ANTHROPODERMIC BIBLIOPEGY, OR THE BINDING OF BOOKS WITH HUMAN SKIN: HISTORY AND REFLECTIONS

Igor Alves Coelho Primeiro

ORCID: : https://orcid.org/0000-0001-5812-7328

Mestre em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

Professor Substituto do Departamento de Ciência da Informação (GCI) da UFF, Brasil.

E-mail: coelhoigor.a@gmail.com

BIBLIOPEGIA ANTROPODÉRMICA, OU A ENCADERNAÇÃO DE LIVROS COM PELE HUMANA: HISTÓRICO E REFLEXÕES

Carlos Henrique Juvêncio

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2376-4823

Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCINF) da Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) e do Departamento de Ciência da Informação (GCI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

E-mail: carlosjuvencio@id.uff

RESUMO: O artigo aborda a prática da bibliopegia antropodérmica, caracterizada pela encadernação de livros com revestimento de pele humana, explorando seu contexto histórico. Considerada rara e controversa, essa prática foi utilizada principalmente por colecionadores, especialmente médicos legistas, refletindo os valores culturais de épocas passadas. O artigo tem como objetivo apresentar definições e relações da prática deste revestimento sob um viés histórico, buscando ampliar os possíveis olhares acadêmicos sobre esses itens, além de apresentar alguns casos e formas de análises científicas utilizadas para testagem e comprovação. A pesquisa adota uma abordagem exploratória e bibliográfica, revisando materiais em diferentes idiomas, embora a literatura sobre o tema seja escassa e, frequentemente, marcada por especulações. O texto apresenta, como considerações finais, reflexões sobre os itens em questão, ressaltando a natureza introdutória do artigo e instigando possíveis reflexões éticas sobre estes e o papel de bibliotecários frente coleções especiais e o tato com materiais do gênero.

PALAVRAS-CHAVE: bibliopegia antropodérmica; encadernação; encadernação antropodérmica; coleções bibliográficas especiais; história do livro.

ABSTRACT: The article addresses the practice of anthropodermic bibliopegy, characterized by the binding of books with human skin coverings, exploring its historical context. Considered rare and controversial, this practice was used mainly by collectors, especially coroners, reflecting the cultural values of past eras. It aims to present definitions and relationships of the practice of this coating from a historical perspective, seeking to expand the possible academic perspectives on these items, in addition to presenting some cases and forms of scientific analysis used for testing and confirmation. The research adopts an exploratory and bibliographical approach, reviewing materials in different languages, although literature on the topic is scarce and often marked by speculation. It presents as final considerations reflections on the items in question, highlighting the introductory nature of the article, and instigating possible ethical reflections on these and the role of librarians in relation to special collections and the tact with materials of this genre.

Keywords: anthropodermic bibliopegy; bookbinding; anthropodermic binding; special bibliographic collections; history of the book.

1 INTRODUÇÃO

Os livros são um dos objetos mais antigos na prática de registro da humanidade, tendo variado ao longo dos séculos em seu tamanho, material, formas, entre outras transmutações. Ao longo deste trajeto histórico, livros já desempenharam muitas funções socioculturais para além de um simples veículo informacional, passando, por exemplo, em determinados períodos a serem utilizado em círculos específicos como itens de luxo, ostensivo, que refletiam status e traços de personalidade de um colecionador. As bibliotecas reais são bons exemplos, uma vez que tinham por objetivo principal ter e acumular livros, buscando expressar, em sua forma material, o poderio do monarca.

Entre as práticas que eram utilizadas para aumentar o teor de diferenciação e individualização desses objetos estava a encadernação, que chegou a ser realizada com materiais (couros) variados, desde os mais comuns, como o couro de bovinos, ovinos e suínos, até materiais mais inusitados e excêntricos, como o couro de cavalo, de cervo, de foca, e outros animais, incluindo também pele humana. 

Muitos termos conotam e circulam o imaginário e a descoberta desses itens e dessa prática, que utilizava a pele de seres humanos, como, por exemplo, itens profanos; macabros; impuros; sinistros; sombrios; e controversos. Não nos cabe aqui um juízo de valor nesse sentido, mas sim de observação e estudos da prática enquanto um processo bibliográfico e bibliológico oriundo de uma época diferente, com construções culturais; sociais; e éticas variadas em relação às que regem o mundo contemporâneo.  

Este artigo surgiu a partir da reflexão inspirada em uma reportagem do jornal The New York Times (Schuessler; Jacobs, 2024a), veiculada no Brasil em tradução pelo o jornal O Globo (Schuessler; Jacobs, 2024b), na qual era noticiado o caso de um livro encadernado com couro de pele humana, pertencente à biblioteca de Harvard, e da decisão da instituição pela retirada do revestimento feito com restos mortais. A partir da curiosidade despertada pela temática oriunda da notícia, propusemo-nos a iniciar uma investigação com enfoque acadêmico-científico, buscando materiais que abordassem tal prática a partir de um desenvolvimento histórico e semântico, bem como explorando outros casos e as formas de análises científicas, ou seja, das práticas e processos que levam à análise e comprovação desse tipo de revestimento utilizado nas encadernações.

Com isto, nosso objetivo é apresentar as definições e relações da prática de livros que utilizam pele humana como revestimento em encadernações, sob um viés histórico, buscando ampliar os possíveis olhares acadêmicos sobre esses objetos, além de apresentar alguns casos e formas de testagem utilizadas. Buscamos compor um espaço introdutório sobre a prática e a temática, visto que não foram encontrados na literatura brasileira discussões sobre o assunto. 

Posto isso, realizamos uma busca de caráter abrangente, tendo como metodologia uma pesquisa de teor exploratório e bibliográfico, com os termos “bibliopegia antropodérmica” e “livros antropodérmicos”, bem como com suas variações em língua hispânica (bibliopegia antropodérmica) e inglesa (antropodermic bibliopegy), em bases de produção científica das três línguas, sendo elas: Portal de periódicos da CAPES; BRAPCI; Dialnet1; Cambridge Core; Project Muse; e JSTOR. Na soma de todas as bases, foram recuperados somente três referências sobre a temática, a saber: Díaz-Redondo (2020) e Pujol i Ros (2021) pela Dialnet, e Harrison (2017) pela Cambridge Core. Não foram encontrados trabalhos em língua portuguesa sobre o assunto. 

A partir da leitura dos materiais, ampliamos o escopo de resultados possíveis por meio das obras citadas e referenciadas nos textos analisados. Porém, mesmo assim, o coeficiente de materiais é reduzido. Segundo Rosenbloom (2020, tradução nossa), uma das referências cruzadas encontradas, uma bibliotecária estadunidense que se dedica à investigação desses materiais e atua em um projeto de testagem química de amostras para comprovação da natureza das encadernações, afirma: “[...] as únicas menções deles [livros com encadernação antropodérmica] na literatura acadêmica são antigas e compostas de mais rumores e sugestões do que de fatos confirmados2”. Para Kerner (2019), a baixa incidência de estudos contemporâneos e de maiores investigações sobre o fenômeno pode estar relacionada a um certo teor de delicadeza temática associado aos princípios éticos que regem nossa sociedade contemporânea. 

Vale frisar que, durante a pesquisa, não foram encontradas menções de itens do gênero quanto à possibilidade de existência em acervos nacionais. Esses itens, em geral, localizam-se em três espaços geográficos, Estados Unidos, Inglaterra e França, o que, em parte, se explica pelo momento histórico em que a prática parece ter sido mais utilizada. 

Como supracitado, o número de materiais recuperados foi escasso e, mesmo com a ampliação do escopo por meio de referências cruzadas, nos deparamos com mais narrativas inconclusivas do que comprobatórias. Portanto, as referências que fundamentam o estudo desses objetos ainda são parcas, especialmente quando buscamos um olhar verídico e coeso, capaz de separar mitos e boatos da realidade comprovada. 

Dois trabalhos, em específico, sustentam as discussões deste artigo sob uma ótica fundamentada na comprovação, sendo eles Gordon (2016) e Rosenbloom (2020). Nesses estudos, os autores, sob vias de observação, pesquisa e reflexão, apresentam aspectos da prática em questão e de objetos oriundos dela, analisando-os a partir das testagens biológicas atuais.

Os demais autores citados ao longo deste texto invocam reflexões e relatos das práticas, ainda que sem determinações comprobatórias, mas que servem como base para reflexão e análise das dimensões construídas em torno do imaginário relacionado a esses objetos ao longo da história moderna.

Buscando aprofundar este tema complexo e delicado, além de explorar um terreno ainda pouco investigado e analisado, o trabalho apresenta, em um primeiro momento, uma análise do uso de cadáveres ou partes destes em culturas e itens variados, destacando as dimensões iniciais da prática da bibliopegia antropodérmica, ou seja, a encadernação de livros com revestimento de couro oriundo de pele humana, e alguns exemplos de itens do gênero. Na seção seguinte, observamos o desenvolvimento das formas de testagem de tais materiais ao longo das décadas, o que nos leva também a explanações sobre um projeto em voga nos Estados Unidos, focado na localização e testagem desses supostos itens. 

2 DAS CULTURAS, PRÁTICAS E MITOS

O mito, em seu sentido mais amplo, surge em diversas culturas como uma tentativa de explicação de determinados fenômenos, sobretudo naturais. Porém, também se dissemina entre as sociedades como um eco do passado, alimentado por rumores de práticas esquecidas, perdidas ou insuficientemente documentadas ao longo do desenvolvimento histórico e social da humanidade.

Muito se propaga entre os sussurros e ruídos da história da humanidade sobre itens, dos mais variados, confeccionados a partir de restos humanos. Essas suposições figuram no imaginário coletivo, sobretudo quando se entoam períodos históricos marcados por práticas violentas, como tempos de guerras e revoluções. Entre alguns exemplos estão os supostos abajures confeccionados com pele humana durante o nazismo (Gordon, 2016); os arquivos de processos encadernados com as peles de criminosos sentenciados à morte (Graham, 1965; Pritchard, 2014; Smith, 2014; Thompson, 1946); uma peça de vestuário realizada com pele humana durante a Revolução Francesa (Harrison, 2017; Rosenbloom, 2020), além dos supostos livros com encadernação revestida de pele humana de monarcas depostos nesse mesmo período (Diaz-Redondo, 2020; Rosenbloom, 2020); sapatos infantis confeccionados com couro humano de indigentes na América do século XVIII (Graham, 1965), entre outros causos. Todas essas alegações são rodeadas de incertezas, sendo mais boatos do que fatos comprovados. 

Porém, uma das práticas peculiares envolvendo restos humanos vem ganhando notoriedade ao longo das décadas, sobretudo a partir do século XIX, avançando em estudos e comprovações científicas, trata-se do uso de pele humana, mais especificamente de couro confeccionado a partir da pele humana, para a encadernação de livros. Essa prática ficou conhecida pela terminologia Bibliopegia Antropodérmica, sendo “[...] a combinação das palavras de raiz grega para humano (anthropos), pele (derma), livro (biblion), e ligar (pegia)” (Rosenbloom, 2020, tradução nossa)3

A delimitação da bibliopegia antropodérmica no contexto histórico é um tema bastante complexo. Vários autores que se dedicam ao tema (Harrison, 2017; Pritchard, 2014; Pujol; Ros, 2021) afirmam que a prática teria tido início no século XVI e decaído entre o fim do século XIX e o começo do século XX. Porém, essas datas, conforme apresentadas por tais autores, referem-se à confecção das obras que se têm conhecimento atualmente e que supostamente ou comprovadamente possuem um invólucro de pele humana, ou seja, são baseadas na data de confecção das edições. Elas não consideram um aspecto primordial e de extrema importância, neste caso, livros podem ser reencadernados. Logo, nada impede que um material impresso no século XVI tenha sofrido alterações e tido sua encadernação alterada mais a frente, em um período em que a prática estivesse em voga.

A reencadernação era especialmente popular entre colecionadores de livros raros do século XIX, de modo que até mesmo um livro muito antigo, impresso antes da era conhecida da bibliopegia antropodérmica, poderia ser um livro de pele humana se fosse reencadernado no século XIX (Rosenbloom, 2020, tradução nossa)4.

O mais preciso que se pode afirmar atualmente é que a prática é um fenômeno do século XIX, não necessariamente iniciado nele, mas atingindo um certo apogeu em relação aos casos descritos, aos motivos e aos itens que a envolvem (Gordon, 2016; Rosenbloom, 2020; Smith, 2014). Ainda assim, a construção desses objetos e o entendimento de sua aplicação permanecem indeterminados, quase como um conjunto de lendas. As histórias sobre itens desse tipo, por muito tempo, foram transmitidas sem métodos para testar o material, e em muitos casos, não se esclareciam os motivos específicos para a aplicação dessa encadernação, ou mesmo a procedência e identificação das pessoas cujos corpos forneceram a pele utilizada 

Uma das questões, quase mitológicas, por trás das práticas antropodérmicas, refere-se à qualidade do couro humano, que, quando tratado, possui uma durabilidade e resistência à água muito maior em comparação com outros tipos de couro animal (Gordon, 2016; Graham, 1965).

A prática do uso de pele humana no revestimento das encadernações, em sua maioria, parece corresponder a um grupo específico de bibliófilos do período mencionado. Embora não se restrinja exclusivamente a eles, esse grupo inclui os indivíduos que hoje são mais documentados e investigados em relação aos itens e seus antigos proprietários, referindo-se, principalmente, a médicos colecionadores. Esses médicos, especialmente legistas ou professores de anatomia, eram profissionais que dissecavam corpos como profissão ou estudo, e viam no colecionismo e na prática desse exótico revestimento para encadernação, um olhar especialmente bibliográfico, transformando esses produtos em itens de luxo e alto valor colecionável. “A pele de um morto havia se tornado um subproduto do processo de dissecação, como um pedaço de couro animal após o abate de um açougueiro, colhida exclusivamente para tornar os livros pessoais de um médico mais colecionáveis e valiosos”5 (Rosenbloom, 2020, tradução nossa). 

Um dos casos talvez mais marcantes já identificados nessas teias de relações entre objeto, produtor, motivos e intenções é o exemplar da biblioteca de Harvard de Des destinées de l’ame (Os destinos da alma), de autoria de Arsène Houssaye. Como o próprio nome já indica, o livro aborda relações e reflexões sobre a vida, a mortalidade e a imortalidade, tratando de ponderações sobre uma possível vida após a morte. O livro teria sido doado pelo próprio autor na década de 1880 a um de seus amigos, o médico e bibliófilo Dr. Ludovic Bouland, que, por sua vez, decidiu encaderná-lo com tecido humano de uma mulher proveniente de uma de suas dissecações (Rosenbloom, 2020). O livro possui a seguinte inscrição de Bouland:

Este livro está encadernado em pergaminho de pele humana, na qual nenhum ornamento foi estampado para preservar sua elegância. Ao olhar com atenção, você pode facilmente distinguir os poros da pele. Um livro sobre a alma humana merecia ter uma cobertura humana: eu tinha guardado este pedaço de pele humana retirada das costas de uma mulher. É interessante observar os diferentes aspectos que alteram esta pele de acordo com o método de preparação ao qual é submetido (Bouland apud Gordon, 2016, p. 126, tradução nossa)6.

Este item, em especial, é um dos poucos casos que indicam detalhes mais precisos sobre a origem da pele, neste caso, afirmando ser de uma mulher. De modo geral, as inscrições que acompanham esses itens são vagas, servindo apenas como tentativa de atestar que o material utilizado para a confecção do couro é humano. A cópia de Des destinées de l’ame foi o primeiro item a ser testado com técnicas mais contemporâneas, em 2014, e teve o seu revestimento de encadernação de couro humano comprovado.

Outro caso conhecido é o dos três livros realizados pelo Dr. John Stockton Hough, todos testados e comprovados como encadernados com couro humano. Tratam-se de três exemplares de obras distintas, sendo elas: Les nouvelles découvertes sur toutes les parties principales de l’homme, et de la femme (1680) de Louis Barles; Recueil des secrets de Louyse Bourgeois (1650), e Speculations on the Mode and Appearances of Impregnation in the Human Female (1789), de Robert Couper. Esses itens estão sob posse da Biblioteca da Faculdade de Médicos da Filadélfia. O que os distingue da maioria dos itens do gênero é o fato de haver informações sobre a procedência da pele, que pertenceu a uma paciente chamada Mary Lynch. Essa descoberta foi possível devido a séries de investigações documentais a partir de uma inscrição realizada nos três livros por Hough, que indicava a procedência da pele como extraída de “Mary L” (Rosenbloom, 2020). 

Com esta informação, a bibliotecária Beth Lander, da instituição mantenedora, iniciou uma investigação nos arquivos médicos do Hospital Geral da Filadélfia, local onde John Hough atuou durante anos. Cruzando informações, Beth conseguiu identificar a ficha da paciente Mary Lynch, admitida no hospital em 1868 e falecida de Triquinelose7. John Hough foi o médico legista que realizou a autópsia do corpo de Lynch e teria retirado partes da pele da coxa da mulher, preservando-as para uso futuro (Rosenbloom, 2020). 

Além desses três livros, a Biblioteca da Faculdade de Médicos da Filadélfia possui mais dois exemplares comprovadamente contendo encadernação antropodérmica, De conceptione adversaria (1686), de Charles Drelincourt, também realizado por Hough com “[...] a pele do entorno do pulso de um homem falecido no hospital em 1869”8 (Hough apud Rosenbloom, 2020, tradução nossa), e An Elementary Treatise on Human Anatomy (1861), de Joseph Leidy. Este último foi realizado pelo próprio autor (médico e professor de anatomia) supostamente encadernado com a pele de um soldado morto durante uma das guerras civis nos Estados Unidos. Até o presente momento, essa biblioteca é a instituição com a maior coleção de itens comprovados do tipo. 

Um estudo realizado por Kerner (2019) listou um total de 136 itens com suposta encadernação antropodérmica. O levantamento realizado pela autora utilizou exclusivamente menções registradas sobre os materiais, sem comprovações factuais acerca da origem da pele ou da veracidade do tipo de couro. Para tal, foram utilizados como fonte de pesquisa “[...] uma revisão da literatura existente e consultas às fontes arquivísticas das maiores casas de leilão francesas, britânicas e estadunidenses”9 (Kerner, 2019, p. 2, tradução nossa). Esse levantamento abrange uma perspectiva geral e lista os itens passíveis de localização em instituições ou acervos pessoais (segundo a autora 70), os mencionados na literatura, mas não localizados, além de itens que supostamente foram encomendados por colecionadores, sem a possibilidade de saber se o pedido foi concluído ou não. 

Entre paralelos, comprovações e dualidades, o levantamento de Kerner (2019) oferece um amplo panorama que suscita diversos questionamentos e reflexões. O primeiro relacionado à quantidade de menções versus a quantidade de exemplares localizados, quantos desses itens foram destruídos ao longo das décadas por possíveis herdeiros de coleções que, talvez, desejassem esconder um passado e uma herança tida como profana. O segundo nos leva a refletir sobre falsas origens, o que em parte pode ser respondido, mas talvez não em sua totalidade, por que alimentar uma imaginação que um livro possui encadernação de couro oriundo de pele humana, sem que de fato o tenha? 

Parte dessa questão encontra resposta no perfil dos produtores desses materiais. Quando se trata de bibliófilos ou de pessoas interessadas em vincular esses materiais a essas pessoas em específico, a diferenciação deste tipo elencaria tais itens dentro de um contexto de alta raridade, conferindo-lhes elevado valor simbólico e monetário, como já mencionado. Porém, poderiam existir outros motivos, além do valor financeiro e da raridade simbólica, que justificassem a construção desse imaginário? 

Atualmente, temos a concepção moral de que apenas serial killers ou mentes perturbadas seriam capazes de guardar, como “troféus” objetos que utilizam pele humana ou restos mortais, de forma geral, em suas composições (Rosenbloom, 2020), porém, é interessante ressaltar que outras práticas envolvendo o uso de cadáveres ou partes deles já compuseram aspectos da vida cotidiana, como a confecção de souvenirs memento mori, relíquias e objetos confeccionados para preservar, em memória, a vida do morto. 

A era vitoriana britânica, por exemplo, nos apresenta perspectivas sobre a morte e a objetificação de partes físicas dos falecidos, ou criação de memórias vívidas deles, que a contemporaneidade poderia considerar imorais. A confecção de peças, como pulseiras, a serem utilizadas no cotidiano pelos vivos próximos ao falecido, feitas com partes deste, era uma prática comum nesse período.

Popular a partir de meados do século XVIII, a cultura das relíquias tornou-se uma febre entre as décadas de 1850 e 1880, a ponto de uma indústria movimentada florescer, especialmente no que diz respeito a joias feitas de cabelo, embora lembranças de dentes também tenham tido seu momento, assim como álbuns de cabelo, quadros e guirlandas. Anúncios para designers de cabelo, artesãos de cabelo e trabalhadores de cabelo eram publicados em jornais, e periódicos discutiam essa moda à medida que ela crescia e diminuía (Lutz, 2011, p. 129, tradução nossa)10.

Outro caso do mesmo período era o das fotografias com entes mortos, nas quais o cadáver era preparado para parecer vivo, em alguns casos, com os olhos mantidos abertos, ou para aparentar estar em estado de adormecimento, uma alusão à morte como o sono eterno. Nesse período, a fotografia era tida como um item de luxo, acessível apenas a poucos, sobretudo às elites, por ser um processo custoso. Logo, muitas pessoas faleciam antes de terem sido fotografadas, em muitos casos em crianças que morriam cedo, tendo a fotografia pós-morte representado uma construção de memória dos entes queridos (Marcondes, 2010).

A fotografia post mortem entra em declínio, não por questões éticas, mas devido a avanços tecnológicos, pois com o avanço das técnicas fotográficas e, consequentemente, a longo prazo, o barateamento do processo, inicia-se uma amplitude da possibilidade de ter retratos com membros da família e amigos ainda em vida, tornando desnecessária a utilização da prática com cadáveres.

Ambos os casos demonstram como o passado e as práticas dele oriundas estabeleciam diferentes dimensões em relação à morte e às confecções relacionadas

a ela. Nos exemplos mencionados, “A fotografia e a relíquia ambas provam que a pessoa amada ausente esteve ali”11 (Lutz, 2011, p. 135, tradução nossa).

Por mais que o olhar contemporâneo do século XXI possa enxergar alguns atos com certo grau de estranhamento, a noção sobre os corpos e a morte em décadas passadas se apresentava de formas diferentes. Isso é algo que não pode ser desconsiderado, sobretudo quando observamos itens que passam a compor coleções e atuam como objetos de diálogo histórico com o passado.

3 DA CIÊNCIA, VERIFICAÇÃO E COMPROVAÇÃO DO TECIDO HUMANO

Uma das questões que se coloca em relação a essa característica do revestimento de algumas encadernações, como a utilização de pele humana, é a comprovação factual e científica das propriedades do tecido. Afinal, o que diferencia, (visualmente ou ao toque), uma encadernação feita com pele humana daquela que utiliza outros tipos de pele mais tradicionais, como as de origem bovina ou suína? 

Para além disso, esses materiais integram-se em um âmbito de coleções, inicialmente privadas, que possuem nos itens a sua individualidade, banhadas em práticas e desejos advindos de uma composição de acervos distintos, com maiores quantidades de itens raros e diferenciados, algo muito comum entre bibliófilos, sobretudo no século XIX. Com o passar das décadas e a chegada desses materiais ao tempo contemporâneo, os mitos e suposições que os envolvem, em muitos casos, tornam-se mais atraentes do que a comprovação factual das coisas, ou seja, a prova de que o revestimento das obras é, ou não, de couro humano.

Muitos colecionadores, tendo pago uma soma considerável por um item, ficam relutantes em submetê-lo a exames científicos para que não se prove que são genuínos. Ele prefere acreditar no que lhe foi dito, em vez de ter suas dúvidas confirmadas. É certo, porém, que em diferentes momentos no passado, uma importância foi atribuída ao couro humano, e hoje, quando a prática de curtimento da pele humana está diminuindo rapidamente, o desejo entre certos bibliomaníacos de possuir um livro encadernado assim permanece tão insaciável como sempre (Graham, 1965, p. 14, tradução nossa)12.

Considerando a relação com o tempo histórico e a ausência de aparatos que permitissem comprovações factuais, as possibilidades eram limitadas. Segundo Gordon (2016, p. 120, tradução nossa), “Antes do século XX, o único método de verificação era por meio visual, muitas vezes com ampliação mecânica. Proprietários de livros ou colecionadores poderiam confiar na procedência de um livro ou submetê-lo à inspeção visual, muitas vezes por especialistas forenses”13.

A análise visual baseava-se em um sistema de comparação, no qual, pela observação dos padrões e dos espaçamentos entre os poros, era declarada a origem da pele. Isso porque, supostamente, o couro feito de pele humana detém maiores espaçamentos entre os poros dos pelos do que o couro de outros animais. Logo bastava comparar diferentes couros de diferentes espécies para atestar a origem. Alguns casos de encadernações antropodérmicas conhecidos atualmente foram declarados como verídicos com base nesse tipo de análise. Contudo, essa abordagem foi desacreditada nas últimas décadas por não ser suficientemente precisa.

[...] estudar os padrões foliculares no couro serviu como o método mais comum para identificar qual animal forneceu couro ao livro. Vendedores de livros raros ainda aplicam este método para discernir a origem do couro animal ao descrever livros à venda. [...]. Esse método funciona para os usos mais comuns, mas os padrões foliculares podem não ser confiáveis. Durante o processo de curtimento, o couro estica e deforma de maneiras imprevisíveis, portanto, discernir um padrão de triângulo de um formato de diamante pode ser bastante subjetivo. A idade também pode desgastar os padrões foliculares. As consequências são mínimas se um livreiro confunde couro marroquinho com de bezerro. Mas a mudança nas apostas e o preço entre um livro de couro animal e um livro de couro humano é substancial (Rosenbloom, 2020, tradução nossa)14.

Em alguns casos, instituições, no passado recente, realizaram as testagens baseadas em modelos de comparação visual e consideraram-se satisfeitas com os resultados, não julgando necessário submeter os materiais a novas testagens, mesmo com a existência de práticas mais contemporâneas e, de certa forma, mais precisas (Gordon, 2016). Essas decisões corroboram a ideia do imaginário, em que a presença de um item rodeado por suposições tem mais valor do que o risco de tentar comprová-lo e obter um resultado negativo.

Itens como The Chronicles of Nawat Wuzeer Hyderabed (1848), na Biblioteca Newberry de Chicago, Poems on Various Subjects, Religious and Moral (1773), de Phillis Wheatley, na Coleção de Livros Raros da Biblioteca da Universidade de Cincinnati, e The Poetical Works of Rogers, Campbell, J. Montgomery, Lamb, and Kirke White: Complete in One Volume (1829), na Biblioteca Nacional da Austrália, são alguns dos casos que, até o presente momento, possuem apenas confirmações baseadas em comparação visual.

Vale ressaltar que vários itens previamente confirmados como contendo encadernações antropodérmicas com base em comparação visual foram desacreditados posteriormente por meio de testagens mais precisas. Para Gordon (2016), esses materiais e o imaginário criado em torno deles atuam enquanto agentes publicitários para as instituições, atraindo atenção, visitantes e possíveis investidores. 

Com o passar das décadas e com o aumento da curiosidade por meios mais precisos de identificação, uma das práticas que figurou no escopo de reflexão em relação à testagem dos materiais foi o exame de DNA, considerado um elemento mais científico em comparação às comprovações visuais. Porém, essa prática se mostrou ineficaz para esses itens. Gordon (2016) e Rosenbloom (2020) afirmam que testagens de DNA nesses objetos são praticamente impossíveis, já que o processo de curtimento do couro destrói boa parte das moléculas de DNA, além de não se tratar de um processo confiável, pois, sendo itens antigos, suas encadernações podem ter sido contaminadas ao longo das décadas devido ao manuseio, o que poderia resultar em um falso positivo. 

Um caso paralelo narrado por Gordon (2016, p. 123) sobre as imprecisões do exame de DNA refere-se a um dos supostos abajures de pele humana que teriam sido confeccionados pelos nazistas. De propriedade do jornalista Mark Jacobson, o objeto teve uma amostra testada pela Bode Technology Group of Lorton, empresa que auxiliou na identificação das vítimas do atentado terrorista de 11 de setembro nos Estados Unidos. O resultado atestou a composição como sendo pele humana. Posteriormente, durante a produção de um documentário realizado em 2012 sobre essa suposta confecção de abajures nazistas com restos mortais (Human Lampshade: a Holocaust Mystery), o item foi submetido a uma nova rodada de testes, realizada pelo laboratório Mason, em Nova York, que confirmou em 100% que o material era, na verdade, de origem bovina. 

Não foi até muito recentemente, já na segunda década do século XXI, que uma técnica mais coerente para testagem começou a ser utilizada em encadernações com revestimento antropodérmico, trazendo confirmações de alta precisão.

Trata-se da Impressão de Massa Peptídica (Peptide Mass Fingerprinting - PMF). O processo ocorre da seguinte forma: 

[...] primeiro, se remove um pequeno pedaço da encadernação de um livro com um bisturi ou pinça afiada; se o pedaço for visível a olho nu, é mais do que suficiente. A amostra é digerida em uma enzima chamada tripsina e a mistura é colocada em uma placa MALDI (Ionização e dessorção a laser assistida por matriz). A placa MALDI é colocada em um espectrômetro de massa15, onde lasers irradiam a amostra para identificar seus peptídeos (as curtas cadeias de aminoácidos que são os blocos construtores das proteínas) e criar uma impressão digital de massas peptídicas (PMF)16. A “impressão digital” parece um gráfico de linha de picos e vales, e cada impressão digital corresponde a uma entrada em uma biblioteca de exemplos conhecidos de animais (Rosenbloom, 2020, tradução nossa)17.

Por conta das relações evolucionárias entre as espécies, diferentes famílias possuem diferentes marcadores, neste caso, as impressões digitais de peptídeos. O teste de PMF não é, propriamente, um atestado de couro de pele humana, mas sim uma afirmação de que o material pertence à família taxonômica dos Hominídeos, composta não somente por seres humanos, mas também por grandes primatas, como gorilas e chimpanzés. A questão central da testagem e da afirmação de que se trata de pele humana, inclusive sendo ressaltada por Rosenbloom (2020) em seu livro, é que não há evidências de práticas de encadernação realizadas com couro de primatas que não seres humanos, logo, ao comprovar que se trata de uma cadeia peptídica desta família taxonômica, podemos em parte comprovar que estamos lidando com couro de um ser humano, mas não se estabelece em si uma afirmação com certeza absoluta e irrevogável, devido às limitações descritas.

É impossível ainda determinar a natureza sexual do material, em seu aspecto biológico, com base nesses testes. Não há como identificar se o couro foi produzido a partir de pele masculina ou feminina, ficando essa informação sujeita às notas do material, que podem ou não ser verídicas. No geral, poucos casos de livros apresentam uma descrição tão detalhada, limitando-se, em sua maioria, a indicar que se trata de um material que utiliza pele humana. 

Entre os três métodos descritos, análise visual, exame de DNA e Impressão de Massa Peptídica, o último é atualmente o mais coerente em relação aos resultados e também o mais acessível no quesito financeiro. Porém, nem todas as instituições demonstram intenção de realizar uma rodada de testes desse tipo. Em parte porque se consideram satisfeitas com atestados anteriores; em parte porque não desejam “mutilar” os materiais, já que é necessário retirar um pedaço do revestimento da encadernação para o teste, e também porque, em alguns casos, não há anseio em desfazer a identidade mística por trás de um item com tamanha controvérsia dentro de um acervo e da atenção que isso propicia. 

A técnica de testagem foi aperfeiçoada para aplicação em itens antropodérmicos por Daniel Kirby, químico responsável pela testagem do primeiro livro com encadernação antropodérmica comprovado pela técnica - o exemplar Des destinées de l’ame, pertencente à Harvard, mencionado anteriormente. Segundo relato de Rosenbloom (2020), logo após a testagem e comprovação do livro, e com os contatos que foram sendo estabelecidos entre interessados na investigação e comprovação de materiais desse tipo, surgiu o Projeto do Livro Antropodérmico (The Anthropodermic Book Project), uma iniciativa voluntária de quatro pesquisadores. 

Atualmente, o projeto conta com quatro profissionais dedicados à análise desses materiais, sendo eles: Anna Dhody, antropóloga forense e curadora do Museu

Mütter, um espaço com uma vasta coleção de história médica que contém objetos variados e classificados como “perturbadoramente informativos”, incluindo esque letos, tumores, fotografias e outros;  Dr. Daniel P. Kirby, especialista com doutorado em Espectrometria Analítica de Massa e atuante na área de perícia em patrimônio artístico e cultural; Dr. Richard R. Hark, especialista em química orgânica, pesquisador da aplicação de técnicas analíticas aos estudos de patrimônio cultural; e Megan Rosenbloom, bibliotecária e mestre em Biblioteconomia e Ciência da Informação, que, devido à sua experiência com acervos médicos e raros, atua como investigadora documental (The Anthropodermic Book Project, [2014?]).

Segundo informações do site do projeto, até abril de 2024 haviam sido identificados e elencados para análise um total de 51 itens supostamente antropodérmicos. Destes, 32 foram testados, dos quais 18 foram confirmados como contendo encadernação com revestimento de pele humana, e 14 como contendo outro tipo de couro (The Anthropodermic Book Project, [2024?]). É importante ressaltar que o foco do projeto está no mapeamento e nas tentativas de testagem de itens pertencentes a coleções públicas. 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A descoberta de um livro com encadernação antropodérmica não deve ser vista como uma afronta ética ou um ato profano, mas sim como uma oportunidade para análise do passado. Compreender as histórias ocultas nos livros, as vozes silenciadas, seus contextos e os atos que resultaram na criação de tais materiais podem revelar uma das grandes riquezas que a Biblioteconomia de livros raros e a manutenção de coleções especiais nos oferece.

Embora o fato de a pele humana ter sido utilizada desta forma seja contemporaneamente problemática, particularmente na era pós-Holocausto, estes livros podem servir como ponto focal na discussão de como as coleções especiais podem equilibrar a ética moderna com o seu papel mais tradicional de preservação. Em termos mais diretos, é um debate entre o tratamento respeitoso dos restos mortais humanos e o papel dos repositórios de pesquisa (Gordon, 2016, p. 119, tradução nossa)18

Uma das vertentes que tem ganhado espaço nos últimos anos é um novo campo de estudos denominado Biocodicologia (Biocodicology), que se dedica às interações e análises de itens patrimoniais, sobretudo bibliográficos, a partir de análises bioquímicas. O foco principal desse campo tem sido os pergaminhos e manuscritos, bem como o dimensionamento histórico que podemos compor com análises mais aprofundadas desses agentes. Isso inclui a ampliação das percepções sobre como livros eram confeccionados nas antigas sociedades e até mesmo como certos animais eram mantidos, entre muitos outros. Esse campo pode também se tornar uma vertente produtiva para análises e discernimentos mais profundos no que tange a livros com revestimento de encadernação antropodérmica e seus mapeamentos históricos. 

Como ressaltado na introdução deste artigo, não foram encontrados casos ou menções conhecidas de itens do gênero no Brasil, porém, não podemos descartar a possibilidade de existência de tais materiais em nossos acervos institucionalizados. Itens bibliográficos, sobretudo quando encapsulados em teores que lhes conferem grau de raridade, povoam leilões dos mais diversos, podendo terminar em coleções privadas e, em determinado momento, serem doados a acervos institucionais. Até onde se sabe sobre as obras compostas por tais práticas, como as mencionadas neste texto, estas trazem consigo menções ou marcas que as colocam sob suspeita de possuir esse tipo específico de revestimento na encadernação, porém, nada impede que obras variadas, sem qualquer identificação ou menção, componham acervos ao redor do mundo. Como as testagens científicas são realizadas geralmente com base em suspeitas ou menções, e considerando que o couro, após ser curtido, apresenta poucas diferenças visuais perceptíveis, pode ser impossível mensurar completamente a dimensão desses itens.

Esses livros com encadernações antropodérmicas não são os únicos considerados profanos ou controversos em termos éticos que povoam coleções das mais variadas e que impactam o cotidiano e as reflexões de museólogos, arquivistas e bibliotecários. Diversas coleções ao redor do mundo possuem itens contendo restos mortais, o que nos leva a refletir sobre as práticas de manutenção e o desenvolvimento de abordagens para lidar com esses itens e trata-los adequadamente em acervos. 

Além disso, é importante entender o contexto de seu período histórico, as práticas médicas do século XIX eram completamente diferentes das relações contemporâneas. Dissecar um corpo era um dos principais laboratórios de aprendizado de uma época ainda rudimentar, se comparada aos padrões atuais de observação, registro e análise. Partes dos cadáveres frequentemente eram mantidos para usos posteriores, refletindo práticas que hoje podem parecer estranhas ou inadequadas.

Coleções, sobretudo aquelas compostas por itens raros e especiais, atuam como pontes de diálogo metafórico entre o passado e o presente. São fontes valiosas para análise e entendimento do passado, bem como das formas pelas quais as sociedades lidavam com temas e práticas diversas, incluindo o tratamento do corpo e dos mortos. 

Até onde se estende e onde se delimita a linha entre as reflexões da ética contemporânea e as práticas e artefatos históricos que nos remontam ao passado e ao contato com outros tempos? Muito se pondera, após as comprovações factuais de que tais itens foram encadernados com revestimento de pele humana, se esses deveriam ser removidos das coleções, ter suas encadernações retiradas e a pele direcionada a algum tipo de sepultamento (como ocorreu com o item de Harvard), ou seja, a estrutura desses materiais seria desfeita e os resquícios da prática apagados. 

Vale relembrar que a comprovação desse tipo de couro não atesta a humanidade da origem do produto couro, mas sim a família taxonômica da qual pertence. Nada impede que, futuramente, com o avanço das técnicas de investigação e das tecnologias, descubram-se origens de uso de primatas não racionais. Aqui surge um questionamento, a comoção em favor da retirada e reposição por um invólucro sintético será tão significativo quanto a de itens feitos com pele humana? Em que o couro humano se distingue tão fortemente, em termos éticos, do couro de bovinos ou equinos? Vale destacar que, animais muitas vezes eram abatidos com o intuito de se utilizar suas peles, diferentemente dos casos com seres humanos em que a pele era geralmente retirada após morte natural.  

Esperamos que este trabalho fomente e amplie os olhares sobre práticas históricas e itens no presente, sobretudo no contexto das relações entre bibliotecários de coleções raras e especiais e suas interações com o passado e suas práticas, bem como com o presente. Procuramos apresentar de forma breve e introdutória o contexto dessas práticas, além de destacar alguns casos comprovados de itens que utilizam pele humana em sua encadernação, e realizar uma breve análise sobre as formas de testagem aplicadas a esses materiais ao longo das décadas.

FINANCIAMENTO

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código do Financiamento 001.

REFERÊNCIAS

DÍAZ-REDONDO, C. Vestidos por piel humana: tras el tabú de la bibliopegia antropodérmica. Archivamos: Revista de actualidad de archivos y documentos, Espanha, n. 118, p. 39-41, dez. 2020.

GORDON, J. In the Flesh? Anthropodermic Bibliopegy Verification and Its Implications. RBM: A Journal of Rare Books, Manuscripts, and Cultural Heritage, [s. l.], v. 17, n. 2, p. 118-133, abr. 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5860/rbm.17.2.9664. Acesso em: 25 jan. 2025.

GRAHAM, R. Bookbinding with human skin. The Private Library, North Harrow, v. 6, n. 1, p. 14-18, jan. 1965.

HARRISON, P. N. Epilogue: anthropodermic bibliopegy in the early modern period. In: TRACY, L. (ed.). Flaying in the Pre-Modern World: practice and representation. England: Boydell & Brewer, 2017. p. 366-383.

KERNER, J. Anthropodermic bibliopegy: an extensive survey and re-appraisal of the phenomenon. Paris: Université Paris-Nanterre, 2019. Relatório de pesquisa. Disponível em: https://shs.hal.science/halshs-02321007. Acesso em: 25 jan. 2025.

KRAMER, B.; TREVISOL, I. M.; SILVA, V. S. Triquinelose: saiba o que é e como proteger as criações de suínos e a sua saúde. [Concórdia, SC: Embrapa Suínos e Aves], 2017. 6 p. Folheto informativo. Disponível em: https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/handle/doc/1082900. Acesso em: 25 jan. 2025.

LUTZ, D. The dead still among us: victorian secular relics, hair jewelry, and death culture. Victorian Literature And Culture, [s. l.], v. 39, n. 1, p. 127-142, 2011. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41307854. Acesso em: 25 jan. 2025.

MARCONDES, M. Fotografia e tecnologia: o pós-morte no Brasil oitocentista. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 18, n. 1, p. 152–170, 2010. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645684. Acesso em: 25 jan. 2025.

PRITCHARD, M. On Bibliomancy, Anthropodermic Bibliopegy, and The Eating Papers; or, Proust’s Porridge. Conjunctions, [s. l.], v. 63, p. 26-35, sept.-nov. 2014. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24517831. Acesso em: 25 jan. 2025.

PUJOL i ROS, J. Bibliopègia antropodèrmica i Medicina. Gimbernat: evista d’Història de la Medicina i de les Ciències de la Salut, [s. l.], v. 75, p. 181-196, jun. 2021. Disponível em: https://raco.cat/index.php/Gimbernat/article/view/388297. Acesso em: 25 jan. 2025.

ROSENBLOOM, M. Dark archives: a librarian’s investigation into the science and history of books bound in human skin. New York: Farrar, Straus And Giroux, 2020. 288 p. E-book.

SCHUESSLER, J.; JACOBS, J. Harvard Removes Binding of Human Skin From Book in Its Library. The New York Times, New York, 27 mar. 2024a. Disponível em: https://www.nytimes.com/2024/03/27/arts/harvard-human-skin-binding-book.html?searchResultPosition=2. Acesso em: 25 jan. 2025.

SCHUESSLER, J.; JACOBS, J. Harvard vai remover encadernação feita com pele humana de livro em sua biblioteca. O Globo, Rio de Janeiro, 28 mar. 2024b. Caderno Cultura. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2024/03/28/harvard-vai-remover-encadernacao-feita-com-pele-humana-de-livro-em-sua-biblioteca.ghtml. Acesso em: 25 jan. 2025.

SMITH, D. K. Books bound in human skin: a survey of examples of anthropodermic bibliopegy. In: EBENSTEIN, J.; DICKEY, C. (ed.). The Morbid Anatomy anthology. Brooklyn, New York: Morbid Anatomy Press, 2014. p. 380-393. ISBN: 978-0-9893943-0-7.

THE ANTHROPODERMIC Book Project. The Team. [United States], [2014?]. Disponível em: https://anthropodermicbooks.org/about/the-team/. Acesso em: 25 jan. 2025.

THE ANTHROPODERMIC Book Project. Home. [United States], [2024?]. Disponível em: https://anthropodermicbooks.org/. Acesso em: 25 jan. 2025.

THOMPSON, L. S. Tanned Human Skin. Bulletin Of The Medical Library Association, [s. l.], v. 34, n. 2, p. 93-102, abr. 1946. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC194573/. Acesso em: 25 jan. 2025.

VESSECCHI, R. et al. Nomenclaturas de espectrometria de massas em língua portuguesa. Química Nova, São Paulo, v. 34, n. 10, p. 1875-1887, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/qn/a/5nBNqSybZDZDGSGqNfxqj9J/?lang=pt. Acesso em: 25 jan. 2025.

1

Portal de difusão de produção científica hispânica.

2

Tradução de: [...] the only mentions of them in the academic literature are old and filled with more rumor and innuendo than confirmed fact.

3

Tradução de: [...] a combination of the Greek root words for human (anthropos), skin (derma), book (biblion), and fasten (pegia).

4

Tradução de: Rebinding was especially popular for nineteenth-century collectors of older rare books, so even a very old book printed before the known era of anthropodermic bibliopegy could be a human skin book, if it were rebound in the nineteenth century.

5

Tradução de: A dead person’s skin had become a by-product of the dissection process, like a piece of animal leather after a butcher’s slaughter, harvested solely to make a doctor’s personal books more collectible and valuable.

6

Tradução de: This book is bound in human skin parchment on which no ornament has been stamped to preserve its elegance. By looking carefully, you easily distinguish the pores of the skin. A book about the human soul deserved to have a human covering: I had kept this piece of human skin taken from the back of a woman. It is interesting to see the different aspects that change this skin according to the method of preparation to which it is subjected.

7

“Triquinelose é uma zoonose causada por parasita do gênero Trichinella. Animais silvestres, incluindo roedores e suídeos asselvajados estão entre os principais reservatórios em locais onde o parasito ocorre. A triquinelose é um problema de segurança alimentar de risco à saúde pública (kramer; trevisol; silva, 2017)”. A doença infecta os seres humanos a partir do consumo de carnes e derivados quando mal cozidos.

8

Tradução de: [...] skin from around the wrist of a man who died in the [Philadelphia] Hospital 1869.

9

Tradução de: [...] a review of the existing literature and the consultation of archival sources from the major French, British and American auction houses.

10

Tradução de: Popular from the mid eighteenth century, relic culture became such a craze from the 1850s to the 80s that a busy industry flourished, especially in hair jewelry, although mementos of teeth also had their day, as did hair albums, pictures, and wreaths. Advertisements for designers in hair, hair artisans, and hairworkers ran in newspapers, and periodicals discussed the fad as it waxed and waned.

11

Tradução de: The photograph and the relic both prove that the absent loved one has been there.

13

Tradução de: Prior to the twentieth century, the only method of verification was by visual means, often with mechanical magnification. Book owners or collectors could either trust the provenance of a book or submit it to visual inspection, often by forensic experts.

12

TTradução de: Many a collector, having paid a considerable sum for a specimen, is loath to have it subjected to scientitifc examination lest it be proved not genuine. He prefers to believe what he has been told rather than have his doubts confirmed. It is certain however that at different times in the past a premium has been put on human leather, and today when the practice of tanning human skin is fast diminishing, the desire among certain bibliomaniacs to own a book so bound remains as insatiable as ever.

14

Tradução de: [...] studying the follicle patterns on the leather served as the most common method for identifying which animal supplied a book’s leather. Rare book sellers still apply this method to discern the leather’s animal of origin when describing books for sale. The idea is that the arrangements of human hair follicles differ from that of a cow or pig; some conservation labs put high-powered microscopes to use for this purpose. This method works for most common uses, but follicle patterns can be unreliable. During the tanning process, leather stretches and warps in unpredictable ways, so discerning a triangle pattern from a diamond shape can be rather subjective. Age can also wear away the follicle patterns. The consequences are minimal if a book dealer mistakes Morocco leather for calf. But the change in stakes and price between an animal leather book and a human leather one is substantial.

15

“Um instrumento que mede os valores de m/z e a abundância de íons em fase gasosa” (Vessecchi et al., 2011).

16

“Um método para análise de proteínas, onde uma proteína desconhecida é química ou enzimaticamente clivada em fragmentos peptídicos, cujas massas são determinadas por espectrometria de massas. As massas desses peptídeos são comparadas às massas de peptídeos calculadas a partir proteínas conhecidas em um banco de dados e analisadas estatisticamente para determinar a melhor correlação” (Vessecchi et al., 2011).

17

Tradução de: First, remove a tiny chunk of a book’s binding with a scalpel or sharp tweezers; if the chunk is visible to the human eye, it is more than enough. The sample is digested in an enzyme called trypsin and the mixture is dropped onto a MALDI (Matrix-Assisted Laser Desorption/Ionization) plate. The MALDI plate is placed into a mass spectrometer, where lasers irradiate the sample to identify its peptides (the short chains of amino acids that are the building blocks of proteins) and create a peptide mass fingerprint (PMF). The “fingerprint” looks like a line graph of peaks and valleys, and each fingerprint corresponds with an entry in a library of known examples from animals.

18

Tradução de: While the fact that human skin was used in such a fashion is contemporarily problematic, particularly in a post-Holocaust era, these books can serve as a focal point in discussing how special collections can balance modern ethics with their more traditional role of preservation. In more direct terms, it is a debate between respectful treatment of human remains and the role of research repositories.