Reoriente • vol.1, n.2 jul/dez 2021 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v1i2p154-176
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que Antônio Gramsci foi um dos maiores “stalinistas” do século XX, já que ele tratava
a Trotsky nestes termos:
Neste caso, seria possível dizer que Bronstein [Trotski], que aparece como um “ocidentalista”,
era, ao contrário, um cosmopolita, isto é, supercialmente nacional e supercialmente
ocidentalista ou europeu. Em vez disso, Ilitch [Lenin] era profundamente nacional e
profundamente europeu. Bronstein recorda, em suas memórias, terem-lhe dito que sua
teoria se revelara boa... Quinze anos depois, e responde ao epigrama com outro epigrama.
Na realidade, sua teoria, como tal, não era boa nem quinze anos antes nem quinze anos depois:
como sucede com os obstinados, dos quais fala Guicciardini, ele adivinhou no atacado, isto
é, teve razão na previsão prática mais geral; como se se previsse que uma menina de quatro
anos irá se tornar mãe e, quando isto ocorre, vinte anos depois, se diz: “adivinhei”, mas sem
recordar que, quando a menina tinha quatro anos, se tentara estuprá-la, na certeza de que se
tornaria mãe. (GRAMSCI, 2017, p. 265, grifos nossos).
A preocupação de Domenico de repensar o balanço do século XX, combater a
ideologia liberal, erodir a imagem do socialismo histórico como um cardápio de
crimes e desconstruir o autoelogio da burguesia é manifesta por vários intelectuais
de corte político-ideológico bem diferente. Não poucos, inclusive, reclamam que
o mesmo tratamento teórico-metodológico que a esquerda marxista dedica à
experiência jacobiana e a seus protagonistas, como Maximilien de Robespierre, seja
oferecido às experiências do século XX. Luciano Canfora, prestigiado historiador
italiano que consta como posfácio do livro de Losurdo sobre Stálin, defende esse
procedimento
7
. Postura semelhante pode ser indicada nas reexões do comunista
português Francisco Martins Rodrigues
8.
O lósofo francês Jean Salem, falecido em 2018, ao traçar um balanço do movimento
comunista na França e no mundo e como esse movimento foi criminalizado pela
7 “Molotov lembra que Stalin lhe dissera uma vez: quando eu morrer jogarão lixo sobre a minha tumba,
mas depois entenderão. A acusação quase judiciária que pesa sobre Stálin é de ter ceifado vidas humanas
demais. Essa medida de avaliação, que já durante todo o século XIX acompanhou e distorceu os vaivéns
(muito semelhantes aos atuais) da historiograa sobre a Revolução Francesa, foi por m manchado com
as monstruosidades do chamado Livro Negro de Courtois e companheiros: um livro que inclui entre as
‘vítimas de Stalin’, também os milhões de mortos na Guerra mundial ou entre as ‘vítimas do comunismo’
as innitas vítimas da UNITA em Angola. Depois daquele monstruoso pamphlet é difícil levar a reexão
para um plano decente; nem basta o rápido desmantelamento que se produziu depois daqueles números
de causar vertigem. O nexo entre a Revolução e Terror é o duro problema: ele começa com Robespirre,
não com Lenin, e ainda está aberto” (CÂNFORA, 2010, p. 339-340).
8 “As responsabilidades de Mao perante a revolução chinesa (tal como as de Stalin perante a revolução
russa) são pesadas. Mas isto não nos leva a misturar a avaliação dessas responsabilidades com a infantil
negação dos seus méritos na fase revolucionária da sua vida; muito menos com a estúpida negação de
uma das mais gigantescas revoluções de todos os tempos” (RODRIGUES, 1989).