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HOMENAGEM
Samir Amin: um intelectual do Sul global
Pedro Aguiar
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Uma velha lenda geológica diz que a tendência natural do rio Nilo teria sido correr
na direção leste-oeste por milhões de anos, não fossem os movimentos tectônicos que
forçaram seu curso a descer no rumo norte para o seu delta no Mediterrâneo
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. Se for
verdade, essa terá sido a metáfora inversa para a trajetória de Samir Amin, o intelectual
egípcio que dedicou a vida a ensinar o Sul a se olhar com olhos de Sul, e não do Norte.
Nascido no Cairo em 1931, nos anos de predomínio da corrente nacionalista Wafd,
à qual seu pai aderia e que precedeu o nasserismo, Samir Amin realmente seguiu outra
direção. Engajou-se no comunismo e no antifascismo ainda na adolescência e, mesmo
após a derrota do Eixo – que tinha invadido o Egito –, manteve-se dedicado ao anti-
-imperialismo pelo resto da vida. De fato, por um momento da juventude chegou a
buscar formação num país central, a França, terra natal de sua mãe. Complementou os
estudos secundários em Paris, onde concluiu três graduações: estatística, economia e
ciência política na prestigiada Sciences Po.
Na França, militou no PCF (Partido Comunista Francês), então fiel à orientação
stalinista, mas desviou-se da linha oficial antes mesmo da divulgação do Relatório
Khrushtchov. Após uma breve aproximação com o maoísmo, por ver essa corrente
(que seria crescente na esquerda francesa até maio de 1968) como mais próxima das
realidades periféricas, Samir encontrou caminhos pprios, inclusive o lado teórico do
trotskismo, com o prisma do “desenvolvimento desigual e combinado.
Kvangraven (2019, p. 2) lembra que os anos de formação intelectual de Samir Amin
coincidiram com o maior ciclo de descolonização das periferias, especialmente na
África. Lideranças pan-africanistas como Kwame Nkrumah, de Gana, e Julius Nyerere,
da Tanzânia, além de Nasser e Ghaddafi no norte do continente, ofereciam respostas
pragmáticas ao dilema do subdesenvolvimento, o que ia ao encontro do marxismo
heterodoxo ao qual Amin subscrevia – jamais encastelado numa torre de marfim aca-
dêmica, e sim engajada nas causas de libertação do então chamado Terceiro Mundo.
Por isso mesmo, não deixou de manter ativa sua conexão com o Egito e a África:
nas manifestações em apoio à nacionalização do Canal de Suez pelo governo de Gamal
Abdel Nasser, em 1956, Amin fez questão de estar presente. Voltou à França em segui-
da para concluir o doutorado em economia política, orientado por outro heterodoxo,
François Perroux, na mesma Sciences Po.
No entanto, diferentemente de tantos outros intelectuais de origem periférica de
sua geração (e posteriores), Samir Amin não se radicou nos polos acadêmicos dos paí-
ses centrais, mas manteve sua bússola voltada para o Sul, onde suas ideias teriam mais
diálogo com a realidade. De volta ao Egito após o doutorado (1957), trabalhou por três
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Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense
(UFF), vinculado ao curso de Jornalismo. É doutor em Comunicação pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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Estudo de Faccena et al. (2019) Disponível em <https://www.nature.com/articles/s41561-019-
0472-x>.
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anos no Instituto de Desenvolvimento Econômico do governo Nasser. Depois, aceitou
um convite do governo do Mali recém-independente para ser consultor de política
econômica (1960-1963). Sua decepção com as políticas de crescimento econômico,
priorizadas a todo custo por esses governos nacionalistas, motivou-o na busca por um
paradigma diferente de superação das desigualdades crônicas.
Em lugar de perseguir carreira na Europa, Amin continuou na África para atuar
como pesquisador no Instituto Africano de Desenvolvimento Econômico e de Plane-
jamento (IDEP), centro de pesquisa da ONU em Dacar, capital do Senegal, vizinho ao
Mali. O IDEP é um braço de pesquisas da UNECA (Comissão Econômica das Nações
Unidas para a África), o equivalente africano da CEPAL.
Também em Dacar, em 1975, Samir Amin fundou o think tank Fórum do Tercei-
ro Mundo, uma das entidades que mais tarde (1997) seriam constituintes do Fórum
Global para Alternativas – e este, por sua vez, do Fórum Social Mundial em 2001. A
organização viria a ser uma das referências intelectuais do movimento difuso deno-
minado como “altermundismo” ou “alterglobalismo, em cuja fundamentação teórica
Amin teve destaque.
Em termos mais concretos, mais do que propugnar um tipo alternativo de globali-
zação, a produção conceitual de Amin interpela as contribuições europeias à história
econômica mundial como exatamente isso: europeias, não universais. Trata a Europa
como mais uma região nos milênios de formação do cenário global, não como seu
centro, muito menos um centro “natural”. Ou, nas palavras de Enrique Dussel, com
quem teve amplas convergências, situa a Europa como a periferia do sistema-mundo
antigo, pelo menos até a expansão colonial do século XV em diante.
Se foi na tese doutoral que Amin lançou a proposta estruturante da “acumula-
ção do capital em escala mundial” com o desenvolvimento desigual como ontologia
do Terceiro Mundo – ou, mais adequadamente, das periferias do sistema-mundo –,
a maturidade de análise foi alcançada com O Eurocentrismo: crítica de uma ideologia
[1988]. Aqui, o economista egípcio reinterpreta a história do sistema-mundo, salien-
tando os protagonismos do mundo muçulmano (do Magrebe à Ásia Central) e da Chi-
na – que, no entanto, deveu precisamente à sua estabilidade milenar a ultrapassagem
pela Europa moderna. Mas examina, de forma detida, todos os empréstimos culturais,
ideológicos e econômicos dos sistemas asiáticos e africanos (China, Pérsia, Mesopo-
tâmia, Egito) que a Europa tomou para estruturar a sua modernidade. Na dimensão
filosófica, ele faz questão de salientar que a metafísica não é um sinônimo de “irracio-
nalidade” (enquadramento que ele atribui à modernidade), mas sim uma busca pela
conciliação entre fé e razão (AMIN, 2009, p. 116).
Ao analisar a acumulação do capital em escala realmente mundial – para além do
eixo atlântico costumeiramente privilegiado pelas ciências sociais anglófonas ou euro-
cêntricas –, Amin volta o relógio não em 500 anos, como Braudel propunha, nem nos 5
000 de Gunder Frank, mas em 2 300 anos: especificamente, volta à formação do mundo
helenístico que integrou a Europa mediterrânea ao Oriente Médio, como dois “subsiste-
mas tributários” de um sistema-mundo tributário que, de 300 a.C. a 1500 d.C., precedeu
o moderno sistema-mundo descrito por Wallerstein (AMIN, 2006, p. 19-39). A idiossin-
crasia desse modelo analítico se justifica quando inserida numa perspectiva que toma a
gestão dos excedentes pelo Estado como critério essencial para descrever as estruturas de
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dominação – que se edifica, em sua hipótese central, como um sistema religioso paraes-
tatal. Nessa visão, só a Renascença europeia dará um “salto qualitativo precoce” (AMIN,
2006, p. 31) ao fundar as bases para a consolidação do capitalismo.
Em 1990, no calor da hora da crise do socialismo real, seu neologismo do
maldéveloppement, num vocabulário emprestado da fisiologia, buscou driblar os res-
quícios de paradigma da modernização a que se vincula o conceito de subdesenvolvi-
mento. Amin escreveu o livro para elucubrar a questão estrutural do desenvolvimento
africano – a “deriva, como ele denomina. A frustração por sua continuidade desmo-
bilizava a geração que lutara pelos nacionalismos no continente (e os aproximava das
soluções neoliberais vendidas pelo Consenso de Washington). Em sua conclusão, sem
qualquer capitulação, defendia a revolução e a desconexão (delinking) como únicas
saídas possíveis para a superação desse problema estrutural. O termo acabaria por se
tornar chave no pensamento de Amin.
Embora de origens diferentes, essa construção conceitual convergia com a teo-
ria marxista da dependência, nos termos desenvolvidos por Marini, Bambirra e Dos
Santos. Samir Amin já fizera essa ponte no primeiríssimo número da Review of African
Political Economy, de 1974, ao remeter ao texto fundador de Marini (Subdesenvolvi-
mento e Revolução, 1969), mas só mais tarde uniria esforços com outros analistas do
sistema-mundo. A duradoura parceria com Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e
André Gunder Frank, iniciada no final dos anos 1970, rendeu frutos como o Dynamics
of Global Crisis (1982), coletânea em que cada um dos quatro autores oferece uma
interpretação sobre os processos de crise do capitalismo histórico. Em comum, a “de-
socidentalização” da teoria crítica e a aposta numa multipolaridade real selaram essa
colaboração intelectual.
Amin não se deixou iludir pela “primavera árabe” de 2011, que derrubou os regimes
secularistas da onda descolonizadora e os substituiu por plutocracias liberais – como na
Tunísia –, por democracias formais de tendência teocrática – como a breve experiência
no seu Egito natal – e por anomias conflagradas fratricidas – caso da Líbia e, por pouco,
da Síria. Talvez a origem copta da família paterna (abastada, porém antimonarquista e
anticlerical) lhe permitisse um distanciamento crítico em relação às correntes políticas
islâmicas do Egito, especialmente a Irmandade Muçulmana, cujos conservadorismo e
defesa da propriedade privada (o que custara caro a Nasser e Sadat) opunham-se aos
interesses da classe trabalhadora em seu país. Por isso, caracteriza o governo de Moham-
med Morsi como “bandidagem fascista” apoiada pelos EUA (AMIN, 2016, p. 47),
A bruxa esteve solta nos anos de 2017 a 2019, antes mesmo da atual pandemia.
Nesse triênio, o pensamento crítico em relação às estruturas globais perdeu no-
mes como os de Samir Amin, Marta Hanecker, Theotonio Dos Santos e Immanuel
Wallerstein – para ficar apenas com os mais ilustres. Samir Amin faleceu em agosto
de 2018, deixando uma prolífica obra (mais de 60 títulos) em que a defesa dos povos
periféricos permaneceu inabalável. Sua atualidade está evidente nos contrastes entre
centros e periferias ressaltados pela pandemia de covid-19. O “maldesenvolvimento
do esforço de imunização, longe de ser um problema exclusivo das periferias, ameaça
a humanidade como um todo. A globalização do vírus é um fato, e, se não houver uma
solução em escala realmente mundial, nos mesmos termos da concepção de Samir
Amin, o sistema-mundo como um todo estará comprometido.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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