O POTENCIAL BIBLIOTECONÔMICO DA EDUCAÇÃO POPULAR: A BIBLIOTECA DO CURSINHO POPULAR ELZA SOARES
THE LIBRARY POTENCIAL OF POPULAR EDUCATION: ELZA SOARES POPULAR PREPARATORY COURSE’S LIBRARY
Felipe Sanches
ORCID: https://orcid.org/0009-0003-8002-671X
Graduado em Biblioteconomia pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil.
Bibliotecário da USP, Brasil.
Mestrando do programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da USP.
E-mail: fsanches@alumni.usp.br
RESUMO: Apresenta-se a biblioteca do Cursinho Popular Elza Soares, construída como um dispositivo informacional dialógico, ou uma biblioteca Forum. Aproximam-se os conceitos de educador popular e biblioeducador, devido a suas atuações altamente dialógicas. Compartilha-se uma ferramenta de mediação de leitura à distância, através de uma ficha de reflexão. Desenvolve-se também um estudo de caso sobre a biblioteca, resgatando dados qualitativos e quantitativos sobre seus usuários, apontado que a maioria dos alunos do cursinho já tem acesso a bibliotecas escolares, mas vê positivamente a biblioteca do cursinho. Conclui-se sobre a pertinência da experiência de mediação à distância em contextos de educação popular.
PALAVRAS-CHAVE: Biblioeducação; Curso pré-vestibular; Educação popular; Biblioteca; Inclusão social.
ABSTRACT: Presents Elza Soares Popular Preparatory Course’s library, built as an informational dialogic dispositif, or a Forum library. Brings together the concepts of popular educator and biblioeducator, given their highly dialogical practices. Shares a mediation at distance tool, through a reflection questionnaire. Also develops a case study about the library, recovering qualitative and quantitative data about its users, pointing to a majority of students already having access to a school library, but seeing the preparatory course’s library positively. Concludes about the pertinency of the mediation at distance experience in popular education contexts.
Keywords: Biblioeducation, Preparatory course, Popular education, Library; Social inclusion.
1 INTRODUÇÃO
O Cursinho Popular Elza Soares (CPES) é um curso preparatório para os principais vestibulares paulistas e para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) que funciona desde 2019 na cidade de São Paulo (Cursinho Popular Elza Soares, 2024). A partir de 2022 começou a funcionar uma biblioteca: um dispositivo que surge na margem e mescla gêneros tradicionais de biblioteca — escolar e comunitária, devido seu ambiente de educação não-formal (Castro; Barreiro, 2022) —, e que foi reconhecida em 2024 pelo Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo (SisEB) ao selecioná-la para apresentar um pôster digital no 15o Seminário Internacional Biblioteca Viva (Sistema de Bibliotecas Públicas do Estado de São Paulo, 2024).
Essa biblioteca, pode-se discutir, surge justamente pelo caráter popular do CPES: os cursinhos tradicionais, em geral, seguem a lógica competitiva liberal da Educação privada (Álvarez Zapata, 2003; Laval, 2019), e há pouco tempo e espaço para o pensamento crítico. Em outras palavras, nos cursinhos tradicionais, a linha de produção ocupa o espaço em que caberia a biblioteca. O CPES, na contramão, incentiva a reflexão e a formação integral dos alunos; houve, portanto, uma abertura institucional para o delineamento de um projeto de biblioteca capaz de, por um lado, ajudar os alunos a acessarem os livros de leitura obrigatória dos vestibulares, e por outro, abarcar um acervo amplo em suas temáticas, alinhado com a motivação política do cursinho de diminuição das desigualdades.
As condições que possibilitaram a criação do projeto dessa biblioteca influenciaram também em sua concepção mais basal: um projeto profundamente dialógico como o CPES não poderia ter dentro de si uma biblioteca que se aproximasse de um modelo Templum, demasiadamente monológico, nem um modelo meramente difusionista — afinal, como se apontou acima, prover o acesso às obras é apenas um dos objetivos —, o Emporium (Perrotti, 2016). Para uma biblioteca disruptiva, em um contexto que o exige, é necessário repensar mais profundamente esse dispositivo (Duque Cardona, 2018); optou-se então, por criar um dispositivo informacional dialógico (Faria, 1999) pautado pelo modelo de biblioteca Forum, em que a mediação cultural é fator central; uma vez que
Nesse sentido, por suas configurações e processos —e não somente pelos conteúdos que disponibilizam— eles formam, apontando em direção à cidadania cultural, à participação em processos de criação e não de mera assimilação ou consumo irrefletido de signos (Perrotti, 2016, p. 21-22).
Fica evidente, então, que a Biblioeducação é o ponto de apoio fundamental desta biblioteca em particular. Uma ação indispensável deste campo de estudos é a mediação cultural enquanto ato de significação (Lima; Perrotti, 2016), portanto, foi parte das medidas incorporadas à biblioteca do CPES. São, fundamentalmente, três momentos em que o mediador pode agir: na orientação da escolha do livro, entendendo as demandas informacionais dos estudantes; durante a leitura, remotamente, através de uma ficha de reflexão; e durante a devolução do título, em uma conversa sobre o processo de leitura. Este segundo elemento é de especial interesse, uma vez que foi uma criação original desta biblioteca: ao escolherem o livro a ser emprestado, cada estudante é orientado em relação ao processo de preenchimento da ficha. Trabalham-se os saberes informacionais dos alunos ao se indicar o olhar que devem ter durante a leitura, especialmente voltando-se para os vestibulares, e refletindo sobre as conexões da narrativa com os problemas sociais. Pode-se dizer, por esta razão, que é adotado um discurso biblioeducativo, ao invés, por exemplo, de um discurso funcional liberal, que incentiva uma leitura puramente estética e individual (Álvarez Zapata, 2003). Ainda, no sentido de valorizar a interdisciplinaridade — e seguindo o conselho do núcleo de professores de Geografia —, adotou-se uma pergunta adicional nas fichas dirigidas aos livros de ficção, que questiona como o ambiente se modifica durante a narrativa.
Uma vez que para a Biblioeducação os metassaberes informacionais são tão importantes quanto os saberes (Lima; Perrotti, 2016; Perrotti, 2016), adotou-se desde o início uma sinalização clara que indica como navegar a organização física dos livros, bem como quais são as seções especiais da biblioteca.
O CPES, como indica o próprio nome, identifica-se com a Educação Popular: tipologia educacional que, mais do que ser complementar às lacunas da educação tradicional, propõe um projeto de formação crítica e emancipatória, que visibilize desigualdades sociais e incite os estudantes a ativamente combatê-las (Cursinho Popular Elza Soares, 2024). Sobre esse tópico, Puiggrós destaca que:
Para interpretar a pedagogia popular latinoamericana deve-se prestar atenção ao peso decisivo do desenvolvimento desigual [...], à pluralidade das lutas sociais [...]. Assim também consideramos que o discurso da Educação Pública se apresenta como um mecanismo de igualação que oculta as vinculações que existem entre desigualdade educativa e desigualdade socioeconômica (2016, p. 32-33, tradução nossa).
É interessante o paralelo que pode ser estabelecido entre o papel do educador popular e do biblioeducador: enquanto Castro e Barreiro (2022, p. 238) sugerem que “a figura do educador popular surge como o mediador de culturas, de conflitos, enfim, o mediador de processos dialógicos”; Pieruccini (2007) destaca que o infoeducador — no papel do professor ou bibliotecário — é central no estabelecimento das mediações dialógicas dentro de certa ordem informacional. A dialogia aparece também em Paulo Freire, autor que Castro e Barreiro (2022) destacam ser fundamental para a Educação Popular, e de quem foram incorporados outros conceitos como a ligação fundamental da Educação com a Política, a valorização dos conhecimentos populares — muitas vezes precedentes à escolarização —, e a formação de uma visão crítica sobre si e sobre o mundo — parte do processo de leitura do mundo.
Poli e Poletto (2017) destacam que a Educação Popular se trata de uma tarefa que vem sendo realizada por movimentos sociais no sentido de colocar a educação a serviço das camadas populares, uma vez que a Educação tradicional se alinha a um discurso liberal que perpetua valores capazes de manter a hegemonia capitalista. Cabaluz Ducasse (2022) aponta que este desafio sobre a hegemonia perpassa necessariamente pelo reconhecimento da história local da América Latina, de sua colonização e dominação política; assim como engendra a necessidade da reivindicação de saberes populares, subalternos, valorizando a epistemologia local. Nas palavras do autor:
[...] a produção de conhecimento social será [...] possibilidade de opor-se à ideologia, à alienação e ao fetichismo. O conhecimento social deveria contribuir para desmistificar a ideologia dominante [...]. O conhecimento deveria contribuir a compreender os feitos sociais e a história concreta, recuperando e potencializando a “capacidade cognitiva” da classe trabalhadora (Cabaluz Ducasse, 2022, p. 115).
2 O CURSINHO E SUA BIBLIOTECA
O CPES surge em 2018 a partir de um “desejo coletivo de ampliação e democratização do acesso às universidades pelas camadas populares” (Cursinho Popular Elza Soares, 2024) e inicialmente estabelece-se na Vila Prel, bairro da Zona Sul de São Paulo. Em 2019, muda de sede para alojar-se na Escola Estadual Sólon Borges, agora na Zona Oeste. Nos anos seguintes, com a pandemia de Covid-19, o coletivo transiciona para aulas online, destacando-se a ação social de distribuição de cestas básicas e materiais de estudo para os alunos e suas famílias. Em 2022, retornando parcialmente às interações presenciais, monta-se uma turma virtual e uma física em uma antiga escola no bairro Jaguaré. Finalmente, em 2023 e 2024, o CPES firma-se em uma sede, desta vez na comunidade São Remo, ao lado da Universidade de São Paulo (USP) (Cursinho Popular Elza Soares, 2024). Esta favela surgiu em 1967 pela ocupação dos trabalhadores que construíram a USP, e hoje por volta de 30% de sua população trabalha ou já trabalhou na USP — evidentemente, como trabalhadores terceirizados em situação muitas vezes precária — (Silva; Peçanha; Gonçalves, 2021). Por conta deste elevado índice, muitos dos alunos do cursinho são filhas e filhos de trabalhadores da USP, ou ao menos passam seu tempo de lazer no local, e isto — como se pôde ver em uma atividade da aula de abertura em 2024 — os motiva para ingressar como alunos da universidade. Esta, evidentemente, não é a realidade de todos os jovens da comunidade, uma vez que em torno de um quarto dos adolescentes entre 15 e 17 anos estão fora da escola, e, portanto, não pleiteiam o vestibular (Silva; Peçanha; Gonçalves, 2021).
Em seis anos de funcionamento, o CPES estima que 438 alunos já foram acolhidos, com quase 30 aprovados em instituições públicas ou privadas com bolsa (Cursinho Popular Elza Soares, 2024). Somente em 2024, foram mais de 300 inscrições de pretendentes para o cursinho, porém, devido a restrições de espaço, limita-se uma turma de 40 alunos, com vagas abertas durante o ano devido a evasões.
A biblioteca do CPES, como se apontou acima, foi inaugurada em 2022. Hoje, são 368 títulos, organizados pela Classificação Decimal de Dewey, além de cinco seções temáticas: livros para professores; livros em inglês; mangás e quadrinhos; livros de leitura obrigatória para os vestibulares. Nestes dois anos de funcionamento, já foram realizados por volta de 250 empréstimos. Os números, ainda que pareçam pequenos, podem ser vistos como um grande caso de sucesso de uma tipologia inédita de biblioteca; ainda mais se contextualiza-se em um universo de usuários reduzido — 40 alunos e cerca de 20 professores —, e o espaço limitado de apenas um armário para a guarda dos livros. Pode-se ver como uma validação deste novo conceito, que pode ser expandido para outros cursinhos populares, mobilizando não só professores, mas também bibliotecários e infoeducadores.

Sistematização da pesquisa
Para além de descrever a história e as características da biblioteca do CPES — configurando-se, portanto, como pesquisa descritiva —, realizou-se um estudo de caso intrínseco, uma vez que o caso é o próprio objeto de pesquisa (Gil, 2002). Elaborou-se um formulário com um total de nove perguntas, sendo seis de dados básicos como idade, identificação de gênero, e se a escola frequentada possui biblioteca; além de três dissertativas, explorando o incentivo que a Biblioteca pode ou não ter dado ao consumo de obras literárias, o efeito na preparação para o vestibular, e a relação da leitura proporcionada com a saúde mental. Optou-se por recolher múltiplas fontes de evidência, uma vez que, segundo Gil (2002, p. 141), estas são o “principal recurso de que se vale o estudo de caso para conferir significância a seus resultados”.
O formulário foi aplicado digitalmente em um período de dois dias, e coletou-se respostas de 21 alunos do CPES; ou seja, mais de 50% da população em questão — uma vez que, como se apontou acima, as salas são anualmente compostas por 40 estudantes. Enquanto os dados quantitativos são importantes para a pesquisa, e como se verá à frente, revelam interessantes aspectos desta população, o maior destaque será dado para as perguntas dissertativas, já que “é natural admitir que a análise dos dados [de um estudo de caso] seja de natureza predominantemente qualitativa” (Gil, 2002, p. 141).
Os dados acerca da idade dos respondentes (Gráfico 1) pode ser relacionada com uma realidade, empiricamente confirmada, dos cursinhos populares: os alunos que buscam esse tipo de curso, para além de adolescentes, terminando ou que terminaram recentemente o Ensino Médio, também são adultos que cursam a Educação de Jovens e Adultos (EJA) ou que buscam uma mudança de vida (Duarte; Oliveira, 2012)
Essa constatação se confirma na pesquisa através do questionamento sobre a escolaridade dos alunos (Gráfico 2) e sobre a tipologia de escola que frequentaram (Gráfico 3). Como se pode observar, no Gráfico 2, mais da metade dos entrevistados já se formou, sendo uma minoria dos estudantes do CPES que ainda frequentam a Escola. Nesta pergunta, evidentemente não se questionou sobre a possibilidade de os respondentes possuírem Ensino Superior, justamente por estes indivíduos estarem em um curso preparatório para o vestibular. Já no G ráfico 3, a grande maioria dos estudantes frequenta ou frequentou uma escola estadual, um quarto escolas técnicas, e um respondente pertence ao EJA.


A análise de identidade de gênero (Gráfico 4), por sua vez, apresenta uma interessante concordância com o censo da comunidade São Remo: as mulheres ficam levemente à frente dos homens na escolaridade (Silva; Peçanha; Gonçalves, 2021). Se no censo 1.146 mulheres haviam completado o Ensino Médio contra 841 homens — algo em torno de 57% e 42% —, no levantamento dos alunos do CPES, esta relação fica em 67% de mulheres, 29% de homens e 4% de não-binários.

O dado mais instigante desta seção da pesquisa, no entanto, se encontra na pergunta relacionada ao funcionamento das bibliotecas nas escolas públicas. Montou-se este questionário a partir da hipótese que a maioria dos estudantes responderia que não há biblioteca, ou que esta não funcionava; uma vez que é bem conhecido no meio bibliotecário a falta de bibliotecários e bibliotecas escolares no sistema público de Educação — dado que aparentemente se confirma, por exemplo, ao constatar-se que 61% das escolas públicas não nem esse dispositivo, nem salas de leitura (Instituto Pró-livro, 2019). Surpreende-se, então, a observar-se que na pesquisa do CPES 90% dos alunos responderam que sua escola conta sim com biblioteca funcionando, e nenhum informou que não havia biblioteca no local (Gráfico 5)

Uma possível explicação para este fenômeno pode começar a ser delineada a analisar melhor os dados sobre o funcionamento de bibliotecas nas escolas brasileiras: se, em geral 61% das escolas não possuem biblioteca, este número desce para 40% quando se tratam de escolas estaduais — em São Paulo, a grande maioria dos alunos cursa o Ensino Médio em escolas estaduais, sendo somente nove unidades escolares municipais com essa etapa de ensino (Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, 2024). Esse fato sozinho já pode fornecer parte da explicação necessária: o complemento necessário pode ser encontrado ao se voltar para o G ráfico 3, que indica que um quarto dos estudantes do CPES cursam ou cursaram nas Escolas Técnicas Estaduais (ETEC), geridas pela autarquia Centro Paula Souza, que conta com o orçamento da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo (Centro Paula Souza, 2024). Ainda que não haja dados públicos, pode-se assumir que as ETEC, com um financiamento maior que as escolas normais, em geral, possuem bibliotecas. Esta é a nova hipótese levantada, então, a partir dos dados coletados: a maioria dos alunos, por cursarem ETEC ou escolas estaduais, em geral, possui algum contato com uma biblioteca. Outra perspectiva, ainda, é que os alunos tenham tido contato apenas com uma sala de leitura, sem bibliotecário: como a grande maioria indicou que esses dispositivos estão em funcionamento, esta tese tem pouca sustentação, ainda que seja uma possibilidade.
Para analisar as perguntas qualitativas, agora, deve-se discutir as hipóteses levantadas ao construir-se o formulário, bem como o fundamento teórico de cada questão. A primeira pergunta é: “Nossa biblioteca incentivou seu consumo de livros físicos ou digitais? Como?”, tenta incidir na métrica mais comum sobre o sucesso de uma biblioteca, comum na visão difusionista das bibliotecas Emporium (Perrotti, 2016); que, todavia, ainda que não seja a única nem a mais central missão de uma biblioteca, é importante (Kolesas, 2008). Para além dos livros físicos, instigaram-se os alunos a pensarem também sobre as textualidades digitais, que ainda que seja discursivamente distinta da escrita tradicional, estão onipresentes na contemporaneidade (Chartier, 2002) — considerando, também, que na porta da biblioteca há um código QR que leva o usuário para a plataforma “BibliOn” de livros digitais do Governo do Estado de São Paulo. Antes de partir para as respostas positivas, há de se destacar que houve três respostas indicando que não houve influência sobre o nível de consumo de leitura, seja por já possuir esta prática, ou por não utilizar a biblioteca. Muitas das respostas positivas exaltam a diversidade de gêneros literários presentes e a disponibilidade permanente do acervo, indicando que isso incitou a vontade de ler: pode-se sumarizar esta vertente de respostas com uma das frases dos alunos, “[...] a alta variedade de livros me fez descobrir novos gêneros literários que nunca teve acesso”. Talvez a mais significativa, no entanto, seja “Era muito bom ter a biblioteca logo do lado da sala de aula, gerava um sentimento de curiosidade de descobrir quais obras tinham lá”. A curiosidade é talvez o primeiro passo para se estabelecer uma relação dialógica com o aluno: nesta situação o biblioeducador pode atuar para incentivar o desenvolvimento dos saberes informacionais do protagonista cultural (Pieruccini, 2007), ou o próprio aluno pode ir explorando a biblioteca, descobrindo sua lógica de ordenamento e os diversos temas à disposição.
A pergunta “Nossa biblioteca impactou positivamente sua preparação para o vestibular? Como?”, foi formulada para verificar a aderência da biblioteca ao objetivo central do CPES: a preparação para os vestibulares — afinal, “a biblioteca acompanha a educação em sua busca para alcançar o sucesso dos estudantes” (Kolesas, 2008, p. 17, tradução nossa). Com exceção de duas respostas negativas, a grande maioria apontou que a biblioteca auxiliou sim seu preparo, no tangente à melhora dos conhecimentos linguísticos, de interpretação de texto, na utilização de argumentos nas redações, e conhecimentos específicos — especialmente nas matérias de ciências humanas. Uma resposta importante a ser destacada fala sobre a citada ficha de mediação de leitura: “Sim, muito, através dos formulários ajudou bastante na ideia dos pontos importantes do livro”. Isto é, esta resposta é um indício de que a mediação à distância, ainda que não seja a ideal — com as limitações de tempo e espaço na realidade do CPES, foi uma solução encontrada para dar atenção ao aspecto dialógico, Forum (Perrotti, 2016) — é possível, e funciona. Efetivamente, significa que estas fichas auxiliaram no desenvolvimento dos saberes informacionais dos estudantes, uma vez que sua compreensão textual foi melhorada.
Por fim, escolheu-se questionar: “Nossa biblioteca afetou de alguma forma sua saúde mental? Como?” pelos estudos relevantes que vêm se consolidando na área da biblioterapia. Almeida et al. (2013, p. 7) consideram que a leitura tem
[…] por apropriação e projeção, a possibilidade de descobrir uma segurança material e econômica, uma segurança emocional, uma alternativa à realidade, uma catarse dos conflitos e da agressividade, uma segurança espiritual, um sentimento de pertencimento, a abertura a outras culturas, sentimentos de amor, o engajamento na ação, valores individuais e pessoais, a superação das dificuldades.
Em outras palavras, a biblioterapia tem potencial terapêutico comprovado através de experiências médicas, sendo capaz de reduzir sintomas negativos e potencializar sentimentos positivos (Almeida et al., 2013). Considerando-se que a preparação para os vestibulares, somada às tarefas escolares e domésticas, além das possivelmente laborais, gera estresse — e possivelmente burnout — nos adolescentes e outros estudantes (Matos; Andrade, 2023), é necessário considerar os efeitos psíquicos da leitura. Note-se que esses efeitos não são consensuais, o que se confirma pela maior taxa de respostas negativas do formulário, sendo sete alunos que disseram não ter percebido efeito positivo ou negativo em sua saúde mental. Os que responderam positivamente, no entanto, parecem concordar sobre a diminuição da ansiedade, com respostas como: “Me ajudou a tirar um pouco do foco da pressão das provas”; “Sim, a leitura é uma forma de fugir um pouco do cotidiano”; “Sim… livros preenchem os vazios da mente”; e “Levava o livro para todos os lugares que iria demorar, assim diminuindo a ansiedade, que vem com a demora desses lugares”. Uma resposta que vai além dessa questão chama a atenção, contudo: “Meio que expandiu minha mente, é como se fosse uma feira das profissões, achei temas que eu sempre me interessei, como a psicologia, e gostei bastante, aprendi coisas que realmente apliquei na minha vida”. Ou seja, este estudante conectou a própria experiência de navegar o acervo, de desenvolver seus saberes informacionais, à saúde mental.
3 CONCLUSÃO
A partir dos resultados apresentados, pode-se discutir a convergência entre os papéis de educador popular e biblioeducador, comentado acima. Como se apontou, no CPES a mediação cultural ocorre, decididamente, em três momentos: durante a escolha do livro, na leitura e ao devolver-se. Já que a biblioteca do cursinho foi pensada como um dispositivo informacional dialógico (Pieruccini, 2007), a dialogia permeia todos esses processos. Já na curadoria do acervo, como indicado através das respostas dos alunos, pensa-se em construir uma coleção bibliodiversa capaz de incitar o pensamento crítico; através da ficha de mediação de leitura, como também foi possível observar no formulário, também se incentiva o olhar crítico da narrativa e do contexto de cada obra. É importante discutir que um dos objetivos desta ficha é o auxílio na preparação para o vestibular, não a mera reflexão por si só — há, no entanto, uma relação dialógica aqui também: os alunos são orientados desde o início do ano que todos os livros, através da ficha, podem ser úteis para essa preparação, não só os de leitura obrigatória; então, cada estudante é livre para, além de ler os livros que serão cobrados nas provas, escolher títulos que o interesse. O terceiro momento é evidente em sua característica: há uma conversa entre o educador e o estudante sobre a leitura, as dificuldades e as impressões sobre o livro.
Um importante resultado deste estudo de caso, mesmo para a orientação futura dos biblioeducadores do CPES, foi a invalidação da hipótese original de que a maioria dos estudantes não tinha contato com uma biblioteca escolar em funcionamento. Confirmou-se, como discutido acima, o contrário. A pesquisa do Instituto Pró-livro (2019) aponta que 40% das escolas estaduais não têm biblioteca, porém esse dado refere-se a uma amostra nacional; no Estado de São Paulo, o mais rico do país, pode-se questionar se este percentual não é ainda menor. Seria necessário, neste caso, uma publicização de dados oficiais pelo Governo do Estado.
Finalmente, considerando-se o desconhecimento de outras experiências parecidas, de bibliotecas em cursinhos populares, espera-se que este estudo seja incitador de novos casos parecidos. Especialmente, através do compartilhamento do funcionamento da ficha de mediação de leitura, deseja-se contribuir com uma ferramenta para a construção de novas experiências em bibliotecas que seguem o modelo dialógico do Forum (Perrotti, 2016).
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SISTEMA ESTADUAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS DE SÃO PAULO. 15O Seminário Internacional Biblioteca Viva. Programação. Disponível em: https://siseb.sp.gov.br/biblioteca-viva/programacao/. Acesso em: 5 nov. 2024.
Foto 1 – Biblioteca do CPES
Fonte: Acervo do autor, 2024.
Gráfico 1 – Idade dos alunos do CPES
Fonte: Acervo do autor, 2024.
Gráfico 2 – Nível de escolaridade (você frequenta a escola?)
Fonte: Acervo do autor, 2024.
Fonte: Acervo do autor, 2024.
Gráfico 4 – Identidade de gênero
Gráfico 3 – Tipologia escolar (sua escola é)
Fonte: Acervo do autor, 2024.
Gráfico 5 – Funcionamento de biblioteca (sua escola tem biblioteca?)
Fonte: Acervo do autor, 2024.