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Estados Unidos: geopolítica unilateralista e democracia ausente
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Adrián Sotelo Valencia
2
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Resumo: A supremacia unilateralista dos Estados Unidos, no marco de uma crescente
e iminente perda de hegemonia política e até certo ponto militar, acentua uma das
características das relações internacionais e interestatais agudizada pela crise política
e social interna no marco de um sistema oligárquico de “democracia indireta” em que
o voto popular e cidadão desempenha papel secundário. Essa ausência de democracia,
junto à política protecionista da administração Trump, submergiu esse país em um
dilema num mundo multilateral e policêntrico.
Palavras-chave: Imperialismo. Protecionismo. Unilateralismo. Democracia Ausente.
+
Tradução de Pedro Martinez.
2
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Sociólogo, mestre e doutor em Estudos Latino-Americanos pela Faculdade de Ciências Polí-
ticas e Sociais da UNAM. É pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos (CELA) da
mesma faculdade.
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Declínio geopolítico e estratégias estadunidenses
Desde suas origens, os Estados Unidos se autoproclamaram “excepcionais” (LIPSET,
2000; DRAITSER, 2013), praticando simultaneamente o unilateralismo nas relações
internacionais com o objetivo de selar e reproduzir sua supremacia sobre outros países
e potências que consideram “menores” em relação a seu poder econômico e militar.
Durante os anos 1970, duas estratégias floresceram nos Estados Unidos com o objetivo
de fornecer, a seu favor, meios e políticas para (tentar) combater seu crescente dec-
nio hegemônico. Entre elas está a chamada “multipolaridade” promovida por Henry
Kissinger sob o regime de Nixon-Ford (1969-1977) com o objetivo de restabelecer tal
hegemonia. Segundo Marini (1995, p. 19), tal política, enquanto respondia a esse de-
clínio (dos Estados Unidos) em relação a outras potências, captou a redistribuição do
poder mundial em nível regional, que o autor corretamente chama de subimperialismo,
composto de países como Brasil, Irã, Egito, África do Sul; ou, até mesmo Israel, que é
uma espécie de protetorado dos Estados Unidos no Oriente Médio.
1
O outro lado da política imperialista (norte)americana
2
era conhecida como “tri-
lateral” ou trilateralismo, consistindo em uma comissão representada por Zbigniew
Brzezinski sob o regime do democrata James Carter (1977-1981) e caracterizada por
três elementos, de acordo com Marini (p. 20): a) nega que a “redistribuição do poder”
é inevitável, como diziam os multilateralistas; b) reafirma a existência de relações de
centro/periferia”; c) finalmente, considera como componentes do trilateralismo paí-
ses imperialistas como Japão e Alemanha para enfrentar a “ameaça comunista, repre-
sentada pela União Soviética.
A chegada à Casa Branca do republicano Reagan que retoma a política de recupera-
ção da hegemonia norte-americana e ime a guerra de baixa intensidade, vai dar seus
frutos com a destituição do governo sandinista na Nicarágua, marcando o fim desses
dois lados e a proclamação do imperialismo unilateralista (MARINI, 1995, p.p. 20-21).
Este é praticado até hoje pelas administrações Clinton, Bush, Obama e Trump, esta úl-
tima sob a ineficaz e fracassada política protecionista e isolacionista do slogan implau-
sível e distópico: “America First, que reflete basicamente o isolacionismo trumpista e o
abandono de tratados internacionais por essa potência mundial.
Em resposta ao artigo escrito por seu homólogo russo, Vladimir Putin (12 de se-
tembro de 2013), que questiona a singularidade nacional dos Estados Unidos, o presi-
dente Barack Obama a reafirmou em seu discurso perante a 68ª Assembleia Geral da
ONU, apontando que “a América é excepcional, em parte porque demonstramos boa
vontade, através do sacrifício de sangue e dinheiro, defendendo não apenas nossos
próprios interesses, mas os interesses de todos. O analista Draitser (2013) avaliou essa
1
Para o tema da geopolítica, consultar Marini (1985). Para o tema do subimperialismo, do mes-
mo autor com Olga Pellicer de Brody (1967), e Marini, (1977). Para um tratamento do tema,
ver Sotelo (2019b).
2
Utilizo as palavras “norte-americano(a)” e “estadunidense” para superar um vício ideológico
e anglo-saxão, que consiste em considerar “americanos” apenas os que possuem cidadania nos
Estados Unidos da América e excluir os demais americanos, como haitianos, brasileiros, mexi-
canos ou bolivianos, entre outros.
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citação de Obama e mostrou que, se a velha noção da excepcionalidade dos Estados
Unidos tem raízes profundas na psique americana, agora o mundo está passando por
uma mudança profunda na geopolítica global que põe em xeque a superioridade de
Washington. Para esse analista, isso significa o desejo dos Estados Unidos de impor
seu direito de dominar pela forma que lhe for mais conveniente, seja ela a política,
a econômica, a ideológica ou a militar. Ele afirma que Obama usa essa retórica para
colocar-se numa posição moral acima não apenas de outros países, mas também do
direito internacional, das próprias instituições que a ONU representa, e de tudo o que
aconteceu desde a Segunda Guerra Mundial.
Draitser conclui corretamente que toda a raiva de Obama contra a Rússia e Putin
se deve ao fato de a Rússia não aceitar esse princípio e de estarmos passando por “uma
mudança tectônica na geopolítica global, pois países que há dez anos não ousariam
questionar a noção de excepcionalidade e a capacidade dos Estados Unidos, bem
como o direito de afirmar sua autoridade militar em todo o mundo, agora o fazem.
Também é significativo lembrar como o próprio ex-presidente James Carter (2015)
definiu os Estados Unidos: “oligarquia com poder ilimitado para subornar”. E ele não
estava errado, já que esta tem sido uma característica essencial do imperialismo (LE-
NIN, 1961) e da política norte-americana aplicada tanto no nível das nações e das ins-
tituições, quanto no nível dos indivíduos dentro da estrutura de sua geopolítica global
e de seus sistemas de dominação.
Imperialismo e sistema político norte-americano
As eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos foram realizadas neste marco
histórico e político em um contexto de profunda crise social, racial, econômica e de
saúde que não tem paralelo na história moderna deste país. Ao mesmo tempo que se
esgota o seu crescimento econômico prolongado de 128 meses, encerrado em 2019,
com uma baixa taxa média de crescimento de 2,3%, de acordo com o Escritório de
Análise Econômica do Departamento de Comércio (CEPAL, 2020, p. 2), os Estados
Unidos estão passando por uma profunda crise de hegemonia
3
no contexto do sistema
de relações interestatais globais. Talvez pela primeira vez, China e Rússia poderiam se
colocar como segunda potência mundial em médio prazo, no âmbito de um mundo
cada vez mais policêntrico e multilateral, cuja existência os governantes dos EUA es-
tão determinados a negar, apesar dos efeitos colaterais em suas relações comerciais,
em seus sistemas produtivos e em ciência e tecnologia, particularmente no que diz
respeito ao desenvolvimento cada vez mais dinâmico da inteligência articial e das
tecnologias informáticas baseadas em 5G desenvolvidas pela China, que se tornou um
poderoso concorrente em nível internacional.
O capitalismo global passou por uma profunda mudança na qual os Estados Unidos,
de locomotiva principal, passaram a compartilhar esse papel, o que é obscurecido pelo
3
Para o tema da crise de hegemonia, ver Martins (2011), especialmente o capítulo 4. O autor
analisa o processo de hegemonia por meio de três teses inter-relacionadas: a primeira é a fase
de expansão da hegemonia do Estado capitalista; a segunda corresponde à fase de crise e dete-
rioração dessa hegemonia e, nalmente, a crise civilizatória na qual estaríamos hoje envolvidos.
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impulso que lhes dá a economia mundial, especialmente pelo controle que exercem so-
bre os sistemas financeiro e monetário por meio do dólar, do Fundo Monetário Interna-
cional e do Banco Mundial, que influenciam de muitas maneiras o comportamento e as
trajetórias dos bancos e da Bolsas de Valores em todo o mundo. Essa é uma das razões,
entre outras, de os governantes norte-americanos não perceberem que seu país deixou
de ser essa locomotiva visto que consideram que a sua posição nesses mercados (finan-
ceiro e monetário) ainda produz influência considerável. Entretanto, sua eficácia é cada
vez menor, como demonstram os precários resultados de seu confronto comercial com
a China e das “sanções, na linguagem dos falcões, em verdade, retaliação e vingança,
contra países como Irã, Venezuela, Nicarágua e outros que consideram inimigos, porque
não se alinham com seus interesses estratégicos como imperialismo central.
A pandemia generalizada e mortal do coronavírus – que já causou mais de 1,4
milhão de mortes em todo o mundo entre janeiro e novembro de 2020 – instalou-se
naquele país a ponto de causar milhões de infecções, mortes e outras doenças em de-
corrência do sistema ineficiente de previdência social privado, o que foi exacerbado
pela crise sanitária e pelo desdém tanto de seu presidente negacionista como de seu
gabinete em adotar medidas vigorosas e eficazes que permitissem, como na China, em
Cuba e na Venezuela, superar grande parte de seus efeitos mortais.
Talvez pela primeira vez na história dos EUA, um vírus, causador da covid-19, tenha
sido um dos fatores, se não o essencial, na derrota e no descrédito de um candidato à
Presidência – no caso, o magnata da Casa Branca Donald Trump, o qual disputou sua
reeleição com o democrata Joe Biden, cuja campanha se aproveitou, em seus argumentos,
da inação sanitária da fracassada administração anterior.
Em meio a uma dança de números e cálculos em que não existem certezas abso-
lutas, há consenso sobre a drástica queda do produto interno bruto da economia dos
EUA e sobre o aumento brutal do desemprego. Mesmo que, segundo o Departamento
do Trabalho, sejam criados novos empregos, persiste o problema de que, por serem
temporários e de natureza precária e baixa renda, não resolvem os problemas traba-
lhistas, familiares, de saúde e sociais da maioria dos trabalhadores, especialmente os
trabalhadores não documentados e imigrantes legais, que estão aumentando na popu-
lação total atual de cerca de 331 milhões de habitantes.
Parte dessa situação de crise global de uma das maiores potências do mundo, resi-
de no esgotamento do potencial de desenvolvimento técnico-científico do expansio-
nismo militar imperialista para aumentar a produtividade do trabalho, observado nas
últimas décadas, ao passo que anteriormente podia sustentar a competitividade, as
taxas de acumulação de capital e o lucro na divisão internacional do trabalho (KEN-
NEDY, 1989, 1995).
Há também o esgotamento e a crise de um sistema eleitoral obsoleto, desfigurado e
desconectado das tendências mundiais, que, ao contrário, incluem sistemas eleitorais
precisos e modernos que garantem a participação direta da população. Nos Estados
Unidos, esta se encontra subordinada a um Colégio Eleitoral elitista e aristocrático
composto de minorias privilegiadas, cujo critério de formação não possui paridade
com o voto direto.
Segundo Robin, professor de Ciências Políticas no Brooklyn College, o constitu-
cionalismo da direita conservadora estadunidense se baseia em três pilares: o Colégio
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Eleitoral, o Senado e a Suprema Corte (ROBIN, 2020). No jogo desses três ramos do
Estado, emerge o resultado das eleições presidenciais a cada quatro anos, no contexto
do qual o que menos conta é o voto do cidadão, porque ele é indireto e canalizado
por meio dos colégios eleitorais locais de cada estado, marcando um regionalismo
dualista que é difícil de reconciliar com o federalismo, e, por vezes, entra em forte
tensão com ele. No regime político oligárquico norte-americano a origem do Colégio
Eleitoral (Electoral College) data da ratificação da Décima Segunda Emenda à Cons-
tituição (The Twelfth Amendment XII do ano 1804), que determina a composição de
538 membros da elite política daquele país, cuja maioria decide quem será eleito para
governar” uma população de mais de 331 milhões de habitantes em 2020. E, ainda
assim, a “democracia” estadunidense se apresenta como “modelo” a ser aplicado no
mundo inteiro!
Historicamente, o capitalismo imperialista tem construído coordenadas e parâme-
tros geopolíticos e estratégicos de suas ações globais e regionais. Isso garante a conti-
nuidade do sistema político imperialista, e também sua projeção no exterior, manten-
do e reproduzindo essas instituições e a constituição política sem alterar sua essência.
As coordenadas definem a localização e a posição nos diferentes pontos e espaços
da Terra onde geralmente se estabelecem bases militares para guardar e reproduzir
seus interesses. Atualmente, existem mais de oitocentas bases instaladas pelos Estados
Unidos em nível global, nove das quais estão localizadas na Colômbia, para proteger
os interesses imperialistas sob as diretrizes da chamada Doutrina Monroe. Os parâ-
metros são aqueles que orientam a ação imperialista em termos do cumprimento dos
objetivos estratégicos estipulados nas coordenadas e nos interesses imperialistas.
Essa configuração institucional do College impede a instituição de uma democra-
cia representativa de massas respaldada no regime de voto universal, direto e secreto,
o que implicaria realizar uma profunda e radical reforma constitucional, muito difícil
nas circunstâncias de um país em crise e em declínio de sua hegemonia internacional,
mas cujo sistema político é completamente congruente com as práticas e os interes-
ses das classes dirigentes norte-americanas, organizadas nos dois partidos tradicionais
da classe dominante: o Democrata e o Republicano, que, em essência, são expressões
de políticas imperialistas e pró-capitalistas. Politicamente, existe apenas um projeto
dominante nos Estados Unidos: o projeto imperialista, com duas variantes: o Partido
Democrata e o Partido Republicano
4
.
Se alguma coisa se destaca na recente corrida eleitoral é o regime profundamen-
te oligárquico, típico do imperialismo, que tem prevalecido nesse país praticamente
desde a sua constituição. O “voto popular” do cidadão desempenha papel secundário,
pois, ao contrário do que ocorre em países como a Venezuela, tão criticado pela ideo-
logia imperialista, o eleitorado vota indiretamente por meio de delegados, como foi o
caso no Brasil após a ditadura, quando o Parlamento e o Colégio Eleitoral derrotaram
um poderoso movimento popular e cidadão chamado Diretas Já, que postulava a elei-
ção direta do primeiro Presidente da chamada “Nova República” (TOSI, 2003).
Na pseudodemocracia eleitoral dos Estados Unidos – exaltada por sua tecnoburo-
cracia e seus intelectuais orgânicos – aquele que perder com o voto popular e cidadão
4
A este respeito, ver Domho (1982).
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pode ganhar no Colégio por uma minoria que o designa, como foram os casos, neste
século, de George W. Bush e de Donald Trump. George W. Bush ganhou a Presidência
no Colégio Eleitoral com 271 votos eleitorais, em oposição aos 266 de Gore, durante as
eleições federais de 2000, embora tenha obtido 543 895 votos populares a menos que
o seu oponente. Apoiou-se ainda em fraude eleitoral na Flórida, governada por seu ir-
mão, Jeb Bush, apesar das notórias evidências. Donald Trump obteve quase 3 milhões
de votos a menos que Hillary Clinton em 2016, mas venceu com o apoio de 304 delega-
dos. Derrotado, novamente, em 2020, dessa vez por 7 milhões de votos, Trump tentou
apelar à Suprema Corte, usar preses políticas sobre os estados e criar as condições
propícias para uma insurreição neofascista, alegando, sem evidências, fraude eleitoral,
para desqualificar o voto popular e retomar a maioria no Colégio Eleitoral.
Para ir além do desfecho dessa situação de crise política orgânica, o acima exposto
desvela a verdadeira natureza autoritária do sistema político e eleitoral estadunidense. Os
falcões de Washington exportam a violação à autodeterminação dos povos e à democracia
e impõem a sangue e fogo a outros países quando convém a seus interesses de dominação
imperialista. Isso é exemplificado pela recente história do século XXI na América Latina,
expressa no golpe policial-militar e cívico perpetrado na Bolívia com o amplo apoio e
conluio da OEA de Almagro, do chamado Grupo de Lima e dos representantes da União
Europeia; e, nos golpes de Estado em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016),
perpetrados com o apoio e o estímulo de Washington, moldando, na América Latina, os
chamados de golpes brandos, parlamentares ou judiciais. (SOTELO, 2019-c).
Nos Estados Unidos, a palavra “democracia” é um conceito oco. Ela projeta um eufe-
mismo que esconde o verdadeiro caráter autoritário do regime político norte-americano
que é propenso aos interesses das classes dominantes e do grande capital financeiro e
industrial. Um imperialismo unilateral que dita suas próprias regras e as ime a sangue
e fogo a outros países (LIPSET, 2000). O governo Trump bloqueia e ime “sanções” a
países soberanos como Cuba, Nicarágua, Irã e Venezuela, ignora seus sistemas demo-
cráticos de eleição popular e atropela furiosamente os processos que garantem ampla
participação popular nos assuntos desses Estados. Não admite observadores internacio-
nais ou verificações externas independentes que validem os resultados dessas eleições.
A “missão de observação” da OEA de Almagro, um fantoche norte-americano, limi-
tou-se a legitimar as eleições estadunidenses, apesar das múltiplas violações cometidas
por Trump à Constituição, ignorando o processo eleitoral ao chamá-lo de fraudulento
no meio da contagem de votos, autoproclamando-se, ao estilo Guaidó (nomeado por
Trump “presidente encarregado” da Venezuela), vencedor, e transmitindo constante-
mente tuítes falsos e ameaçadores.
Entendemos o representante da Presidência Imperial nos Estados Unidos, tanto
quanto uma expressão concreta do imperialismo contemporâneo (SCHLESINGER,
1973; SAXE-FERNÁNDEZ, 2006), ou como uma simbiose entre as corporações e o
Estado norte-americano, independentemente do partido ao qual pertença: republica-
no ou democrata
5
o eleito pelo College of Electors, essencialmente não muda nem a
5
Muitos autores e organizações políticas consideram Bernie Sanders um ativista de “esquerda,
mas nós o colocamos na mesma perspectiva do Partido Democrata, embora com um viés um
pouco mais de “esquerda” dentro dos parâmetros do liberalismo burguês norte-americano.
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vocação nem as práticas imperialistas dos Estados Unidos: no máximo, imprime neles
sua forma peculiar de governar e tomar decisões, mas dentro da estrutura imutável de
suas políticas imperialistas em todo o mundo. Nesse contexto, deve-se vislumbrar as
diferenças, por exemplo, entre Barack Obama e Donald Trump sobre várias questões
como imigração, acordos de livre-comércio, intervencionismo estrangeiro, guerras, ou
políticas internas em relação à saúde e à cidades-santuário, para mencionar alguns
tópicos de interesse. Diferenças que, naturalmente, também são notadas entre Trump
e Biden ao tratar assuntos como saúde, políticas de controle da pandemia que atinge a
população, salários, políticas de emprego e imigração.
Deve ficar claro, entretanto, que o presidente dos Estados Unidos é um verdadeiro
representante do imperialismo global que trabalha ad hoc para um sistema que co-
meçou a ser construído a partir da segunda metade do século XIX – o imperialismo
como um sistema econômico, político e de dominação baseado no modo capitalista de
produção de mercadorias, na propriedade privada da terra e dos meios de produção e
na exploração da força de trabalho pelo capital – e cuja raison d’être é a expansão terri-
torial, e a despossessão de povos e comunidades, de países e regiões inteiras. Quando
este projeto é insuficiente ou dificultado pela democracia, não hesitam em recorrer ao
uso da força e, em última instância, à guerra. Portanto, é completamente secundário
se a Presidência Imperial é ocupada por Bush, Obama, Clinton, Trump ou Biden. No
máximo, a única coisa que muda é “o estilo de governar”, mas dentro dessa ordem
estrutural-institucional de interesses geopolíticos e militares que a predeterminam e
cuja síntese é a expressão da unidade da direção militar e financeira dentro do bloco
de poder imperialista dos Estados Unidos (SOTELO, 2019-b).
O rumo dos acontecimentos não é alterado em razão da personalidade que se eleja
para a Presidência dos Estados Unidos. Ela é superdeterminada por essas coordenadas
e parâmetros geopolíticos e estratégicos de sua ação no mundo, no espaço regional e
global. É uma ilusão, para dizer o mínimo, pensar que a trajetória da história mundial
mudaria dependendo da eleição de outro candidato que não Trump. Com Obama,
Hillary ou Biden o comportamento imperialista dos Estados Unidos não muda, parti-
cularmente na América Latina: busca-se derrubar os governos nacionais-populares e
progressistas e estabelecer relações de dominação e hegemonia com os demais.
Esquecer essa premissa é atribuir a fatores circunstanciais, secundários e subjetivos
a dinâmica essencial das mudanças, como a escolha de um candidato, as formas de
suas ações, suas boas ou más intenções pessoais em relação à tomada de decisões e
até mesmo suas ameaças, na época, de cancelar um instrumento de dominação como
o TLC e confiscar as remessas, como o Sr. Trump advertiu em várias ocasiões. É não
entender que os fenômenos sociais e humanos fluem e se constituem como produtos
globais historicamente determinados que articulam dialeticamente múltiplas relações
que explicam sua natureza e sua dinâmica dentro de uma totalidade concreta. Esses
fatos, insistimos, são típicos de um sistema imperialista, independentemente de quem
o lidera. Por isso, forças anti-imperialistas e anticapitalistas nunca devem ter ilues
sobre um regime e seus representantes que respondem à dinâmica de dominação po-
lítica, acumulação de capital e perpetuação da ordem capitalista existente em crise e
declínio histórico. Isso leva a Sapir a considerar que a crise financeira de 1997-1998 é,
em essência, um “momento importante da crise do ‘século americano” (SAPIR, 2008,
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p. 91). Deve também ficar claro que o imperialismo não se reduz à ação de um país,
e nem mesmo a um bloco, como a Otan; ou uma região, como a União Europeia do
grande capital. Pode ser os Estados Unidos, a Alemanha, a França ou a Inglaterra, mas
sobretudo, corresponde a um sistema global dentro da própria estrutura de funciona-
mento do modo de produção capitalista histórico. Na sua fase atual o caracterizamos-
como neoimperialista, integrand-o ao conceito original formulado criativamente por
Lenin e outros autores marxistas, em que os novos fenômenos incorporados nas últi-
mas décadas no mundo, tais como o capital fictício, o desenvolvimento extraordinário
da tecnologia, a informatização de processos e produtos, a implantação da chamada
globalização e a revolução industrial (4.0), e a simultaneidade das transações comer-
ciais graças a sistemas interligados por meio de tecnologia informática e inteligência
artificial. Nas palavras de FOSTER:
A questão do ‘novo imperialismo’ se reduz à questão do neoliberalismo ou a qualquer
encarnação de expropriação particularmente brutal, uma redução que obviamente in-
tegra todos os fenômenos, instrumentos, políticas e instituições derivados do neolibera-
lismo contemporâneo (2005, p. 37).
Nesse contexto, independentemente do personagem que ocupa a Presidência Imperial,
o executivo, por sua vez, deve se mover dentro do quadro rígido, inclusive superdeter-
minado na própria Constituição, que estabelece os parâmetros e as coordenadas de um
sistema imperialista que, para se reproduzir, tem de fazê-lo necessariamente cumprindo
as ações de mobilização de investimentos, apropriação de territórios, invasão de paí-
ses, imposição de políticas de qualquer sinal (protecionista ou de livre-comércio ou sua
combinação), reservando-se a qualquer momento o uso da força e, em última instância,
a guerra, como tem acontecido recorrentemente na Síria (onde os Estados Unidos ocu-
pam ilegalmente uma parte do território, assim como no Iraque e na Líbia).
Conclusão
Apesar da xenofobia, do racismo sistêmico, da segregação racial e da arrogância fascis-
ta do Presidente Trump e de seus falcões durante os quatro anos de sua administração
fracassada – mas que são característicos do sistema social e político norte-americano
–, o povo desse país foi forçado a votar nos democratas, motivado em grande par-
te pela crise econômica, pelo coronavírus, pelo desemprego estrutural maciço, pela
pobreza e pela ausência de um projeto alternativo. Contudo, os Estados Unidos não
deixarão de implementar suas práticas imperialistas em um quadro de crise estrutural
e sistêmica, bem como no caso da perda de sua supremacia para um mundo multipo-
lar e policêntrico em ascensão. Cada vez mais os Estados Unidos se veem ameaçados
pela chegada de potências indubitáveis como a China, a Rússia, a Irã, a Índia, que o
capital e as classes dirigentes norte-americanas veem como seus verdadeiros inimigos,
sem mencionar as tentativas de impor à Nuestra América (José Martí) um macartismo
anticomunista ressucitado e a nefasta Doutrina Monroe que orienta sua política e sua
estratégia nos últimos anos.
O curso dos problemas sociais, políticos, culturais, geoestratégicos e militares que
envolvem as práticas do imperialismo em escala global, e em particular as dos Estados
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Unidos, não depende de forma alguma da personalidade individual que assuma tem-
porariamente o poder político da maior potência do globo (Estados Unidos) até agora.
Pelo contrário, são as condições histórico-estruturais constituídas sob uma totalidade
concreta que constituem uma unidade de múltiplas relações e determinações – lutas
de classe, crises econômicas e políticas, calamidades naturais e desastres ambientais;
implementação de políticas econômicas de um indicativo neoliberal sob os auspícios
do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial; anexação de países e territó-
rios, golpes de Estado, crise da democracia burguesa e outros intermináveis problemas
cuja solução está longe de ser encontrada – aquelas que, em longo prazo, determinam
a ação de seus governantes, a forma peculiar como é afetado ou não o curso de seu
desenvolvimento e o podem modificar.
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Perseu Abramo, 2003.
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ARTIGOS
Abstract: e unilateralist supremacy of the United States, within the framework of a
growing and imminent loss of political and to some extent military hegemony, marks
one of the characteristics of international and inter-state relations aggravated by the
internal political and social crisis within the framework of an oligarchic system of
“indirect democracy” where the popular and citizen vote plays a secondary role. is
absence of democracy, together with the protectionist policy of the Trump administra-
tion, has plunged this country into a dilemma in a multilateral and polycentric world.
Keywords: Imperialism. Protecionism. Unilateralism. Absent Democracy.
Resumen: La supremacía unilateralista de Estados Unidos, en el marco de una crecien-
te e inminente pérdida de hegemonía política y hasta cierto punto militar, marca una
de las características de las relaciones internacionales e interestatales, agravada por la
crisis política y social interna en el marco de un sistema oligárquico de “democracia
indirecta” donde el voto popular y ciudadano juega un papel secundario. Esta ausencia
de democracia, junto con la política proteccionista de la administración Trump, ha
sumergido a este país en un dilema en un mundo multilateral y policéntrico.
Palavras-clave: Imperialismo. Protecionismo. Unilateralismo. Democracia Ausente.