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Reoriente • vol.1, n.1 jan/jun 2021
Editorial
A Reoriente é uma revista acadêmica associada ao Laboratório de Estudos sobre Hege-
monia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ) que tem como objetivo estabelecer um es-
paço teórico e analítico de crítica radical à globalização neoliberal, à economia política
capitalista e seu projeto civilizatório. Tal crítica torna-se indispensável em razão do
período de inexão histórico que estamos vivenciando, em que transitamos do longo
século XX para um período de caos sistêmico no qual as lutas de classes e interestatais
deverão se aprofundar, desaando as ciências sociais a construir alternativas para a
humanidade que pavimentem a construção de um século XXI socialista, baseado na
democracia, na pluralidade, na liberdade, na regulação dos mercados pela esfera pú-
blica e pelo Estado, na sustentabilidade ecológica e na paz.
Para isso, concebe o marxismo como uma teoria social em construção que se des-
dobra do abstrato para o concreto, enriquecendo-se e redefinindo suas formulações
gerais. Nesse processo de expansão, o marxismo produz novas sínteses vinculadas às
realidades concretas que analisa e se articula dialeticamente com outros enfoques, am-
pliando sua complexidade e sofisticação, o que não significa ceder ao ecletismo. Um
amplo conjunto de teorias tem sido produzido no âmbito do marxismo: as teorias
dos modos de produção, as teorias da reprodução ampliada do capital, as teorias do
imperialismo, as teorias da dependência, as teorias da revolução científico-técnica, as
teorias dos ciclos econômicos, as teorias da transição para o socialismo e o comunis-
mo, para citar algumas das mais destacadas.
Dentre elas, a teoria marxista da dependência (TMD) assume particular relevância
para o pensamento latino-americano. Segundo Ruy Mauro Marini, a cristalização da
TMD obedeceu a ondas e processos históricos. Uma primeira onda, que se constitui
nos anos 1920-1930, em torno do pensamento anti-imperialista, encontrou em José
Carlos Mariátegui o seu principal formulador. Tratava-se ainda de uma versão em-
brionária, em que já se descartava o papel emancipador da burguesia nacional apon-
tando sua vinculação prioritária com os grandes monopólios capitalistas internacio-
nais em detrimento da expansão do mercado interno e da dissolução das formas de
produção pré-capitalistas, o que a tornava incapaz de romper com a herança colonial.
A segunda onda de avanços teóricos se estabeleceu nos anos 1960-1980. Era uma
época em que o pensamento marxista ganhava terreno nas forças nacionais e popu-
lares latino-americanas, combinando com suas elaborações teóricas anti-imperialis-
tas, dando lugar a profundas e novas formulações como as de Jorge Abelardo Ramos
e Juan José Hernandez Arregui. Foram Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e
Vânia Bambirra que introduziram as principais formulações e reivindicaram explici-
tamente a criação de uma teoria marxista da dependência. A TMD tomou como base
o estudo da economia mundial, desenvolveu os conceitos de superexploração da força
de trabalho, subimperialismo, analisou os processos políticos e geopolíticos na Améri-
ca Latina, as novas formas do imperialismo e trouxe para o seu instrumental analítico
os conceitos de revolução científico-técnica e de ciclos de Kondratiev, destacando a
crise da hegemonia estadunidense desde os anos 1970.
A ascensão da esquerda e centro-esquerda de 1999 a 2015 impulsionou a articula-
ção do pensamento crítico latino-americano, por meio de organismos como REGGEN,
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CLACSO, SEPLA, ALAS, possibilitando um nível de interlocução sem precedentes.
Criavam-se as bases para uma terceira onda de desenvolvimento da TMD que procu-
rou utilizar o instrumental elaborado nos anos 1970 para uma nova realidade mundial,
submetendo-o à crítica teórica e ampliando-o a partir da análise da realidade concreta.
A TMD aproximou-se de um conjunto de conceitos formulados pelas análises do sis-
temas-mundo, como os de moderno sistema mundial, ciclos sistêmicos, recentraliza-
ção asiática, hibridização de sistemas-mundo, sistema mundial milenar, bem como da
ampla revisão que realizou das teorias do imperialismo para assentar o conceito de he-
gemonia e o declínio do poder estadunidense. Aproximou-se também do pensamento
decolonial emergente que desnudava opreses étnicas, de gênero e orientação sexual,
e do pensamento ecossocialista, que apontava a centralidade da questão ambiental
para os destinos da humanidade no século XXI. Essa virada à esquerda na América
Latina e o seu posterior declínio impulsionaram ainda o debate sobre as novas formas
de desenvolvimento e da democracia liberal, assim como o diálogo crítico com as uto-
pias e as desilusões neodesenvolvimentistas.
A presente inflexão histórica, marcada pelo colapso provisório ou terminal da
globalização neoliberal e pela transição do moderno sistema mundial para um novo
período de caos sistêmico, põe em questão a civilização capitalista e seus fundamentos
e lança o desafio a novas sínteses teóricas, abrindo o espaço para uma quarta onda de
formulações da TMD em articulação com a reorganização das principais vertentes do
pensamento crítico.
Nesse processo, um amplo conjunto de temas de investigação ganham destaque,
por exemplo:
• a crise mundial do capitalismo e da globalização neoliberal;
• a reorganização do Estado, dos padrões de acumulação e do trabalho na eco-
nomia mundial;
• a crise da hegemonia estadunidense;
• as novas formas de imperialismo e as alternativas de poder global;
• a nanceirização da economia mundial, a crise do padrão monetário domi-
nante e as novas possibilidades de organização do poder nanceiro;
• os desaos para a democracia em um mundo marcado pela crise do liberalis-
mo, pela emergência do neofascismo e pelas tentativas de construção de novas
formas socialismo;
• a ascensão da China, seu papel nas novas disputas geopolíticas mundiais e na
articulação do projeto de um Sul global;
• a dependência, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento na América Lati-
na e nas periferias em um período de inexão histórica;
• a crise da civilização capitalista e a construção de novas formas de poder no
século XXI, a partir das decolonialidades, dos feminismos, dos movimentos
sociais e dos partidos políticos;
• os ciclos, os processos históricos, os novos paradigmas tecnológicos e a crise
ambiental;
• os sistemas-mundo, as transições e as tendências do longo século XXI.
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Atenta a esses processos históricos, a Reoriente busca fortalecer a longa trajetória de
encontro do pensamento crítico latino-americano com o marxismo e o pensamento
contra-hegemônico mundial, contribuindo para a elaboração de um pensamento so-
cialista capaz de impulsionar as grandes transformações que abram o caminho para a
afirmação da humanidade, da preservação da vida e da construção de um novo pata-
mar civilizatório no século XXI. Tal encontro é necessariamente um processo comple-
xo, dialético, contraditório, pluriversal que busca construir a unidade na diversidade,
base do projeto de civilização planetária em oposição ao imperialismo político, ideo-
lógico e cultural. É movida por essas preocupações que a Reoriente pretende se somar
a esse processo de construção intelectual
Em seu número inaugural, a Reoriente publica contribuições de autores de desta-
que internacional que constituem importantes documentos de reflexão teórica e em-
pírica sobre os grandes temas de nosso tempo.
Orlando Caputo é entrevistado por Carlos Eduardo Martins, Fabio Maldonado e
Gabriel Merino e faz um amplo balanço de sua trajetória intelectual e política, em que
aponta os desafios que a economia mundial lança para a renovação do marxismo e da
teoria da dependência. Neste número publicamos as reflexões que faz sobre sua infân-
cia, sua formação acadêmica, sua contribuição intelectual no CESO, sua participação
no governo Allende e seus exílios na Bulgária e no México. O depoimento de Caputo
é um documento biográfico sobre a história da teoria da dependência, a contribuição
de alguns de seus principais autores e suas formas de evolução na interpretação do
desenvolvimento da economia mundial capitalista.
Beverly Silver e Corey Payne analisam as crises mundiais das hegemonias, os re-
quisitos para uma nova hegemonia, destacando a particularidade do período de caos
sistêmico que segue à crise da hegemonia estadunidense. Afirmam que a crise ecoló-
gica, as mudanças substantivas das relações Norte-Sul, bem como o grau de aceleração
dos protestos sociais contra a desigualdade tornam insuficientes as soluções reformis-
tas que impulsionaram o período dourado da hegemonia estadunidense. Abre-se o
espaço para reimaginar uma ampla reconstrução do sistema-mundo que coloque em
questão o protagonismo do capitalismo histórico.
Carlos Eduardo Martins toma a transição para o longo século XXI como para-
digmática para a construção de uma teoria marxista do sistema-mundo capitalista e,
para isso, analisa criticamente as intepretações braudelianas e marxistas propondo a
sua síntese dialética. Ele analisa as contribuições de Immanuel Wallerstein, Giovanni
Arrighi, Beverly Silver, Samir Amin, Theotonio Dos Santos e Ruy Mauro Marini sobre
a crise do capitalismo contemporâneo e propõe a articulação de três movimento de
longa duração para interpretar o caos sistêmico que se estabelece e a possível tran-
sição para o longo século XXI: o desdobramento da revolução científico-técnica do
paradigma microeletrônico ao biotecnológico, a evolução da crise de hegemonia dos
Estados Unidos para sua fase terminal e o esgotamento da fase expansiva do ciclo de
Kondratiev, iniciada em 1994. Afirma que, no caos sistêmico que se estabelece, três
visões de mundo disputarão a organização do sistema-mundo, com fortes vinculações
e implicações geopolíticas: o neoliberalismo decadente, o neofascismo e o socialismo.
Cristobal Kay faz uma ampla análise da biografia intelectual de Theotonio Dos
Santos, destacando suas três etapas constitutivas: o período de formação no Brasil,
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em que destaca a vinculação entre a sua formação acadêmica, a docência e a sua ati-
vidade política; o período de exílio no Chile, quando as bases da teoria marxista da
dependência lançadas no Brasil são desenvolvidas no CESO, sob sua direção, com a
presença do quarteto que havia se estabelecido na UnB, formado por ele próprio, Ruy
Mauro Marini, Vânia Bambirra e André Gunder Frank; e o exílio no México, quando
impulsiona o desdobramento da teoria da dependência numa teoria do sistema-mun-
do, o que se consolidará posteriormente com a criação da Cátedra sobre Globalização
e Desenvolvimento Sustentável da Unesco, cuja direção assumiu.
Adrián Sotelo Valencia analisa as deficiências do processo eleitoral nos Estados
Unidos, apontando os bloqueios que o imperialismo coloca para o desenvolvimento
da democracia neste país.
Na seção de Homenagens, a Reoriente homenageia Theotonio Dos Santos,
Immanuel Wallerstein, André Gunder Frank e Samir Amin, autores centrais para a
construção das análises da dependência ou do(s) sistema(s)-mundo, por meio da lei-
tura arguta e propositiva de suas obras de Francisco López Segrera, Pedro Vieira, Nil-
do Ouriques e Pedro Aguiar.
Na seção de Resenhas, Joana das Flores Duarte analisa a antologia de Atilio Boron,
destacado latino-americanista, Bitácora de un navegante: teoría política y dialéctica de la
historia latinoamericana, publicada por CLACSO. Antonio Carlos Mazzeo apresenta os
principais aspectos da colossal biografia de Karl Marx de autoria de José Paulo Netto. Ri-
cardo Zortéa Vieira expõe o pensamento de José Luis Fiori em seu último livro, A síndro-
me de Babel e a disputa pelo poder global, e Wilson Vieira revela os caminhos percorridos
por Celso Furtado em seus Diários Intermitentes que descortinam dimensões-chaves da
história política brasileira.
A Reoriente agradece a colaboração de Amanda Stelitano, Isis Camarinha, Raquel
Coelho, Pedro Martinez e Willyam Alvarez Viegas na preparação dos textos de seu
primeiro número.