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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
FIORI, José Luís. A síndrome de Babel
e a disputa pelo poder global
Petrópolis: Vozes, 2020. 200 p.
Ricardo Zortéa Vieira
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A década de 2010 foi marcada pelo aparecimento de governos obscurantistas, como os
de Donald Trump nos EUA e de Jair Bolsonaro no Brasil, que combinaram aversão à
ciência, incompetência administrativa e desrespeito por paradigmas éticos e civilizató-
rios mínimos. A ascensão do obscurantismo, por sua vez, veio globalmente associada
à onda de sistemática desinformação através das redes sociais, e localmente ligada ao
golpe midiático, jurídico e parlamentar de 2016. A profundidade da onda de desinfor-
mação e o golpismo heterodoxo brasileiro contribuíram muito para a diculdade de
entender a crise pela qual passamos, que é justamente o objetivo de José Luís Fiori no
seu novo livro, A síndrome de Babel e a disputa pelo poder global (2020).
A forma encontrada por Fiori para entender uma conjuntura que não é só contur-
bada mas também mistificada pela própria crise epistêmica que a domina é basear a
análise na teoria, por sua vez derivada do estudo da história de longa duração. Para o
autor, qualquer sociedade humana é dominada por relações de poder, por definição
assimétricas, competitivas e, portanto, expansivas. Já o sistema internacional que hoje
ocupa todo o globo surgiu no “Longo Século XVI” na Europa, e é constituído por
Estados soberanos em permanente disputa. Esses Estados são “Blocos Nacionais” nos
quais os poderes político e econômico se reforçam mutuamente: o poder político apoia
o capital ao garantir a ele posições monopólicas, que constituem o “terceiro andar” da
visão tripartite de economia de Fernand Braudel, ou seja, o próprio capitalismo, em
que a supressão da concorrência permite os lucros extraordinários. O capital, por sua
vez, apoia o poder político o financiando por meio da tributação e da dívida pública.
A luta entre os Estados nacionais é o motor do sistema, e a principal responsável
pela sua expansão, que para Fiori ocorre em grandes “ondas, uma vez que as unidades
em disputa precisam expandir seus territórios, suas economias e seus recursos tecno-
lógicos para não serem sobrepujadas por seus competidores, o que já ocorreu várias
vezes desde o “Longo Século XVI”. Se a queda de uma grande potência pode ser enten-
dida como ocorrência regular no sistema, o seu oposto, ou seja, a acumulação de poder
por um Estado ao ponto de eliminar a própria competição interestatal, nunca ocorreu.
Na realidade, se isso acontecesse, seria o próprio fim do sistema, que por definição é
interestatal e capitalista, e tem na competição sua verdadeira energia vital.
É justamente nos marcos dessa “impossibilidade lógica” de um Estado suprimir
a competição interestatal que se insere a “síndrome de Babel” que dá nome ao livro.
Fiori remete-se a mito de Babel, no qual a humanidade, unida por um mesmo sistema
de valores, buscou construir uma torre com o objetivo final de igualar-se a Deus, que
respondeu destruindo a torre e semeando a divisão ética entre os seres humanos.
No final do século XX, os EUA tinham expandido enormemente seu poder, e con-
seguido universalizar seu sistema de valores baseado no mercado, na democracia e
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ.
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RESENHAS
nos direitos humanos, um verdadeiro paradigma ético administrado e protegido por
um conjunto de instituições multilaterais propostas e apoiadas por Washington. Dia-
leticamente, essa expansão do poder americano provocou reações opostas de potên-
cias interessadas em preservar sua própria soberania. Essas reações simultaneamente
expandem o sistema interestatal e operam dentro do paradigma ético do “globalismo
liberal” disseminado por Washington. É nesse momento, então, que os Estados Unidos
resolvem se livrar do sistema de valores que anteriormente, e de forma tão bem-su-
cedida, propagaram, substituindo por uma nova política externa baseada no estrito
interesse nacional econômico e militar americano.
A virada executada por Trump na política externa americana não é um produto
idiossincrático da mente do chefe de Estado, mas responde a um imperativo estrutural
do sistema interestatal, ou seja, a continuidade a todo custo da competição pelo poder
entre os Estados. Além disso, representa a visão de uma parte da elite americana asso-
ciada ao projeto de construção de um império militar global, para o qual a fidelidade
a um paradigma ético multilateral é uma amarra mais que uma vantagem. E esse im-
pério militar opera cada vez menos com operações militares convencionais, ainda que
continuem frequentes e altamente destrutivas, mas com operações de “quarta geração
em que se utilizam meios econômicos e informacionais, nesses incluídos a luta anti-
corrupção como reconhecido por documentos oficiais americanos, para desmoralizar
e destruir a vontade de luta do adversário.
É dentro desse contexto internacional que é possível entender a profunda “crise
brasileira” que se estende desde 2015. Para Fiori, a elite brasileira não percebeu ou
não aceitou a necessidade de uma renovação da sua estratégia internacional diante
da posição internacional de destaque do país alcançada após 2003 com a política de
aproximação com o BRICs, a descoberta das novas reservas de petróleo na camada
pré-sal e as mudanças derivadas da competição interestatal intensificada entre as gran-
des potências. Como resultado, o país acabou atingido por uma onda de desestabiliza-
ção com três componentes principais emanados dos Estados Unidos: uma campanha
anticorrupção que arrasou o complexo brasileiro de petróleo e gás e desestabilizou o
sistema político; uma ideologia liberal que busca desmontar os pilares da economia
nacional via desregulamentação, austeridade e privatizações, em uma repetição do que
foi feito na Rússia de Yeltsin; e uma ideologia religiosa de política externa que substitui
os interesses reais do país pela fidelidade canina aos Estados Unidos e o combate aos
inimigos de Washington, custe o que custar ao Brasil.
A conclusão da análise vem na forma de um aviso aos que pretendem reconstruir
o país após a catástrofe bolsonarista: o desenvolvimento econômico, nesse sistema in-
terestatal capitalista, só ocorre apoiado em uma estratégia geopolítica, e não em qual-
quer teoria que concebe a economia como separada das relações de poder, domésticas
ou internacionais. O novo livro de Fiori pode ser entendido, assim, como uma contri-
buição para superar justamente esse desafio de repensar velhas premissas intelectuais
fortemente disseminadas na academia e na mídia, que se constituem como um dos
obstáculos mais fortes para o retorno do Brasil à trilha do desenvolvimento soberano.