Reoriente • vol.1, n.2 jul/dez 2021 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v1i2p154-176
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Anticomunismo e o fantasma do “neostalinismo”: a “questão Stálin” na obra
de Domenico Losurdo
Jones Manoel Silva *
Resumo: O objetivo deste ensaio é tecer uma análise sobre a “questão Stálin” na obra de Domenico
Losurdo, buscando mostrar que não existe um “neostalinismo” ou uma “reabilitação de Stálin” na
produção do autor, mas um novo balanço do papel do líder soviético e do seu governo à luz dos debates
críticos sobre modernidade, questão colonial, liberalismo e história das experiências socialistas.
Palavras-chaves: Stalinismo. Stálin. Questão Colonial. Liberalismo.
Abstract: e purpose of this essay is to analyze the “Stalin question” in the work of Domenico Losurdo,
trying to demonstrate that there is no “neo-Stalinism” or “rehabilitation of Stalin” in the authors
production, but a new assessment of the role of the Soviet leader and his government in the light of
critical debates on modernity, the colonial question, liberalism and the history of socialist experiences.
Keywords: Stalinism. Stalín. Colonial Question. Liberalism
Resumen: El objetivo de este ensayo es analizar la “cuestión de Stalin” en la obra de Domenico Losurdo,
intentando demostrar que no hay un “neoestalinismo” o una “rehabilitación de Stalin” en la producción
del autor, sino una nueva valoración del papel del líder soviético y de su gobierno a la luz de los debates
críticos sobre la modernidad, la cuestión colonial, el liberalismo y la historia de las experiencias
socialistas.
Palabras-llave: Estalinismo. Stálin. Cuestión Colonial. Liberalismo.
* Historiador, professor de História, Mestre em Serviço Social, educador e comunicador popular.
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ARTIGOS
Em 2018, morreu o intelectual e militante comunista Domenico Losurdo. Não
só na Itália, sua terra natal, como em muitos outros países – a exemplo de Cuba, Es-
panha, Portugal, Venezuela, China etc. –, o nome do lósofo foi lembrado, e sua obra
apontada como um aporte fundamental para o marxismo e o pensamento crítico.
No Brasil, a obra losurdiana é conhecida e tem penetração acadêmica desde os
anos de 1990. Nunca despertou muitas paixões de combate polêmico. Contudo, a
partir de 2018, um setor da esquerda brasileira – notadamente os trotskistas – passou
a atacar o italiano de forma sistemática. Bem longe de um debate teórico qualicado,
o que vimos foram dogmas de gueto ideológico repetidos ad nauseam – como um in-
quisidor tentando curar os hereges – e puro e simples xingamento e desqualicação:
farsante, charlatão, revisionista, mentiroso e outras palavras entraram no repertório
dos “anti-Losurdo.
Toda essa histeria chegou ao auge quando, em janeiro de 2020, foi publicada na
internet uma entrevista do autor destas linhas com o prestigiado músico brasileiro
Caetano Veloso. Durante a entrevista, dentre vários temas, Caetano armou que
desenvolveu interesse pela leitura de Losurdo a partir do meu trabalho, rasgou elogios
ao italiano e falou das obras dele que estava lendo. Esse episódio projetou o nome de
Domenico Losurdo para outro patamar de conhecimento público e visibilidade.
Depois dessa entrevista, algumas almas atormentadas entenderam que o
maior perigo da conjuntura é o crescimento do “neostalinismo, representado,
principalmente, por Domenico Losurdo. O cavalo de batalha dos Dom Quixotes da
política – que me desculpe Cervantes pela comparação – é a acusação de que Losurdo
seria um “stalinista” (ou “neostalinista”) e promoveria uma reabilitação da gura de
Joseph Stálin.
Esperei pacientemente o momento de responder essa “acusação. Farei esse debate
agora neste ensaio. Não buscarei tratar de pormenores das “acusações, mas debater o
que considero ser o núcleo central da questão em todas as suas dimensões – teórica,
política e tático-estratégica.
********
Como já falamos, Losurdo é conhecido pelo público brasileiro desde os anos de
1990. Teve presença constante nas principais revistas marxistas do país e foi publicado
por mais de cinco editoras. O percurso acadêmico do italiano, no Brasil, deu-se de
início devido à sua leitura de Hegel e sua crítica do liberalismo. Em 1998, é lançado
o livro Marx, Hegel e a tradição; em 2004, foi lançado Democracia ou bonapartismo;
e, em seguida, chega seu mais conhecido livro de crítica ao pensamento liberal,
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Contra-história do liberalismo, em 2006; no mesmo ano, outro importante livro
de crítica ao liberalismo é publicado: Liberalismo. Entre a civilização e a barbárie.
Ainda no mesmo ano, é impresso o prestigiado Annio Gramsci: do liberalismo ao
comunismo crítico.
Como se pode perceber, em um curto período de tempo, vários livros do italiano
foram lançados no Brasil. Nos anos que se seguiram, tivemos muitos outros; para
citar apenas alguns: A linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010);
O pecado original do século XX (2013); A não violência. Uma história fora do mito
(2012); Fuga da história? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje
(2004); A luta de classes. Uma hisria política e losóca (2015); Guerra e revolução.
O mundo um século após outubro de 1917 (2017); Nietzsche: o rebelde aristocrata.
Biograa intelectual e balanço crítico (2009); Stalin – uma história crítica de uma
lenda negra (2010) etc.
Não citarei toda a bibliograa – inclusive os artigos – para não cansar o/a leitor/a
(vale destacar o caráter multitemático da produção do lósofo). O livro sobre Stálin
é o único de toda a produção losurdiana que tem como centro da atenção o famoso
líder soviético. Em artigos e entrevistas, é difícil também achar outro momento do
italiano que seja concentrado em Stálin.
É necessário, portanto, armar que Stálin, enquanto gura histórica, não tem um
papel importante no conjunto da reexão losurdiana. E não deixa de ser signicativo
que a edição italiana do livro sobre Stálin seja de 2008 – como sabemos, dez anos antes
da morte do lósofo. Stálin, enquanto gura histórica, é não só um tema marginal
no conjunto da obra de Losurdo, como uma matéria de trabalho que só recebeu maior
atenção – um livro especíco – no crepúsculo da produção losurdiana. Agora, o período
de Stálin como liderança na União Soviética, normalmente chamado de “stalinismo,
esse, sim, tem papel de relevo no conjunto das reexões do lósofo.
A diferença de interesse e atenção da gura de Stálin para o “stalinismo” se explica
por uma questão fundamental: na multiplicidade de temáticas e autores abordados
por Losurdo, podemos apontar que o o condutor de sua produção é a tentativa
de construir uma contra-história da modernidade, suas ideologias e conitos políticos
fundamentais a partir da apreensão das contradições objetivas em um quadro histórico-
concreto, destacando a importância da questão colonial – recalcada pela ideologia
dominante – e valorizando o legado de emancipação encarnado pela Revolução
Francesa, Haitiana e Russa (e as continuidades da Revolução de Outubro, como a
Batalha de Stalingrado, Revolução Chinesa etc.).
Esse o condutor da obra losurdiana é uma resposta à burguesia e suas expressões
político-ideológicas, como o liberalismo, que buscam não só expropriar as classes
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ARTIGOS
trabalhadoras do seu mais-valor, como também do seu passado, satanizando,
tratando como episódio de teratologia todo o processo revolucionário – desde a
Revolução Francesa até as revoluções socialistas – e seus intérpretes, como Hegel
ou Lênin, se autorrepresentando num quadro idílico e belo, isento de contradições,
dramas e tragédias.
O autoelogio do liberalismo como uma ideologia/programa político de defesa
absoluta da liberdade, do indivíduo e da limitação do poder, ou a imagem do
imperialismo estadunidense como exemplo máximo de liberdade e democracia,
tem como fundamento o apagamento da questão colonial e a demonização
absoluta de toda experiência revolucionária; trata-se de resumir a experiência
socialista a um grande gulag. A operação é bem simples: criam-se dois monstros
gêmeos, representando o ápice da barbárie, o totalitarismo nazista e comunista,
e se apresenta o liberalismo como um elemento terceiro, puro, superior e não
maculado pelo pecado.
Losurdo percebe que sua contra-história da modernidade o leva a repensar o bal-
anço construído pelos vencedores no século XX sobre as experiências socialistas. O
lósofo italiano busca operar uma história crítica e não poupa palavras aos erros e
crimes das experiências do século passado; contudo, recusa as demonizações, sim-
plismos e as abordagens dedutivistas que buscam em Platão ou Rousseau as origens
do “terror jacobino, ou em Marx ou Lênin a semente do gulag soviético. Em síntese,
como coloca Gianni Fresu (2018),
Losurdo sempre levantou a necessidade de compreender os elos entre a primeira e a Segunda
Restauração, mostrando a tarefa ideológica comum a elas: deslegitimar as duas maiores
Revoluções da história mundial. Depois de 1815, a resistência losóca que tentou explicar
racionalmente as razões e as heranças da Revolução Francesa teve um signicado que ia além
da luta política imediata. Da mesma maneira, como Hegel fez no começo do século XIX, era
preciso demonstrar as contradições e a instrumentalidade das teorias que apresentaram os
acontecimentos de 1917 como a origem de todos os males e desastres. Um o vermelho une
Von Haller aos teóricos do revisionismo contemporâneo; assim, os lutos e os horrores de
um século ensanguentado são o fruto envenenado da Revolução Russa, e mesmo o fascismo,
segundo Nolte, não seria produto da história burguesa, a prossecução nos conns europeus
da ideologia colonial, mas uma simples consequência do fanatismo ideológico bolchevique.
A mesma crítica contra os jacobinos envolveu os bolcheviques, a idêntica condenação da
Revolução Francesa abrangeu a Revolução de Outubro.
O projeto teórico losurdiano teria, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar a grande
arma da classe dominante, que serve ao mesmo tempo para: a) produzir seu autoelogio
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histórico como auge da liberdade e democracia; b) demonizar e criminalizar todas
as experiências socialistas; c) combater, a partir do mais reacionário revisionismo
histórico, ou connar ao esquecimento as tradições revolucionárias anteriores
ao marxismo e seus intérpretes. Que arma é essa? A representação caricatural,
teratológica e patológica do “stalinismo.
Existe um reductio ad stalinum. Qualquer argumento que não seja uma
condenação sumária de Marx, jacobinismo, Revolução de Outubro, Revolução
Chinesa, socialismo cubano, pensamento de Hegel, violência revolucionária e
assim segue, rima com a evocação de alguma barbaridade do “stalinismo” (real ou
ctícia). Não deixa de ser curioso que esse reductio ad stalinum apareça também
na política mais imediata: os moderadíssimos Jeremy Corbyn (Inglaterra) e Bernie
Sanders (Estados Unidos), nas suas recentes disputas eleitorais, foram acusados de
stalinismo. Como bem disse um importante historiador,
A demonização de Stalin, elevado à reencarnação do Lúcifer no Relatório Kruschiov [no XX
Congresso do PCUS], não tem por objeto o Stalin real, que historicamente existiu, mas a sua
representação caricatural. Depois acriticamente recebida e repetida no Ocidente, elevada a
dogma, enquanto particularmente funcional à luta anticomunista. (GIACOMINI, 2019, p. 39).
Ao enfrentar esse ponto vital da ideologia dominante, Losurdo não escreveu
uma biografia de Stálin. Os “críticos” que acusaram o italiano de ser um mau
biógrafo não perceberam que o autor não tem qualquer intenção de escrever algo
próximo dos livros clássicos, como a biografia sobre Stálin de Isaac Deutscher
1
ou
o recente livro de Stephen Kotkin
2
. A função do livro de Losurdo é desconstruir
a imagem que o Ocidente liberal-imperialista produz sobre o “stalinismo” como
reflexo de sua própria imagem idealizada. Imagine a metáfora: é como se existisse
um espelho com a imagem diabolizada de Stálin e do “stalinismo, e, ao se olhar
nesse espelho, esse Ocidente liberal-imperialista vê uma imagem pura e idílica
como reflexo.
O livro de Domenico Losurdo é fundamentalmente uma análise histórico-crítica,
focada nas contradições objetivas do “stalinismo” e de Stálin como líder político,
negando a propaganda anticomunista e perquirindo as múltiplas imagens de Stálin
produzidas – também dentro do movimento comunista – ao longo da história
e historicizando essas imagens
3
. O/A leitor/a do livro de Losurdo percebe isso a
1 Stalin: uma biograa política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
2 Stálin: Paradoxos do poder, 1878-1928. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. v. 1.
3 Um pequeno exemplo da abordagem histórica de Losurdo: “Em junho de 1956, sob a impressão
imediata da leitura do Relatório Kruschov, [Isaac] Deutscher observa: ‘os comunistas se tinham
160
ARTIGOS
pela disposição temática dos catulos: na maioria dos capítulos e subtópicos, temos
uma rica e complexa investigação das múltiplas imagens de Stálin como reexo da
idealização do Ocidente liberal-imperialista e as variadas comparações de Stálin e da
União Soviética com Hitler e a Alemanha nazista. Uma síntese da ambição teórica do
livro pode ser vista neste trecho que conclui um longo raciocínio sobre a ideologia do
totalitarismo e a comparação Hitler-Stálin.
O que mais impressiona em tais textos é a ausência da história e, em certo sentido, até da
política. Desaparecem o colonialismo, o imperialismo, as guerras mundiais, as lutas de
libertação nacional, os projetos políticos diferentes e opostos. Não se pergunta tampouco
pelas relações entre o Ocidente Liberal, de um lado, com o fascismo e o nazismo (que se
comportam como campeões do Ocidente mais autêntico e mais consequente), por outro lado,
e o antigo regime russo, cujas contradições tendem há muito tempo a precipitar-se numa
enorme catástrofe. Tudo isso é colocado substancialmente na sombra pela centralidade
absoluta conferida a duas personalidades criadoras, ainda que malecamente criadoras.
(LOSURDO, 2010, p. 187).
Essa incompreensão da tarefa fundamental da reexão losurdiana faz com
que alguns autores, como o historiador Jean-Jacques Marie (2011), tenham cado
indignados pelo fato de Losurdo responder que as deportações em massa e punições
coletivas existentes na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) não
foram fruto de qualquer personalidade doentia e paranoica de Stálin ou de um
instinto sanguinário do totalitarismo, mas sim que se tratava de uma ptica estatal
generalizada no período histórico e que conheceu realidade também nos países de
sólida tradição liberal, como Estados Unidos e Inglaterra. Na visão subalterna ao
prostrado por mais de: ‘um quarto de século’ diante de um tirano monstruoso e repugnante tanto no
plano moral como no plano intelectual; como pôde acontecer tudo isso?’. Prosseguido nessa linha, ele
teria podido acrescentar: o que teria levado lósofos e estadistas ocidentais ilustres a tributar àquele
monstro declarações de estima e de respeito e, em certos casos, até de admiração? Estas perguntas
são legítimas e até inevitáveis, mas talvez devessem ser completadas por outra: como pôde acontecer
que o próprio Deutscher se tenha deixado contagiar por aquele comportamento que ele denuncia tão
asperamente em 1956? Sim, depois do m da II Guerra Mundial e por ocasião da morte de Stálin,
ele prestara homenagem ao estadista que tinha contribuído de modo decisivo para a derrota do III
Reich e tinha construído o socialismo na URSS. Naquela época, o monstro de abjeção e de imbecilidade
ainda não tinha entrado em cena, e, portanto, ainda não surgira a pergunta sobre o enorme crédito
que ele, apesar de tudo, por tanto tempo teve. Talvez, em 1956, ao ler o Relatório Kruschiov, Deutscher
tivesse agido melhor se houvesse feito uma pergunta bem diferente: guiada por um ‘generalíssimo’ e
por um dirigente político tão ridículo, como a União Soviética pôde denotar a terrível máquina de
guerra nazista, que tinha rapidamente subjugado o resto de Europa continental? E como pôde a
União Soviética, partindo de uma posição de extrema fraqueza, tornar-se uma superpotência militar e
industrial?” (LOSURDO, 2010, p. 296).
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liberalismo de Marie, isso é o mesmo que dizer “tudo bem então esse horror na União
Soviética, quando, na realidade, Losurdo deseja dizer que defender que esse horror na
União Soviética é um derivado da essência do marxismo ou a prova do totalitarismo
(e do liberalismo como um terceiro equidistante, democrático etc.) não se sustenta.
É óbvio que, durante o livro, além de demolir a autoimagem falseada do Ocidente
liberal-imperialista, Losurdo também realiza outros objetivos. Busca, por exemplo,
combater as mitologias anticomunistas mais grosseiras, como a ideia de que Stálin – e
o Partido Comunista – conava em Hitler, não sabia dos planos de invasão nazistas
e que o pacto de não-agressão germano-soviético foi fruto de uma pura e simples
atração ideológica de dois sistemas iguais; mas, embora esse combate às propagandas
anticomunistas mais vulgares seja importante, o fundamental para o autor é olhar a
experiência soviética como uma jornada histórica, com todos os seus erros e acertos,
como uma tentativa de construção socialista, como parte da história do movimento
comunista, sem autofobia
4
.
Para Losurdo, só observando de forma objetiva a história soviética podemos
repensar a teoria e a prática do movimento comunista à luz da história. Caso contrário,
surgem os expedientes de fuga da história, que armam que tudo não passou de
capitalismo de Estado, “revolução traída” ou m do socialismo com a morte de
Lênin (ou derrota de Trotsky), sendo necessário fazer tudo de novo, negando toda a
história e redescobrindo a pureza original dos textos de Marx, perdidos pelos seus
intérpretes e deturpadores (e para não poucos “estudiosos” de Marx, o primeiro
grande deturpador foi Friedrich Engels). Nesse ponto, cabe deixar a palavra com o
próprio Domenico Losurdo:
Eis que emerge a palavra de ordem “volta a Marx”. Seria fácil demonstrar que Marx é o lósofo
mais decisivamente crítico da losoa dos retornos. Em sua época, desprezou aqueles que,
em polêmica com Hegel, queriam voltar a Kant ou, denitivamente, a Aristóteles! Voltar a
entrar no abc do materialismo histórico, a tese segundo a qual a teoria se desenvolve a partir
da história, da materialidade, dos processos históricos. O grande pensador revolucionário
não hesitou em reconhecer o débito teórico contraído por ele em relação à breve experiência
da Comuna de Paris: atualmente, ao contrário, décadas e décadas de um período histórico
particularmente intenso, da Revolução de Outubro à chinesa, cubana, etc., devem ser
declaradas destituídas de signicado e de relevância no que diz respeito à “autêntica
4 “Porém, apesar das assonâncias, autocrítica e autofobia constituem duas posições antitéticas. Em seu
rigor, e até mesmo em seu radicalismo, a autocrítica exprime a consciência da necessidade de acertar as
contas com a própria história; a autofobia é uma fuga vil desta história e da realidade da luta ideológica
e cultural que sob ela que ainda arde. Se a autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade
comunista, a autofobia é sinônimo de capitulação e de renúncia da identidade autônoma” (LOSURDO,
2004, p. 14-15).
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ARTIGOS
mensagem de salvação já consignada, de uma vez por todas, em textos sagrados, que teriam
apenas de ser redescobertos e reanalisados religiosamente! [...] Em que texto de Marx se pode
ler a previsão ou a justicativa de um socialismo em uma pequena ilha como Cuba, ou de
guerrilha na Bolívia para promover uma revolução de tipo socialista? No que concerne a
Gramsci, é notório que ele saúde Outubro como a revolução contra “o capital. Foram os
mencheviques que lançaram, naquele momento, a palavra de ordem da “volta a Marx”.
(LOSURDO, 2009, p. 20-21).
O lósofo, porém, não confunde o combate à fuga da história com sancionar
tudo que aconteceu na experiência histórica como único caminho possível. Diz
textualmente que “[...] não se trata de engolir a pretensão dos ideólogos do ‘socialismo
real, de enquadrar totalmente o possível ao real, quase como se toda escolha tenha sido
sempre obrigatória” (LOSURDO, 2015, p. 206) e que devemos nos indagar, também,
sobre “[...] os erros (e os crimes) dos dirigentes políticos da URSS ou de outros países
[socialistas]” (LOSURDO, 2015, p. 207). Como se pode notar, não existe defesa de
uma apologia acrítica do que existiu e existe ainda como experiência socialista e
muito menos um “negacionismo” de erros e crimes, mas sim uma recusa de reduzir
décadas de história a um grande lme de terror psicopatológico. A União Soviética,
no período de Stálin, foi uma combinação entre emancipação e desemancipação, e
Losurdo, no seu livro, demonstra isso muito bem
5
.
Apenas um único exemplo de um dos argumentos centrais da abordagem
losurdiana: o italiano destaca como o nazifascismo é também uma radicalização da
tradição colonial-ocidental e como a União Soviética, ao contrário da Alemanha
Nazista e inclusive das democráticas França e Inglaterra, tinha um rme compromisso
com a luta anticolonial e antirracista. Reduzir a URSS a um reino de terror, ou liquidar
essa experiência histórica como “totalitarismo” ou “revolução traída, signica negar
esse capítulo fundamental da história do século XX e da luta de classes. Vejamos, por
exemplo, o que dizem dois dos maiores nomes da luta anticolonial e antirracista da
história.
W. E. B. Du Bois (2008 [1953]), o maior intelectual da história dos Estados
Unidos, por ocasião da morte de Stálin, escreveu um necrólogo elogioso defendendo
5 Um pequeno exemplo dessa abordagem: “as massas populares tradicionalmente condenadas ao
analfabetismo irrompem em massa nas escolas e nas universidades; forma-se assim “toda uma nova
geração de operários especializados e técnicos e administradores tecnicamente preparados, chamados
de modo rápido a desempenhar uma função dirigente. “Novas cidades são fundadas e velhas cidades são
reconstruídas”; o surgimento de novos complexos industriais gigantescos nada junto com a “ascensão de
cidadãos hábeis e ambiciosos de origem operária ou camponesa aos níveis superiores da escola social”.
A esse respeito falou-se de “uma mistura de coerções brutais, de heroísmo memorável, de loucura
desastrosa e de resultados espetaculares” (LOSURDO, 2010, p. 148).
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o líder soviético e destacando que a URSS conseguiu vencer o preconceito racial
e “[...] construiu uma nação de 140 grupos sem destruir suas individualidades.
Mesmo depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS),
onde ocorrem as denúncias dos “crimes de Stálin, dado o papel da URSS na luta
antirracista e anticolonial, Du Bois continuou destacando os elementos positivos do
legado staliniano em textos como Socialism and democracy, de 1957. O dirigente e
teórico da Revolução Argelina, Frantz Fanon, armou:
Para os povos coloniais escravizados pelas nações ocidentais, os países comunistas são os
únicos que em qualquer ocasião tomam sua defesa. Os países coloniais não têm que se
preocupar com saber se esta atitude é ditada pelo interesse da estratégia comunista; vericam
sobretudo que este comportamento geral vai no sentido dos seus próprios interesses. Os
povos coloniais não são especialmente comunistas, mas são irredutivelmente anticoloniais.
(FANON, 2018 [1958], p. 87).
Como se pode ver, para Fanon não faria sentido descartar as experiências
socialistas (“países comunistas”) em curso: elas eram fundamentais na liquidação
de séculos e décadas de domínio colonial, a forma mais brutal de dominação do
capitalismo. Ainda cabe destacar que, para Fanon e vários outros líderes anticoloniais
– como omas Sankara, Amílcar Cabral ou Kwame Nkrumah –, na hora de buscar
o máximo exemplo de barbárie, não se deveria olhar para a URSS ou o Leste Europeu
(ou Stálin e Mao Zedong), mas para o colonialismo e neocolonialismo operado pelas
potências liberal-capitalistas.
Claro, pode-se objetar que Domenico Losurdo, para além de não reduzir a URSS
no período stalinista a um reino de terror per se e considerar toda a dimensão de
emancipação presente, também elogia Stálin enquanto líder e teórico em alguns
aspectos de sua vida-obra. Losurdo, no debate com Jean-Jacques Marie, resume o
que considera os méritos de Stálin:
No âmbito do quadro por mim traçado, permanecem rmes os méritos de Stálin. Ele
compreendeu uma série de pontos essenciais: a nova fase histórica que se abria com a falência
da revolução no Ocidente; o período de colonização escravista que ameaçava a Rússia soviética;
a urgência de recuperação do atraso em relação ao Ocidente; a necessidade de conquista de
ciência e tecnologia mais avançadas e a consciência de que a luta por tal conquista pode
ser, em determinadas circunstâncias, um aspecto essencial, e mesmo decisivo, para a luta de
classe; e a necessidade de coordenar patriotismo e internacionalismo e a compreensão do
fato de uma vitoriosa luta de resistência e de libertação nacional (como foi a Grande guerra
patriótica) constituir-se na mesma época uma contribuição de primeiríssimo plano à causa
internacionalista da luta contra o imperialismo e o capitalismo. (LOSURDO, 2011).
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ARTIGOS
Contudo, se reconhecer algum mérito político ou teórico a Stálin, a despeito da
avaliação global que se faça de sua vida-obra, for sinônimo de “stalinismo, temos um
problema. Teremos que considerar que autores tão diferentes entre si como György
Lukács, Louis Althusser, Ruy Mauro Marini, eotônio dos Santos, Luciano Canfora,
James Petras, Michael Parenti, Isaac Deutscher, Vijay Prashad, Slavoj Žižek e tantos
outros seriam todos stalinistas, dado que é possível achar em todos eles algum elogio
ou consideração positiva sobre algum aspecto do governo staliniano ou a vida-obra
do líder soviético
6
.
A essa altura da argumentação é necessário dizer que eu considero que sim, existe
uma leitura stalinista do marxismo. Essa leitura tem três pilares fundamentais: a) uma
visão acrítica do período stalinista na URSS, onde todos os problemas e tragédias
podem ser colocados na conta de agentes externos ao regime – ou elementos do
sistema alheios à sua organicidade – e resumidos a mentiras da burguesia; b) uma
visão laudatória do socialismo realmente existente na URSS, como se tudo o que
aconteceu tenha sido a melhor ou a única escolha possível, sendo a construção
socialista do período um exemplo máximo que deve até hoje ser perseguido; c) a
redução de qualquer crítica ou questionamento da ação política e legado teórico
de Stálin a revisionismo, normalmente adotando como fonte única ou principal de
debate os próprios materiais produzidos pelo Partido Comunista da URSS sob a
supervisão de Stálin.
Alguns autores se encaixam ou se aproximam desta compreensão de stalinismo,
mas de forma alguma Domenico Losurdo; convido o leitor a estudar o livro do
italiano sobre Stálin e conferir por si. Aliado a isso, Losurdo está bem longe de usar
qualicativos para Leon Trotsky e a tradição trotskista como um todo de traidor,
contrarrevolucionário e ans. É claro, o lósofo era um crítico de vários elementos
da obra do fundador do Exército Vermelho, mas ser um crítico de Trotsky não
transforma ninguém em “stalinista. Caso contrário, teríamos que dizer, por exemplo,
6 Um trecho importante para pensar os variados signicados de “reivindicar” Stálin: “[...] Em 1963, [Dipa
Nusantara] Aidit [jovem líder do Partido Comunista da Indonésia - PKI] havia criticado os soviéticos,
dizendo: ‘Os Estados socialistas não são genuínos se eles não conseguem realmente dar assistência à
luta de libertação nacional. A razão pela qual partidos como o PKI se apegaram a ‘Stalin’ não foi porque
eles defenderam os expurgos ou coletivização na URSS. Foi porque ‘Stalin, no debate sobre a militância,
havia vindo para substituir o idealismo revolucionário pela luta antifascista. Aidit havia concordado que
os soviéticos poderiam ter qualquer interpretação de ‘Stalin’ em termos de política interna (‘critique-o,
remova seus restos do mausoléu, renomeie Stalingrado’), mas outros partidos comunistas tinham o
direito de avaliar seu papel internacionalmente. Ele era um ‘farol, disse Aidit em 1961, cujo trabalho
foi ‘ainda útil para os países do Oriente. Essa foi uma declaração contra a conciliação em relação ao
imperialismo da era Krushchev. Foi uma posição compartilhada em muitos dos partidos comunistas do
Terceiro Mundo» (PRASHAD, 2019, p. 140).
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que Annio Gramsci foi um dos maiores “stalinistas” do século XX, já que ele tratava
a Trotsky nestes termos:
Neste caso, seria possível dizer que Bronstein [Trotski], que aparece como um “ocidentalista,
era, ao contrário, um cosmopolita, isto é, supercialmente nacional e supercialmente
ocidentalista ou europeu. Em vez disso, Ilitch [Lenin] era profundamente nacional e
profundamente europeu. Bronstein recorda, em suas memórias, terem-lhe dito que sua
teoria se revelara boa... Quinze anos depois, e responde ao epigrama com outro epigrama.
Na realidade, sua teoria, como tal, não era boa nem quinze anos antes nem quinze anos depois:
como sucede com os obstinados, dos quais fala Guicciardini, ele adivinhou no atacado, isto
é, teve razão na previsão prática mais geral; como se se previsse que uma menina de quatro
anos irá se tornar mãe e, quando isto ocorre, vinte anos depois, se diz: “adivinhei”, mas sem
recordar que, quando a menina tinha quatro anos, se tentara estuprá-la, na certeza de que se
tornaria mãe. (GRAMSCI, 2017, p. 265, grifos nossos).
A preocupação de Domenico de repensar o balanço do século XX, combater a
ideologia liberal, erodir a imagem do socialismo histórico como um cardápio de
crimes e desconstruir o autoelogio da burguesia é manifesta por vários intelectuais
de corte político-ideológico bem diferente. Não poucos, inclusive, reclamam que
o mesmo tratamento teórico-metodológico que a esquerda marxista dedica à
experiência jacobiana e a seus protagonistas, como Maximilien de Robespierre, seja
oferecido às experiências do século XX. Luciano Canfora, prestigiado historiador
italiano que consta como posfácio do livro de Losurdo sobre Stálin, defende esse
procedimento
7
. Postura semelhante pode ser indicada nas reexões do comunista
português Francisco Martins Rodrigues
8.
O lósofo francês Jean Salem, falecido em 2018, ao traçar um balanço do movimento
comunista na França e no mundo e como esse movimento foi criminalizado pela
7 “Molotov lembra que Stalin lhe dissera uma vez: quando eu morrer jogarão lixo sobre a minha tumba,
mas depois entenderão. A acusação quase judiciária que pesa sobre Stálin é de ter ceifado vidas humanas
demais. Essa medida de avaliação, que já durante todo o século XIX acompanhou e distorceu os vaivéns
(muito semelhantes aos atuais) da historiograa sobre a Revolução Francesa, foi por m manchado com
as monstruosidades do chamado Livro Negro de Courtois e companheiros: um livro que inclui entre as
‘vítimas de Stalin, também os milhões de mortos na Guerra mundial ou entre as ‘vítimas do comunismo
as innitas vítimas da UNITA em Angola. Depois daquele monstruoso pamphlet é difícil levar a reexão
para um plano decente; nem basta o rápido desmantelamento que se produziu depois daqueles números
de causar vertigem. O nexo entre a Revolução e Terror é o duro problema: ele começa com Robespirre,
não com Lenin, e ainda está aberto” (CÂNFORA, 2010, p. 339-340).
8As responsabilidades de Mao perante a revolução chinesa (tal como as de Stalin perante a revolução
russa) são pesadas. Mas isto não nos leva a misturar a avaliação dessas responsabilidades com a infantil
negação dos seus méritos na fase revolucionária da sua vida; muito menos com a estúpida negação de
uma das mais gigantescas revoluções de todos os tempos” (RODRIGUES, 1989).
166
ARTIGOS
ideologia dominante (expresso principalmente, na contabilidade criativa de “vítimas
do comunismo, que cresce ano após ano de acordo com o cinismo do contador do
momento), arma:
Isto mostra que estamos confrontados com uma intensa propaganda mundial que, se não for sujeita
a uma crítica, à nossa crítica, julgo que o desenvolvimento do pensamento revolucionário, não a
sua retomada, seria contrariado, obliterado pela ausência de reação, designadamente da nossa
parte, perante tais mentiras [...] Por isso não transformo numa condão absoluta do movimento
progressista ou revolucionário a claricão da história do século XX, mas penso que, se não
travarmos a vaga ridícula e escandalosa de criminalizão da militância comunista e da história do
comunismo, o movimento social irá perder muito tempo. (FARIAS, 2013).
Outro lósofo francês de imenso prestígio mundial, Alain Badiou, em um dos
seus muitos seminários, colocou nesses termos o problema de que estamos tratando:
Stálin é o nome de uma questão crucial em nossa história política e é geralmente considerada
uma questão resolvida, a saber: Stálin foi um tirano totalitário e um grande criminoso. Mas
quando dissemos que o estado stalinista era um estado de terror – o que é indubitável – você vê
que a questão da relação entre Stálin e a história dos problemas políticos não estava realmente
constituída. É por essa razão que, em minha opinião, Stálin não pode ser considerado o nome
de uma questão resolvida.
Nos períodos de sucesso da contrarrevolução, uma operação fundamental não consiste
somente em macular o período revolucionário anterior (o que é normal) mas também, o que
é mais nefasto, a tornar esse período ininteligível. Isso aconteceu especialmente na revolução
francesa. Não podemos esquecer que, por um século, até a aparição, no século 20, da escola
histórica de Mathiez e dos seus sucessores, Robespierre foi considerado como hoje é Stálin. Nos dois
casos, nós temos operadores subjetivos da revolução tornados ininteligíveis sob a forma de uma
patologia da história que os descola completamente de qualquer racionalidade política. Pode-se
dizer que a totalidade do processo chamado na China de Revolução Cultural, mas também
Maio de 68 é, hoje, na propaganda dominante, objeto de operações de “incompreensibilidade
histórica do mesmo tipo. Propus de as qualicar como operações “thermidorianas, porque
isso começou com a queda de Robespierre, em ermidor. Quanto a Stálin, isso deve ser
esclarecido à luz da questão, bem real, do lugar do terror na potica revolucionária em geral,
a partir também da singularidade do terror bolchevique em relação aos problemas internos
imanentes à revolução russa, e enm da travessia desses episódios históricos consideráveis que
se produziram nos quarenta anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. Não vamos,
claro, concluir que ele [Stálin] foi um cara formidável, etc. Essa questão independe, insisto, da
questão do julgamento nal que ele merece, mas é preciso que se constitua um dossiê, que a
inteligibilidade mínima da coisa exista. (BADIOU, 2010-2011, grifos nossos, tradução nossa).
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Alain Badiou encaminha sua reexão indicando dois livros, e um deles é a reexão
de Domenico Losurdo sobre Stálin, embora pondere que o livro pode ser criticado
por “[...] não tratar de forma concentrada e central o período mais marcante e terrível,
o do grande terror de 1937-38”. Poderíamos estender os exemplos a muitos outros
autores. o se trata de fazer nenhuma “reabilitação de Slin” ou de “neostalinismo”,
mas de um novo balao do século XX à luz de diversos projetos trico-políticos que
têm sua unidade na busca de reconstruir um movimento revolucionário no século atual.
Armar, contudo, que os alaridos sobre neostalinismo são falsos não explica a
sua existência. Especialmente, não explica duas questões: por que agora? E por que
contra Losurdo? O citado Badiou, além de um declarado simpático ao maoísmo,
opera com um prisma teórico-político parecido com o de Domenico sobre Stálin, é
publicado no Brasil, mas não é alvo dessa campanha, por exemplo.
Para explicar o “por que agora” dessa reação contra Losurdo, começamos comentando
um episódio do percurso do historiador Perry Anderson. Anderson lançou em 1976 seu
clássico e paradigmático (escrito em 1974) Considerações sobre o marxismo ocidental
(2019). Deixando de lado a tese central do livro por demais conhecida – e debatê-la
não é nosso objetivo -, Anderson (2019, p. 122) considera que o legado e a obra de
Leon Trotsky “[...] poderá surpreender os futuros historiadores com seus recursos. O
historiador estava muito empolgado com a possibilidade de o marxismo ocidental, e em
especial a obra de Leon Trotsky, conseguir nalmente reencontrar as massas. Segundo
ele: “Desde o m dos anos 1960 começa a criar, pela primeira vez desde a derrota da
Oposição de Esquerda na Rússia, alguma possibilidade objetiva de reaparecimento das
ideias políticas associadas a Trotsky em áreas fulcrais do debate e da atividade da classe
trabalhadora” (ANDERSON, 2019, p. 125).
O prognóstico não é triunfalista, mas tem um tom claro de otimismo ao reetir
sobre a possibilidade da “ascensão de um movimento revolucionário de massa” nas
trias do capitalismo industrial”. O autor diz que “as perspectivas de reaparecimento
do movimento de massas revolucionário nos países centrais do imperialismo “estão
agora nalmente aumentando” (ANDERSON, 2019, p. 128-129).
Em 1984, o mesmo Perry Anderson escreve um posfácio para seu livro. O levante
de massas revolucionário no centro do capitalismo não aconteceu. Ao contrário,
vivíamos o começo da longa noite neoliberal e uma defensiva gigantesca da classe
trabalhadora. O autor, em tom mais sóbrio e autocrítico, faz uma nova avaliação
das perspectivas políticas do marxismo ocidental tão bem avaliado teoricamente.
Atenção especial é dada ao legado de Leon Trotsky. Com ares melancólicos, diz
Anderson (2019, p. 140, grifos nossos):
Entretanto, depois de 1924, Trótski generalizou seu esquema da Revolução Russa para
168
ARTIGOS
incluir todo o mundo colonial e ex-colonial, declarando que dali por diante não poderia
haver revolução burguesa bem-sucedida em nenhum país atrasado nem fase estabilizada
de desenvolvimento capitalista antes de uma revolução do proletariado. As duas principais
realizações sempre citadas como impossíveis para qualquer burguesia colonial eram o êxito
da independência nacional e uma solução para a questão agrária. A experiência histórica do
pós-guerra seria ainda mais ambígua. O exemplo da Revolução da Argélia parece contradizer
a primeira avaliação; o caso da Revolução Boliviana, a última. Um terceiro critério, não
mencionado com muita frequência, era o estabelecimento da democracia representativa
(parlamentar): trinta anos de União Indiana indicam que isso também pode ser possível.
Linhas secundárias de defesa poderiam argumentar que nenhuma ex-colônia conseguiu
preencher todos os três critérios, que a verdadeira independência, a solução da questão
agrária e a democracia nunca foram obtidas em nenhum país, em consequência do papel
que neles desempenharam o imperialismo, a usura e a corrupção. Mas qualquer ampliação
indevida dos critérios para uma revolução burguesa desse tipo ou tende a transformar em
tautologia a teoria da revolução permanente (somente o socialismo pode por denição
subtrair um país completamente do mercado mundial, ou resolver todos os problemas do
campesinato), ou exige dela credenciais que nunca teriam sido atingidas nem pelos pprios
países capitalistas avançados (que levaram séculos para alcançar a democracia burguesa, por
exemplo, com muitos retrocessos semelhantes aos da Índia contemporânea). O axioma da
revolução permanente” deve, portanto, ser considerado até agora não provado como teoria
geral. Suas diculdades poderiam talvez ter sido presumidas, na medida em que ele deriva
literalmente de um texto de Marx de 1850. Tal delidade canica a Marx dicilmente seria
garantia de precisão cientíca.
A diferença de 1974 para 1984, apenas dez anos, é gritante. Sumiram as esperanças
de Perry Anderson com o renascimento do movimento de massas revolucionário em
conexão com o trotskismo.
É fato, porém, que, em alguns países, como o Brasil, o trotskismo realmente teve
crescimento. A Convergência Socialista
9
, nos anos 1980, tinha milhares de militante
operários e jovens. Os trotskistas chegaram a ter um peso considerável na Central
Única dos Trabalhadores (CUT) e no Partido dos Trabalhadores (PT). Alcançaram
seu maior período de peso sindical, eleitoral e audiência pública entre os anos 1980 e
1990 na história brasileira. Embora esse crescimento tenha sido signicativo e tenha
ajudado a formar uma nova geração de acadêmicos marxistas com rebatimento nas
ciências humanas, a realidade é que acontece uma inexão a partir dos anos 2000, e o
trotskismo, no Brasil e no mundo, não consegue seu grande objetivo.
9 A Convergência Socialista (CS) foi uma organização trotskista brasileira, ligada à Liga Internacional
dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI), organização internacional dirigida por Nahuel
Moreno. A CS existiu no Brasil entre 1978 e 1992.
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Leon Trotsky, no seu famoso Programa de Transição, dene como o grande objetivo
da IV Internacional superar a socialdemocracia e o “stalinismo” no movimento
operário e oferecer uma saída revolucionária ao que chamava de “crise de direção.
Em canto nenhum da terra, contudo, esse objetivo foi alcançado. Se é possível dizer
que em países como Brasil e Argentina os trotskistas conseguiram superar ou ter a
mesma força que os partidos comunistas (depois do m da URSS), nunca chegaram
perto de ter a direção do movimento operário e popular – para não falar de dirigir
uma revolução.
Esse momento de crescimento relativo do trotskismo passou e, na década atual,
ele vive uma crise histórica. Essa crise é bem retratada pelo intelectual e dirigente
trotskista brasileiro Valério Arcary (2019), que diz:
Mas um tsunami de proporções inusitadas atingiu o movimento trotskista mundial nesta
década. Seis, entre as principais organizações revolucionárias que reivindicam a tradição
da Quarta Internacional, se fragmentaram pela metade e aumentou, qualitativamente, a
dispersão daqueles que compartilham o programa marxista revolucionário. O SWP inglês
se dividiu; o PSTU do Brasil se dividiu; o POI francês se dividiu; a ISO norte-americana se
dissolveu; o CWI, liderado pelo Socialist Party, que vinha da corrente Militant rompeu em
três frações; e o Partido Obrero da Argentina se dividiu.
O diagnóstico mais imediato de Arcary pode ser completado com uma reexão de
maior profundidade histórica de Vijay Prashad:
O trotskismo teve muito pouco impacto no Terceiro Mundo – exceto Sri Lanka, na Bolívia
e na Argentina, bem como entre um pequeno número de intelectuais. A denúncia do
trotskismo sobre os Estados nacionais anticoloniais (aqueles que formaram o movimento
dos não alinhados) e, em seguida, sobre a Revolução Cubana, alienou-o dos comunistas do
Terceiro Mundo. (PRASHAD, 2019, p. 96).
O trotskismo, assim como outras tendências teórico-políticas, como o
anarquismo e a socialdemocracia, se vê diante de um aparente paradoxo. Com a
crise do movimento comunista, muitos esperavam ser a sua vez de ter a direção
– ou exercê-la de forma absoluta, como a socialdemocracia – no movimento
operário e popular. Tudo podia acontecer, e, no nal, nada aconteceu em relação a
essas esperanças. A classe trabalhadora amarga uma época contrarrevolucionária
em que é possível registrar em vários países 30 anos seguidos de perdas salariais,
fechamento dos espaços democráticos, ampliação do aparato penal-burguês,
crescimento do neofascismo etc.
170
ARTIGOS
Onde ocorreu uma relativa reorganização política, teórica e sindical-partidária
da classe trabalhadora – a exemplo Venezuela, Bolívia, Equador e até certo ponto
Grécia, Espanha e Estados Unidos – o trotskismo está bem longe de ser a força
hegemônica. Muitos seguidores do Fundador do Exército Vermelho tentaram se
colar a experiências do dito “socialismo democrático, algo profundamente estranho
ao pensamento de Trotsky, para buscar maior inuência de massas. As experiências
até agora com o Syriza (Grécia), Podemos (Espanha) e os Socialistas Democráticos
da América (Estados Unidos – grupo interno do Partido Democrata), para car nos
exemplos mais signicativos, não são animadoras, para dizer o mínimo.
Ficou claro algo que muitos pensadores já tinham observado: o trotskismo se
congurou como uma tradição potica em negativo, existia por contraste e crítica ao
movimento comunista hegemonizado pelo marxismo soviético. Ser uma alternativa
interna de crítica e disputa aos rumos da URSS e posteriormente do chamado “campo
socialista” era o principal ativo dos continuadores de Trotsky. É notório, contudo, que
outras alternativas internas, como o maoísmo e o foquismo-castrismo, se apresentaram
frente ao marxismo soviético e tiveram uma audiência de massas bem maior que
os partidários da teoria da revolução permanente. Todavia, o trotskismo tinha uma
vantagem: não exercia poder, não estava sujeito às contradições de governar, e poderia
apresentar sempre uma crítica de princípios que, diante do existente, era sedutora.
Essa dinâmica de “parasitar” frente ao “campo socialista” e ao movimento
comunista, ganhando notoriedade com a perda de prestígio desses atores políticos,
foi captada anos atrás por Louis Althusser (1978, p. 56):
O que explica, diga-se de passagem, não poucos fenômenos de aparência paradoxal como,
por exemplo, 50 depois da Revolução de Outubro e 20 anos depois da Revolução Chinesa, o
fortalecimento de Organizações que subsistem há 40 anos sem terem obtido nenhuma vitória
histórica (pois, ao contrário dos “esquerdismos” atuais, elas são organizações e têm uma
teoria): as organizações trotskistas.
Esse efeito de prestígio por contraste e tradição em negativo se manteve nos anos
seguintes à contrarrevolução no Leste Europeu. Poucos marxistas podiam dizer que
nunca tiveram simpatias pela URSS, China Popular, Iugoslávia, algum país do Leste
Europeu, Coreia Popular, Albânia ou Cuba. Quando reverbera o discurso liberal de
que “Mao Zedong matou 70 milhões, por exemplo, ao contrário de muitos marxistas
que tiveram seus anos de amores com o maoísmo, os trotskistas podiam dizer: “É
verdade! E nós desde sempre denunciamos esse ‘autoritarismo. Sem dúvida, esse era
um ativo importante nos anos 90 e primeira década dos anos 2000.
Essa possibilidade de viver em negativo, porém, está acabando e, em alguns
países, está totalmente terminada. Os motivos são bem simples. Onde a luta de
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classes conhece um altíssimo grau de acirramento, como a Venezuela, a crítica ao
stalinismo” ou o repúdio ao “socialismo autoritário” do século passado não é questão
central. Para completar, Cuba, com todas as suas diculdades, se mantém como um
ponto de resistência socialista fundamental na América Latina e, frente às nossas
misérias, as “três coisas que funcionam” em Cuba – saúde, educação e segurança
(como disse um liberal) – parecem muito luminosas.
O novo papel geopolítico da China e as mudanças na sua política interna,
notadamente desde 2013 com a liderança de Xi Jinping, e o “redescobrimento” do
Vietnã, países governados por partidos que reivindicam o marxismo-leninismo,
reacendem em alguns ciclos intelectuais e políticos um novo “olhar” sobre a história e
o legado do movimento comunista. Não deixa de ser curioso que o citado historiador
Perry Anderson, tão empolgado com o trotskismo e crítico ao maoísmo em 1976,
hoje tenha uma visão muito positiva da experiência chinesa em curso
10
.
Os outros dois elementos são geracionais. Primeiro, fora dos ex-países socialistas,
temos uma geração de jovens que não sentiu o peso do Muro de Berlim caindo
nas suas costas. O XX Congresso do PCUS, a “grande fome” da China, a invasão
da Tchecoslováquia e tantos outros exemplos signicativos e traumáticos, embora
repetidos todo dia pela propaganda anticomunista, não têm impacto sentimental
e afetivo nessa nova geração (e a economia dos afetos é muito importante para
compreender essa mudança de olhar).
Outro fenômeno, também geracional e totalmente ligado ao primeiro, é que a
memória afetiva dos habitantes dos ex-países socialistas é profundamente positiva
e nostálgica (na maioria dos países). É comum em vários países termos números
próximos ou superiores de 50% do total dos ouvidos em pesquisas de opinião falando
que a vida no socialismo era melhor – ou, o que talvez seja mais signicativo, jovens
falando que acham que sua vida no socialismo seria melhor. Traz-se dois exemplos
dessa nostalgia recolhidos na mídia – o primeiro do jornal El País:
10 “Em termos taxonômicos, a RPC [China] do século XXI é um novum histórico-mundial: a
combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora uma economia
predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda
é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero.
Politicamente, os efeitos dessa contradição deixam marcas em toda a organização social, na qual eles se
fundem ou se mesclam. Nunca tantos saíram tão rapidamente da pobreza absoluta. Nunca as indústrias
modernas e infraestrutura moderníssima foram implantadas em escala tão colossal e em tão pouco
tempo; nunca também uma classe média orescente emergiu tão rapidamente junto com elas. Nunca
a hierarquia das potências foi alterada tão dramaticamente, alimentando o orgulho popular de modo
tão espontâneo” (ANDERSON, 2018, p. 68). Um complemento para car claro: Anderson não é apenas
elogios à China, mas os elogios de hoje são mais signicativos que as críticas, considerando sua trajetória
como marxista.
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ARTIGOS
Aumenta a nostalgia na Rússia pela União Soviética. O número de russos que lamentam o
colapso da URSS atingiu seu recorde na última década, de acordo com uma pesquisa do Centro
Levada. No total, 66% dos cidadãos russos se declaram “arrependidos” da sua dissolução.
No ano passado, a mesma pesquisa apontou que 58% sentiam de alguma forma saudade da
URSS. Por muitos anos o número não ultrapassou 60%. Sociólogos e analistas apontam que
a reforma do sistema de aposentadorias – que eleva a idade de se aposentar – e o medo da
instabilidade econômica estão por trás do aumento dos que sentem nostalgia de um sistema
que desmoronou há 27 anos. (SAHUQUILLO, 2018).
O segundo exemplo, uma publicação do Le Monde Diplomatique:
Pressionado em suas trincheiras, o sr. Krenz acabou por admitir um “lado bom” da ostalgia:
As pessoas do Leste conheceram duas sociedades e podem, portanto, comparar”. Elas são
17 milhões e sabem que a RDA [Alemanha Oriental] “não se resume ao Trabant ou à Stasi.
Apesar de tudo que deu errado, havia trabalho para todos, moradias baratas, um sistema
de saúde gratuito e que funcionava… Tantas conquistas de que eles sentem saudade” [...]
Quanto mais vivemos o capitalismo, mais nos perguntamos o que havia de errado com o
socialismo, resume o jornalista Wolfgang Herr. Normal, alguém irá dizer: ele escrevia no
diário comunista Neues Deutschland. Mas todos os ossis, ou quase todos, repetem: “Nem
tudo era tão mal ontem” e “nem tudo é tão bom hoje. (VIDAL; LINDEN, 2004).
Com todos e cada um dos problemas que existiam nas experiências passadas,
os trabalhadores tinham certeza de que teriam um emprego e casa, educação,
esporte, cultura e saúde para eles e suas famílias, e na velhice podiam contar com
uma aposentadoria. A sensação de ter certeza de que seu lho viveria no mínimo
nas mesmas condições que você ou melhor – e não teria risco de cair na miséria
– é poderosa frente à precariedade, pobreza, miséria e instabilidade econômica
do neoliberalismo. Longe de combinar a segurança econômica do socialismo
com o padrão de consumo do capitalismo europeu e estadunidense, o que os de
baixo receberam com a contrarrevolução de 1989-91 foi desemprego estrutural,
intensicação sempre constante dos ritmos de trabalho, velhice desamparada,
ausência de saúde, privatização da cultura, educação e oportunidades.
Essa síntese sobre a União Soviética, em contraste com o que existe hoje, é
ilustrativa:
[…] O sociólogo americano Albert Szymanski passou em revista uma série de estudos
ocidentais sobre a distribuição de rendimentos e o nível de vida soviético. Apurou que as
pessoas mais bem pagas da União Soviética eram artistas proeminentes, escritores, professores
universitários, administradores, cientistas, que auferiam quantias entre 1200 e os 1500 rublos;
os diretores empresariais entre 190 a 400 rublos mensais; os trabalhadores cerca de 150 rublos
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mensais. Consequentemente, os rendimentos mais elevados correspondiam a apenas 10
vezes o salário do trabalhador médio; ao passo que nos Estados Unidos as mais altas cheas
empresariais recebiam 115 vezes o salário de um trabalhador. Os privilégios associados a
altos cargos do Estado, como lojas especiais e automóveis ociais, permaneciam baixos e
limitados e não contrariavam uma tendência contínua de quarenta anos no sentido de um
maior igualitarismo. […] Szymanski concluiu: ‘embora a estrutura social soviética não possa
corresponder ao ideal comunista ou socialista, é ao mesmo tempo qualitativamente diferente e
mais igualiria que a dos países capitalistas ocidentais. O socialismo representou uma diferença
radical em favor da classe trabalhadora. (KEERAN; KENNY, 2008, p. 13-14, grifos nossos).
O jovem precarizado, terceirizado, desempregado, sem dinheiro para pagar a
faculdade e sem muita perspectiva de futuro, escuta seu pai/mãe ou avó/avô falando de
outra época, quando, dentre outras coisas, o emprego era garantido e as oportunidades
educacionais eram gratuitas ou de baixíssimo custo. Alguns podem falar que isso é
uma distorção política da memória ditada pelas condições conjunturais e gritar com
escândalo o quão absurdo é relativizar a Stasi, os expurgos da era stalinista ou os
tanques soviéticos entrando em Praga e na Hungria. O problema, nesse caso, é que
toda memória é uma construção política (inclusive a memória de negação total do
socialismo dos anos de 1990), e o repúdio moral não vai mudar o sentimento de
massa em vários setores dos trabalhadores e da juventude. Gostando-se ou não, o
fenômeno existe – e precisa ser mais bem estudado e compreendido.
Esse sentimento de nostalgia é alimentado pela falência da promessa neoliberal. É
importante nunca esquecer que, com o m da URSS, “campo socialista” e movimento
terceiro-mundista, na era do “Fim da História, como disse um ideólogo do império,
a democracia liberal e a economia de mercado prometeram promover liberdade,
eciência, oportunidades, crescimento econômico.
No meio desse deserto de ideias e oásis de ilusões, apareceu um George W. Bush
presidente – depois de fraudar uma eleição – proclamando a “guerra ao terror” e
destruindo um país com a maior mentira institucional do século XXI até agora
(“armas de destruição em massa no Iraque”). O liberalismo, depois de três ou quatro
décadas de reinado soberano (a temporalidade depende do país) entregou nada
próximo de um legado civilizatório. Essa situação é ainda mais dratica no antigo
Terceiro Mundo, agora chamado de Sul Global.
Esse Sul Global, ou em termos mais precisos, a periferia do sistema capitalista,
não conseguiu nenhuma superação do subdesenvolvimento, e até o grande exemplo
liberal na América Latina, o Chile, conheceu recentemente seu maior movimento
de massas em 40 anos, questionando o legado liberal pinochetista. Conuem três
fatores objetivos: piora das condições de vida na imensa maioria dos países do ex-
174
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campo socialista, falência das promessas do neoliberalismo e manutenção de todas
e cada uma das misérias da periferia do sistema capitalista – os condenados da terra
continuam condenados.
É nessa situação sociopolítica que a obra losurdiana ganha força e impacto social.
Mas por que Losurdo e não outro autor causa todo esse barulho? É bem simples. O
lósofo italiano, como falamos, busca pensar uma contra-história da modernidade,
destacando a questão colonial como central.
Muitos setores do marxismo, profundamente eurocêntricos, não podem aceitar
essa contra-história. Como falamos acima ao citar Vijay Prashad, o trotskismo passou
ao largo de qualquer protagonismo nas guerras de libertação nacional e revoluções
socialistas na periferia. Os liberais também não podem permitir esse debate sobre
a questão colonial. Com a questão colonial – e acrescento: racial – em jogo, ca
impossível, por exemplo, sustentar o mito do totalitarismo e ocultar a ligação de
continuidade entre liberalismo e nazifascismo. É sempre importante lembrar uma
clássica reexão de Aimé Césaire sobre Ocidente e nazifascismo (que Losurdo dá
continuidade e adensa):
Sim, valeria a pena estudar, clinicamente, em detalhes, os passos de um Hitler
e do hitlerismo e revelar ao burguês muito distinto, muito humanista e muito
cristão do século XX que ele carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler
vive nele, que Hitler é seu demônio, que ele o vitupera, é por falta de lógica e,
no fundo, o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o
homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, é
a humilhação do homem branco, é de haver aplicado à Europa os procedimentos
colonialistas que atingiram até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da
Índia e os negros da África. (CÉSAIRE, 2020 [1950], p. 18).
Combinado a isso, Losurdo é o autor, como também já dito, da contra-história
do liberalismo. Poucos autores, mesmo no marxismo, são capazes de desenvolver
uma crítica ao liberalismo como o italiano. E desse pensamento também emerge –
friso esse ponto – um novo balanço crítico das experiências socialistas. Para quem
se sustenta armando uma negativa total das experiências socialistas, reivindicando
e defendendo no máximo a Comuna de Paris e os primeiros cinco ou seis anos da
Revolução Russa, esse novo balanço é disfuncional para sua legitimidade política.
Essa disfuncionalidade se explica pelo “culto da derrota. Chamo de culto da
derrota a visão cultural, histórica e política que predica que todas as experiências
históricas de construção do socialismo são uma tragédia, que o marxismo continua
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sendo o caminho, porém um caminho não contaminado por essas experiências. O
culto da derrota em sua dimensão total gera como subproduto um autoelogio. É como
se o sujeito falasse, “sim, Cuba, China, Coreia, URSS, Iugoslávia e ans foram uma
tragédia, mas eu não tenho nada com isso; o meu marxismo é limpo. É bem estranho
que uma “losoa da práxis” – como Antonio Gramsci chamava o marxismo – tenha
como um dos seus principais ativos nunca ter se “contaminado” pela práxis de tentar
construir o socialismo.
Nesse ponto, certo marxismo e o liberalismo – de esquerda ou de direita – se
unem, ainda que por formas diferentes. Para ambos, por questão de legitimidade
histórica e política, connar a história do movimento comunista e do socialismo a
um grande gulag, a uma espécie de terror stalinista perpétuo, é questão de vida ou
morte. O abismo, no caso dos marxistas, entre a defesa do socialismo na teoria e a
negação total de suas tentativas de materialização histórica (note que crítica é bem
diferente de negação total) é preenchido com esse culto da derrota que pensa mais ou
menos assim: “perdemos e que bom que perdemos! Mas na próxima vamos ganhar!”.
Aqui vale citar uma crítica de Leon Trotsky aos seus seguidores, que, já nos anos de
1930, manifestavam esse tipo de pensamento:
Uma forma de pensar “puramente” normativa, idealista e ultimatista quer construir o mundo
à sua imagem e desfazer-se simplesmente dos fenômenos de que não gosta. Só os sectários,
quer dizer, a gente que é revolucionária só na sua própria imaginação, se deixa guiar por
puras normas ideais. Dizem: não gostamos destes sindicatos, não os defendemos. E cada vez
prometem voltar a começar a história a partir do zero. Edicação, isso sim, um Estado operário
quando o bom deus lhes ponha entre as mãos um partido ideal e sindicatos ideais. Esperando
este feliz momento, fazem todos os trejeitos que podem frente à realidade. Um vigoroso trejeito
é a mais alta expressão do “revolucionário” sectário. (TROTSKY, 2009 [1937], grifos nossos).
Losurdo não defendia recomeçar a história do zero, mas entender os motivos
da derrota. Compreendendo que derrota não signica anular todas as experiências
históricas acumuladas e deixar de se orgulhar das vitórias que tivemos pelo caminho.
Em nossa época, quando todas as forças do espectro político, de uma forma ou de
outra, parasitam em torno do anticomunismo, era óbvio que não poderia ser permitido
um herege questionar esse dogma. Mais uma vez citando o lósofo Alain Badiou,
Não tenho um conhecimento amplo e preciso da sua obra, mas em todo o caso, penso que é
um verdadeiro historiador progressista, capaz de descrever e julgar as situações de uma forma
ao mesmo tempo documentada, materialista e ousando ir contra a corrente. O comunismo
tem sido, desde a contra-revolução das décadas de 1980 e 1990, objeto de uma ofensiva
ideológica massiva, apoiada em agrantes mentiras históricas, e de uma identicação com o
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ARTIGOS
fascismo que, embora seja totalmente absurda, se tornou um lugar-comum. Losurdo merece
imenso crédito por nos dar novas maneiras de lidar com a equação “Stalin = Hitler” pelo que
ela é: uma peça enganosa e importante da máquina da ideologia dominante contemporânea.
(BADIOU, 2021).
Conclusão
Este breve debate sobre a questão Stálin na obra de Domenico Losurdo não pretende
esgotar o tema. Buscamos mostrar como resumir a obra de Losurdo a uma espécie
de “neostalinismo” ou “reabilitação de Stálin” é uma pura falácia para, como diz o
ditado popular, matar o carteiro evitando de ler a carta. Aliado a isso, abordagens
mais respeitosas e equilibradas tendem a elogiar o conjunto da obra losurdiana, mas
desprezar o livro Stálin, história crítica de uma lenda negra.
Como procuramos mostrar no decorrer deste ensaio, a obra de Losurdo
debatendo o líder soviético não é um raio em céu azul, um ponto fora da curva, mas
uma consequência necessária dos debates sobre a questão colonial na modernidade,
contra-história do liberalismo e reavaliação das experiências socialistas no século XX.
Por óbvio, ninguém é obrigado a ter as mesmas conclusões que o pensador italiano
sobre o “stalinismo, mas é incontornável, para quem leve a sério esses debates, um
novo balanço sobre a questão Stálin fora dos paradigmas construídos durante a
Guerra Fria.
Que este escrito seja uma modesta contribuição ao debate e ao esforço coletivo
de reexão sobre o legado de Domenico Losurdo, assim como à reconstrução da
memória histórica do movimento comunista. Losurdo dizia que a burguesia não
apenas expropria o mais-valor, como também o passado das classes trabalhadoras.
É nesse espírito que devemos fazer o debate teórico e político: lutar para tomar de
volta o nosso passado como parte do processo de conquista do poder e dos meios de
produção.
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