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O subimperialismo no Oriente Médio
Claudio Katz*
Resumo: Três países da região atendem às características do subimperialismo: Turquia, Arábia Saudita
e Israel. São economias intermediárias que implementam ações militares e relações contraditórias com
os Estados Unidos. São países que não são substitutos dos atores globais e têm raízes de longa data.
O conceito se aplica à Turquia, esclarece seu expansionismo externo, as ambiguidades em relação a
Washington e o autoritarismo de Erdogan. Lança luz sobre as aventuras externas da Turquia e a
perseguição aos curdos. O rentismo, as aventuras bélicas e as ambições dos monarcas estão levando
a Arábia Saudita ao subimperialismo. Mas a teocracia encuba reações internas explosivas e enfrenta
resultados militares adversos. A eventual reconstituição do status subimperial do Irã se combina com
um novo tom defensivo de tensões com os Estados Unidos. As disputas entre subimpérios mudam o
status de todos os competidores.
Palavras-chave: Subimperialismo. Oriente Médio. Turquia. Arábia Saudita. Irã.
Abstract: ree countries in the region meet the characteristics of sub-imperialism. ey are intermediate
economies that deploy military actions and adversarial relations with the United States. ey are not
substitutes for global actors and have long-standing roots. e concept applies to Turkey. It sheds
light on its external expansionism, ambiguities toward Washington, and Erdogans authoritarianism.
It also sheds light on Turkey’s external adventures and persecution of the Kurds. Rent hoarding, war
adventures, and monarch ambitions are driving Saudi Arabia into sub-imperialism. But the theocracy
incubates explosive internal reactions and faces adverse military outcomes. e eventual reconstitution
of Irans sub-imperial status matches a new defensive tone of tensions with the US. Disputes between
sub-empires change the status of all competitors.
Keywords: Subimperialism. Middle East. Turkey. Saudi Arabian. Iran.
Resúmen: Tres países de la región reúnen las características del subimperialismo. Son economías
intermedias que implementan acciones militares y relaciones contradictorias con Estados Unidos. No
sustituyen a los jugadores globales y tienen raíces de larga data. El concepto se aplica a Turquía. Aclara
su expansionismo externo, las ambigüedades hacia Washington y el autoritarismo de Erdogan. También
arroja luz sobre las aventuras exteriores de Turquía y la persecución de los kurdos. La acumulación
de rentas, las aventuras bélicas y las ambiciones de los monarcas están empujando a Arabia Saudí al
subimperialismo. Pero la teocracia alberga reacciones internas explosivas y enfrenta resultados militares
adversos. La eventual reconstitución del estatus subimperial de Irán coincide con un nuevo tono
defensivo de las tensiones con Estados Unidos. Las disputas entre subimperios cambian el estatus de
todos los competidores.
Palabras-clave: Subimperialismo. Oriente Médio. Turquía. Arábia Saudita. Irán.
* Professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) e pesquisador do Conselho Nacional de Ciência
e Tecnologia (CONICET). Seu livro A Teoria da dependência 50 anos depois foi publicado pela Ex-
pressão Popular (2020).
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Turquia, Arábia Saudita e Irã estão competindo pela primazia em um novo contexto
de destaque regional das tensões do Oriente Médio. Essa gravitação é registrada por
muitos analistas, mas a conceituação desse papel requer o recurso a uma noção intro-
duzida pelos teóricos marxistas da dependência.
O subimperialismo aplica-se a esses casos e contribui para esclarecer a peculiar
intervenção desses países no cenário traumático da região. A categoria é relevante e
comum em vários níveis, mas também tem três signicados muito singulares.
Características e singularidades
O subimperialismo é uma forma paralela e secundária do imperialismo contempo-
râneo. Ela se encontra em potências médias que mantêm uma distância signicativa
dos centros do poder mundial. Esses países desenvolvem relações contraditórias de
convergência e tensão com as forças hegemônicas da geopolítica global, e Turquia,
Arábia Saudita e Irã se encaixam nesse perl.
Os subimpérios surgiram no período pós-guerra com a extinção massiva das
colônias e a crescente transformação das semicolônias. A ascensão das burguesias
nacionais nos países capitalistas dependentes mudou substancialmente o status
dessas congurações.
No segmento superior da periferia, irrompem modalidades subimperiais, em sin-
tonia com o processo contraditório de persistência global da lacuna centro-periferia
e a consolidação de certos segmentos intermediários. O principal teórico dessa mu-
tação descreveu as principais características do novo modelo nos anos 1960, obser-
vando a dinâmica do Brasil (MARINI, 1973).
O pensador latino-americano situou o surgimento dos subimpérios em um con-
texto internacional marcado pela supremacia dos Estados Unidos, em tensão com o
chamado bloco socialista. Ele destacou o alinhamento dessas formações com o pri-
meiro poder na Guerra Fria contra a URSS. Mas ele também enfatizou que os go-
vernantes desses países reivindicaram seus próprios interesses. Eles desenvolveram
cursos de ação autônomos e às vezes conitantes com o comandante americano.
Essa relação de parceria internacional e poder regional próprio se consolidou como
uma característica posterior do subimperialismo. Os regimes que adotam esse perl
têm laços conitantes com Washington. Por um lado, eles assumem posições intima-
mente interligadas, ao mesmo tempo em que exigem um tratamento respeitoso.
Essa dinâmica de subordinação e conito com os Estados Unidos acontece com
uma velocidade imprevisível. Regimes que pareciam ser marionetes do Pentágono
embarcam em atos fraccionários de autonomia, e países que agiram com grande in-
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dependência se submetem a ordens da Casa Branca. Essa oscilação é uma caracterís-
tica do subimperialismo, que contrasta com a estabilidade prevalecente nos impérios
centrais e suas variedades alterimperiais.
Potências regionais que adotam um perl subimperial recorrem ao uso da força
militar. Eles utilizam esse arsenal para fortalecer os interesses das classes capitalistas
em seus países, dentro de um raio de inuência limitado. Ações bélicas têm como
objetivo disputar a liderança regional com concorrentes do mesmo tamanho.
Os subimpérios não atuam na ordem planetária e não compartilham as ambições
de domínio global de seus parentes maiores. Eles restringem sua esfera de ação à es-
fera regional, estritamente em sintonia com a inuência limitada dos países de médio
porte. O interesse em mercados e lucros é o principal motor das políticas expansio-
nistas e das incursões militares.
A gravitação realizada nas últimas décadas pelas economias intermediárias expli-
ca esse correlato subimperial, que não existia na era clássica do imperialismo no iní-
cio do século XX. Foi somente no período posterior do pós-guerra que essa inuên-
cia das potências médias veio à tona, e se tornou ainda mais signicativa atualmente.
No Oriente Médio, a rivalidade geopolítico-militar entre os atores da própria re-
gião tem sido precedida por algum desenvolvimento econômico desses atores. A era
neoliberal acentuou a predominância internacional do petróleo, a desigualdade so-
cial, a precarização e o desemprego em toda a região. Mas também consolidou várias
classes capitalistas locais, que operam com maiores recursos e não disfarçam seus
apetites para obter maiores lucros.
Esse interesse pelo lucro impulsiona a engrenagem subimperial de países igual-
mente situados no meio da divisão internacional do trabalho. Turquia, Arábia Saudita
e Irã estão rondando essa inserção, sem se aproximar do clube das potências centrais.
Eles compartilham a mesma localização global que outras economias interme-
diárias, mas complementam sua presença nessa esfera com poderosas incursões mi-
litares. Essa extensão das rivalidades econômicas para o reino da guerra é um fator
determinante em sua especicidade subimperial (KATZ, 2018).
Atualidade e raízes
O subimperialismo é uma noção útil para registrar o substrato da rivalidade econô-
mica que está por trás de muitos conitos no Oriente Médio. Ela permite que esse
interesse de classe seja notado, ao contrário de diagnósticos centrados em disputas
pela primazia de alguma vertente do Islã. Tais interpretações em termos religiosos
obstruem o esclarecimento da real motivação por trás dos conitos crescentes.
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Os negócios em disputa entre Turquia, Arábia Saudita e Irã explicam o caráter úni-
co do subimperialismo nesses países. Em todos os três casos, governos belicosos no
comando de Estados dirigidos por burocracias militarizadas estão em ação. Todos uti-
lizam credos religiosos para fortalecer seu poder e capturar maiores quotas de recursos
em disputa. Os subimpérios têm procurado, na Síria, conquistar os espólios gerados
pela destruição de território, e a mesma competição está ocorrendo na Líbia pela par-
tilha do petróleo. Lá, eles estão engajados nas mesmas lutas que as grandes potências.
No nível geopolítico, os subimpérios da Turquia e da Arábia Saudita estão em sin-
tonia com Washington, mas não participam das decisões da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN) nem das denições do Pentágono. Eles se distinguem da
Europa no primeiro terreno e de Israel no segundo, e não estão envolvidos na deter-
minação da batalha que o imperialismo americano está travando para recuperar a
hegemonia diante do desao da China e da Rússia. Sua ação é restrita à órbita regio-
nal. Eles mantêm relações contraditórias com o poder dos Estados Unidos (EUA) e
não aspiram a substituir os grandes dominadores do planeta.
Mas sua intervenção regional é muito mais relevante do que a de seus pares em
outras partes do mundo. Ações subimperiais da mesma magnitude não são vistas na
América Latina ou na África. O subimperialismo no Oriente Médio está ligado às
antigas raízes históricas dos impérios otomano e persa. Tal conexão com fundações
de longa data não é muito comum no resto da periferia.
As rivalidades entre os poderes incluem, nesse caso, uma lógica que remete à an-
tiga competição entre dois grandes impérios pré-capitalistas. Não é apenas a animo-
sidade entre otomanos e persas que remonta ao século XVI. As tensões deste último
conglomerado com os sauditas (xiitas versus wahhabitas) também têm uma longa
história de batalhas pela supremacia regional (ARMANIAN, 2019).
Essas grandes potências locais não foram diluídas na era moderna. Tanto o impé-
rio otomano quanto o persa se mantiveram no século XIX, impedindo que o Oriente
Médio fosse simplesmente tomado (como a África) pelos colonialistas europeus. O
desmoronamento Otomano no início do século seguinte deu origem a um Estado
turco que perdeu sua antiga primazia, mas renovou sua consistência nacional. Não
foi relegado ao status meramente semicolonial.
Durante a República Kemalista, a Turquia sustentou um desenvolvimento indus-
trial próprio, que não teve o sucesso do bismarquismo alemão ou seu equivalente ja-
ponês, mas moldou a classe capitalista média que dirige o país (HARRIS, 2016). Um
processo similar de consolidação burguesa ocorreu sob a monarquia Pahlavi no Irã.
Ambos os regimes participaram ativamente da Guerra Fria contra a União das Re-
públicas Socialistas Soviéticas (URSS) para defender seus interesses na fronteira contra
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o gigante russo. Eles hospedaram bases americanas e seguiram o roteiro da OTAN,
mas reforçaram seus pprios arranjos militares. O subimperialismo, portanto, carrega
fundações antigas em ambos os países e não é uma improvisação do cenário atual.
Esse conceito fornece um critério para entender os conitos em curso, superando
a vaga noção de “choques entre impérios, que não distingue os atores globais de
seus equivalentes regionais. Os subimpérios mantêm uma diferença qualitativa
com seus pares maiores que vai além da simples lacuna de escala. Eles adotam
papéis e desempenham funções muito diferentes das do imperialismo dominante
e de seus associados.
Eles também entram em conito uns com os outros em deslocamentos de ali-
nhamentos externos e em conitos de enorme intensidade. Devido à magnitude
desses confrontos, alguns analistas registraram a presença de uma nova “guerra fria
inter-árabe” (CONDE, 2018). Mas cada um dos três casos atuais apresenta caracte-
rísticas muito especícas.
O protótipo turco
A Turquia é o principal expoente do subimperialismo na região. Vários marxistas
discutiram esse status em polêmicas com o contraste do diagnóstico semicolonial
(GÜMÜŞ, 2019). Eles enfatizaram os sinais de autonomia do país, ao contrário da
opinião de que ele é fortemente dependente dos Estados Unidos.
Esse debate destacou corretamente a obsolescência do conceito de semicolônia.
Esse status foi uma característica do início do século XX que perdeu peso com a sub-
sequente onda de independência nacional. A partir de então, a sujeição econômica
ganhou preeminência sobre a dominação explicitamente política.
A despossessão sofrida pela periferia nas últimas décadas não alterou esse novo
padrão introduzido pela descolonização. A dependência assume outras modalidades
na era atual, e a noção de semicolônia é inadequada para caracterizar economias
médias ou países com uma longa tradição de autonomia política, como a Turquia.
O status subimperial da Turquia se reete em sua política regional de expansão
externa e em seu relacionamento contradirio com os Estados Unidos. A Turquia
é de fato um elo da OTAN e abriga um monumental arsenal nuclear sob a custódia
do Pentágono na base İncirlik. As bombas armazenadas nessa instalação tornariam
possível destruir todas as regiões vizinhas (TUĞAL, 2021).
Mas Ancara realiza muitas ações por conta ppria sem consultar o guardião ame-
ricano. Adquire armas russas, discorda da Europa, envia tropas a vários países sem
consulta e compete com Washington em muitas negociações comerciais.
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O papel da Turquia como potência autônoma foi, de fato, reconhecido pelos
Estados Unidos como uma peça do xadrez regional. Vários líderes da Casa Bran-
ca toleraram as aventuras de Ancara sem vetá-las. Eles fecharam os olhos para a
anexação do norte do Chipre em 1974 e permitiram a perseguição de minorias
entre 1980 e 1983.
A Turquia não desaa o governante americano, mas aproveita as derrotas de
Washington para intensicar suas pprias ações. Erdogan fez várias alianças com
rivais americanos (Rússia e Irã) para impedir a criação de um Estado curdo.
As oscilações do presidente ilustram o típico comportamento subimperial. Há
uma década, ele inaugurou um projeto de islamismo neoliberal ligado à OTAN e des-
tinado a se conectar com a União Europeia. Esse curso foi apresentado por Washin-
gton como um modelo para a modernização do Oriente Médio. Mas nos últimos
anos, os porta-vozes do Departamento de Estado mudaram drasticamente de tom.
Eles passaram de elogios a críticas e, em vez de elogiar um regime político simpático,
começaram a denunciar uma tirania hostil.
Essa mudança na classicação de seu polêmico parceiro nos EUA foi acompanha-
da pelas próprias oscilações da Turquia. Erdogan manteve sua política externa em
equilíbrio enquanto gerenciava as tensões internas com certa facilidade. Mas ele foi
desviado por operações além de suas fronteiras quando perdeu o controle do curso
local. O gatilho foi a onda democratizadora da Primavera Árabe, a revolta curda e o
surgimento de forças progressistas.
Erdogan respondeu com violência contrarrevolucionária ao desao da rua (2013),
às vitórias dos curdos e ao avanço da esquerda (2015). Ele optou por um autoritaris-
mo virulento e repressivo, uniu forças com variantes seculares reacionárias e lançou
uma contraofensiva com bandeiras nacionalistas (USLU, 2020). Sob essa bandeira,
ele persegue adversários, prende ativistas e dirige um regime que é pximo a uma
ditadura civil (BARCHARD, 2018). Seu comportamento se enquadra no perl auto-
ritário que prevalece em todo o Oriente Médio.
Em poucos anos, transformou seu islamismo neoliberal inicial em um regime de
direita ameaçador, o que minou a oposição burguesa. As classes dirigentes nalmente
endossaram um presidente que deslocou a antiga elite secular kemaliana e excluiu do
poder os setores mais pró-americanos.
Aventuras externas, autoritarismo interno
Erdogan optou por um curso pró-ditatorial após a experiência fracassada de seu co-
lega Morsi. O projeto islâmico conservador da Irmandade Muçulmana foi demolido
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no Egito pelo golpe militar de Sisi. Para evitar um destino semelhante, o presidente
turco reativou as operações militares externas.
Esse curso militarista também inclui um perl ideológico mais autônomo do
Ocidente. Os discursos ociais exaltam a indústria nacional e pedem a expansão do
comércio multilateral a m de consolidar a independência da Turquia. Tal retórica é
intensamente utilizada para denunciar as posições “antipatrióticas” da oposição. Sem
abandonar a OTAN ou questionar os EUA, Erdogan se distanciou da Casa Branca.
Essa autonomia levou a sérios conitos com Washington. A Turquia estabeleceu
um “cinto de segurança” com o Iraque, fortaleceu sua presença de tropas na Síria,
enviou tropas para o Azerbaijão e está testando alianças com o Talibã no Afeganistão.
Essas aventuras – parcialmente nanciadas pelo Catar e pagas com recursos prove-
nientes de Trípoli – são até agora de escopo limitado. São operações de baixo custo
econômico e alto benefício político. Elas distraem a atenção doméstica e justicam a
repressão, mas desestabilizam a relação com os EUA.
Erdogan reforça o protagonismo das forças armadas, que desde 1920 têm sido
o principal instrumento da modernização autoritária do país. O subimperialismo
turco está enraizado nessa tradição belicista, que padronizou coercivamente a nação
através da imposição de uma religião, uma língua e uma bandeira. Essas bandeiras
estão agora sendo retomadas a m de expandir a presença externa e conquistar os
mercados vizinhos. Uma variante mais selvagem desse nacionalismo foi usada no
passado para exterminar os armênios, expulsar os gregos e forçar a assimilação lin-
guística dos curdos.
O presidente da Turquia preserva esse legado no novo formato da direita islâmica.
Ele incentiva os sonhos expansionistas e exporta contradições internas com tropas
no exterior. Mas ele age em nome dos grupos capitalistas que controlam as novas in-
dústrias de exportação de médio porte. Essas fábricas localizadas nas províncias têm
impulsionado o crescimento das últimas três décadas.
Como a Turquia importa a maior parte de seu combustível e exporta manufatu-
ras, a geopolítica subimperial procura sustentar o desenvolvimento da indústria. A
agressividade de Ancara no norte do Iraque, no Mediterrâneo oriental e no Cáucaso
está em sintonia com o apetite da burguesia industrial islâmica por novos mercados.
A prioridade de Erdogan é esmagar os curdos. É por isso que ele procurou mi-
nar todas as tentativas de consagrar o estabelecimento de uma zona controlada por
curdos na Síria. Ele tentou várias ofensivas militares para destruir esse enclave, mas
acabou endossando o status quo de uma fronteira invadida por refugiados.
Erdogan não conseguiu impedir a autonomia concedida pelo governo sírio às or-
ganizações curdas (PYP-UPP). Essas forças conseguiram repelir o cerco de Kobanî
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em 2014-2015, derrotaram as gangues jihadistas e raticaram seus sucessos em Roja-
va. E o presidente turco não está em condições de digerir esses resultados.
A estratégia americana de apoiar parcialmente os curdos – para criar instalações
do Pentágono em seus territórios – acentuou o distanciamento de Ancara de Washin-
gton. O uso dos curdos pelo Departamento de Estado como moeda de troca com o
presidente rebelde mudou drasticamente. Obama apoiou a minoria, Trump retirou o
apoio sem os cortar, e Biden ainda tem que denir sua linha de intervenção. Mas, em
todos os cenários, Erdogan deixou claro que não aceita o papel de satélite subservien-
te a ele atribuído pela Casa Branca.
As tensões entre os dois governos se aprofundaram sobre os interesses concorren-
tes na divisão da Líbia. Para piorar a situação, Erdogan desaou o Departamento de
Estado com a compra de mísseis russos, o que levou ao cancelamento de investimen-
tos estadunidenses.
O clímax do conito foi o fracasso do golpe de Estado em 2016. Washington emi-
tiu vários sinais de aprovação para uma revolta que eclodiu em áreas pximas às
bases da OTAN. Essa conspiração foi patrocinada por um pastor refugiado nos EUA
(Gulen), que lidera o setor mais ocidentalista do establishment turco. Erdogan dis-
pensou imediatamente todos os ociais militares simticos a esse setor. O golpe
falhado indicou até que ponto os EUA aspiram a impor um governo fantoche na Tur-
quia (PETRAS, 2017). Em resposta, Erdogan rearmou sua resistência à obediência
exigida pela Casa Branca.
Ambivalências e rivais
O subimperialismo turco equilibra a permanência na OTAN com as aproximações
com a Rússia. É por isso que Erdogan começou seu mandato como um aliado próxi-
mo dos EUA e depois se moveu na direção oposta (HEARST, 2020).
Na guerra síria, ela estava em desacordo com a Rússia e sofreu um grande cho-
que quando abateu uma aeronave militar russa. Mas, posteriormente, retomou as
relações com Moscou e aumentou as compras de armas (CALVO, 2019). Também
se distanciou dos principais peões da OTAN (Bulgária, Romênia) e negociou um
oleoduto submarino para exportar combustível russo para a Europa sem passar pela
Ucrânia (TurkStream).
Putin está bem ciente da falta de conabilidade de um líder que treina as forças
azerbaijanas em conito com a Rússia. Ele não esquece que a Turquia é membro da
OTAN e abriga o maior arsenal nuclear pximo à Rússia. Mas ele está apostando em
negociar com Ancara a dissuasão de uma frota permanente dos EUA no Mar Negro.
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As tensões com a Europa são igualmente signicativas. Erdogan faz pressão sobre
Bruxelas por montantes milionários em troca de manter refugiados sírios em suas
próprias fronteiras. Ele está sempre ameaçando inundar o Velho Continente com
essa massa de desabrigados se a Europa levantar o tom de seu questionamento ao
governo turco ou reter fundos para o apoio a essa maré humana.
A nível regional, a Turquia enfrenta sobretudo a Arábia Saudita. Os dois países
ostentam bandeiras islâmicas divergentes dentro do próprio conglomerado sunita.
Erdogan difundiu um perl do islamismo liberal em contraste com a severidade do
wahhabismo saudita, mas não foi capaz de sustentar essa imagem devido ao compor-
tamento feroz de seus próprios agentes.
Os conitos com a Arábia Saudita estão concentrados no Catar, que é o único
emirado do Golfo aliado à Turquia. A monarquia saudita tentou enquadrar esse mi-
niestado fraccionário com várias tramas, mas não conseguiu repetir a bem-sucedi-
da conspiração que destronou Morsi no Cairo, e enterrar a principal participação
geopolítica de Ancara na região.
O outro rival estratégico da Turquia é o Irã. Nesse caso, a disputa envolve um
contraponto de adesões religiosas diferenciadas entre as vertentes sunitas e xiitas
do islamismo. O confronto entre os dois escalou no Iraque, com a frustrada ex-
pectativa da Turquia de conquistar uma área relacionada naquele território. Essa
afirmação colidiu com a primazia contínua dos setores pró-iranianos. Erdogan
faz valer igualmente sua presença, através das tropas estacionadas na fronteira,
para subjugar os curdos.
O vai e vem tem sido a tônica do subimperialismo turco. Essas oscilações eram
mais visíveis na Síria. Erdogan tentou primeiro derrubar seu antigo concorrente As-
sad, mas enfrentou uma mudança abrupta para sustentar aquele governo quando viu
a perspectiva perigosa de um Estado curdo.
Ancara primeiro abrigou o Exército Livre da Síria para criar um regime em Da-
masco e depois entrou em conito com os jihadistas, enviados pela Arábia Saudita
para o mesmo m. Finalmente, criou uma zona tampão na fronteira síria para usar
os refugiados como moeda de troca, enquanto treinava seus próprios criminosos.
Em outras áreas, a Turquia tece o mesmo tipo de alianças contraditórias. Na Lí-
bia, ela se aliou à facção Sarraj contra Haar, em uma coalizão com o Catar e a Itália
contra a Arábia Saudita, a Rússia e a França. Enviou paramilitares e fragatas para
conseguir uma fatia maior dos contratos de petróleo e decidiu estabelecer uma base
militar em Trípoli para disputar sua participação no gás do Mediterrâneo. Com o
mesmo objetivo, está fortalecendo sua presença na parte do Chipre sob sua inuência
e disputando esses campos com Israel, Grécia, Egito e França.
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Os avanços subimperiais da Turquia também estão sendo vistos em áreas mais
remotas, como o Azerbaijão, onde Ancara restabeleceu laços com minorias étnicas
turcas. Ela forneceu armas para a dinastia Aliyev em Baku e escorou os territórios
conquistados no ano passado nos conitos do Nagorno-Karabakh. O almejado ex-
pansionismo otomano está ganhando força mesmo em regiões mais remotas. A Tur-
quia treinou o exército somali, enviou um contingente para o Afeganistão e expandiu
sua presença no Sudão.
Mas Ancara tem pouco espaço para jogar tais jogos geopolíticos. No máximo, ela
pode tentar manter sua autonomia na remodelação do Oriente Médio. Sua oscilação
habitual expressa uma combinação de arrogância e impotência, decorrente da fragi-
lidade econômica do país.
As ambições militaristas externas exigiriam uma força produtiva que a Turquia
não possui. Os grandes passivos nanceiros do país coexistem com um décit comer-
cial e desequilíbrio scal que provocam convulsões periódicas na moeda e na bolsa
de valores (ROBERTS, 2018). Essa inconsistência econômica, por sua vez, recria a
divisão entre os setores atlantistas e eurasiáticos das classes dominantes, que privile-
giam os negócios em áreas geográcas opostas.
Erdogan tentou unicar essa diversidade de interesses, mas alcançou apenas um
equilíbrio transirio. Ele impôs uma certa reconciliação entre as elites seculares da
grande burguesia e o capitalismo crescente do interior e conseguiu moderar os dese-
quilíbrios estruturais da economia turca, mas está longe de ser capaz de corrigi-los.
Erdogan comanda um subimpério economicamente fraco para as ambições geopo-
líticas que ele encoraja. É por isso que está conduzindo aventuras com recuos abrup-
tos, enredos e cambalhotas.
O potencial modelo saudita
A Arábia Saudita não tem antecedentes subimperiais, mas está caminhando para tal
conguração. Tem sido um pilar tradicional do domínio americano no Oriente Mé-
dio, mas a acumulação de renda, as aventuras belicistas e as rivalidades com a Tur-
quia e o Irã estão empurrando o reino em direção a esse clube conturbado.
Esse curso introduz muito barulho na relação privilegiada da monarquia wahha-
bita com o Pentágono. A Arábia Saudita é o maior importador de armas do mundo
(12% do total) e gasta 8,8% de seu produto interno bruto (PIB) em defesa. Os Estados
Unidos colocam 52% de suas exportações militares totais na região e fornecem 68%
das compras sauditas. Cada contrato assinado entre os dois países tem um correlato
direto no investimento nos EUA. A monarquia wahhabita fornece apoio estratégico
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para a supremacia nanceira da moeda americana.
Devido à sua gravitação decisiva, todos os líderes da Casa Branca procuraram
harmonizar o impacto do lobby sionista com seu equivalente saudita. Trump alcan-
çou um ponto de equilíbrio máximo ao aproximar os dois países do eventual estabe-
lecimento de relações diplomáticas (ALEXANDER, 2018).
O envolvimento dos EUA com a dinastia saudita remonta ao período do pós-
-guerra e ao papel da monarquia nas campanhas anticomunistas. Os sheikhs estive-
ram envolvidos em inúmeras ações contrarrevolucionárias para conter a ascensão
das repúblicas em toda a região (Egito – 1952, Iraque – 1958, Iêmen – 1962, Líbia
– 1969, Afeganistão – 1973). Quando o xá do Irã foi derrubado, os reis wahhabitas
assumiram um papel mais direto na defesa da ordem reacionária no mundo árabe.
Esse papel regressivo foi novamente visível durante a Primavera Árabe da última
década. O gendarme saudita e seus antriões jihadistas levaram todas as incursões a
esmagar essa rebelião.
No entanto, depois de muitos anos administrando um gigantesco excedente de
petróleo, os monarcas de Riad também criaram um poder próprio, baseado na renda
gerada pelos campos petrolíferos da península. Esses uxos enriqueceram os emira-
dos organizados no Conselho de Cooperação do Golfo (GCC), que consolidou um
centro de acumulação para coordenar o uso desse excedente.
Nessa administração, a antiga estrutura semifeudal saudita adotou formas
mais contemporâneas de rentismo, compatíveis com a gestão despótica do Esta-
do. As poucas famílias que monopolizam os negócios usam o poder monárquico
para impedir a concorrência, mas o enorme volume de riqueza que administram
aumenta as rivalidades pelo controle do Palácio e do tesouro petrolífero que se
deriva dele (HANIEH, 2020).
O poder econômico de Riad alimentou as ambições geopolíticas da monarquia e
as incursões militares sauditas, colocando o país no caminho do subimperialismo.
Esse curso foi adequadamente interpretado por autores que aplicam o conceito
de Marini ao perl atual da Arábia Saudita. Eles retratam como esse reino cumpre os
três requisitos delineados pelo teórico brasileiro para identicar a presença de tal sta-
tus. O regime wahhabita promove ativamente o investimento estrangeiro direto nas
economias vizinhas, mantém uma política de cooperação antagônica com o domina-
dor americano e implanta um manifesto expansionismo militar (SÁNCHEZ, 2019).
O Chifre da África é a área favorecida pelos monarcas para essa intervenção. Eles
estenderam todas as disputas no Oriente Médio a essa região, e lá eles resolvem quem
controla o Mar Vermelho, as conexões da Ásia com a África e o transporte de recur-
sos energéticos consumidos pelo Ocidente.
146 ARTIGOS
Os gendarmes sauditas estão ativamente envolvidos nas guerras que têm devasta-
do a Somália, a Eritreia e o Sudão. Eles comandam a pilhagem de recursos e o empo-
brecimento das populações desses países. As brigadas de Riad demolem Estados para
aumentar os lucros do capital saudita nos setores de agricultura, turismo e nanças.
As regiões supervisionadas pelos monarcas também fornecem uma parcela signi-
cativa da força de trabalho explorada na Península Arábica. Os migrantes sem direi-
tos constituem entre 56 e 82% da força de trabalho na Arábia Saudita, Omã, Bahrein
e Kuwait. Esses assalariados não podem se mover sem permissão e estão sujeitos à
chantagem da expulsão e consequente corte de remessas. Tal divisão estraticada do
trabalho – em torno de gênero, etnia e nacionalidade – é a base para um uxo monu-
mental de remessas da região para o exterior.
As aspirações sauditas à primazia regional chocam-se com o destaque alcançado
pelos aiatolás do Irã. Desde a ruptura das relações diplomáticas em 2016, as tensões
entre os dois regimes têm sido processadas através de confrontos militares entre alia-
dos de ambos os lados. Esse confronto tem sido particularmente sangrento no Iêmen,
Sudão, Eritreia e Síria.
A disputa entre sauditas e iranianos, por sua vez, retoma o divórcio entre dois
processos históricos diferentes de regressão feudal e modernização incompleta. Essa
bifurcação moldou as congurações de Estado diferenciadas entre os dois países
(ARMANIAN, 2019).
Tal disparidade de trajetórias também tem levado a cursos capitalistas igualmente
contrastantes. Enquanto Riad surge como um centro internacionalizado de acumu-
lação do Golfo, Teerã comanda um modelo autocentrado de recuperação econômica
gradual. Essa diferença se traduz em caminhos geopolíticos muito divergentes.
O perigoso descontrole da teocracia
Os reis sauditas lideram o sistema político mais obscurantista e opressivo do planeta.
Esse regime tem funcionado desde a década de 1930 através de um compromisso
entre a dinastia dominante e uma camada de clérigos retrógrados que supervisionam
a vida diária da população. Uma divisão especial da polícia está habilitada a chicotear
as pessoas que permanecem nas ruas na hora da oração. Tal modelo retrata uma for-
ma acabada de totalitarismo.
A imprensa estadunidense questiona regularmente o apoio agrante do Ocidente a esse
grupo medieval e saúda as reformas cosméticas prometidas pelos monarcas. Mas, na reali-
dade, nenhum presidente americano está disposto a se distanciar de um reinado que é tão
pouco representativo quanto indispensável ao domínio da principal potência mundial.
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O principal problema com um regime tão fechado é a potencial explosividade de
suas tensões internas. Como todos os canais de expressão estão fechados, o descon-
tentamento irrompe em atos de revolta. O surto de 1979 em Meca teve o mesmo efei-
to, assim como a projeção de Bin Laden. Esta gura da camada teocrática acumulou
os ressentimentos típicos de um setor deslocado e canalizou esse ressentimento em
direção ao padrinho estadunidense (CHOMSKY; ACHCAR, 2007).
A política imperial americana deve também enfrentar as perigosas aventuras
externas da teocracia dominante. Os sheikhs que administram a principal reserva
mundial de petróleo têm sido vassalos leais do Departamento de Estado. Mas, nos
últimos anos, eles zeram suas pprias apostas, às quais Washington assiste com
grande nervosismo.
A ambição dos monarcas é unir-se a uma aliança com o Egito e Israel para con-
trolar um vasto território. Tal expansão mortal já incendiou muitos barris de pólvora
que complicam os próprios agressores.
As tensões aumentaram até um ponto crítico desde que o Príncipe Bin Salman as-
sumiu o trono em Riad (2017) e implementou sua violência desenfreada. Ele controla
a fortuna não quanticável da monarquia com total discrição e ambições selvagens
para o poder regional.
Primeiro ele aumentou seu controle do sistema político confessional, com uma
sucessão de purgas internas que incluiu prisões e apropriações da riqueza de outras
pessoas. Posteriormente, embarcou em várias operações militares para contestar o
poder geopolítico. Ele comanda a guerra devastadora no Iêmen, ameaça seus vizi-
nhos no Catar, rivaliza com a Turquia na Síria e demonstrou um grau incomum de
interferência no Líbano, realizando chantagens com o sequestro do presidente da-
quele país. Bin Salman está determinado a subir a aposta de guerra contra o regime
iraniano, especialmente após a derrota de suas milícias na Síria.
Os assassinatos no Iêmen estão na vanguarda da investida saudita. Os reis se muda-
ram para capturar os poços de petróleo inexplorados da Península Arábica. Depois de
muitas décadas de extração frenética, os campos petrolíferos tradicionais começam a
enfrentar limites, o que leva a uma busca por outras fontes de abastecimento. Riad quer
garantir sua primazia, com acesso direto aos três cruzamentos estratégicos da região
(Estreito de Hormuz, Golfo de Adão e Bab el-Mandeb). Por isso, rejeitou a reunicação
do Iêmen e procurou dividir o Iêmen em duas metades (ARMANIAN, 2016).
Mas a sangrenta batalha no Iêmen se tornou uma armadilha. A dinastia saudita
enfrenta ali um atoleiro semelhante ao sofrido pelos Estados Unidos no Afeganistão.
Ela causou a maior tragédia humanitária da última década sem ganhar o controle do
país. É incapaz de quebrar a resistência ou dissuadir ataques em sua ppria retaguar-
148 ARTIGOS
da. Os chocantes bombardeios com drones no coração de petróleo da Arábia Saudita
ilustram a escala dessa adversidade.
A tecnologia de mísseis de alta tecnologia tem provado ser uma espada de dois
gumes quando os inimigos podem descobrir como usá-la. A única resposta de Riad
tem sido a de apertar o cerco alimentar e sanitário, com mortes causadas pela fome
no atacado e 13 milhões de pessoas afetadas por epidemias de vários tipos.
Esses crimes são ocultados na atual apresentação da guerra como um con-
fronto entre os súditos da Arábia Saudita e do Irã. O apoio de Teerã à resistência
contra Riad não é o fator determinante em um conflito decorrente do apetite da
monarquia pela expansão.
Essa ambição também explica o ultimato ao Catar, que estabeleceu uma aliança
com a Turquia. A monarquia wahhabita não tolera essa independência, nem tolera
a equidistância com o Irã ou a variedade de posições exibidas pelo canal Al-Jazeera
(COCKBURN, 2017).
Os catarianos abrigam uma base estratégica dos EUA, mas concluíram importan-
tes negócios energéticos com a Rússia, realizam comércio com a Índia, e não partici-
pam da “OTAN sunita” promovida por Riad (GLAZEBROOK, 2017). Eles também
conseguiram disfarçar seu regime doméstico opressivo com uma operação de lava-
gem esportiva que os transformou em um grande patrocinador do futebol europeu.
Bin Salman não tem sido capaz de lidar com esse adversário, e alguns analistas ad-
vertem que ele está planejando uma operação militar para forçar seus vizinhos a se
submeterem (SYMONDS, 2017).
À beira do precipício
O intervencionismo do príncipe saudita está tomando conta a um ritmo vertigino-
so. No Egito, ele está consolidando sua inuência ao multiplicar o nanciamento da
ditadura de Sisi. Na Líbia, ele apoia a facção de Haar contra o rival patrocinado por
Ancara e aguarda a correspondente retribuição em contratos.
No Iraque, o monarca sustenta as contraofensivas das facções sunitas para erodir
a primazia do Irã. Esse apoio inclui o incentivo a massacres e guerras religiosas. Na
Síria, ele procurou criar um califado sujeito a Riad e em desacordo com Ancara e
Teerã. O fanatismo de guerra do monarca foi encarnado na rede de mercenários que
ele recrutou através da chamada “Aliança Militar Islâmica.
A Arábia Saudita é um antro internacional de jihadistas que o Pentágono pa-
trocinou com grande entusiasmo inicial. Mas os monarcas estão usando cada vez
mais esses grupos como suas próprias tropas, sem consultar os EUA e às vezes em
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contraponto com Washington.
Na Somália, Sudão e em alguns países africanos, a coordenação com o diretor
dos EUA falhou. Além disso, o signicado dos ataques de uma organização como a
Al Qaeda, que teve a aprovação da monarquia, nunca foi esclarecido. As ações terro-
ristas dos jihadistas como força transfronteiriça são muitas vezes indecifráveis e com
frequência desestabilizam o Ocidente.
Essa falta de controle colidiu com a estratégia de Obama de acalmar as tensões na
região por meio de tons tímidos com a Turquia e com as negociações com o Irã. Em
vez disso, Trump jogou a favor do Príncipe Salman com o aumento das vendas de
armas, encobrimento de massacres e convergências com Israel.
Mas as ações imprevisíveis do monarca têm gerado grandes crises. A selvage-
ria que ele demonstrou no desmembramento da figura de oposição Khashoggi
desencadeou um escândalo que não cicatrizou. O jornalista era um servo leal
da monarquia e posteriormente forjou laços mais estreitos com os liberais nos
Estados Unidos. Ele trabalhou para o Washington Post e descobriu provas de cri-
minalidade sob o regime saudita.
O príncipe arrogante escolheu assassiná-lo na própria embaixada da Turquia e foi
exposto como um criminoso comum quando o presidente Erdogan tornou o caso
transparente para sua ppria conveniência. Trump fez de tudo para encobrir seu
parceiro com algum conto de assassino selvagem, mas ele não conseguiu esconder a
responsabilidade direta do jovem rei.
Esse episódio retratou o caráter incontrolável de um presidente aventureiro, que,
com o declínio de Trump, perdeu o apoio direto da Casa Branca. Agora Biden anun-
ciou uma nova direção, mas sem esclarecer qual será esse caminho. Enquanto isso,
ele adiou a abertura dos arquivos secretos que lançariam luz sobre a relação entre a
liderança saudita e o ataque às Torres Gêmeas.
O establisment norte-americano tem se tornado cada vez mais cauteloso com re-
lação ao aventureiro que esbanjou parte das reservas do reino em passeios belicosos.
O projeto de lei para a guerra do Iêmen já é visível na brecha no orçamento, o que
acelerou os planos de privatização da empresa estatal de petróleo e gás.
A teocracia medieval se tornou uma dor de cabeça para a política externa dos
EUA. Alguns arquitetos dessa orientação defendem mudanças mais substanciais na
monarquia, mas outros temem o efeito de tais mutações no circuito de petrodólares
internacionais. Washington acabou perdendo a lealdade de muitos países que alivia-
ram suas ditaduras ou moderaram seus reinados.
Esses dilemas não têm soluções preestabelecidas. Ninguém sabe se as ações
de Bin Salman são mais perigosas do que sua substituição por outro príncipe da
150 ARTIGOS
mesma linhagem. A existência de uma grande realeza na teia de miniestados que
compõem as dinastias do Golfo traz mais solidez, mas também maiores riscos
para a política imperialista.
É por isso que os assessores da Casa Branca diferem se patrocinam políticas de
centralização ou de balcanização dos vassalos de Washington. Em ambas as opções, o
desvio da Arábia Saudita em direção a um caminho subimperial implica um conito
com o dominador americano.
Reconstituição contraditória no I
O atual status subimperial do Irã é mais controverso e permanece sem solução. Ele
inclui vários elementos desse comportamento, mas também contém características
que questionam esse status.
Até os anos 80, o país era um modelo de subimperialismo, e Marini (1973) o
apresentou como um exemplo análogo ao protipo brasileiro. O xá foi o principal
parceiro regional dos EUA na Guerra Fria contra a URSS, mas, ao mesmo tempo, es-
tava desenvolvendo seu próprio poder em disputa com outros aliados do Pentágono.
A dinastia Pahlavi consolidou essa gravitação aunoma através de um processo
de modernização segundo as linhas anticlericais ocidentalistas. Ela sustentou a ex-
pansão das reformas capitalistas em sucessivos conitos com a casta religiosa.
O monarca procurou criar um polo regional de supremacia distante do mundo ára-
be e lançou as bases para um projeto subimperial, que se reconectou com as raízes
históricas dos confrontos persas com os otomanos e os sauditas (ARMANIAN, 2020).
Mas o colapso do xá e sua substituição pela teocracia dos aiatolás mudou radical-
mente o status geopolítico do país. Um subimpério autônomo – mas estruturalmente
associado a Washington – foi transformado em um regime envolto por uma tensão
permanente com os Estados Unidos. Todo líder da Casa Branca tem procurado des-
truir o inimigo iraniano.
Esse conito altera o perl de um modelo que não atende mais a uma das exigên-
cias da norma subimperial. A estreita convivência com o dominador norte-ameri-
cano desapareceu, e essa mudança conrma o caráter mutável de uma categoria que
não compartilha a durabilidade das formas imperiais.
Os confrontos com Washington mudaram o perl subimperial anterior do Irã. A
velha ambição da supremacia regional foi articulada como uma defesa contra o assé-
dio dos EUA. Todas as ações externas do Irã visam criar um anel de proteção contra
as agressões que o Pentágono coordena com Israel e a Arábia Saudita. Teerã intervém
em conitos contínuos com o objetivo de salvaguardar suas fronteiras, e opta por
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alianças com os adversários de seus inimigos e procura multiplicar os incêndios na
retaguarda de seus três perigosos atacantes.
Essa impressão defensiva determina uma modalidade muito singular do eventual
ressurgimento subimperial do Irã. A busca da supremacia regional coexiste com a
resistência ao assédio externo, determinando um curso geopolítico muito peculiar.
Defesas e rivalidades
O expansionismo brando do Irã em zonas de conito reete essa situação contradi-
tória no país. O regime dos aiatolás certamente comanda uma rede de recrutamento
xiita com milícias liadas aos xiitas em toda a região. Mas, de acordo com o aspecto
defensivo de sua política, ela age com mais cautela do que seus adversários jihadistas.
A principal vitória do regime foi alcançada no Iraque. Eles conseguiram colocar
o país sob seu comando após a devastação perpetrada pelos invasores dos EUA. Eles
agora usam seu controle desse território como um grande amortecedor defensivo
para desencorajar os ataques que Washington e Tel Aviv continuam a repetir.
O mesmo propósito dissuasivo tem guiado a intervenção de Teerã na guerra síria.
A capital sustentou Assad e se engajou diretamente em ações armadas, mas buscou
consolidar um cordão de segurança para suas pprias fronteiras. E as milícias libane-
sas do Hezbollah atuaram como os principais arquitetos desse cinturão amortecedor.
Os sangrentos confrontos na Síria se desdobraram como ensaios para a maior
conagração que os sionistas imaginam contra o Irã. É por isso que Israel descarre-
gou seus bombardeios sobre tropas xiitas.
Washington tem denunciado repetidamente a “agressividade do Irã” na Síria, en-
quanto de fato Teerã está reforçando sua defesa contra a pressão dos EUA. Nessa
resistência, obteve resultados satisfarios. Trump jogou suas cartas para as várias in-
cursões de Israel, Arábia Saudita e Turquia e acabou perdendo a batalha. Esse fracas-
so corrobora a adversidade geral que Washington enfrenta. Após inúmeras investi-
das, não foi capaz de subjugar o Irã, e a mãe de todas as batalhas ainda está pendente.
Em um nível mais limitado, o Irã disputa a primazia regional com a Arábia Saudita
nas guerras dos países vizinhos. Na Síria, os jihadistas de Riad têm favorecido ataques
contra tropas treinadas por seu rival, e no Iêmen a monarquia wahhabita está atacando
milícias que estão em sintonia com Teerã. No Catar, Líbano e Iraque, a mesma ten-
são pode ser vista na disputa sobre o Estreito de Hormuz. O controle do Estreito de
Hormuz pode muito bem signicar o vencedor do jogo entre os aiatolás e a principal
dinastia do Golfo. Essa rota – que liga os exportadores do Oriente Médio aos mercados
mundiais – é a rota através da qual circula 30% do petróleo comercializado no mundo.
152 ARTIGOS
Como seu adversário saudita, o regime iraniano usa o véu religioso para encobrir
suas ambições (ARMANIAN, 2020). Ele mascara a intenção de aumentar seu poder
econômico e geopolítico alegando a superioridade dos postulados xiitas sobre as nor-
mas sunitas. Na ptica, as duas vertentes do islamismo estão em conformidade com
regimes igualmente controlados por camadas obscurantistas de clérigos.
A rivalidade com a Turquia não apresenta, até agora, contornos tão dramáticos.
Inclui mal-entendidos que são visíveis no Iraque, mas não altera o status quo nem
assume o perigo de um confronto como há com os sauditas. O governo pró-turco da
Irmandade Muçulmana no Egito manteve os equilíbrios regionais que o Irã deseja.
Em contraste, a tirania – atualmente patrocinada por Washington e Riad – tornou-se
outro adversário ativo de Teerã.
Assim como a Turquia e a Arábia Saudita, o Irã expandiu sua economia, e o go-
verno procura alinhar esse crescimento com uma presença geopolítica mais proemi-
nente. Mas Teerã buscou um desenvolvimento autárquico feito sob medida para dar
prioridade à defesa e resistir ao assédio externo. As exportações de petróleo têm sido
utilizadas para sustentar um esquema que mistura o intervencionismo estatal com a
promoção de negócios privados.
Todos os desenvolvimentos geopolíticos foram transformados pela elite governante
em esferas lucrativas, administradas por grandes empresários associados à alta buro-
cracia estatal. O controle do Iraque abriu um mercado inesperado para a burguesia
iraniana, que agora também está competindo pelo negócio da reconstrução da Síria.
Há muitas incógnitas no tabuleiro de xadrez entre o Irã e seus rivais. Os aiatolás
ganharam e perderam batalhas no exterior e enfrentam escolhas econômicas difíceis.
A liderança clerical-militar dominante, que prioriza o negócio do petróleo, deve en-
frentar a desconexão nanceira internacional imposta pelos EUA. O regime perdeu
a coesão do passado e deve denir respostas à decisão de Israel para evitar que o país
se torne uma potência atômica.
As duas principais alas do partido no poder estão promovendo estratégias dife-
renciadas de maior negociação ou aumento da luta armada militar. O primeiro curso
prioriza os amortecedores defensivos em zonas de conito. O segundo rumo não se
afasta de repetir o derramamento de sangue sofrido durante a guerra do Iraque. A
reconstituição subimperial depende dessas denições.
Cenários críticos
O conceito de subimperialismo ajuda a esclarecer o cenário explosivo no Oriente
Médio e regiões vizinhas. Ele nos permite registrar o destaque das potências regio-
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nais nos conitos da zona. Esses atores são mais inuentes do que no passado e não
agem no mesmo nível que as grandes potências globais.
A noção de subimperialismo facilita a compreensão desses processos. Ela lança
luz sobre o papel dos países mais relevantes e esclarece sua distância contínua dos
EUA, Europa, Rússia e China. Explica também por que as novas potências regionais
não substituem o domínio americano e desenvolvem trajetórias frágeis corroídas por
tensões incontroláveis.
A Turquia, a Arábia Saudita e o Irã rivalizam entre si a partir de congurações
subimperiais, e o resultado dessa competição é altamente incerto. Se um dos compe-
tidores emerge como o vencedor ao dobrar os outros, poderia introduzir uma mu-
dança radical nas hierarquias geopolíticas da região. Se, por outro lado, os poderes
em disputa se esgotarem em batalhas sem m, eles acabariam anulando seu próprio
status subimperial.
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