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ARTIGOS
As teorias do Sistema-Mundo na transição
para o longo século XXI
Carlos Eduardo Martins
1
*
Resumo: O artigo realiza uma reexão dialógica entre as análises braudelianas dos sis-
temas-mundo e o marxismo, buscando avançar nos caminhos da construção de uma
teoria marxista do sistema-mundo capitalista. Para isso, revisita as obras de autores
clássicos e contemporâneos situando a conjuntura de transição ao longo século XXI
como paradigmática para promover o desenvolvimento desta síntese teórica. Nesse
sentido, analisa a crise da globalização neoliberal e o caos sistêmico em curso, vincu-
lando-os à articulação de movimentos de longa duração: a revolução cientíco-téc-
nica, o ciclo de hegemonia dos Estados Unidos e o de Kondratiev, iniciado em 1994.
Palavras chave: Análises dos Sistemas-Mundo. Marxismo. Teorias da Dependência.
Longo Século XXI. Caos Sistêmico.
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Professor associado do IRID/UFRJ e do PEPI/UFRJ. Pesquisador de CLACSO e coordenador
do LEHC/UFRJ.
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Introdução
Neste artigo, buscamos contribuir para a aproximação das vertentes braudelianas e
marxistas de análise dos sistemas-mundo a partir da discussão do conceito de caos
sistêmico e da crise mundial de 2020. Nosso objetivo é o de estabelecer articulações
que pavimentem os caminhos para o desenvolvimento de uma teoria marxista do sis-
tema-mundo capitalista. Sustentamos que o moderno sistema mundial ingressa em um
período de transição para o caos sistêmico entre 2015-2020, quando se esgota o ciclo
expansivo de Kondratiev iniciado em 1994. A covid-19 atinge a globalização neoliberal
em processo de exaustão, acelerando a vulnerabilidade dos seus principais suportes e
fontes de propulsão, como o comércio internacional, os uxos internacionais de capital,
o liberalismo político e a hegemonia dos Estados Unidos. A crise que estamos presen-
ciando, provavelmente, será mais ampla e profunda que a estabelecida em períodos de
caos sistêmicos anteriores: deverá colocar em questão não apenas uma hegemonia em
declínio, mas o próprio sistema mundial capitalista e as bases de sua civilização. Isso
signica que a bifurcação que se estabelecerá deverá ser impulsionada não apenas pelas
lutas interestatais, mas principalmente pelas intraestatais, que provavelmente assumirão
protagonismo e articularão as primeiras. As lutas de classes entre capital e trabalho ten-
derão a assumir a centralidade dos conitos nacionais e internacionais, condicionando
as disputas interburguesas. Períodos de caos sistêmico são épocas de brutal aceleração
histórica, que duram aproximadamente trinta anos, e o atual apenas está começando.
Na seção inicial, discutimos os conceitos de caos sistêmico e as interpretações
da crise para o século XXI, tal como elaboradas por Giovanni Arrighi, Immanuel
Wallerstein e Beverly Silver. Posteriormente, analisamos as leituras marxistas de Samir
Amin e Theotonio Dos Santos sobre o sistema-mundo capitalista e sua crise, estabe-
lecendo nossas próprias formulações, em diálogo que incorpora ainda os aportes de
Christopher Chase-Dunn e de Ruy Mauro Marini. Na terceira seção, analisamos as cri-
ses da civilização capitalista e da globalização neoliberal articulando os conceitos de re-
volução científico-técnica, ciclos sistêmicos, ciclos de Kondratiev com as análises geo-
políticas globais e suas implicações para a América Latina, percurso que consideramos
chave para avançar em direção à construção de uma teoria marxista do sistema-mundo
capitalista. Na conclusão, destacamos os principais aportes de nosso artigo.
Seguimos neste artigo parcialmente a nomenclatura desenvolvida por Immanuel
Wallerstein (2000), e usamos não apenas o conceito de sistema-mundo, mas também
o de sistema mundial, para nos referirmos ao sistema-mundo que se tornou único, isto
é, o moderno sistema mundial, capitalista, após sua expansão sobre o globo terrestre
no século XIX, ainda que importantes contradições tenham surgido no seu interior,
como a emergência de Estados socialistas, e outros sistemas possam ocupar o seu lugar
no futuro. Usaremos sistemas-mundo no plural, para designar a pluralidade de siste-
mas-mundo que coexistiram de forma largamente independente, antes que o capita-
lismo impusesse a história como global.
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As análises braudelianas dos sistemas-mundo
Alguns dos mais importantes teóricos braudelianos têm destacado a profundidade da
crise que afeta o sistema-mundo contemporâneo e a alta probabilidade de ruptura e
inexão em seus padrões estruturais e organizacionais no século XXI
1
. Essa postulação
tem se baseado em estudos de longa duração e formulações que não, obstante conver-
gências e complementaridades, apresentam diferenças analíticas expressivas. Fazer um
balanço das potencialidades e dos limites dessas interpretações nos parece de grande
relevância para avançar rumo à compreensão da crise do longo século XX e as perspec-
tivas da transição rumo a um novo longo século. Entendemos que essa transição coloca
em questão o próprio sistema-mundo capitalista, e a sua adequada compreensão exige
maior integração do instrumental marxista às análises que o interpretam.
Immanuel Wallerstein (2000 e 2002) sustenta a tese de que o moderno sistema mun-
dial, estrutura do capitalismo histórico, desaparecerá entre 2025-2050, período em que
se estabelecerá o caos sistêmico e uma bifurcação de poder onde forças antagônicas luta-
rão para reinventar o sistema-mundo sob novas bases. O autor menciona três cenários: o
restabelecimento do império-mundo por meio de neofascismos globais ou de neofeuda-
lismos regionalizados que o fragmentam; e a afirmação de um sistema-mundo socialista,
com alto nível de igualdade, liberdade, diversidade, fraternidade e democracia.
Ele fundamenta sua proposição na combinação de ciclos e desgastes seculares que
determinariam a crise terminal do capitalismo histórico como sistema. O moderno
sistema mundial apresentaria duas grandes oscilações cíclicas que são as logísticas,
ou trends séculaires, e as de Kondratiev. Pelas primeiras, designa o lento processo de
emergência, estabelecimento, desgaste e colapso de uma hegemonia, que associa às
flutuações de preços de 300 anos, defendidas por François Simiand (1932) e Fernand
Braudel [1986], divididas em fases A e B, de 150 anos. Cada fase A ou B implicaria,
em geral, o lento processo de ascensão, afirmação e colapso de uma hegemonia, en-
tendida pelo autor como uma situação econômica quase-monopólica, correspondente
a períodos de protagonismo bastante mais curtos, especificamente, 1625-1672, 1815-
1873 e 1945-1967. Reivindica, então, um esquema temporal iniciado em 1450-1600,
quando teria se estabelecido a transição do império-mundo feudal para o capitalismo,
implicando a afirmação do moderno sistema mundial, que constitui a sua arquitetu-
ra institucional específica (WALLERSTEIN, 1974). Este se consolida em 1600-1750,
quando haveria se desenvolvido e se esgotado a hegemonia das Províncias Unidas;
se expande em 1750-1900, em torno do arranque, imposição e desgaste da hegemo-
nia britânica; e se concluiria em 1900-2050, com a emergência, apogeu e colapso da
1
Chamamos de teóricos braudelianos do sistemas-mundo, os que se reuniram em torno ao Fernand
Braudel Center, sob a direção de Immanuel Wallerstein, de 1976-2005, e criaram um novo para-
digma de análises do sistema-mundo que, partindo da obra de Braudel, a ultrapassou largamente
em diversos aspectos, acolhendo mais intensamente a inuência do marxismo. Entre os mais no-
táveis conceitos elaborados estão os de moderno sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein (1974,
1980, 1989, 2011), e a de ciclos sistêmicos, sistema sinocêntrico, ou hibridização de sistemas-mundo,
de Giovanni Arrighi (1996[1994] e 2007). Além desses autores, destacam-se Terence Hopkins e
Beverly Silver (1995), que, junto aos primeiros, empreenderam uma ampla renovação teórica, ana-
lítica e empírica nos estudos sobre economia mundial e seus sistemas de poder.
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hegemonia estadunidense (WALLERSTEIN, 1980, 2000 e 2011). O declínio da hege-
monia estadunidense, a partir de 1968, se articularia a uma longuíssima fase B do ciclo
de Kondratiev, fora dos seus padrões de 25/30 anos. Wallerstein chega a mencionar
a possibilidade da emergência de uma nova fase A, mas, em 2010, considerava ainda
estar vigente essa longa fase B (WALLERSTEIN, 2010).
Essas flutuações cíclicas se articulariam com um nível avançado de desgaste estru-
tural do capitalismo histórico, estabelecendo um arranjo que, desde 1968, engendra-
ria não apenas o declínio do poder estadunidense, mas do próprio moderno sistema
mundial. Esse desgaste seria a consequência do alto nível de desenvolvimento alcan-
çado pelo capitalismo e se expressaria: na desruralização do mundo, que restringiria
a conquista de novas fronteiras para explorar vantagens locacionais de custos da força
de trabalho, diante do esgotamento dos espaços sociais de expansão no planeta; em
custos ecológicos exponenciais, que aumentariam os riscos de catástrofes ambientais
ou de pandemias, típicas de esgotamento de processos civilizatórios, e gerariam pres-
sões sociais para sua internalização pelo capital, reduzindo-lhes as taxas de lucro; na
desconexão entre liberalismo e democracia, resultado da redução das camadas médias
e do aumento das pressões migratórias do Sul para o Norte, provocando a aglutina-
ção de amplas forças sociais com reivindicações redistributivas que ultrapassariam as
capacidades de cooptação do sistema; e em novas rivalidades internacionais, criando
dois polos de poder em disputa, um que associaria Estados Unidos, Japão e China e,
outro, que vincularia Rússia e Europa, pressionando negativamente o lucro e elevando
os conflitos sociais no interior dos Estados.
Os movimentos antissistêmicos assumiriam uma forma difusa, expressando-se
mais na confrontação do espírito de Porto Alegre contra o espírito de Davos, do que
na conexão de processos revolucionários com Estados e disputas geopolíticas mun-
diais. O êxito da transição para um novo sistema mais igualitário dependeria de os
movimentos sociais imporem suas reivindicações de elevação dos salários, aumento
dos gastos públicos, proteção ambiental, e democratização para além dos limites do
liberalismo, criando ainda um governo mundial para estabelecer novas regras e regu-
lações sobre a economia-mundo.
Em Caos e governabilidade no moderno sistema mundial (1999), Giovanni Arrighi
e Beverly Silver analisam comparativamente as transições para o caos sistêmico esta-
belecidas em crises de hegemonias anteriores para construir instrumentos analíticos
de interpretação da atual. Partem do conceito de ciclos sistêmicos, desenvolvido por
Arrighi, em seu clássico, O longo século XX [1994], e já esboçado em seu Geometria do
imperialismo (1978). Diferentemente de Immanuel Wallerstein, que restringe a hege-
monia ao período do breve domínio produtivo, comercial e financeiro quase absoluto
de um Estado sobre os seus rivais, Arrighi entende a hegemonia como um processo
muito mais amplo e complexo. Esta envolve a combinação entre a liderança política e
moral de um Estado no sistema mundial, lastreada, em última instância, no seu pro-
tagonismo econômico. A hegemonia constitui-se em um arranjo histórico, dinâmico,
multifacetado de dimensões heterogêneas, que inclui o institucional, o ideológico e o
militar, em âmbito político; o produtivo, o comercial e o financeiro, em âmbito eco-
nômico; e a liderança da burguesia e suas frações mais dinâmicas sobre as classes e o
poder estatal, em âmbito social. Durante o exercício da hegemonia desenvolvem-se
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contradições entre as suas múltiplas dimensões que levam a pontos de inflexão e sua
divisão em duas fases: a fase A, de expansão; e a fase B, de crise. Na fase B, a força
produtiva, comercial e militar do Estado hegemônico tende a se deteriorar perante
as potências emergentes, mas ele ainda se apoia em seu poder financeiro para manter
sua liderança política internacional. A passagem da crise para o caos sistêmico seria
marcada pelo colapso da sua liderança financeira e política, pela ruptura do consen-
so internacional em favor de tendências centrífugas e pelo desenvolvimento de uma
bifurcação de poder por aproximadamente trinta anos, que se desdobra em guerras
para reorganizar o sistema mundial. Todavia, Giovanni Arrighi e Beverly Silver não se
limitam à proposição de um modelo geral e abstrato de transição sistêmica, mas o vin-
culam à construção de uma teoria histórica das transições. Polemizam com Immanuel
Wallerstein reivindicando um modelo endógeno, que internaliza as mudanças pois
nele as propriedades do sistema não apenas atuam de forma coercitiva sobre os ato-
res, mas também são modificadas no processo de afirmação deles. O esforço teórico
deve ser enriquecido e ampliado pela combinação permanente entre os padrões cí-
clicos de repetição e os processos históricos individualizados e singulares, oriundos
tanto do movimento estrutural e irreversível da flecha do tempo, quanto das indeter-
minações inerentes às interações dinâmicas, que envolvem dimensões contingenciais
(ARRIGHI, 1996[1994]) e (ARRIGHI e SILVER, 1999).
Arrighi aponta a tendência ao aumento de escalas e à redução do número dos
atores que disputam o poder no moderno sistema mundial, indicando ainda a osci-
lação pendular entre regimes corporativos e cosmopolitas. Descreve quatro ciclos de
hegemonia (ibérico-genovês, holandês, britânico e estadunidense), movidos, respec-
tivamente, por cidades-Estado, proto-Estados nacionais, Estados nacionais e Estados
continentais, e mede suas extensões a partir do intervalo entre as crises sinalizadoras
de hegemonias sucessivas, que marcam o início do declínio e o surgimento de novas
configurações de poder. As periodicidades cíclicas vão se encurtando em razão da ace-
leração da interação entre as partes do sistema, o que resultaria na redução temporal
das hegemonias subsequentes, estipulando-se a estadunidense em aproximadamente
cem anos, o que corresponde ao intervalo entre a crise sinalizadora britânica, em 1870,
e a norte-americana, em 1970 (ARRIGHI, 1996[1994]). Arrighi e Silver afirmam que
na transição vigente se desenvolve uma bifurcação sui generis pois enquanto o poder
econômico se transfere ao Leste Asiático, principalmente à China, o poder militar,
permanece concentrado nos Estados Unidos, estabelecendo uma exceção em relação
as formas prevalecentes nos períodos de transição pretéritos.
Em O longo século XX, Arrighi previu três resultados possíveis para a bifurcação
sistêmica: a conversão do poder estadunidense em um poder imperial que extrai va-
lor a partir da cobrança de custos de proteção ao mundo; o surgimento de um novo
padrão, centrado no Leste Asiático, baseado na desconexão das empresas do capita-
lismo monopolista braudeliano; e a aceleração entrópica do caos sistêmico. Todavia,
essa formulação é aprofundada e reelaborada em trabalhos posteriores para incluir
fenômenos como a estagnação do Japão e a imensa projeção da China na economia
mundial. Em Adam Smith em Pequim (2007), a China aparece como o grande poder
estatal que desafia o protagonismo estadunidense no sistema mundial, substituindo o
capitalismo de redes descentralizado, com abrangência no Leste asiático, e ancorado
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no Japão. O desafio chinês é o de apresentar-se como articulador de novas relações
entre Oriente e Ocidente que substituam o clash das civilizações, imposto pelo colo-
nialismo e o imperialismo ocidentais contra as Américas, a África, a Ásia e a Oceania.
Sua missão seria organizar um novo espírito de Bandung e o projeto de um Sul global
que invertesse a fórmula, enunciada por André Gunder Frank, do desenvolvimento
do subdesenvolvimento das periferias em favor dos centros, para a do subdesenvolvi-
mento destes em favor do desenvolvimento daquelas. Para a isso, a China deveria ser
capaz de oferecer uma alternativa ecológica para o desenvolvimento da humanidade,
substituindo o modelo predatório e devastador ocidental que teria buscado imitar em
sua trajetória de ascensão.
Giovanni Arrighi e Beverly Silver assinalam que, diferentemente das transições ante-
riores, quando a competição interestatal e intercapitalista moldou os conflitos sociais, nes-
ta os conflitos entre capital e trabalho e entre imperialismo e soberania nacional tendem
a assumir o protagonismo, articulando os níveis intraestatal e internacional. Arrighi vê o
início da crise sinalizadora da hegemonia estadunidense na combinação entre as lutas de
classes no interior dos Estados Unidos e as lutas anticolonialistas e anti-imperialistas na
periferia. Foram as pressões da classe trabalhadora no âmbito do regime fordista-keyne-
siano, liderado pelo complexo industrial-militar, articuladas às lutas pela revolução socia-
lista e pela soberania no Vietnã, que impuseram a derrota econômica e militar à coalizão
burguesa dominante nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1960, levando as
frações mais dinâmicas do seu grande capital a reinventarem o padrão de acumulação e
as formas de organizar sua hegemonia internamente e no mundo (ARRIGHI, 2007). Os
autores veem na ofensiva dos movimentos sociais no planeta, que tende a se radicalizar
durante o caos sistêmico, a possibilidade de viabilização de uma transição relativamente
pacífica, limitando o risco da guerra e da catástrofe (ARRIGHI; SILVER, 1999).
A reinvenção da hegemonia por meio da globalização neoliberal foi o resultado da
incapacidade das políticas de expansão do crédito e do padrão empresarial corporativo
de integração vertical conterem as pressões de trabalhadores e estudantes por aumento
de salários, ampliação dos gastos sociais e democratização, bem como do fracasso das
políticas de intervenção militar para dissuadir os conflitos entre o Sul e o Norte. Elas
implicaram a fuga de capitais, o aumento da inflação, a depreciação do dólar, a ruptura
de sua paridade com o ouro, a desvalorização do capital financeiro e o fortalecimento
das rivalidades interestatais e geopolíticas. À derrota no Vietnã, somaram-se a Revolu-
ção Iraniana, a Revolução Sandinista, a atuação da Opep na elevação dos preços do pe-
tróleo e os projetos de modernização na América Latina, no Leste Europeu e no Leste
Asiático financiados com taxas de juros negativas. Provedor de liquidez para o sistema
mundial por meio dos saldos da balança de transações correntes, que lhe davam lastro
para as transferências unilaterais de suas políticas de hegemonia, os Estados Unidos
veem seu regime internacional entrar em crise diante da perda de competitividade
de seu setor industrial, dos seus deficit comerciais crescentes e da impossibilidade de
auferir rendas através de um império formal, como fazia a Grã-Bretanha. Diante desse
cenário, secundarizam sua política industrial, priorizam a alta finança e passam a cap-
tar a liquidez internacional por meio de uma política de sobrevalorização do dólar e
de endividamento público, tornando-se o epicentro da geração de capital fictício, com
que sedimentam a fase B de sua hegemonia.
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Arrighi menciona os vínculos históricos da China e de seu antigo sistema sino-
cêntrico com uma ordem pacífica, o que resultou na construção de quinhentos anos
de paz. Aponta como seu determinante o fato desse sistema, equilibrado em alto ní-
vel de centralização e baixa competição interestatal, ter estabelecido uma orientação
endógena que promoveu um modelo de acumulação sem despossesão, impulsionou
a reforma agrária, a ocupação do campo e obras de infraestrutura para garantir a so-
berania territorial. A China do longo século XXI se vê diante de uma grande questão:
imitar o modelo estadunidense, reproduzindo o padrão de riqueza oligárquica e de-
sigual do capitalismo histórico, mas subordinando-se politicamente a um império de
exploração norte-americano; ou articular a criação de um padrão de riqueza demo-
crática. A alternativa da riqueza democrática se consubstanciaria na reemergência, em
novas formas, do velho sistema sinocêntrico, que, hibridizado com o ideário socialista
e dimensões do moderno sistema mundial, poderia criar uma alternativa sistêmica
original, descolando o mercado do andar superior braudeliano e vinculando-o mui-
to mais à competição que ao monopólio privado
2
. Tal possibilidade encontraria suas
bases na articulação entre as forças que dirigem o Partido Comunista Chinês, na forte
regulação e controle do Estado chinês sobre o mercado e a acumulação capitalista, na
formação de uma gigantesca e predominante classe trabalhadora urbana que se soma
a uma grande massa camponesa e, ainda, nas lutas anti-imperialistas contra o poder
estadunidense, o que pressionaria na direção de uma grande concertação horizontal
mundial. As crescentes desigualdades no âmbito dos Estados Unidos e dos países eu-
ropeus fortaleceriam a base de massas anti-imperialistas e debilitariam a alternativa
de transição para um poder mundial imperial. As contradições e as vulnerabilidades
reveladas na invasão do Iraque e do Afeganistão aprofundariam o desgaste do impe-
rialismo norte-americano, isolando-o cada vez mais mundialmente, em razão de as
evidências sinalizarem que, embora tenha liderança militar inconteste, o poder esta-
dunidense seria bastante insuficiente para garantir os custos de proteção do mundo
que pretende controlar (ARRIGHI, 2007).
Em conflito com seu modelo geral de transições sistêmicas e suas previsões ante-
riores de uma hegemonia de cem anos – que tomada a partir de sua consolidação em
1945/50 nos levaria até 2015/20, se descontados os trinta anos de caos sistêmico – Ar-
righi afirma em Adam Smith em Pequim que, desde a intervenção no Iraque, a hege-
monia norte-americana haveria se extinguido, transformando-se em pura dominação.
O autor menciona que os ganhos de senhoriagem dos Estados Unidos com o dólar
tendem a se debilitar em razão de seu alto endividamento, do seu declínio produtivo,
2
Arrighi hesita em chamar essa alternativa de socialista, preferindo deni-la como não capi-
talista para associá-la à zona do mercado braudeliana. Em Adam Smith em Pequim aponta:
O resultado do imenso esforço de modernização da China continua indeterminado e, pelo
que sabemos, socialismo e capitalismo, entendidos com base na experiência passada, podem
não ser as noções mais úteis para acompanhar e compreender como uma situação evolui.
(ARRIGHI, 2007, p. 39). Posição similar tem André Gunder Frank, em ReOrient (1998), vendo
na recentralização asiática em curso o restabelecimento de sistemas de acumulação de capital
sob predomínio estatal; ou Samir Amin (2013), que usa o conceito de capitalismo de Estado
para reivindicar um processo de transição que poderá resultar no socialismo.
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dos limites de sua capacidade para oferecer proteção e do fortalecimento econômico
de concorrentes. Alerta, entretanto, indicando o caso britânico, que a libra esterlina se-
guiu como moeda internacional, mesmo décadas depois do fim da sua hegemonia. A
morte precoce de Giovanni Arrighi impediu que ele continuasse suas agudas reflexões
sobre a transição em curso.
As interpretações marxistas
Entre os autores que mais reivindicaram a aproximação do marxismo às análises do
sistema-mundo estão Samir Amin e eotonio Dos Santos, todavia, suas diferenças
são substanciais.
Samir Amin nega que tenha existido um sistema mundial capitalista desde o
século XVI, atribuindo o seu surgimento a partir de 1800 com a afirmação da Revo-
lução Industrial, a difusão do trabalho assalariado no Reino Unido e a liderança desse
Estado nas relações internacionais. Embora reconheça inflexões, o autor se recusa a
aceitar os ciclos longos, em nome da autonomia e da indeterminação das lutas sociais,
atribuindo as oscilações a fatores históricos contingenciais. Para ele, a formulação teó-
rica dos ciclos exigiria a contrapartida empírica de sua repetição monótona na realida-
de social. Amin descarta os instrumentos conceituais de longa duração braudelianos
em sua interpretação da história do capitalismo e com isso restringe muito a potência
de sua análise teórica. Propõe ainda uma polêmica dupla lei na acumulação de capital:
a que atua em escala internacional, apoiando-se no sistema interestatal, e se baseia na
restrição à circulação da força de trabalho, impulsionando a polarização mundial; e a
que atua em escala nacional e pode estabelecer controles para equilibrar a circulação
entre capital e força de trabalho, expressando a dinâmica pura do modo de produção
capitalista, limitando a polarização, como durante o pacto keynesiano (AMIN, 1997).
Para o autor, o capitalismo contemporâneo teria entrado em uma fase senil, ba-
seado em cinco monopólios: da tecnologia, dos fluxos financeiros, dos recursos na-
turais, das comunicações e dos meios de destruição. Tais monopólios redefiniriam
o capitalismo que passaria a ser dirigido pelo imperialismo coletivo de uma tríade,
Estados Unidos, União Europeia e Japão, com centralidade no primeiro. Amin aponta
como rasgos de senilidade do capitalismo o parasitismo do novo imperialismo, que
não promoveria mais o desenvolvimento da periferia, e as contradições impostas pela
revolução científico-tecnológica sobre a acumulação de capital (AMIN, 2007)
3
.
Theotonio Dos Santos reivindica a teoria da dependência como a primeira etapa
de elaboração de uma teoria do sistema mundial (DOS SANTOS, 2000 e 2016). Ele
aproxima-se com ambiguidades da tese de Immanuel Wallerstein sobre a existência
de um sistema mundial capitalista desde o século XVI. Se desde 2000, reivindica a
proposição de um moderno sistema mundial, o autor não abandona a tese exposta em
3
As observações sobre a revolução cientíco-técnica na obra de Samir Amin são muito pon-
tuais e sumárias. O autor limita-se a mencionar como impacto negativo sobre a acumulação de
capital, a redução de quantidade de trabalho por produção material, sem aprofundar a análise.
(AMIN, 2003, p. 157). Muito mais destaque e estruturação em seus trabalhos possuem a refe-
rência aos cinco monopólios e ao imperialismo coletivo da tríade para caracterizar a senilidade
do capitalismo contemporâneo (MARTINS, 2019).
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Imperialismo y dependencia (1978) de que até o século XIX prevalece um regime de
transição ao modo de produção capitalista, posição similar a que desenvolve sobre
o socialismo, visto como uma formação intermediária, e não como parte do modo
de produção comunista (DOS SANTOS, 2000). Dos Santos reivindica o conceito de
revolução científico-técnica e de ciclos de Kondratiev, aceitando ainda o de ciclos sis-
têmicos formulados por Giovanni Arrighi. Para o autor, a revolução científico-técnica,
conceito que incorpora de Radovan Richta (1971 [1969]), representa uma nova estru-
tura de forças produtivas que abre uma era revolucionária e coloca o capitalismo na
defensiva. A revolução científico-técnica teria se iniciado no pós-guerra, em setores
mais avançados da economia mundial, e alcançado uma segunda etapa a partir dos
anos 1970 com o paradigma microeletrônico, impulsionando o processo de automa-
ção com a substituição crescente do trabalho físico pela aplicação da tecnologia e da
ciência à produção. Embora proponha o caminho fecundo das conexões analíticas
entre a revolução científico-técnica, os ciclos sistêmicos e os Kondratievs, o autor não
as estabelece. Analisa o neoliberalismo como uma ideologia da fase B do Kondratiev,
estabelecida entre 1967-1993, e sua continuidade sobre a fase A do Kondratiev que
emerge em 1994, um resultado do terrorismo ideológico que exerceu sobre a social-
democracia, e não um efeito das distorções produzidas pelos ciclos sistêmicos ou pelo
avanço da revolução científico-técnica, movimentos de duração mais longa e que con-
diciona os menores (DOS SANTOS, 1993, 2000 e 2004)
4
. Todavia, o autor constata a
expansão do capital financeiro, afirma que as vacilações da socialdemocracia abrem
o espaço para uma ofensiva fascista, e indica que a crise de hegemonia dos Estados
Unidos, que aponta desde os anos 1970, em Imperialismo y dependencia (1978), daria
4
Em Economia mundial, integração regional e desenvolvimento sustentável (1993), sob inuência
da Eco-92, no Brasil, eotonio Dos Santos arma que “Reagan, atcher e Bush deverão desa-
parecer do mapa mundial com seu autoritarismo, seu sectarismo, seus particularismos e sua es-
treiteza. O mundo necessita de uma nova liderança mais aberta, mais global e mais planetária [...]
A forma imperialista da economia mundial ainda presente na lei do desenvolvimento desigual e
combinado da economia mundial capitalista entra em grave e denitiva crise. Nos próximos de-
cênios, essa forma econômica terá que ceder pelo menos em parte, o seu lugar a uma nova visão
global da gestão planetária baseada na coexistência de regimes econômicos, sociais, políticos e
sobretudo culturais diversos e até antagônicos (DOS SANTOS 1993, p. 13-39)” . Em A teoria da
dependência: balanço e perspectivas (2000) assinala que “um retorno ao crescimento econômico
que ocorre desde então nos Estados Unidos – 1994 (CEM) – e mais recentemente na Europa
criou um contexto político internacional mais favorável, uma rearticulação das forças interessa-
das em resolver os grandes problemas da miséria, analfabetismo, condições de vida extremamen-
te desfavoráveis das grandes maiorias populacionais do mundo (DOS SANTOS, 2000, p. 111.)
Em Do Terror à esperança: auge e declínio do neoliberalismo (2004) aponta que “ A debilidade da
social-democracia europeia e do liberalismo norte-americano associada às mais variadas formas
de populismo de centro-esquerda na América Latina, na África e em parte na Ásia não tem que
ver necessariamente com a profundidade da onda sociopolítica que as recolocou no poder na
segunda metade dos anos 1990. Como veremos, a imposição do pensamento único teve o caráter
de um terrorismo ideológico colossal [...]. A chamada “onda rosa” foi vítima desta situação ideo-
lógica e os governos que gerou caram limitados em suas políticas econômicas tentando conciliar
uma política econômica neoliberal (a única cientíca, isto é, aceitação do pensamento único) e
uma política social propositalmente socialista” (DOS SANTOS, 2004, p. 204-5).
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lugar à emergência de potências continentais, sendo a China a principal delas. Sua ex-
pectativa, contudo, era a de que a força de uma nova fase A do Kondratiev viabilizasse
uma transição sistêmica mais ou menos ordenada por meio da construção de um pe-
ríodo de hegemonia compartilhada entre os Estados Unidos em declínio e os poderes
emergentes, garantindo um processo de gestão global que impusesse ajustes de poder
relativo e limitasse os riscos de que os conflitos evoluíssem para o caos, abrindo o ca-
minho para a construção de um mundo pós-hegemônico e uma sociedade planetária
com forte caráter democrático e crescente orientação socialista
5
.
Em nosso livro Dependency, neoliberalism and globalization in Latin America
(2020)
6
nos propusemos a avançar no caminho aberto por Theotonio Dos Santos de
construção das bases de uma teoria marxista do sistema mundial capitalista. Entende-
mos o marxismo como um campo teórico dialético e holístico, capaz de integrar em
uma perspectiva própria formulações afins. Partimos do conceito de moderno sistema
mundial de Immanuel Wallerstein que consideramos oferecer os elementos funda-
mentais da arquitetura da superestrutura política do modo de produção capitalista. Foi
a partir do controle estratégico do Estado que os capitais usuário e comercial criaram
uma economia-mundo capitalista e iniciaram a construção de seu modo de produção.
Nesse período, a imposição de um modo de acumulação capitalista se fez associada às
formas de produção pré-capitalistas, sem a criação correlata de relações de produção
capitalistas
7
. Apenas com a difusão da Revolução Industrial e do trabalho assalaria-
do nos séculos XIX e XX, as formas econômicas pré-capitalistas foram amplamente
substituídas. Isso ocorreu, todavia, lentamente, muito depois de 1800, data em que se
fixou Samir Amin, havendo os Estados Unidos somente abolido formalmente a escra-
vidão durante a Guerra da Secessão, quando inicia, sua trajetória de ascensão para a
5
Em Desenvolvimento e civilização: homenagem a Celso Furtado (2016), eotonio Dos Santos
aponta: “Nessa fase de transição, irão se abrir as portas para experimentos políticos cada vez
mais criativos, até que se inicie uma nova fase negativa dos ciclos longos, a qual levará o capita-
lismo mundial e seu domínio imperialista a uma crise de longa duração, de enorme gravidade.
Esperamos que, desta vez, os saltos para soluções econômicas e sociais superiores, pós-capita-
listas ou abertamente socialistas, sejam sucientemente fortes para inaugurar um novo sistema
mundial, consolidado em uma civilização planetária, plural, igualitária e democrática. Espera-
mos, também, que esse novo sistema detenha os efeitos brutais de longo prazo que unicarão
a crise estrutural do capitalismo a uma nova conjuntura depressiva (esta, sim, de longo prazo,
ao se combinar com uma fase (B) do ciclo de Kondratiev, caracterizada por uma depressão de
longo prazo [...]. Podemos esperar que os próximos dez anos serão de avanço social e econômico
com maior ou menor avanço político, dependendo da consciência das forças sociais emergentes
e da capacidade de suas lideranças políticas de expressar e sintetizar suas necessidades e aspira-
ções. (DOS SANTOS, 2016, p. 486).
6
A versão em inglês, publicada pela editora Brill, atualiza e amplia a original publicada em por-
tuguês, em 2011, pela editora Boitempo, rearmando suas teses fundamentais.
7
Consideramos o modo de acumulação a dimensão central de um modo de produção, que
pode, entretanto, entrar em contradição com as suas relações de produção e forças produtivas.
Os casos típicos são durante a armação de um novo modo de produção, quando estas são
embrionárias e não se encontram desenvolvidas ou difundidas, ou durante a decadência e fase
terminal, quando se encontram obsoletas e este deve se apoiar parcialmente em novas. Sobre o
tema veja-se Marx ([1859] 2008) e Chase-Dunn e omas D. Hall (1997).
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ARTIGOS
hegemonia, e os ciclos de Kondratiev, com forte base tecnológica industrial, apenas
incorporado a economia mundial ao seu ritmo após 1870.
Consideramos, como Marx, na Introdução à crítica à economia política, que em cada
tipo de sociedade existe uma forma de produção que é superior e modifica as demais,
constituindo-se em seu centro de gravidade (MARX, [1859] 2008). No capitalismo, esse
papel coube à indústria, correspondendo a sua ascensão e seu apogeu a convergência
entre os modos de acumulação e de produção capitalistas. Entretanto, quando a indús-
tria vai sendo superada pela revolução científico-técnica, a divergência reaparece sob
novas formas concretas. A revolução científico-técnica apenas se torna uma realidade
dominante na economia mundial, a partir dos anos 1970, com a emergência do para-
digma microeletrônico, quando se inicia o decréscimo relativo de força industrial nos
países centrais. O valor da força de trabalho passa a se articular ao crescimento expo-
nencial da educação e do conhecimento, que ameaça a taxa de mais-valia, o que leva, de
um lado, ao deslocamento progressivo da circulação de capital do setor produtivo para
a geração de capital fictício por meio da dívida pública, da sobrevalorização cambial,
de ativos financeiros e de imóveis; e de outro, à relocalização dos processos produtivos
para as periferias e as semiperiferias em busca de uma força de trabalho mais barata e
de qualificação similar. Essa dupla tendência ampliou a desigualdade nos países cen-
trais e levou autores, como Ruy Mauro Marini, a defender que a superexploração dos
trabalhadores estaria se estendendo aos países centrais, pela qual se paga pela força de
trabalho um preço abaixo do seu valor, estabelecido pelas condições médias de produ-
tividade, intensidade e destreza, cada vez mais determinadas pelos monopólios trans-
nacionais em detrimento das burguesias estritamente nacionais
8
.
A financeirização se liga assim a dois movimentos de longa duração: o da emergência
da revolução científico-técnica, que impulsiona o declínio das tendências seculares do
capitalismo, cujo epicentro são os seus centros mais avançados, e a fase B do ciclo sis-
têmico estadunidense. O neoliberalismo tornou-se a resposta da burguesia monopólica
dos países imperialistas para conter as pressões salariais e a expansão do gasto social,
oriundas de décadas de pleno emprego e da transição do fordismo para um novo para-
digma de forças produtivas, intensivo em informação e conhecimento, que aproximou
estudantes e trabalhadores manuais nas manifestações de 1968. As lutas de classe nos
Estados Unidos e no noroeste da Europa, como assinalaram Giovanni Arrighi e Beverly
Silver, passam a ser decisivas para estabelecer o giro neoliberal que cimentará o declínio
do protagonismo estadunidense e do eixo atlantista na economia mundial, articulando-
-se ainda à resistência vietcongue para impor uma forte derrota ao imperialismo.
A estratégia de financeirização impõe limites, pois o sistema-mundo capitalista se
baseia na produção generalizada de mercadorias e na competição empresarial e estatal.
Foi provisoriamente exitosa durante a fase B do Kondratiev que se estabeleceu entre
8
Entre 1980 e 2016, os 50% mais pobres dos Estados Unidos e do Canadá captaram 2% do cres-
cimento econômico nesses países e tiveram um aumento da renda de apenas 5%, e os da Europa
elevaram em 26% suas rendas, captando apenas 13% da ampliação da renda total nessa região
(World Inequality Lab, 2018, p. 46). Sobre os debates em relação ao conceito de superexploração
e sua extensão aos países centrais, veja nosso artigo A teoria marxista da dependência à luz de
Marx e do capitalismo contemporâneo (2018).
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ARTIGOS
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1973-1993, mas, com o surgimento da fase A de um novo ciclo, o dinamismo da econo-
mia mundial deslocou-se de forma acelerada para a China, passando os Estados Unidos
e o noroeste da Europa a crescer abaixo da média da economia mundial. O ciclo de
Kondratiev que emergiu em 1994 não teve a força para alterar o giro neoliberal, como
imaginou Theotonio Dos Santos, que corresponde a movimentos estruturais muito
mais profundos. A nossa hipótese é que essa fase A está se encerrando entre 2015-2020
e abre um novo período de caos sistêmico, que coincide com a mensuração inicial de
Arrighi, cujo ponto de inflexão é o colapso do consenso neoliberal, do qual a crise am-
biental em curso, que se manifesta na pandemia da covid-19, foi a detonante
9
.
Os trends seculaires de Braudel e os ciclos logísticos de Wallerstein, com suas osci-
lações rígidas de 150 anos e mensuração a partir da oscilação de preços, não possuem
evidência empírica, nem elaboração teórica suficiente para justificá-los. Tampouco
tem razão Samir Amin ao descartar o conceito de ciclos quando estes não atenderem
a uma rígida repetição. Os ciclos referem-se a oscilações significativas que se repetem
em um todo complexo, em que atuam outras tendências de longa duração que influen-
ciam o seu ritmo. Possuem também fatores de aceleração, como a difusão tecnológica
e o aumento exponencial da capacidade de organização dos trabalhadores com o de-
senvolvimento das escalas produtivas, no caso dos ciclos sistêmicos, que atuam para
reduzir a sua extensão, como detectaram Arrighi e Silver. Os ciclos de Kondratiev
devem ser medidos por indicadores internacionais e articular fenômenos econômi-
cos com pontos de inflexão políticos de impacto mundial. Diante da dificuldade de
mensurá-lo por meio da taxa de lucro mundial, devemos considerar as oscilações do
crescimento do PIB per capita mundial, as variações e a composição da taxa de lucro
do país hegemônico
10
.
O atual ciclo de Kondratiev se iniciou em 1994, a partir do arranque da taxa de
lucro nos Estados Unidos e da elevação das taxas de crescimento econômico per capita
9
o estamos de acordo com a tese sustentada por Giovanni Arrighi, em Adam Smith em Pe-
quim, de que a hegemonia estadunidense haveria se encerrado com a intervenção militar no Ira-
que, transformando-se desde então em dominação. Embora tenha reivindicado a Doutrina da
ação preventiva e a aplicado de maneira seletiva contra países da periferia que nomeou de “eixo
do mal”, George Bush Filho não rompeu com os fundamentos do multilateralismo neoliberal es-
tabelecido desde os anos 1980. Foi sucedido por Barack Obama, que buscou ampliar o consenso
liberal, mediante a articulação do Acordo Transpacíco, do Acordo de Parceria Transtlântica de
Comércio e Investimento, do Acordo de Paris, do acordo nuclear com o Irã, e das tratativas para
o m do embargo a Cuba.
10
Podemos armar, a partir das oscilações do PIB per capita, a presença dos ciclos de Kondratiev
na economia mundial desde o século XIX e, notadamente, a partir de 1870, quando a indus-
trialização no noroeste da Europa, nos Estados Unidos e no Japão articula um salto na escala
da Divisão Internacional do Trabalho. Diferentemente do que supõe em Immanuel Wallerstein
(2000) e André Gunder Frank (1998) que armam ser possível estender os ciclos de Kondratiev
para períodos pretéritos, a estabilização ou a lentidão do crescimento per capita até o século
XVIII não respaldam essa proposição, ainda que grandes transformações em termos de expan-
são do produto e da ocupação geoespacial tenham sido geradas. Em nosso Dependency, neoli-
beralism and globalization in Latin America (2020), buscamos periodizar as fases do Kondratiev
desde o século XX a partir dos dados de Angus Maddison.
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mundiais, associando-se a um conjunto de fenômenos que impuseram a hegemonia
da globalização neoliberal, como o fim da União Soviética e do socialismo no Leste
Europeu, a Guerra do Golfo, a imposição do Consenso de Washington nas periferias
e a assinatura e entrada em vigor do Nafta. A fase de expansão apresentou três crises,
a saber: 1998-2001, 2008-2009 e, agora, a partir de 2019. Seu esgotamento associa-se
ao desgaste da globalização neoliberal que se manifesta pela perda de força de seus
principais suportes, como o comércio exterior, os fluxos internacionais de capitais, o
liberalismo político, o crescimento econômico e a capacidade de endividamento do
Estado e das corporações privadas, assim como pela progressão exponencial da crise
ambiental. A emergência de um imperialismo unilateral, desde o governo Trump, sua
articulação internacional das forças neofascistas emergentes, e o efeito da pandemia da
covid-19 sobre uma globalização neoliberal debilitada a colocam em colapso, do qual
terá muitas dificuldades de se reerguer.
O caos sistêmico deverá colocar em questão não apenas a hegemonia dos Esta-
dos Unidos, mas o pprio sistema capitalista. Neofascismo e socialismo disputarão
a reorganização do sistema mundial com um neoliberalismo debilitado que buscará
retomar sua ofensiva. Diferentemente do que apostava Theotonio Dos Santos, os ca-
minhos para uma civilização planetária dificilmente se estabelecerão pelo consenso
em torno da hegemonia compartilhada dos Estados Unidos com as forças emergentes
da economia mundial, em processo de ajuste permanente, conduzido pelas forças que
dirigiram o Kondratiev que se encerra. Defendemos, com Giovanni Arrighi e Beverly
Silver, que as lutas sociais e políticas terão um papel-chave na definição do processo de
reorganização sistêmica que se estabelecerá. Ao contrário de Immanuel Wallerstein,
consideramos que o processo de substituição do moderno sistema mundial por outro
envolverá projetos globais que partirão da articulação de lutas de classe com disputas
interestatais e geopolíticas. Tende a se criar uma bifurcação entre, de um lado, a China
e a sua liderança com a Rússia no impulsionamento dos projetos do Sul global e eu-
rasiano, e, de outro lado, o imperialismo estadunidense e sua liderança na articulação
de um projeto global neofascista. Um projeto de poder envolve as grandes massas
continentais e os mercados internos dos hinterlands; e o outro, as potências marítimas,
baseando-se nos monopólios privados e na apropriação oligárquica do valor. Como
aponta Arrighi, as raízes da bifurcação aparecem durante o início da crise sinalizadora
de hegemonia e remetem, no caso dos Estados Unidos, à sua derrota no Vietnã, que
foi muito mais política do que militar. Tal precedente histórico e analítico coloca a uni-
dade das lutas de classe dos povos do Sul e dos países centrais, como chave para der-
rotar a máquina imperialista e transitar para um sistema mundial socialista, tomando
a defesa da paz como um valor central. Consideramos que dificilmente o mercado
braudeliano poderá ser uma alternativa em si, inscrevendo-se muito mais como parte
da construção de um sistema mundial socialista, cuja emergência, se ocorrer, o será de
forma necessariamente hibridizada, da maneira similar ao moderno sistema mundial
que promoveu o capitalismo histórico.
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ARTIGOS
Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
Crise da globalização neoliberal e o caos sistêmico
A pandemia da covid-19 atinge uma globalização neoliberal em processo de exaustão,
sintetizando um conjunto de crises, e colocando em fase terminal a hegemonia esta-
dunidense. Podemos destacar três grandes crises: a) a crise ambiental; b) a crise da
globalização neoliberal e; c) o m da fase expansiva do Kondratiev.
A crise ambiental expressa o descompasso entre as forças propulsoras do capitalis-
mo histórico no século XXI e as necessidades de desenvolvimento de uma nova etapa
da revolução científico-técnica, direcionada para a construção de um paradigma bio-
tecnológico, baseado na geração de bens públicos, como preservação e regeneração am-
biental, saúde, educação, cultura e ciência. A predominância da riqueza oligárquica, do
superlucro e a transformação de seres humanos e natureza em mercadoria, em escalas
nunca antes vistas, elevam as taxas de desflorestamento, a emissão de carbono, o aque-
cimento global, a ampliação da circulação de pessoas e de mercadorias em detrimento
dos sistemas de preservação da vida, que são secundarizados pela recusa do capital em
incorporar os limites ambientais e a elevação do valor da força de trabalho exigidos pela
nova etapa das forças produtivas
11
. A vulnerabilidade dos Estados Unidos e dos países
europeus em relação aos efeitos da pandemia demonstra o alto custo da desigualdade e
da prevalência dos interesses privados sobre os públicos na gestão do novo paradigma
emergente baseado em forças produtivas com alto grau de socialização.
A crise da globalização neoliberal se vincula às contradições entre a estratégia de
financeirização, com epicentro nos Estados Unidos, e a produção de valor para susten-
tá-la. A expansão da massa de ativos financeiros em proporção superior à geração de
riqueza material debilita a economia real e põe em tensão os arranjos macroeconômi-
cos que a viabilizam. O esgotamento do Kondratiev expansivo acentua essas contra-
dições. Se a China atuou entre 1994 e 2013 articulando a dinâmica de sua economia
às exportações para o mercado interno estadunidense, utilizando parte do seu saldo
comercial para comprar títulos da dívida pública norte-americana e auxiliar no finan-
ciamento do deficit na conta-corrente dos Estados Unidos, desde 2008-2013, com a in-
flexão no seu crescimento econômico, o país reorientou sua dinâmica para o mercado
interno e os projetos eurasiano da Rota da Seda e do BRICS, congelando o seu estoque
de títulos da dívida pública norte-americana, cujo crescimento foi avassalador entre
2000-2013. Iniciou-se assim o declínio da colaboração entre China e Estados Unidos,
pela qual a primeira podia manter altas taxas de crescimento, sustentar o parasitismo
estadunidense e impulsionar a difusão do Kondratiev expansivo para as periferias,
em particular à América Latina e à África, mediante a compra de matérias-primas,
a ampliação de investimentos e a ajuda internacional que fundamentou o boom das
commodities. O crescimento acelerado baseado em exportações elevou significativa-
mente a desigualdade na China, ainda que se combinasse com a acentuada redução da
pobreza. Sua interrupção abre o risco de uma profunda crise social e pressiona a lide-
11
Sobre a incapacidade de o capital assumir os custos de reprodução ambientais e da força de
trabalho, veja-se Crises of world hegemony and the speeding up of a social history (2020) de Be-
verly Silver e Corey Payne, traduzido para o português e publicado neste número de Reoriente:
estudos sobre marxismo, dependência e sistemas-mundo.
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ARTIGOS
rança política chinesa a reorientar suas prioridades para os gastos sociais, o bem-estar
e a contenção e redução da desigualdade.
A eleição de Donald Trump expressou a reação interna à vulnerabilidade crescente
da estratégia de financeirização dos Estados Unidos. Todavia, Trump não tinha a preten-
são de negar a sobrevalorização do dólar, mas tinha a intenção de usar a força do Estado
norte-americano para reverter a deslocalização das cadeias produtivas estadunidenses,
impor sanções e ameaçar empresas e Estados concorrentes, tornando a China e a Rússia
seus alvos preferenciais. Essa cisão revela as fraturas nas classes dominantes nos Estados
Unidos entre uma fração internacionalista e dominante que concentra e centraliza o
capital em detrimento dos segmentos empresariais de base nacional e dos trabalhadores,
afetados pelo forte crescimento da desigualdade
12
. A crise de 2007-2009 e a queda no
crescimento que se seguiu, puseram a nu a desigualdade, elevaram a pobreza, e estabele-
ceram a perda de hegemonia do centrismo liberal que dirigiu a globalização neoliberal,
abrindo o espaço para a ofensiva de extrema-direita e neofascista.
A aguda depressão gerada pela covid-19 evidencia a vulnerabilidade da estratégia
de financeirização dos Estados Unidos na economia mundial, ao mesmo tempo que
acelera os conflitos sociais e políticos no mundo. A queda drástica do PIB, das taxas de
lucro, e do comércio internacional, a elevação do desemprego e a atuação dos movi-
mentos sociais pressionam para a forte elevação dos níveis de intervenção estatal, em
particular nos países mais afetados. A demanda de ampliação dos gastos sociais nos
Estados Unidos e na União Europeia se choca com os altos níveis de endividamento
governamental, e das corporações privadas, as exigências de sustentação de seus ativos
fictícios e as restrições do grande capital para ampliação da tributação. O nível mo-
derado de endividamento público na China e de suas empresas estatais, assim como
o papel central que ocupa o Estado no padrão de desenvolvimento chinês, habilita o
país para um desempenho muito superior em um novo contexto de longa recessão em
que as taxas de lucro serão baixas
13
. Em contrapartida, a espiral de conflitos sociais
no mundo tende a colocar em questão o protagonismo do dólar. O padrão dólar-fle-
xível, pelo qual os Estados Unidos passaram a disputar e absorver grande parte do
capital circulante no mundo, baseou-se em um conjunto de pressupostos que passam
a ser desafiados: o baixo nível de endividamento do governo estadunidense; sua alta
capacidade de se endividar em curto, médio e longo prazos; a força do seu mercado de
capitais; e a difusão das políticas neoliberais e deflacionistas que criaram vulnerabili-
dade no balanço de pagamentos dos países, desregulamentaram suas contas de capital,
exigiram alto volume de reservas depositadas no FED e restringiram a intervenção do
Estado e os gastos sociais como indutores do crescimento econômico. Diferentemente
da crise de 2007-2009, quando, entre junho de 2008 e dezembro de 2012, ingressaram
12
Entre 1997-2016, o setor manufatureiro reduziu sua participação no PIB estadunidense de
16,1% para 11,2% e o setor nanceiro a ampliou de 18,8% a 20,8%. (COUNCIL OF ECONOMIC
ADVISERS, 2020, p. 375).
13
Na China, o endividamento empresarial concentra-se nas joint-ventures, onde é forte a pre-
sença do capital estrangeiro estadunidense e a inuência do Estado, o que abre espaço para o
aumento da participação do Estado no setor produtivo. Sobre o tema, ver China Institute (2018)
e LING, Karen Jinprong; LU, Xiaoyan; ZHANG, Jusheng; e ZHENG, Ying (2020).
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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
US$ 2.587 trilhões na forma de compra de títulos da dívida pública, respondendo por
37% da sua expansão no período (COUNCIL OF ECONOMIC ADVISERS, 2020, p.
425); o peso da intervenção provavelmente recairá sobre o governo estadunidense, que
corre ainda o risco de sofrer retiradas de reservas no período que se inicia
14
. O merca-
do de capitais estadunidense deverá se debilitar pelo avanço chinês sobre a fronteira
tecnológica, que dificilmente poderá ser impedido pela escalada de sanções em razão
da deterioração do desempenho econômico das empresas norte-americanas. As ten-
tativas de bloqueio comercial e financeiro da China, provavelmente se reverterão em-
médio prazo contra os seus impulsionadores, de forma análoga ao bloqueio continen-
tal europeu imposto por Napoleão contra o Reino Unido. A China deverá continuar
a avançar no domínio das tecnologias de comunicação, das tecnologias verdes e em
saúde, assim como das tecnologias espacial, militar e da ciência básica, aprofundando
a contradição entre o interesse empresarial imediato das corporações transnacionais
estadunidenses e o do Estado norte-americano, que busca restringir suas transações.
É bastante provel que estejamos diante de um novo salto nos níveis de inter-
venção do Estado sobre a economia, que, desde 1880, vem se elevando em cada novo
padrão regulatório que se estabelece. Caso entremos na fase B do Kondratiev, prova-
velmente os gastos estatais no mundo deverão se fixar em outro patamar, podendo
saltar dos 37% nos Estados Unidos e 47% nos países da Zona do Euro para algo em
torno de 50% a 70% nas pximas décadas
15
. Três forças políticas deverão disputar essa
expansão dos gastos:
a) O neoliberalismo universalista, que busca organizar um consenso em torno da
hegemonia do atlantismo, dirigida pelos Estados Unidos, com apoio da União Euro-
peia, incorporando políticas sociais e ambientais compensatórias. Tal alternativa se
orientará para sustentar a financeirização e o protagonismo do dólar, mas será desa-
fiada pela emergência da China, pela pressão dos movimentos sociais contra a desi-
gualdade, pelos movimentos nacionais-populares nas periferias e pela deterioração
ecológica que debilitarão o consenso neoliberal e sua democracia formal limitada;
b) O neofascismo, cujo epicentro é a extrema-direita norte-americana, pretenderá
restabelecer a centralidade dos gastos militares na acumulação de capital, em fun-
ção do esgotamento crescente das bases da financeirização. Tal projeto se move
para uma política territorialista de império e para a guerra como fundamento de
uma economia mundial de dominação exploradora, desapropriação e despojo.
Tende a retomar em novo patamar a Doutrina do Destino Manifesto que impul-
sionou a política de anexação dos Estados Unidos na América Latina, Caribe e nas
ilhas asiáticas entre 1846-1933. Sua aposta na repatriação das cadeias produtivas
14
Diferentemente do que arma Giovanni Arrighi, a libra esterlina não exerceu por muito tem-
po o papel de moeda protagônica, a partir do m a hegemonia britânica. O padrão ouro-libra
sofreu um primeiro colapso em 1914, sendo restabelecido pela ascensão hegemônica dos Es-
tados Unidos até sofrer o colapso denitivo em 1931. Consideramos altamente provável que
as pressões sociais que deverão se desenvolver com o avanço do caos sistêmico, coloquem em
questão o protagonismo do dólar.
15
Veja-se Angus Madison para uma série histórica da expansão dos gastos estatais ao longo do
século XX e a base de dados da OECD (2020) para sua atualização no século XXI.
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nos centros imperialistas ocidentais só poderá se realizar sob forte repressão so-
bre os trabalhadores para que obtenham as taxas de lucro que alcançam fora. Tal
alternativa encontrará fortes limitações para se impor em razão do declínio da li-
derança militar estadunidense, do aumento exponencial dos custos de proteção
do mundo, da crescente desigualdade e do caráter cada vez mais multicultural e
multiétnico das classes trabalhadoras nos países centrais; e
c) O socialismo, cujo desafio será o de impulsionar e coordenar três frentes de luta
no sistema-mundo. Nos países centrais, onde buscará estabelecer um estado de
bem-estar social avançado, centrado numa democracia participativa, que priorize
a geração de bens públicos associados à nova etapa da revolução científico-téc-
nica – como saúde, educação, cultura e preservação e regeneração ambiental – e
erradique as opressões de gênero, étnico-raciais e de orientação sexual. Tal redi-
recionamento do Estado implicaria forte controle do mercado, subordinando-o a
objetivos sociais. Nos países periféricos, onde as lutas pelo desenvolvimento, pela
democracia e pela soberania assumiriam forte caráter anti-imperialista e antica-
pitalista, rompendo com a dependência para promovê-lo em articulação com o
eixo geopolítico do Sul Global. Na China e Rússia, pilares de um novo eixo geopo-
lítico mundial, onde será necessário consolidar o estabelecimento de um padrão
de desenvolvimento limpo, capaz de reverter assimetrias estruturais, e um inter-
nacionalismo que possa bloquear a atuação do imperialismo ocidental e lançar as
bases de um novo consenso mundial. Esse internacionalismo deverá estabelecer
uma capacidade militar dissuasória e um consenso fundado na articulação entre
as lutas anti-imperialistas, pela democracia participativa e por um novo padrão de
desenvolvimento. Todavia, para isso terá que superar um conjunto de limitações
como a cultura imperialista nos países centrais, a centralização estatal da política
nos países socialistas e nos governos anti-imperialistas dos países semiperiféricos
e periféricos.
O período de caos sistêmico em que estamos ingressando deverá colocar em questão
as bases da democracia liberal estadunidense, fortemente vinculada ao racismo em
razão de seus laços com o imperialismo e com o colonialismo interno, manifestos
nos vínculos históricos com a escravidão e as leis de Jim Crow, no uso da força traba-
lho dos latinos e imigrantes em condições de precarização, ou na intervenção militar,
guerras híbridas e articulação de golpes de Estado em áreas geopolíticas estratégicas.
Seu êxito depende do funcionamento da ideologia da prosperidade de uma maioria
branca caucasiana e das expectativas de ascensão social que proporciona para os tra-
balhadores, os setores médios e as minorias étnicas. Tal ideologia deverá ser ameaçada
pela recessão estrutural, pelo crescimento da diversidade étnica em relação à popu-
lação caucasiana nos Estados Unidos e pelo avanço da superexploração do trabalho.
É possível que nos próximos anos se produza na China uma inflexão que reorganize
o seu poder político, da mesma forma que a ascensão estadunidense provocou o New
Deal que repactuou as relações com os trabalhadores. Ela deverá ser impulsionada pela
atuação de sua gigantesca classe trabalhadora contra os altos níveis de desigualdade al-
cançados no período de aproximação dos Estados Unidos e em favor da socialização do
poder político. Essa pressão enfrentará, todavia, as resistências da burocracia partidá-
61
ARTIGOS
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ria que pretende manter seu monopólio político e da grande burguesia local que busca
expandir seu poder relativo perante ao Estado. O resultado dessas lutas reorganiza
a relação entre esses segmentos e será decisivo para definir as trajetórias da China no
sistema mundial, articulando-se com as disputas geopolíticas mundiais. Quanto mais
estas se aprofundarem, maior deverá a ser a força dos trabalhadores e de outros povos
junto à burocracia partidária chinesa na construção de um bloco histórico oposto ao
imperialismo estadunidense e ocidental, em face da necessidade de contar para isso com
ampla base popular e internacional. O eventual êxito da China, nos próximos anos, na
construção de uma alternativa monetária ao dólar poderá ampliar a margem estrutural
de flexibilização e socialização do poder político, ao reduzir a necessidade de controle
centralizado do câmbio e os riscos sobre o balanço de pagamentos.
Na América Latina, o desmonte dos fundamentos do neoliberalismo na economia
mundial, em razão do declínio nos fluxos internacionais de capitais e da reversão do
boom das commodities, coloca esse padrão de acumulação em profunda crise social e
política, o que explica sua aproximação do neofascismo e do imperialismo unilateral
estadunidense. A polarização expressa à direita – nos golpes de Estado no Paraguai
(2012), no Brasil (2016), e na Bolívia (2019), no cerco e nas tentativas de interven-
ção na Venezuela e na eleição de Jair Bolsonaro – ou à esquerda – na emergência de
movimentos de massa contra as políticas neoliberais no Chile e Equador, na eleição
de Andrés Manuel Lopez Obrador, de Alberto Fernandez, de Luis Arce, no plebis-
cito pela Constituinte exclusiva que porá fim à Constituição pinochetista, na queda
drástica de popularidade de Sebastian Piñera, Ivan Duque, ou em menor medida, de
Jair Bolsonaro – revela a profunda dissensão em curso devido ao esvaziamento do
centrismo e do abandono por parte do capitalismo dependente das tarefas mínimas
vinculadas ao desenvolvimento econômico e social. A região deverá se dividir em dois
blocos: um centrado no imperialismo estadunidense, nas burguesias internas, no su-
bimperialismo servil às políticas externas norte-americanas a que se candidatam as
extremas-direitas brasileira e colombiana, na superexploração dos trabalhadores e do
meio ambiente; e outro, baseado na defesa da soberania, do desenvolvimento e da
democracia e na emancipação dos movimentos populares que tende a se articular à
construção de uma força geopolítica vinculada à China e à Rússia e ao estabelecimento
de economias de transição para o socialismo. Entra em declínio acelerado o poder he-
gemônico regional, que reduziu os conflitos geopolíticos ao impor a dependência, em
favor de um ambiente em disputa que envolve Estados, classes e blocos históricos de
poder. Esse contexto se torna propício a revoluções e contrarrevoluções, aumentando
ainda o risco de guerras.
Conclusão
Neste artigo buscamos analisar as tendências que se abrem no moderno sistema mun-
dial a partir da covid-19. Utilizamos os instrumentos conceituais de longa duração
integrando análises prospectivas e retrospectivas mediante a combinação de tendên-
cias seculares e cíclicas. Defendemos a construção de uma teoria marxista do siste-
ma-mundo capitalista a partir da integração dialética entre os conceitos de moder-
no sistema mundial de Immanuel Wallerstein, de ciclos sistêmicos e hibridização de
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sistemas-mundo de Giovanni Arrighi, de revolução cientico-técnica e de ciclos de
Kondratiev, reivindicados por eotonio Dos Santos, de superexploração do trabalho
por Ruy Mauro Marini e de modo de acumulação por Christopher Chase-Dunn. O
conceito de modo de acumulação ilumina os vínculos e as contradições entre o ca-
pitalismo e as forças produtivas em que se sustenta historicamente, e o de revolução
cientíco-técnica demarca o tempo estrutural de sua crise, que abre um período de
lutas sociais e políticas em torno de sua preservação e sua transição para outras for-
mas de existência. A extensão da superexploração da força de trabalho das periferias
aos centros ocidentais indica o declínio da mais-valia relativa. A articulação entre as
longas durações representadas pela revolução cientíco-técnica, o ciclo sistêmico es-
tadunidense e o ciclo de Kondratiev, iniciado em 1994, ilumina uma individualidade
histórica única em movimento. E o conceito de hibridização de sistemas-mundo sob
direção socialista torna-se um instrumento indispensável na construção de um mun-
do pós-hegemônico e pós-capitalista, onde a riqueza esteja vinculada à unidade dialé-
tica entre a diversidade, a igualdade e a solidariedade.
Os resultados a que chegamos são, portanto, inevitavelmente heurísticos e provisó-
rios. Saem da zona de conforto da interpretação do passado e assumem o risco de pro-
jetar tendências e antecipar cenários. Sustentamos que a pandemia da covid-19 marca
a transição para o caos sistêmico e aponta a contradição entre o modo de produção
capitalista e a necessidade de desenvolvimento de um novo paradigma biotecnológico.
O estabelecimento em 2015-2020 da fase recessiva do ciclo Kondratiev, iniciado em
1994, coloca a hegemonia estadunidense e o neoliberalismo em crise terminal, abrin-
do uma disputa sobre a reorganização do sistema mundial que deverá articular confli-
tos geopolíticos e lutas de classes. De um lado, o imperialismo estadunidense e as po-
tências ocidentais articulados com as burguesias periféricas, oscilando entre projetos
neofascistas e neoliberais; de outro, a China e as potências continentais, como a Rússia,
os governos e movimentos nacionais-populares da periferia e semiperiferia e os mo-
vimentos sociais dos países centrais buscando o difícil caminho de construir identida-
des entre o socialismo de mercado, o capitalismo de Estado, o anti-imperialismo, os
projetos emancipatórios dos movimentos sociais e uma democracia em transição do
liberalismo ao socialismo, em busca da formação de um bloco histórico global
16
.
Todavia, a vida concreta é repleta de interações dinâmicas e imprevisibilidades e
é nesse cenário complexo que essas tendências poderão atuar nas pximas décadas.
16
Segundo Samir Amin (2007 e 2017), esse desao e tarefa estariam na base da construção de
uma V Internacional capaz de lançar um projeto socialista global.
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Abstract: e article conducts a dialogical reection between Braudelian analyzes of world-sys-
tems and Marxism, seeking to advance in the ways of building a Marxist theory of the capitalist
world-system. To this end, revisits the works of classic and contemporary authors, placing the
transition to the long 21st century as paradigmatic to promote the development of this theoreti-
cal synthesis. In this sense, it analyzes the crisis of neoliberal globalization and the ongoing sys-
temic chaos, linking it to the articulation of long-term movements: the scientic-technical revo-
lution, the cycle of hegemony in the United States and that of Kondratiev, which began in 1994.
Keywords: Analysis of World-Systems. Marxism. Dependency eories. Long 21st Century.
Systemic Chaos.
Resumen: El artículo realiza una reexión dialógica entre los análisis braudelianos de los siste-
mas-mundo y el marxismo, buscando avanzar en los caminos de la construcción de una teoría
marxista del sistema-mundo capitalista. Para ello, revisa las obras de autores clásicos y contem-
poráneos, colocando la situación de transición a lo largo del siglo XXI como paradigmática para
promover el desarrollo de esta síntesis teórica. En este sentido, analiza la crisis de la globaliza-
ción neoliberal y el caos sistémico en curso, vinculándola a la articulación de movimientos de
largo plazo: la revolución cientíco-técnica, el ciclo de hegemonía en Estados Unidos y el de
Kondratiev, que se inició en 1994.
Palabras-llave: Análisis de los Sistemas-Mundo. Marxismo. Teorías de la Dependencia. Largo
Siglo XXI. Caos Sistémico.