136
HOMENAGEM
Immanuel Wallerstein: de africanista a criador
da Análise dos Sistemas-Mundo
Pedro Vieira
1
*
“Minha biograa intelectual é uma longa busca por uma explicação adequada da reali-
dade contemporânea na qual eu e outros possamos agir. Essa busca é tanto intelectual
quanto política – sempre achei que não poderia ser um ser ao mesmo tempo o outro –
para mim ou para qualquer um.” (Immanuel Wallerstein)
Neste pequeno ensaio vou tentar mostrar como o interesse na África levou Immanuel
Wallerstein a reescrever a história do mundo e a criar a Análise dos Sistemas-Mundo.
Na raiz desse extraordinário feito intelectual, está o fato de ele ter sido, “desde o co-
meço, um herético em relação [ao] tipo de ciência social” (WALLERSTEIN, 2000, p.
xi, grifos PAV) que aprendeu e ensinou na Universidade Columbia. Nascido em Nova
York em 28 de setembro 1930, seus pais eram judeus alemães que emigraram para os
Estados Unidos no início dos anos 1920. Na época de sua juventude, “os judeus eram
ou democratas, ou de extrema esquerda: não havia nenhuma outra possibilidade pra
eles em Nova York.
1
2
(WALLESTEIN, 2013, s/p). Em 1947 iniciou o curso de Sociolo-
gia na Universidade Columbia e a militância política. Formou-se em 1951 e publicou
seu primeiro artigo, “Revolution and Order” (WALLERSTEIN, 1951), no qual discutia
como um possível governo mundial trataria as revoluções em curso no mundo e os
problemas que as motivavam. Nesse mesmo ano prestou serviço militar e foi enviado
ao Panamá para defender o canal. Voltou a Columbia em 1953 para escrever a tese de
mestrado aprovada em 1954 com o título McCarthysm and the Conservative.
A essa altura, o jovem Wallerstein já estava encantado pela África, da qual se apro-
ximou em 1951, quando participou de um congresso internacional da juventude. Em
1952 foi a outro congresso desse tipo em Dacar e tomou conhecimento dos movimen-
tos de independência. A partir desse momento “decidiu fazer da África o foco de suas
preocupações intelectuais e de seus esforços de solidariedade.” (WALLERSTEIN, 2000,
p. XVI). Em 1955 foi para a África fazer a pesquisa de campo para a tese de doutorado,
defendida em 1959, com o título The Role of Voluntary Associations in the Nationalist
Movements in Ghana and the Ivory Coast. A partir de então, e por duas décadas, ficou
conhecido como um africanista, a ponto de ter ocupado a Presidência da Associação
de Estudos Africanos (ASA) no período 1972-1973. Além de conhecer intelectuais
como Franz Fanon, a quem encontrou na África em 1960, e do engrandecimento pes-
soal, a experiência africana mudou seu modo de ver o mundo:
[...] foram meus estudos sobre a África que abriram meus olhos tanto para os temas
políticos mais candentes do mundo contemporâneo como para as questões acadêmicas
de como analisar a história do moderno sistema-mundo. A África foi responsável por
1
*
Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais-UFSC. Coordenador do
Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo.
1
Seria Wallerstein um herdeiro da geração de judeus que, segundo Löwy (1989, p. 10), eram
sonhadores e utópicos” [e] aspiravam a um mundo radicalmente outro?
137
Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
desaar as partes mais entorpecentes (stultifying) da minha educação. (WALLERSTEIN,
2000, p. xvii)
Entre os desaos, despontava o de elaborar um marco analítico alternativo à teoria da
modernização, que ele constatava ser incapaz de explicar a realidade. Os primeiros
passos nessa direção foram dados na África em 1965. Ao preparar uma conferência
sobre problemas mundiais, resolveu ampliar os escopos temporal e espacial da aná-
lise. Em 1966, armava que, se o objetivo era transformar o mundo para transfor-
mar a África, o campo de ação do movimento pela unidade africana era o mundo
(WALLERSTEIN, 1966, p. 41).
A busca por uma metodologia adequada para comparar países com diferentes
graus de desenvolvimento, foi de certa forma interrompida pelas revoltas estudantis
de abril de 1968 na Universidade Columbia, com as quais se envolveu intensamente.
3
Apesar de considerar a “revolução mundial de 1968” o mais importante acontecimento
do século XX
4
, a experiência direta nos acontecimentos da Universidade Columbia pa-
rece não ter influenciado concretamente sua busca por conceitos adequados para com-
preender o sistema mundial. De fato, nos escritos do final da década de 1960, apesar
do uso do termo sistema mundial denotar certo holismo, Wallerstein ainda conservava
o estado nacional como unidade de análise. (WIILIAMS, 2020) Surpreendentemente,
em um ensaio sobre o desenvolvimento econômico, escrito em 1970, não há qualquer
conceito que remeta a uma perspectiva histórico-mundial. (WALLERSTEIN, 1971a).
A expressão sistema-mundo (assim mesmo, com hífen) aparece na resenha dos livros
de Amilcar Cabral, e de Gérard Chaliand. (WALLERSTEIN, 1971). A Análise dos
Sistemas-Mundo é apresentada pela primeira vez no ensaio Three Paths of National
Development in Sixteenth-Century Europe (1972), no qual Wallestein mostra como as
funções de três regiões na economia mundo fazem uma delas (Polônia) se transfor-
mar em periferia, outra (Veneza) descer para a semiperiferia e a terceira (Inglaterra)
ascender para o centro da economia mundo europeia. Portanto, neste ensaio, que nos
parece uma síntese do argumento central de O Moderno Sistema-Mundo I, a unidade
de análise da comparação é a economia mundo, ainda grafada sem o hífen, que depois
foi considerado fundamental para indicar que essa expressão designa um espaço es-
pecífico. Dois autores foram decisivos para essa descoberta: Fernand Braudel, que o
introduziu ao século XVI e às noções de economia-mundo e longa duração; e Marian
Malowist, através de quem tomou conhecimento de Braudel e quem, junto com outros
historiadores econômicos poloneses, mostrou concretamente o conceito de periferia.
(WALLERSTEIN, 2004).
Se foi no decurso de suas pesquisas sobre a África que Wallerstein percebeu que
para entendê-la teria de explicar primeiro o sistema mundial em que ela se inseria,
5
foi
também esse continente que mereceu a primeira aplicação da Análise dos Sistemas-
-Mundo, o que aconteceu em 1973, no discurso intitulado África in a Capitalist World,
que Wallerstein proferiu como presidente da ASA. (WALLERSTEIN, 1973) A esta al-
2
3
Para detalhes desse envolvimento, ver WILLIAMS (2020)
3
4
Ver WIILIAMS (2013) e WALLERSTEIN (2007)
4
5
Wallerstein descreve essa mudança na Introdução de O Moderno Sistema-Mundo.
138
HOMENAGEM
tura, O moderno Sistema-Mundo I: a agricultura capitalista e as origens da economia-
-mundo europeia no século XVI, concluído em 1972, ainda não encontrara uma editora
que aceitasse publicá-lo, talvez por se tratar de um livro denso, abarrotado de notas de
rodapé e que tratava do século XVI, um assunto de pouco interesse. O livro só veio à
luz em 1974 porque a editora Academic Press e seu consultor para assuntos acadêmi-
cos, Charles Tilly, aceitaram correr o risco de publicá-lo.
Com esse livro, o herético Immanuel Wallerstein criava sua própria perspectiva
de análise e passaria o restante de sua vida escrevendo, não mais sobre a África, mas
sobre economia-mundo capitalista, seja redigindo mais três volumes de O moderno
Sistema-Mundo
6
, seja detalhando e esclarecendo conceitos e teses, bem como abordan-
do diferentes aspectos do moderno sistema-mundo, com destaque para a crítica das
ciências sociais do século XIX. Para fortalecer e divulgar a nova perspectiva, em 1976
Wallersetin se juntou a Terence Hopkins na State University of New York, em Binhgam-
ton, que lhe deu condições para criar o Fernand Braudel Center for the Study of Eco-
nomies, Historical Systems, and Civilizations, que funcionou até 30 de junho de 2020.
Na década de 1980 a Sociedade Americana de Sociologia criou a seção Political Eco-
nomy of World-Systems, que em 2020 organizou sua 44ª. conferência. No Brasil, desde
2007 o Grupo de Pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo (EPSM) (http://
gpepsm.ufsc.br/) vem anualmente organizando o Colóquio Brasileiro em EPSM.
Immanuel Wallerstein nos deixou fisicamente em 31 de agosto de 2019, mas sua
imensa e extraordinária obra está à disposição de quem quiser se inspirar em um
herético pensador e militante anticapitalista, para quem ciência e militância não
eramexcludentes.
6
O quarto foi publicado em 2011. Em português, somente os volumes I e II, esgotados, foram
publicados pela editora Afrontamento, de Portugal.
139
Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ROJAS, C.A. Immanuel Wallerstein: Critica del Sistema-Mundo Capitalista, Ediciones
Era: México, DF, 2003.
LÖWY, Michael. Redenção e Utopia: o judaísmo libertário na Europa Central (Um
estudo da anidade eletiva), São Paulo: Cia. Das Letras, 1989.
WALLERSTEIN, I. “Revolution and Order”, Federalist Opinion, Vol.1, Issue 7, p. 23-
26, 1951.
______. African Unity Reassessed. Africa Report, p.41-46, April 1966.
______. e Lessons of the PAIGC. Africa Today, 18, 3, p.62-68, July 1971.
______. e State and Social Transformation: Will and Possibility. Politics and Society,
p.359-361, maio1971a.
______. ree Paths of National Development in Sixteenth-Century Europe. Studies
in Comparative International Development 7, no. 2, p.95–101, 1972.
______. Africa in a Capitalist World.A Journal of Opinion,3(3), p. 1-11, 1973.
______. e Essential Wallerstein. New York: e New Press, 2000.
______. e Uncertainties of Knowledge. Philadelphia: Temple University Press, 2004.
______. Geopolítica y Geocultura: Ensayos sobre el sistema mundial. Barcelona: Kairós,
2007.
WILLIAMS, G.P. . Interview with Immanuel Wallerstein. Retrospective on the Origins
of World-Systems Analysis. Journal of World-Systems Research 19, no. 2: 202–10, 2013.
______. Contesting the Global Order: e Radical Political Economy of Perry Anderson
and Immanuel Wallerstein. Albany: SUNY Press, 2020.
______. ree Paths of National Development in Sixteenth-Century Europe. Studies
in Comparative International Development 7, no. 2, p.95–101, 1972.
______. Africa in a Capitalist World.A Journal of Opinion,3(3), p. 1-11, 1973.