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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
PAULO NETTO, José. Karl Marx: Uma Biografia
São Paulo: Boitempo, 2020. 816 p.
Antonio Carlos Mazzeo
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Muito esperado, nalmente chega Karl Marx – Uma biograa, para deleite daqueles
que se interessam pela vida e pela obra de Marx e, claro, intrinsecamente por sua histó-
ria intelectual e seus pensamentos vividos – parafraseando-se o título da autobiograa
do mestre György Lukács, Gelebtes Denken
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. No entanto, cautelosamente José Paulo
Netto, o biógrafo, diz ser essa “uma, não a biograa de Karl Marx”. Em que pese a pru-
dência necessária desse experiente pensador marxista brasileiro, entendemos que essa
cautela demasiada não faz jus à monumental pesquisa presente nesse livro e à própria
trajetória desse notável intelectual.
Mas podemos dizer que essa “prudência” é, na verdade, o modus operandi de seu
impenitente e incansável trabalho intelectual. Na trajetória de Netto encontramos uma
plêiade de textos, livros e artigos, além de entrevistas e aulas gravadas, que abordam os
mais diversos temas – políticos, sociais, filosóficos, econômicos etc. sempre realizados
com rigor, dentro da conceptualidade da teoria social de Marx. Isso significa dizer que
o livro que hora resenhamos não difere, no âmbito mais imediato, da profundidade
analítica encontrada nos trabalhos de José Paulo Netto. No entanto, essa biografia de
Marx possui um algo mais. Além da abordagem dessacralizada do biografado, confor-
me a assertiva do autor em itálicos, e da ampla e exaustiva pesquisa das biografias de
Marx publicadas sobre Marx, para além das clássicas como as de Franz Mehring e Au-
guste Cornu, entre outras, Netto constrói uma competente síntese entre a vida e a obra
marxiana, exatamente contextualizando sua evolução e seu amadurecimento ou, na
definição do mestre Lukács, o processo ontológico da construção de sua teoria social.
No dizer do autor, “Esta biografia não é somente um registro cronológico [...] ela
acompanha o processo de construção da teoria marxiana, ao mesmo tempo que o con-
textualiza historicamente e o inscreve na experiência sociopolítica dele
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, expressando
sua longa relação com a obra de Marx. Efetivamente, o texto de Netto vai desvelando,
precisa e progressivamente, o processo da construção da teoria social marxiana, aten-
do-se minuciosamente às questões teóricas enfrentadas por Marx, seus entraves e as
soluções e superações encontradas pelo pensador alemão. Pontos altos, a descrição
da construção dos Cadernos de Paris e dos Manuscritos de 1844, além do “encontro
histórico com Engels. É de se destacar a análise sistemática, atenta e profunda da ela-
boração d’O Capital, em meu entender, o momento mais importante dessa biografia.
Portanto, a cobertura da trajetória de Marx é abrangente e densa.
Mas, restringido pelos limites dessas linhas e como marco fundamental do point
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Professor aposentado da Faculdade de Filosoa e Ciências da Unesp e professor junto aos Pro-
gramas de Pós-graduação em História Econômica (FFLCH/USP) e do Serviço Social da PUC-SP.
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Veja-se György Lukács, Gelebtes Denken – Eine Autobiographie im Dialog: Berlim, Suhrkamp
Verlag, 1981 [edição italiana, Il Pensiero Vissuto – autobiograa in forma di dialogo, Roma, Riu-
niti, 1983, tradução de Alberto Scarponi; edição brasileira, O pensamento vivido – autobiograa
em diálogo, Viçosa: Editora da UFV, 1999, tradução de Cristina Alberta Franco].
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José Paulo Netto, Karl Marx – Uma biograa. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 33.
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RESENHAS
de départ da trajetória marxiana, rumo à elaboração de sua teoria social, destaco seu
período de juventude, iniciando a abordagem de Colônia, a partir de 1842, na Gaze-
ta Renana, na qual Marx rapidamente passa a exercer o comando editorial, quando
não somente ganha experiência como jornalista, mas também aprofunda sua crítica
política e, percebe que deve se qualificar teoricamente para responder a questões da
vida social. Nesse sentido, é que Netto enfatiza que Marx, em sua estada em Kreusz-
nach, apesar de envolvido com o projeto dos Anais Franco-Alemães, não deixou de
lado sua atividade intelectual e lá estuda a Filosofia do Direito de Hegel, que Netto
ressalta como o momento do estudo da política e do Estado moderno, que resulta em
um manuscrito que conhecemos como a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, de
1843. Ali, desvelam-se os elementos do “misticismo lógico” de Hegel sobre a conexão
Estado/Sociedade Civil (que Marx chamará de Bürguerlische Geselschaft – a sociedade
civil burguesa). Naquele manuscrito, como ressalta o autor, Marx “acerta as contas
com a teoria hegeliana do Estado e, ao mesmo tempo, avança em relação à questão
democrática, radicalizando-a e seguindo na perspectiva de compreender a política
para além do âmbito jurídico, apontando para o político-social. O jovem Marx evolui
encontrando os nexos do Estado na dinâmica da sociedade civil, mas ainda com difi-
culdades teóricas que o atormentam
4
. Na sequência e como resultado das superações
construídas em Kreuznach, já em Paris, Marx escreve dois ensaios: Sobre a Questão
Judaica, escrito em finais de 1843 e Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel – Introdução, ambos publicados em fevereiro de 1844, no número único e du-
plo dos Deutsch-Französische Jahrbücher (Anais Franco-Alemães). Em Sobre a Questão
Judaica evidenciam-se algumas rupturas essenciais, ainda que sua visão da economia
política seja rudimentar.
No entanto, pode-se dizer que, nos ensaios publicados nos Anais, Marx já faz uma
abordagem materialista sobre o tema, supera a visão liberal da democracia e realça a
luta político-social, como também entende Netto, que ressalta ser o materialismo do
jovem Marx diferente e superior àquele iluminista. Já Lenin, em seu verbete Karl Marx,
redigido para o Dicionário Granat, em 1914, afirma que “[...] Nos artigos de Marx
publicados pela revista [Anais Franco-Alemães], ele aparece-nos já como um revolu-
cionário que proclama ‘a crítica implacável de tudo o que existe’ e, em particular, ‘a
crítica das armas, e apela para as massas e o proletariado
5
. Na perspectiva lenineana,
pode-se entender que nesses textos Marx já se insinua como um pensador revolucio-
nário. Netto, por sua vez, ainda o vê como um democrata radical. De qualquer modo,
objetivamente, ali intrincavam os primeiros passos e elementos teóricos que iriam
proporcionar a Aufhebung/salto na transição do democrata radical para o comunista.
Assim, o processo de construção do conhecimento sob a óptica da crítica socialis-
ta já se manifestava claramente no segundo artigo publicado no mesmo número dos
Anais, Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel – introdução, em que
aparece pela primeira vez em sua obra o termo proletariado e onde aprofunda suas
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Lukács chama a atenção para sua crise teórica, de 1843, e o próprio Marx se refere a essa crise
no Prefácio de 1859 da Contribuição à crítica da economia política. Veja-se György Lukács, Il
Giovane Marx, Roma Riuniti, 1978, p. 52
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Veja-se Vladímir Ilitch Lenin, Lenin – Obras completas, v. i, Madri, id: Akal, 1978. v. I. p. 157-158.
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análises sobre a concepção de Estado em Hegel, localizando-a, no âmbito do limite do
pensamento jurídico burguês, na miséria alemã. Como ressalta Netto, ainda que não
tenha um entendimento mais elaborado e materialista da religião, Marx a situa dia-
leticamente em seus elementos contraditórios
4
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. Mas na Contribuição Marx afronta a
questão do mundo real, buscando entender o aspecto de sustentação da miséria alemã.
Em suma, e na mesma direção da visão lukacsiana, Netto aponta que nesses dois textos
estão as premissas para a ruptura com o materialismo iluminista.
Detive-me nessa urdidura intelectual do jovem Marx, em sua transição da Ale-
manha para a França, definida por Netto como “um mergulho num oceano de livros
por ser um ponto ao mesmo tempo de inflexão e de impulsionamento que poria Marx
em novo patamar intelectual. Isso fica evidente no artigo em que Marx desmonta as
argumentações de Ruge, publicadas no jornal Vorwärts (Avante), sob o título “O rei da
Prússia e a reforma socialassinado: ‘Um prussiano, em que define a pobreza como
resultado de causas sociais. Como acentua Netto, Marx desnuda as confusas teorias de
Ruge contra argumentando que “[...] Toda revolução dissolve a velha sociedade; nesse
sentido, é social. Toda revolução derruba o velho poder; nesse sentido, é política
5
7
.
É nesse período de rupturas qualitativas que Marx entra em contato com o texto de
F. Engels, “Lineamentos de uma crítica da economia política, publicado nos Anais, e,
como acentuou Lukács, texto que impulsionou Marx a abandonar a crítica da filosofia
e se dedicar aos clássicos da economia política
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. Netto estuda detalhadamente esse
processo e nos prepara para a imersão nos Cadernos de Paris, escritos entre janeiro de
1844 e janeiro de 1845, em que se materializa o contato de Marx com a economia-po-
lítica e, também, nos Manuscritos de 1844, nos quais aparecem os elementos fundan-
tes de sua teoria social, que serão consolidados, reconceituados e aprofundados mais
adiante, em O Capital. Mas, tanto nos Cadernos como nos Manuscritos de 1944 Marx
elabora a crítica da inumanidade dentro da economia política, isto é, realçando o ele-
mento antropológico que subjaz nela, a relação do homem com o homem como relação
de proprietário privado com proprietário privado. Aqui, ressalta-se o detalhamento da
teoria da alienação, realçando o ser humano como ser genérico; a sociedade como a
verdadeira comunidade dos seres humanos e, por isso mesmo, impensável como uma
sociedade de atividades comerciais”.
Assim, Netto demonstra didaticamente, mas sem perder a profundidade, os pontos
nodais da construção marxiana da Teoria da Alienação, em que é realçada a contra-
dição entre “uma comunidade humana verdadeira e uma comunidade falsa, porque
falseia a própria vida do homem
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9
. Contudo, nos Manuscritos a questão da aliena-
ção, vem elaborada com mais profundidade, e nela é esclarecida a exteriorização do
trabalho, quer dizer, a relação do trabalhador com a produção, o que a economia po-
lítica oculta. Mesmo com a presença de laivos feuerbachianos, a análise marxiana re-
trabalha o conceito da relação homem-natureza, no âmbito do ser ativo, que trabalha
e produz. Aqui, explicitam-se a perspectiva filosófico-antropológica, o ser do homem
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J.P. Netto, cit. p. 81.
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7
Karl Marx, apud J. P. Netto, cit. p.88.
G. Lukács, cit., p 105.
J. P. Netto, cit. p. 97-101.
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RESENHAS
se constitui enquanto atividade vital consciente, enquanto atividade livre consciente – in
limine, a vida produtiva
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.
Entre a primavera e o verão de 1844, Marx avança muito e assevera o comunismo
com fundamento filosófico-antropológico da condição para o resgate e a apropriação
da vida hominizada. Esses acúmulos, aliados às experiências sociopolíticas, lançam as
condições objetivas para suas reflexões maduras na elaboração dos manuscritos pre-
paratórios, desde os Esboços da crítica da economia política (Grundrisse der Kritik der
Politischen Őkonomie), 1857-1858, até a redação de O Capital. Sem dúvida, a análise de
Netto sobre esse processo é a mais completa em relação às que apareceram até agora.
Karl Marx – uma biografia, de José Paulo Netto, é brilhante e preciosa. O estilo ágil
e desenvolto do autor nos faz mergulhar na obra do genial Marx, e nos ajuda a desvelar
questões complexas que Netto trata com grande didatismo e ao mesmo tempo com a
profundidade que só um intelectual de grande quilate pode nos oferecer.
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Na assertiva de Netto, a alienação é o processo especicamente humano- social, traço que se
congura cristalinamente nos Manuscritos: “No mundo real prático, a autoalienação só pode
aparecer através da relação prática com outros homens. O meio pelo qual a alienação procede é
ele próprio um meio prático. K. Marx, apud J. P. Netto, cit. p. 117.