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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
FURTADO, Celso. Diários Intermitentes: 1937-2002.
São Paulo: Cia. das Letras, 2019. 446 p.
Wilson Vieira
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Diários intermitentes (lançado em 2019)
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é um registro pessoal de Celso Furtado com
muita riqueza histórica, ao nos fazer compreender cada vez mais a trajetória do inte-
lectual que sempre em sua vida teve como objetos de estudo e de busca de transfor-
mação a nação brasileira, o subdesenvolvimento e a superação desse quadro em que o
Brasil se encontrava (e ainda se encontra) inserido. A trilogia autobiográca intelec-
tual de Furtado
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e o artigo “Aventuras de um economista brasileiro nos fazem acom-
panhar a sua trajetória intelectual e de ação a partir de sua formação nos seus estudos
de juventude, do desenvolvimento de sua tese de doutorado na Universidade de Paris
(Sorbonne)
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, da sua atuação na CEPAL (entre 1949 e 1958), do período na Universida-
de de Cambridge (Reino Unido) em 1958 para redigir Formação econômica do Brasil
(FEB), lançado em 1959, da luta para criar e dirigir a Sudene entre 1959 e 1964 e do
período do exílio como pesquisador e professor universitário em Yale e principalmen-
te em Paris (Sorbonne). Entretanto, são nos seus Diários que ampliamos nossa com-
preensão das suas reexões e das suas ações a partir de seus relatos pessoais, além de
podermos acompanhar a sua participação pela redemocratização do Brasil entre 1979
e 1984, sua atuação como embaixador do Brasil na Comunidade Econômica Europeia
e como ministro da Cultura no governo Sarney (entre 1985 e 1988), e suas reexões
(após deixar o governo) até 2002, tempos não registrados em sua Obra autobiográca.
Podemos destacar dos Diários elementos de permanência e de mudança na refle-
xão e na atuação de Furtado. Quanto às permanências, nos chamam a atenção três:
o pensar o Brasil, a atuação para que o Brasil superasse o subdesenvolvimento pelo
planejamento e sempre num contexto democrático, e, o papel do intelectual.
O pensar o Brasil como permanência na vida de Furtado pode ser comprovado ao
observarmos nos Diários o seu projeto (registrado aos 18 anos de idade no Recife) de
um livro de História da Civilização Brasileira, que se realiza em FEB vinte anos depois
(cujo processo de elaboração está também registrado na Obra autobiográfica) e que em
suas anotações de julho de 2000 o leva a recordar a missão que se atribuíra na sua ju-
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Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE-UFRJ). Pesqui-
sador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC) e do Labora-
rio de Estudos Marxistas (LEMA) ambos da UFRJ. Sócio do Centro Internacional Celso Furtado
de Políticas para o Desenvolvimento.
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A trilogia autobiográca intelectual de Furtado está registrada nos livros A Fantasia Organiza-
da (1985), A Fantasia Desfeita (1989) e Os Ares do Mundo (1991), publicados pela Paz e Terra.
Estes livros mais o artigo Aventuras de um Economista Brasileiro (1972), o artigo Entre Incon-
formismo e Reformismo (1987) e mais um livro de cção Contos da Vida Expedicionária (escrito
em 1945) foram reunidos na Obra Autobiográca, publicada em 1997 em três volumes pela Paz
e Terra e depois em um só volume em 2014 pela Companhia das Letras.
4FURTADO, Celso. Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Hucitec, 2001
(versão em português e em livro da tese de doutorado defendida em 1948).
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RESENHAS
ventude de colocar o conhecimento como meio de transformar o mundo, sinalizando
a influência do positivismo sobre o autor.
A outra permanência que captamos de Furtado em seus registros é a sua atuação
para que o Brasil superasse o subdesenvolvimento pelo planejamento (tema de seu
interesse desde a década de 1940) e sempre num contexto democrático. Destaca-se o
seu esforço para que a Sudene pudesse ser constituída e como seu primeiro superin-
tendente entre 1959 e 1964, suas articulações políticas e vinculadas aos debates com
a sociedade civil, além da resistência daqueles que se opunham ao projeto, ao mesmo
tempo que buscava sempre salvaguardar a instituição como órgão técnico e autôno-
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. Nesse período cabe destacar de seus registros, no contexto da Conferência sobre
Ciência nos Estados Novos (realizada em Tel Aviv, Israel, em agosto de 1960), uma
conversa com senegaleses, sudaneses e congoleses sobre a Comissão Econômica para
a África (criada em 1958) e as perspectivas para o continente, relatando a eles a expe-
riência da CEPAL e a importância de elaborar uma política independente (tal como ele
buscava fazer no Brasil), observando o ânimo desses jovens africanos. Após o exílio,
vale destacar também a sua participação na Comissão para o Plano de Ação do Gover-
no (Copag) em 1984-1985 para o mandato de Tancredo Neves.
E uma terceira permanência que podemos destacar se encontra no que Furtado
pensa sobre o papel do intelectual, isto é, como alguém que deve estar disposto a in-
terferir na realidade para superar os entraves ao desenvolvimento do ser humano de
maneira geral e ao subdesenvolvimento brasileiro, em particular, quando, já no exílio,
em 1964, nos Estados Unidos, atuando como professor de Yale, afirma (em 15 de ou-
tubro 1964) que nunca foi apenas ou principalmente um intelectual, mas também foi
um homem de ação em relação aos problemas sociais.
Quanto aos elementos de mudança, podemos destacar como Furtado vê e sente
o Brasil e o mundo sendo transformados no decorrer de sua vida e como se dá a sua
atuação política.
Os registros de Furtado nos lançam em uma viagem no tempo, que mostra como a
história vai se desenrolando, indicando-nos concretamente o que é o subdesenvolvimen-
to brasileiro, quão árdua é a luta para superá-lo, como o Brasil está inserido no quadro
do capitalismo mundial. Destacam-se os cenários da participação brasileira na Segunda
Guerra Mundial, da mudança do jogo das relações internacionais após esse conflito, de
maneira como a Guerra Fria conformou esse mundo até a década de 1990 e de que ma-
neira a globalização traz desafios cada vez maiores às nações subdesenvolvidas.
Quanto à atuação política do intelectual Furtado, cabe observar que ela é diferente
antes e depois do exílio. Antes do exílio, embora ativo e presente na vida nacional, o
que se revela em sua participação como superintendente da Sudene, ministro do Plane-
jamento de João Goulart, e outras funções que assume na vida nacional, não pertence
a nenhum partido político. A partir de 1979, quando passa a vir com mais frequência
ao Brasil, sua atuação política se dá dentro de um partido político (o PMDB). Participa
da luta pela redemocratização de maneira mais intensa em 1984 (como registra nos
Diários) e no período 1985-1988 (no governo Sarney), primeiro como embaixador
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Nesse período não se encontra registrada nos Diários a atuação de Furtado no Ministério do
Planejamento, mas podemos encontrá-la em A fantasia desfeita (1989).
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do Brasil na Comunidade Econômica Europeia e depois como ministro da Cultura.
Relata como estruturou o ministério, os desafios dos planos econômicos e da dívida
externa a partir de uma visão de quem está no governo e de como ele dialogava mais
proximamente com Funaro e Bresser, mas mantinha distância maior de Maílson da
Nóbrega. Furtado tinha posições críticas às atuações das diferentes equipes econômi-
cas, mas as fazia nos bastidores, a fim de preservar uma imagem de unidade da equipe
ministerial, mas era “monitorado” por seus opositores dentro do próprio governo. O
autor nos relata também os bastidores da Assembleia Constituinte, mostrando prin-
cipalmente a distância crescente entre Ulysses Guimarães e Sarney, em particular nos
temas do sistema de governo (em que Ulysses, juntamente com Furtado, defendiam o
parlamentarismo e Sarney o presidencialismo) e políticas sociais (com Ulysses defen-
dendo o que foi votado pelos constituintes e Sarney, se posicionando contra a dois dias
antes da votação desse tema).
Após sua saída do Ministério da Cultura, Furtado registra sua dedicação exclusiva
à vida intelectual, deixando de atuar no governo e no partido, refletindo sobre as trans-
formações no Brasil e no mundo, fazendo um balanço de sua vida de reflexão e de ação
e lançando agendas de pesquisa e ação para as novas gerações.
Por fim, cabe aqui destacar que ler os Diários é uma forma não só de acompa-
nharmos a rica trajetória de Furtado, complementando o que já sabíamos da sua Obra
autobiográfica, mas também uma oportunidade de fazermos um balanço do projeto
de construção da nação Brasil e pensarmos quais são as perspectivas e as possíveis
soluções para a superação do quadro de continuidade do subdesenvolvimento e da
dependência em conjunto com os riscos de recrudescimento do autoritarismo.