos dos novos fluxos de comunicação aceleram, se espalham e se conectam de forma sem precedentes, de tal modo que esses fluxos se condensam, se diferenciam e se multiplicam de acordo com funções e conteúdos, generalizando-se através de divisões culturais e de classe.
Siebeneichler (2018) debruça-se sobre os conceitos de informação, comunicação e intersubjetividade em Habermas e Luhmann, e diz que a análise dos textos representativos dos dois autores exige uma abordagem da teoria da informação como parte integrante da comunicação. Na Teoria do agir comunicativo Habermas declara oposição ao funcionalismo de Luhmann e segue um caminho bastante diverso ao propor uma filosofia que se sustenta na linguagem comum e na racionalidade comunicativa.
Habermas privilegia ações comunicativas que têm como pano de fundo um horizonte hermenêutico ou mundo da vida formador de contextos para processos racionais de entendimento. Tais processos de entendimento podem desdobrar-se em dois planos: o da comunicação trivial no espaço de um mundo da vida; e o de um discurso destinado a resgatar, por argumentos, pretensões de validade questionadas, isto é, quando o conteúdo informativo da atividade comunicativa é colocado sob suspeita. (Siebeneichler, 2018, p. 42)
A razão é essencialmente comunicativa e pública, e não uma inteligência exterior que apenas observa ontologicamente. A teoria habermasiana considera que o espaço público intersubjetivo é fundamentado em uma sociedade radicalmente democrática e comunicativa. Assim, a comunicação é a “troca ilimitada de experiências, informações e argumentos sobre três tipos de realidade: o mundo dos objetos e seres naturais, o complexo mundo social e o mundo inextricável dos sujeitos.” (Siebeneichler, 2018, p. 47)
Habermas (1997) considera o espaço de discussão, fundamentado na capacidade de confrontar argumentos racionais com a opinião baseada na razão, como esfera pública. Ele também considera que essa esfera pública existe em uma lógica comunicativa intermediada pelas mídias da época. Habermas (2022) entende que a comunicação na esfera pública hoje é intermediada pelas mídias digitalizadas e tem potencial de expansão sem precedentes.
Hoje, jornais, revistas, rádio e televisão são os meios de comunicação da esfera pública. Falamos da esfera pública política em contraste, por exemplo, à literária, quando a discussão pública trata de objetos ligados à atividade do Estado (Habermas, 1964).
Habermas (2022) diz que há um obscurecimento da percepção dos limites entre as esferas pública e privada. Além disso, as novas mídias estão trazendo um fenômeno perturbador de inadequação da regulamentação da política nesse meio, uma vez que a distinção entre os espaços “semipúblicos” e “semiprivados”, que antes eram delimitadamente separados, estão ficando cada vez mais indistinguíveis.
Por um lado, há benefícios para os cidadãos políticos, como a expansão e a aceleração de oportunidades de comunicação e o aumento de alcance publicitário; por outro, essa nova tecnologia tem repercussões ambivalentes e potencialmente disruptivas para a esfera pública. Habermas (2002) define que as “esferas públicas” estão reduzidas aos clico de “likes” e “dislikes”, e ganham uma peculiaridade anônima em que não podem ser entendidos nem como públicas e nem como privadas. Elas não produzem, não regulamentam e nem editam quaisquer um desses conteúdos. Elas nada mais são que intermediárias da multiplicação e da aceleração de conteúdo “sem responsabilidade”.
As novas mídias, travestidas de comunicação “igualitária-universalista” liberal, não são mídia no sentido pré-estabelecido. Elas diferem da mídia tradicional, em que a relação entre emissor e receptor é assimétrica, pois descentralizam a conexão entre usuários, na medida em que oferecem o potencial para que qualquer usuário tenha a possibilidade de alcançar status e equidade em relação aos meios midiáticos tradicionais. Isso altera profundamente o caráter da comunicação pública, pois promete dar a todos os cidadãos a possibilidade de ter sua voz pública e um potencial mobilizador, na troca anárquica de opiniões espontâneas.
Habermas (2022) observa como a impressão mecânica fez de todos potenciais leitores, e a digitalização das novas mídias hoje, faz de todos potenciais autores.
Essa “esfera pública” plebiscitária, que foi despojada de cliques de “gostar” e “não gostar”, está assentada em uma infraestrutura técnica e econômica. Mas nesses espaços de mídia de livre acesso, todos os usuários que são, por assim dizer, dispensados da necessidade de satisfazer os requisitos de entrada na esfera pública editorial e, do seu ponto de vista, foram liberados da “censura”, podem, em princípio, dirigir-se a um público anónimo e solicitar a sua aprovação. Esses espaços parecem adquirir uma intimidade anônima peculiar: segundo padrões anteriores não podem ser entendidos nem como públicos nem como privados, mas como uma esfera de comunicação que antes era reservada à correspondência privada, mas que agora está inflada para um novo e íntimo tipo de esfera pública (Habermas, 2022).
O condensamento dos fluxos de informação descritos por Habermas (2022) pode ser percebido na forma como a informação é apreendida e divulgada. Chauí (1997) considera que um indivíduo participa da vida social de acordo com a qualidade das informações que possui, especialmente em função da sua possibilidade de acesso às fontes de informação e, sobretudo, nas suas possibilidades de poder intervir como produtor do saber.
Demo (2005, p. 104) classifica que: “conhecimento e privilégio são parceiros da mesma trapaça, porque conhecimento geralmente é visto mais como esperteza do que como sabedoria”. Nesse sentido, os fluxos de comunicação observados por Habermas (2022) passam por uma situação em que a informação, ao ser democratizada, pode ser usada como instrumento de desinformação.
Durante a pandemia da COVID-19, redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas tornaram-se foco e meio de disseminação de notícias fraudulentas, as “fake news”. A caracterização desse tipo de informação como “notícia fraudulenta” se dá porque elas são produzidas, confirmadas e divulgadas nas redes e mensagens entre usuários em suas esferas públicas autônomas, algo que tem sido apelidado de “bolhas”.
Nas mídias tradicionais, há regulamentação e compromisso público com a veracidade das informações. Nas plataformas da Internet, em especial redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok e aplicativos de mensagens instantâneas, como Whatsapp e Telegram, não há regulamentação. Assim, elas não têm compromisso ou responsabilidade legal com os conteúdos nelas produzidos, registrados e divulgados.
A regulação pública de mercado, é ela mesma, uma aprendizagem da sociedade sobre a relação dos operadores entre si e com seus usuários. As normas da regulação demarcam as características dos agentes econômicos e de seus produtos. Contudo, as ditas imperfeições de mercado, neste caso, implicam em tentativas de fuga da demarcação. As redes e as plataformas funcionam como espaço de reprodução e difusão de notícias fraudulentas, criando uma dinâmica de má informação e desinformação. As corporações, por si só, não são capazes de se autorregular para cumprir as normas regulatórias. O Estado é quem faz e zela por elas.
3 A DESINFORMAÇÃO NO OCEANO DAS COMUNICAÇÕES DIGITAIS
A construção da Internet sem regulação, por mais de 30 anos, criou uma rede de comunicação extremamente capilarizada e inclusiva. Contudo, criou também um ambiente onde os registros se disseminam rapidamente, sem mediação e controle. Assim, as notícias fraudulentas e outras formas de desinformação se difundem de modo desenfreado.
Wardle e Derakhshan (2017) observam que o termo “fake news” “[...] é inadequado para descrever o fenômeno complexo da poluição da informação, uma vez que o termo começou a ser apropriado por políticos ao redor do mundo para descrever organizações de notícias cuja cobertura eles achavam desagradável. O termo se tornou um mecanismo pelo qual poderosos podem reprimir, restringir, minar e contornar a liberdade de imprensa”.
Wardle e Derakhshan (2017) destacam que o conceito das “fake news” combina três noções: mis-information, disinformation e mal-information. A primeira é a informação falsa que não foi criada para prejudicar; a segunda é informação falsa que é criada deliberadamente para prejudicar; e a terceira é a informação baseada na realidade que é usada para prejudicar um indivíduo, uma organização ou um país.
A revista americana Science publicou, em 2018, uma pesquisa realizada no Twitter pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, de 2006 a 2017. Os dados compreendem cerca de 126.000 histórias, tuitadas por aproximadamente 3 milhões de pessoas, mais 4,5 milhões de vezes. O estudo demonstra que notícias falsas têm 70% mais chances de serem retuitadas que notícias verdadeiras. Uma das explicações para esse fenômeno é que as pessoas gostam de novidades, pois elas atraem a atenção humana, contribuem para o processo de decisão e encorajam o compartilhamento de informação.
Quando a informação não é apenas uma novidade, mas também sensacionalista, passa a ser mais valiosa - tanto do ponto de vista da informação (contribuindo para tomada de decisão), quanto da perspectiva social (dando status de que o indivíduo “está por dentro” ou que tem informação “de dentro”) (Vosoughi; Roy; Aral, 2018).
A Organização Mundial da Saúde (2020), no contexto da Pandemia de Covid-19, define que o mundo passa também por uma infodemia, ou seja, “um excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa” (OPAS, 2020). Le Coadic Maheo (2023) define infodemia como o aumento drástico não só na quantidade de informação, mas também na quantidade de novas e numerosas más práticas informacionais.
Essa situação não é inédita, nem nova: nem no que se refere à analogia entre a difusão de informações e a transmissão de doenças (os processos epidêmicos), nem no que se refere à relação entre o aumento da difusão de informações e a existência de epidemia reais. Há 50 anos, Goffman (1970) apresenta sua Teoria Geral da Comunicação, fazendo analogia entre transmissão da informação e contágio.
Goffman usa sua teoria no desenvolvimento de sistemas de recuperação. É importante destacar o acoplamento que ele faz entre sua teoria e os modelos estatísticos dos estudos de epidemias. Vinte anos depois, Lima (1992) recupera os conceitos de Goffman para dar nome à sua dissertação no IBICT: AIDS - uma epidemia de informações.
Na sua dissertação, Lima (1992) parte da comunicação de massa a partir da epidemia da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida - AIDS, que torna pauta obrigatória para jornais, rádio e TV. Deve-se destacar que, nesta epidemia, uma das questões relevantes é a quebra do sigilo. O problema assume tal dimensão que o Conselho Federal de Medicina resolve que a informação médica é propriedade dos pacientes, com grande repercussão social.
Em julho de 2021, a Cochrane, um banco de dados de revisões sistemáticas e meta-análises que resumem e interpretam resultados da pesquisa médica, publicou uma revisão de 14 estudos sobre o efeito de remédios como Ivermectina, Hidroxicloroquina e Azitromicina, do chamado “kit covid” ou “tratamento precoce” contra a Covid-19. A revisão conclui que não há evidências disponíveis sobre a eficácia da ivermectina para prevenir ou tratar a infecção pelo coronavírus. Mesmo assim, uma pesquisa do instituto Datafolha confirmou que 1 em cada 4 brasileiros diz ter usado remédios para “tratamento precoce” contra a Covid.
O Monitor de Vacinas, projeto de pesquisa de 2021 que acompanha a percepção do público quanto aos imunizantes contra COVID-19, realizado pela KFF (PALOWSKY, 2021), fundação sem fins lucrativos sobre pesquisas, jornalismos e programas de comunicação nos EUA, revela que 78% dos adultos norte-americanos dizem que conhecem pelo menos uma de oito informações falsas sobre Covid-19 e acreditam que é verdade ou não têm certeza se é verdade ou mentira. Um terço (32%) dos adultos acredita ou está incerto sobre cerca de quatro informações falsas.
O Monitor de Vacinas afirma que “a crença em desinformação sobre Covid-19 está relacionada tanto ao status de vacinação quanto ao partidarismo” (PALOWSKY, 2021, não paginado). No contexto norte-americano, adultos não vacinados e republicanos são mais propensos a acreditar ou estar incertos sobre informações falsas do que adultos vacinados e democratas.
Em 2022, o relatório “Explorando debates online da Covid-19 e a poluição de informações na América Latina e no Caribe” mostra que a desinformação e a veiculação em massa de notícias falsas funcionam como uma barreira na resposta à pandemia. O documento menciona várias vezes o Brasil, ressaltando que o país apresentou uma das maiores taxas globais de aumento de usuários nas mídias sociais entre 2020 e 2021 (7,1% de usuários a mais, o que representa 10 milhões de pessoas). As grandes corporações oligopolistas calculam que o alcance pode chegar a 74,1% da população. Esse fato torna os brasileiros ainda mais vulneráveis à desinformação e suas consequências, e por isso o relatório apela às instituições de saúde pública que protejam seu status de confiança se quiserem liderar intervenções de saúde eficazes.
Neste artigo, propõe-se a demarcação da epidemia de informações no Brasil em quatro momentos: (1) especulação em torno do surgimento do vírus no mundo, introdução e dispersão do vírus no Brasil; (2) início das políticas de isolamento social, especulação sobre vacinas e tratamentos preventivos; (3) início das políticas de vacinação, com desconfiança e negacionismo científico; e (4) relaxamento das medidas de controle e retomada à “normalidade”.
No fim de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebe alerta do surgimento de um novo tipo de coronavírus (que não havia sido identificado antes em seres humanos) em Wuhan, na República Popular da China. No início de 2020, Drauzio Varella, médico oncologista, afirma que a Covid-19 não passa de uma “gripezinha” e que “Não acho que se justifique qualquer mudança nos hábitos. [...] de cada 100 pessoas que pegam o vírus, 80, 90 pessoas têm um resfriadinho de nada”.
Esta fala é resgatada depois pelos negacionistas para minimizar a gravidade da pandemia. O então presidente da República afirma que “pelo meu histórico de atleta, caso eu fosse contaminado pelo vírus, eu não precisaria me preocupar — ou um ‘resfriadinho’ ou ‘gripezinha’, como disse aquele conhecido médico daquela conhecida televisão” (Brasil, 2020, p. 1).
A publicidade de dados de incidência da Covid-19, de mortalidade, de cobertura vacinal, entre outras, é de extrema importância para definir e executar políticas públicas, visando a segurança sanitária e à proteção da população. No quadro da pandemia, o governo federal dificulta o acesso a essas informações, através de deliberado retardo na entrega de boletins sobre Covid-19. Em resposta, criou-se um consórcio inédito de veículos de imprensa – G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL - que trabalham por 965 dias ininterruptos, com o objetivo de publicar rapidamente as informações.
Na tentativa de frear a divulgação de notícias fraudulentas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica os sites Agência Aos Fatos, Boatos.org, UOL Confere, Agência Lupa, Estadão Verifica, G1/Fato ou Fake para checagem da veracidade das notícias. A gravidade do problema da desinformação no Brasil pode ser mensurada pelas 2.604 declarações falsas sobre a Covid-19 proferidas pelo então presidente da República, conforme apurado pela agência Aos Fatos.
4 REGULAÇÃO DA INTERNET EM SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS E PLURALISTAS
As sociedades contemporâneas, que estão globalmente integradas ao capitalismo das grandes corporações, vêm construindo políticas estratégicas para a regulação de mercados. Quando a perspectiva de sair das relações de produção capitalistas parece se dissipar no horizonte, as sociedades buscam meios de domesticar a iniciativa privada, em defesa dos interesses coletivos e comunitários.
O desenvolvimento e a expansão do uso das tecnologias digitais e da Internet, que se aceleram a partir dos anos 80, acontecem como se fosse a realização de uma grande utopia libertária. Era como se a comunicação em rede pudesse dar todas as respostas para uma sociedade global desigual, que encontrou seu limite de sustentabilidade da produção industrial. Era um sonho, que se acabou.
A realidade atual é que grandes corporações multinacionais dominam os registros, os fluxos e os usos da Internet. Deve-se observar que a maior parte do desenvolvimento e da configuração atual da Internet foi feita por livre iniciativa das corporações, sem os necessários freios da regulação do Estado. Porém, ao invés da utopia libertária prometida, o que entregaram foi uma Internet privatizada, dominada por grandes corporações, um espaço para tudo que pode ser transformado em dinheiro.
Após mais de 20 anos de expansão desenfreada, a Internet tornou-se um território de conflitos assimétricos generalizados. Nos últimos anos, impôs-se a necessidade de regular a Internet, especialmente para a defesa dos interesses coletivos, mas também para a defesa de interesses individuais contra a onipotência das grandes corporações oligopolistas. A exclusão e a omissão do Estado mostraram-se equivocada. É curioso que, para a defesa da autonomia das corporações, tenha sido usada uma retórica de neutralidade política da Internet. Assim, o meio de regulação prevalente foi o dinheiro.
No Brasil, a discussão sobre a regulação da Internet começou em 2007. Em 2009, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) publicou uma primeira resolução com princípios para a Internet no Brasil: (1) Liberdade, privacidade e direitos humanos; (2) Governança democrática e colaborativa; (3) Universalidade; (4) Diversidade; (5) Inovação; (6) Neutralidade da rede; (7) Inimputabilidade da rede; (8) Funcionalidade, segurança e estabilidade; (9) Padronização e interoperabilidade; (10) Ambiente legal e regulatório.
Em 2009, o Ministério da Justiça, em parceria com a Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, propõe a construção 8, com base nos princípios do Comitê Gestor. Em 2014, é aprovada a Lei n. 12.965, que dispõe sobre os princípios, garantias, direitos e deveres para a internet no Brasil e determina diretrizes para a atuação do Estado. Em 2016, após consultas públicas, é publicado o Decreto n. 8.771, que busca regular redes sociais e plataformas digitais através do Digital Service Act (DSA). Foi o primeiro passo de um processo de construção de uma legislação para serviços digitais, que visa resolver problemas com as empresas mediadoras e plataformas. Isso inclui vendas online, redes sociais, distribuição de conteúdo e aplicativos de viagem e hospedagem.
Após a pandemia da Covid-19, em 2023, a França regulamenta a atividade dos denominados “influenciadores digitais”, determinando regras para promoções e monetizações nas mídias sociais. O foco é no combate ao tabagismo, às cirurgias estéticas e alguns tipos de dispositivos médicos, e também modalidades de produtos financeiros, como criptomoedas, visando proteger os consumidores, especialmente os mais jovens. Anteriormente, não havia na lei francesa a regulação da atividade comercial nas mídias sociais, o que tornava os consumidores vulneráveis a golpes e fraudes.
Nos Estados Unidos, não há esforço em nível nacional para a regulação da Internet, função do poder das grandes corporações oligopolistas e de uma defesa genérica da liberdade de expressão na Internet. Contudo, recentemente, uma questão controversa está impondo uma agenda de regulação da responsabilidade das plataformas: os direitos autorais.
As grandes corporações sempre argumentam que não tem responsabilidade legal sobre os conteúdos que nelas se registram e disseminam. Isto, por um lado, tem transferido para os indivíduos usuários a responsabilidade pelos conteúdos. Mas, por outro, retira das plataformas a responsabilidade pelo pagamento de direitos autorais. Em nome da liberdade de expressão, dribla-se esse pagamento de direitos. Logicamente, os produtores de conteúdos não estão satisfeitos.
Em nível estadual, os grandes partidos se mobilizam em torno da regulação de questões políticas e morais controversas. Em 2023, o estado de Montana bloqueia e bane o aplicativo de vídeos curtos TikTok. Isso foi feito com base em preocupações com a segurança de dados e a moderação de conteúdo, mesmo não havendo comprovação de tais alegações.
As discussões sobre o Marco Civil da Internet no Brasil em 2023 estão acontecendo em torno do “PL das Fake News”, o Projeto de Lei 2.630 de 2020, que dispõe sobre a regulação das plataformas digitais e a responsabilização das redes sociais pela veiculação de conteúdos em suas plataformas. De um lado, há quem defenda o controle de desinformação e das notícias fraudulentas, mas, de outro, há quem fale em censura e cerceamento da liberdade de expressão.
O projeto de lei, segundo seus defensores, visa fortalecer a democracia e dar transparência às plataformas de Internet, tornando obrigatória a responsabilidade e a moderação de conteúdos publicados. Entre os regulamentos propostos, destaca-se a proibição de criação de contas e perfis falsos para esconder a identidade, a proibição do uso de bots (rede de distribuição artificial), a limitação do alcance de mensagens compartilhadas, a manutenção do registro de mensagens encaminhadas em massa, a identificação de anunciantes publicitários e a proibição de que ocupantes de cargos públicos bloqueiem o acesso às suas contas a cidadãos comuns. O projeto determina a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet e também que provedores de redes sociais e de mensagens instantâneas tenham representantes legais no Brasil, assim como a imposição de sanções e punições, como advertências e multas.
Em março de 2023, uma campanha encabeçada pela operadora Google inclui o link de um manifesto contra o PL 2.630 em sua página de motor de busca. Um texto assinado por Fabio Coelho, presidente do Google no Brasil, fala em nome dos interesses das corporações: “Do jeito que está hoje, o PL 2.630 pode facilitar a ação de pessoas que querem disseminar desinformação, pode tornar mais difícil que veículos de comunicação de todo o País alcancem seus leitores, e pode tornar nossos produtos e serviços menos úteis e menos seguros para os milhões de brasileiros e empresas que os usam todos os dias” (Coelho, 2023).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, apresenta-se a emergência da discussão e da implantação de normas de regulação da Internet após a pandemia de Covid-19, que se caracteriza por conflitos sobre as orientações médico-sanitárias das Organização Mundial de Saúde (OMS) e os negacionistas da ciência em diferentes frentes: a origem do vírus e da doença, a própria caracterização como pandemia, as medidas de prevenção, os procedimentos terapêuticos e as campanhas de vacinação.
A pandemia da Covid-19 acontece quando a esfera pública global está fortemente marcada pelas tecnologias digitais e pela generalização dos usos da Internet. A mudança proporciona que muitos se comuniquem com muitos, e que estes muitos participem das dinâmicas de comunicação como produtores de informação. Assim, há grande diferença em relação à esfera pública dominada pela imprensa, o rádio e a televisão.
A Internet entra na esfera pública prometendo profundas mudanças nas sociedades, em torno de utopias sobre redução das desigualdades e o fomento da livre comunicação. Assim, a construção da esfera pública interconectada resulta da iniciativa de empresas privadas e sem regulação pública. Neste cenário, aparecem e se acumulam patologias comunicacionais e informacionais.
Deve-se destacar, mais uma vez, que a expansão da Internet se faz sem freios regulatórios. Numa primeira fase, a liberdade de iniciativa se mistura com a cultura de colaboração dos pequenos empreendedores e programadores universitários. Aos poucos, a entrada e a manutenção no mercado de hardware, softwares e aplicativos requerem cada vez capital e se mostram refratárias a qualquer iniciativa regulatória.
O que se observa nos últimos anos são conflitos e mudanças econômicas e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19, incluindo o papel da Internet como espaço de registro, difusão e circulação de notícias fraudulentas. Aparecem fortes críticas à livre iniciativa na Internet como motor de desinformação da sociedade, aumentando a demanda por regulação do mercado da Internet.
Após a pandemia da Covid-19, são visíveis os esforços regulatórios da Internet em nível global. Destaca-se a legislação na Comunidade Europeia, que responsabiliza as plataformas digitais pelos conteúdos publicados. Isso tem impacto imediato no controle e na cobrança de direitos autorais, além de influenciar o controle de conteúdo. Observa-se que alguns países dentro da Comunidade fazem leis mais restritivas e inibidoras de desinformação em geral e de notícias fraudulentas em especial, entre estes cabe citar a Alemanha.
No Brasil, deve-se destacar que, no início de 2023, com o governo Lula, foi resgatado um projeto de lei que estava adormecido no Congresso Nacional desde 2020. Este projeto recebe forte impulso do interesse do governo federal em controlar e prevenir a desinformação e as notícias fraudulentas, que haviam sido intensamente veiculadas na Internet durante o processo eleitoral.
O fato inusitado neste processo legislativo é a forte reação das grandes corporações oligopolistas do mercado em torno da Internet. O Google publicou na sua página inicial uma carta atacando diretamente o projeto, afirmando que ele iria ferir a liberdade de expressão. A ameaça do Google teve resultado, e o projeto de lei foi novamente arquivado no Congresso Nacional. Apesar da aparente quietude, o conflito continua.
As sociedades democráticas e pluralistas devem enfrentar e, quem sabe, equacionar os conflitos entre o Estado e as corporações, entre as políticas públicas e a iniciativa privada. Um desses grandes conflitos contemporâneos é a produção e a circulação de notícias. Habermas havia identificado a mudança na esfera pública com a privatização dos meios de comunicação no desenvolvimento da Modernidade. Agora, ele observa que a ampliação da comunicação em rede, de muitos com muitos, também muda a esfera pública. A intensa pulverização da produção de informação e da pluralização dos canais de sua difusão tornam mais complexo o processo de regulação.
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