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HOMENAGEM
O último voo de águia de AndréGunderFrank
Nildo Domingos Ouriques
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AndréGunderFrank é intelectual decisivo para estudar América Latina. São dele e
de sua vasta e fecunda obra, vários pontos de partidas para tirar o pensamento crítico
latino-americano de armadilhas próprias e alheias na década de 1960 em diante. É
também dele, agora longe das preocupações particulares de nosso errante continente,
o alerta sobre a evolução histórica do mundo em que vivemos, dando o xeque-mate na
historiograa eurocêntrica. 
Num ensaio atinado, o filósofo equatoriano BolívarEcheverría (Las ilusiones de la
modernidad)estabelece importante diferença entre Marx e Braudel: ao alemão, a pri-
mazia da crítica; ao francês, o esforço da compreensão.Na obra Re-Orient. A economia
global na era do predomínio asiático, Frank não poupa ninguém: a compreensão e a
crítica devem começar precisamente na radical revisão da história comum a ambos.
É claro que Braudel tem enorme dívida intelectual para com Marx, reconhecida
pelo próprio “biógrafo” do Mediterrâneo. Ao contrário dosbraudelianosque apres-
sadamente se fizeramantimarxistas, Braudel não tem vacilação diante da estatura de
Marx; basta ler entrevistas ou mesmo sua obra mais conhecida para se dar conta da
presença marcante de Marx, na qual podemos reconhecer as pistas marxianas orien-
tando sua longa e ambiciosa reconstrução do capitalismo e da civilização material. No
entanto, o projeto de Braudel era, de fato, produto de uma antiga indicação de Hegel,
de inequívoco caráter eurocêntrico.
O mestre alemão da dialética afirma nasLições sobre a filosofia da história univer-
salque “o mar Mediterrâneo é o elemento de união dessas três partes do mundo, e ele
se converte no centro de toda a história universal... o Mediterrâneo é o eixo da história
universal. Todos os grandes Estados da história antiga se encontram em torno desse
umbigo da terra... Sem o Mediterrâneo não caberia imaginar a história universal... A
Ásia Oriental remota está afastada do processo da história universal e não intervêm nele.
Não podemos ignorar que é de Hegel a pretensão de uma genuína história uni-
versal ao descreveros fundamentosgeográficosdatrajetória humanaao indicar pre-
cisamente a Ásia como o início de tudo, região onde “despontou a luz do espírito,a
consciênciade algouniversal, e com ela, a história universal”. No entanto, a economia
mundial, unida às condições asiáticas, não permitiriam que seu desabrochar ocorresse
na China e, somente mais tarde, sob outras circunstâncias poderia finalmente figurar
sob roupagens concretas na Europa, que teria se transformado no centro do mundo...
Eis a origem filosófica do assim chamado “excepcionalismo europeu” e base para a
visão eurocêntrica – portanto, não universal – do mundo tal como o conhecemos se-
gundo a historiografia dominante.
O eurocentrismo é para Frank anti-historico e anticientífico, é uma ideologia de
que Polanyi, Braudel, Wallerstein, Tonybee, Weber e até mesmo Marx são cativos.
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* Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC e presi-
dente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC).
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A tese central de Frank é simples: ao contrário do que supunham ideologicamente
Braudel e Wallerstein, jamais existiram diversas economias mundiais na Idade Moder-
na, mas uma única economia mundial na qual o tão cantado excepcionalismo europeu
não era nem jamais poderia ter sido hegemônico. Portanto, a Europa, como centro
do projeto de pesquisa e de suas teorias, constituiu não somente erro grave, mas pura
produção de ideologia. Com mais precisão ainda: “em termos econômicos a escala
mundial, nem Portugal no século XVI, nem os Países Baixos no século XVII nem
Inglaterra do século XVIII foram de maneira alguma “hegemônicos. Tampouco em
termos políticos. Nada disso! Em todos esses terrenos, as economias da Ásia estavam
muito mais “avançadas, e impérios como o Ming/Ching chinês, o dos mongóis na Ín-
dia e inclusive o da Pérsia dos sefarditas e o turco otomano possuíam um peso político
e inclusive militar muito superior a qualquer dos impérios europeus do período.
Eis a dimensão da heresia de Frank. Anota aí: uma heresia não é um arroubo aca-
dêmico! Gunder Frank estuda a economia mundial desde sempre como poucos pen-
sadores de nosso tempo (Acumulação mundial – 1492-1789), e, em consequência, seu
último voo de águia revoga também suas próprias ilusões e erros do passado. Nada
escapa de seu vigoroso revisionismo, pois até mesmo a especificidade que Marx julga-
va decisiva na análise histórica – aquela diferença especifica que poderíamos verificar
no reino da produção ocorrida na esteira da Revolução Industrial, ou seja, o “modo de
produção capitalista, é, para ele, uma completa miopia, fruto da imaginação de Marx,
sem fundamento histórico algum! À luz de sua pesquisa, tampouco teria existido uma
Grande Transformação” no século XVIII; ao contrário, a transformação de fato ocor-
re muito tempo antes e jamais na Europa. Não se trata de pista nova, pois Frank já
esboçara elementos importantes desse programa de pesquisa no artigo Five thousand
year world system history, publicado um ano antes da obra que comentamos.
Na mesma toada, Enrique Dussel (Ética de la liberación) alertou – a partir dos ras-
tros deixadas por Frank e Samir Amim – sobre o caráter ideológico de qualquer excep-
cionalidade europeia na constituição da economia mundial ao afirmar que “tudo que
um Max Weber atribuiu como fatores “internos” medievais ou renascentistas europeus
para a gênese da Modernidade, se realizou com mais força no mundo mulçumano
séculos antes. Frank, portanto, não está sozinho nesse novo capítulo da historiografia
que todavia não ganhou força na América Latina e, com pesar reconheço, menos ainda
no Brasil. Aqui, ninguém ousa algo sem autorização do meridiano de Paris e menos
ainda sem permissão da academia estadunidense.
Além da tese central, Frank oferece formulações para uma nova história do carros-
sel do comércio global que joga por terra a hipótese de Marx segundo a qual a con-
quista da América teria dado início ao “mercado mundial, obviamente, uma enorme
simplificação. Ora, nos séculos XIII e XIV, a economia mundial se apoiava predomi-
nantemente na Ásia; mesmo Veneza e Genova, tão cantadas em verso e prosa pelos his-
toriadores econômicos eurocêntricos, não passavam, segundo Frank, de entrepostos
entre a demanda da Europa e produtos asiáticos.
Ademais, se o mercado mundial tinha na Ásia seu centro durante vários séculos
e tampouco era marginal quando a “revolução industrial” teria deslocado o centro da
acumulação mundial para a Europa, outro tanto, com igual força, ocorreria no mundo
do dinheiro, que no livro de Frank ganha o nome de “cassino global, na clara preten-
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são de indicar um fenômeno que, todavia, não encontra uma solução nos dias atuais
como algo absolutamente natural no sistema mundial... desde sempre! Assim, a prata,
que coloca a América Latina numa posição privilegiada no cassino global, é observa-
da em Re-Orient desde a centralidade asiática, um giro não somente espetacular, mas
completamente novo para a análise historiográfica ainda dominante no Brasil e na
maior parte dos países latino-americanos.
A retrospectiva história realizada por Frank é de fôlego longo. Sua crítica espe-
ta não somente o esquecimento dos historiadores sobre os séculos anteriores para
os quais tudo teria começado com a lenta desagregação do feudalismo europeu, mas
também implica uma radical revisão de fontes sobre o período no qual os estudos de
história econômica se realizam precisamente para avaliar a centralidade europeia na
economia mundial, ou seja, o período a partir de 1492. Frank indica que, mesmo no al-
tar sagrado da “competitividade e produtividade, típico de uma economia capitalista,
o subcontinente asiático e a China eram, entre 1500 e 1750, muito mais avançados que
qualquer outra parte do planeta. É por essa razão, e não por outra qualquer, que a ca-
pacidade de absorção do dinheiro mundial (prata) pela China era produto importante
de diferença de custos de produção e preços em escala internacional em certo período
do século XVII. No entanto, a despeito da multiplicidade de fontes, análises e evidên-
cias, a historiografia hegemônica jamais deu o braço a torcer e simplesmente ignorou o
tamanho do mundo, preferindo, em oposição, reduzir tudo à escala europeia.
Agora, se as evidências em favor de uma nova história das finanças e do comércio
mundial seriam suficientes para iniciar o processo de uma verdadeira história univer-
sal não mais orientada pelo eurocentrismo, igualmente decisiva é a análise das insti-
tuições existentes na Ásia em comparação com a Europa. Ainda que revisando apenas
parcialmente a história das instituições “extra-europeias, Frank nos coloca num terre-
no mais firme que a ideologia dominante: precisamente na Ásia existia um complexo
e sofisticado sistema de crédito e atividades bancárias correspondentes ordenado por
uma divisão internacional do trabalho na qual precisamente os asiáticos – especial-
mente a China – detinham uma posição produtiva superior a dos europeus.
Os seres humanos são sempre cativos das armadilhas intelectuais e políticas de sua
época, razão pela qual não é fácil observar para além dos fogos e artifícios inerentes
aos acontecimentos, o lento movimento das estruturas quase imperceptível aos olhos
desavisados do presente. Também ocorre o contrário, quando os homens de ciência se
fixam nas estruturas, não de maneira ingênua, mas precisamente para esterilizar ou
mesmo desprezar acontecimentos que são relevantes,aqueles mesmos responsáveis
pelo movimento das estruturas como se, de fato, nenhumamudança radical – revolu-
cionária – pudesse ocorrer no curto tempo de nossas vidas.
A China fez sua revolução social em 1949 sob comando de Mao e com as massas
camponesas.É uma revolução extraordinária profundamente ignorada entre nós por
decorrência necessária da hegemonia liberal que comanda a vida tanto da esquerda
quanto da direita no Brasil.O espanto diante da “emergência chinesa” próprio dos
neófitos é produto dessa mesma historiografia eurocêntrica denunciada por Frank em
cada linha de seu último livro como uma armadilha que precisamos descartar rapida-
mente se acaso pretendemos entender os “ares do mundo.
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Agora mesmo as atenções se voltam para a China, não para compreendê-la e me-
nos ainda para criticá-la, mas, precisamente para ignorá-la. A apologia do economi-
cismo vulgar em afirmar o “modelo chinês” como saída para a periferia capitalista
é expressão cotidiana dessa ignorância que se pavoneia no especialista em assuntos
chineses, especialmente acentuada entre os economistas, mas não restrito a eles. Na
mesma medida,a ciência política que informa tanto osliberais de esquerdaquanto os
dedireita,recusa o sistema político chinês como se, de fato, fosse possível transpor-
tá-lo para os povos andinos ou o nosso sertão! Ora, sabemos que as revoluções não
se exportam!! Manoel Bomfim espetou os liberais no início do século passado diante
da pretensão de reclamar aqui as universidades francesas: “O Brasil quer ter agora as
universidades alemãs; a ideia é pelo menos genial – transportar para o Brasil as uni-
versidades germânicas! E por que não transportam o Santo Império, o Dr. Fausto. A
Declaração de Lutero e o Anel dos Nibelungos?! ...Um pedaço de Idade Média e um
pouco de teologia não fariam mal...” Ora, outro tanto ocorre hoje quando tomam a
China como um “modelo” a ser seguido esquecendo o detalhe da totalidade, sem o
qual o gigante asiático seguiria em estado “estacionário” como pensava Adam Smith.
A ignorância sobre a China é, portanto, vício antigo no Brasil. No entanto, temo
que não seja privilégio nacional. O filósofo moral Adam Smith, autor daTeoria dos
sentimentos morais, escreveu em 1776,naRiqueza das nações– seu livro mais festeja-
do, mas não o mais importante, que a China estava emestado estacionário. No entanto,
Smith também alertouque nem sempre foi assim, pois a China teria sido “[...] durante
muito tempo um dos países mais ricos, melhor cultivados, mais férteis e industriosos,
e um dos mais povoados do mundo... Marco Polo, que a visitou há mais de 500 anos,
descreve seus cultivos, população e indústria quase nos mesmos termos que o fazem
os viajantes de nossa época.”
Samir Amin avançou nessa direção antes mesmo de Frank quando escreveu O eu-
rocentrismo. Crítica de uma ideologia” sem realizar o longo e rico percurso do autor
de Re-Orient. De fato, a crítica de Samir Amim anuncia a necessidade de “uma teoria
social não eurocêntrica” mas inscreve o desenvolvimento capitalista na Europa como
o nascimento precoce nas formações sociais feudais da Europa, então uma forma pe-
riférica das sociedades tributárias. É sem dúvida uma alerta importante que Frank
levou até suas últimas consequências... Essa forma que Amin chamou tributária é para
o egípcio a forma geral de todas as sociedades pré-capitalistas avançadas, das quais o
feudalismo não é mais que uma espécie particular’...
No entanto, enquanto Samir Amin avançou na senda da teoria do valor de Marx
contribuindo com o debate tão decisivo do “valor mundializado, Frank descartou Karl
Marx na análise histórica diluindo a notável linha marxiana numa interpretação histó-
rica de longa duração que certamente despertaria inveja a Braudel.
O revisionismo de Frank não é para amadores: até mesmo seus textos anteriores,
tão marcantes e decisivos para a evolução intelectual do pensamento crítico latino-
-americano, foram renegados explicitamente à luz de Re-Orient. No entanto, é indis-
cutível que o método atual de Frank pode ser reconhecido quando escreveu ainda nos
anos sessenta o luminoso ensaio Sociologia do desenvolvimento y subdesenvolvimento
da sociologia: um exame do traje do imperador, destinado a exterminar o positivismo
dominante nas ciências sociais na América Latina, tendência filosófica compartilhada
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em larga medida inclusive por gente de esquerda que se reivindicava marxista. Ora,
quando examinou a “validez empírica, a suficiência teórica e a efetividade política
das teorias do desenvolvimento, revelando seu conteúdo ideológico para justificar o
desenvolvimento do subdesenvolvimento – uma fórmula impecável segundo o mestre
Ruy Mauro Marini –, Gunder Frank deu um tiro de morte na ideologia desenvolvi-
mentista, uma filha bastarda do eurocentrismo dominante. Por certo, aquela crítica
devastadora sobre a qual recaiu em nosso país um enorme silêncio como resposta
tradicional – como se, de fato, André Gunder Frank jamais tivesse existido – reaparece
no final de sua longa e produtiva vida ao publicar a obra que comentamos. De fato,
tanto em 1962 quanto em 1998, podemos ver a velha forma de Frank agora destilan-
do uma sólida crítica a Marx, longe das limitações temporais a que mesmo os gênios
estão submetidos, no sentido de buscar uma visão efetivamente totalizante do sistema
capitalista mundial desde suas origens.
É Marx, portanto, o interlocutor principal de Frank. É precisamente a grandeza de
Marx que ainda recebe os golpes certeiros de Frank ao reivindicar uma interpretação
holista para a evolução humana contra o eurocentrismo do gênio alemão. No entanto,
estou convencido, de que Frank planta em terreno já arado pelo próprio Marx, que,
na última fase de sua vida, deu indícios claros de um abandono do eurocentrismo ao
estabelecer estreitos contatos com os russos – os populistas russos –, fato que mudaria
em larga medida sua própria e original interpretação da História universal. Aquela
mesma “Europa difícil”, assim caracterizada por Braudel, recebe então especial atenção
de Marx e as exigências derivadas da luta pelo socialismo num país com uma institui-
ção tão original quanto a “comuna russa. Não é fácil se desfazer de Marx! Há quem
encontre inclusive antes da correspondência com Vera Zasulich e Nikolai Danielson
pistas valiosas para uma análise mais rigorosa da interpretação marxiana da história
longe do eurocentrismo que Frank ataca com vigor, convocando-nos a interpretar o
mundo sem as limitações da ciência social dominante que tantos problemas nos criou,
especialmente para os povos da periferia capitalista.
Ora, precisamente contra essa ciência social dominante, cujo caráter eurocêntrico
foi denunciado por Wallerstein como um mero produto da especificidade europeia,
Frank indica um caminho e um novo programa de pesquisa muito mais desafiador,
profundo, exigente, no qual os esquemas simplificadores do “sistema-mundo” ou da
escola dos Annales não poderão reagir a não ser que confessem suas próprias limita-
ções. Agora, após a leitura de ReOrient, não basta apenas “impensar as ciências sociais
ou ainda indicar os “avatares do eurocentrismo” sem romper a lógica da armadilha
ideológica sustentada na fraude histórica e teórica da excepcionalidade europeia su-
postamente vigente entre os séculos XVI e XVIII. A insuficiência da autocrítica ou
ainda a tentativa de corrigir os rumos nos marcos da ideologia ou da apologia dos
movimentos antissistêmicos, não fará menos que reproduzir essa mesma fraude sob
outras formas, igualmente mistificadoras e rigorosamente falsas. Enfim, após a crítica
de Gunder Frank, a tentativa de renovar um programa de pesquisa a partir da renova-
ção da própria ideologia, sem ruptura com suas hipóteses de base, será cada dia mais
impotente pois Re-Orient colocou abaixo todo o edifício dessa ideologia que seduziu a
consciência liberal de esquerda em muitos países da América Latina para tão somente
simular uma alternativa para os becos sem saída dessa tradição teórica dominante em
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nossos centros de ensino universitário atravessados pelo colonialismo e pela jaula de
aço da dependência e do subdesenvolvimento.
André Gunder Frank foi mesmo genial. No seu último suspiro nos deixou uma
obra contra ou a partir da qual os historiadores terão de pelear durante muito tempo.
Não é um acaso ou um descuido qualquer o fato de que ReOrient ainda não recebeu
tradução em nosso país, pois aqui a concepção eurocêntrica de mundo é dominante
entre os liberais de esquerda e de direita. No entanto, no turbilhão da crise atual, aos
hereges que permanecem, sempre se abrem novam possibilidades, razão pela qual te-
remos a companhia de Frank por muito mais tempo.