Reoriente • vol.1, n.2 jul/dez 2021 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v1i2p212-216 213
Descobrir Aníbal Quijano, ou apenas um pensador latino-americano
Deni Alfaro Rubbo1*
Mas não se preocupe meu amigo
Com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente
Quer dizer
Ao vivo é muito pior
(Belchior, Apenas um rapaz latino-americano)
É quase um truísmo armar o distanciamento entre Brasil e América Latina. Apesar
de inegáveis avanços nas últimas décadas para o encurtamento dessa distância, nossa
cultura é ainda demasiadamente refratária às experiências políticas, às histórias
culturais, às produções de ideias e às trajetórias de personalidades de nossos vizinhos.
Nas ciências sociais, grassa um desconhecimento mais explícito. Investigar a
produção de ideias e a trajetória de guras públicas latino-americanas no Brasil pode
signicar escolher um “objeto rebaixado. Conhece-se pouquíssimo da história da
sociologia, da antropologia e da ciência política dos países sul-americanos, andinos
e do Caribe, seus processos de institucionalização, suas inuências teóricas, suas
práticas sociais de leitura. Ora, mergulhar nas tradições escondidas de Nuestra
América oferece uma posição privilegiada para a compreensão de formações sociais
e históricas moldadas pelas temporalidades heterogêneas da América Latina. Esse é
o caso da obra de Aníbal Quijano (1930-2018).
Quijano é um dos mais importantes intelectuais do pensamento latino-americano
das últimas cinco décadas, e a cultura intelectual e política brasileira pode – e deve
– devorar sua obra. Conhecer o conjunto da produção diversicada de Quijano,
suas elaborações teóricas e posições políticas suscita não apenas contribuições à
história intelectual da esquerda, mas também pistas sobre o processo avassalador do
capitalismo contemporâneo e da crise (e colapso) das “narrativas” da modernidade.
Anal, Quijano sempre tratou a sociedade civil como objeto de pesquisa, aberta a
um diálogo democrático e a mudanças sociais – esse era seu horizonte político. Em
suma, um exímio praticante da “sociologia pública” e da “sociologia crítica” tais quais
* Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). É professor de Ciências Sociais da
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). É autor de O Labirinto periférico: aventuras de
Mariátegui na América Latina (Autonomia Literária, 2021).
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examinadas por Michael Burawoy (2005).
Nascido em 1930 na pequena cidade de Yanama, província de Yungay
(departamento de Áncash), lho de professor do ensino secundário e dona de casa, o
jovem Quijano ingressou na Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM)
em 1948. Nesse período, esteve inserido no movimento estudantil e na luta política que
deságua na ditadura do general Manuel Odría (1948-1956). Na oposição ao regime,
o jovem estudante sofreria perseguições e encarceramento. Sua intensa experiência
como militante político e os primeiros passos de sua formação acadêmica (e literária)
acarretaram conitos com organizações políticas da esquerda do país. Desavenças
com “nacionalistas, do partido aprista, e com “marxistas, de estirpes stalinista e
trotskista, não zeram com que ele abdicasse ou, ainda, repudiasse o marxismo. De
maneira autônoma, ancorou-se nas leituras de Marx a partir dos problemas andinos,
o que se transformou em um dos traços decisivos para a criação de sua imaginação
sociológica inspiradora.
Entre 1959 e 1961, o autor peruano realiza sua pesquisa de mestrado na Faculdad
Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), em Santiago do Chile. Retorna ao Chile
em 1965, dessa vez como funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU),
através da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), cargo
no qual permanece até 1971. Em Santiago, vivencia inúmeros debates em centros de
ensino e pesquisa com a presença de intelectuais brasileiros e estrangeiros. Também se
pega em diálogos com a turma roja do Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO)
em torno da noção de dependência como forma de imperialismo em uma economia
periférica do capitalismo. Mesmo integrando o Instituto Latino-Americano de
Planejamento Econômico e Social (ILPES), que tinha caráter mais técnico e matriz
teórica weberiana, Quijano foi, no mínimo, um pesquisador heterodoxo.
O conjunto de seus textos sobre o caráter marginal das cidades latino-americanas
derivou de uma abordagem “histórico-estrutural” de caráter marxista. Quijano
operacionalizava a noção de marginalidade como modo especíco de integração
no capitalismo periférico e dependente. Entretanto, tendo o caso peruano como
referencial analítico, as implicações do intercâmbio na troca desigual entre países
produtores de manufaturas e produtores de matérias primas produziam uma
marginalidade sui generis: o cholo, objeto de estudo da tese de doutoramento
de Quijano defendida na UNMSM em 1964. O “polo marginal” no capitalismo
dependente tinha rosto e endereço: o cholo eram migrantes camponeses-indígenas
das montanhas do Peru profundo que se estabeleciam precariamente na cidade de
Lima. Em poucas palavras, Quijano defendia, assim, uma tese apoiada e construída a
partir da luta de classes moldada pela mediação da etnicidade e da cultura.
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Não é exagero armar que a articulação entre determinações histórico-estruturais
da dependência, polo marginal e processo de “cholicación” constituiu uma análise
social sosticada e inovadora para a teoria sociológica marxista latino-americana.
Curiosamente, permanece até hoje abafada, quiçá pela peleja entre “marxistas-
weberianos” do ILPES – um marxismo como “noblesse oblige, como ironizou certa
vez Francisco de Oliveira (2001) – e “marxistas-trotskistas” do CESO. Porém, não é
estranha, até porque Quijano carrega duas referências incontornáveis que perdurariam
em sua trajetória intelectual, embora em registros diferentes: o marxismo indígena de
José Carlos Mariátegui e a antropologia histórica de José María Arguedas, de quem foi
amigo (cf. PACHECO CHAVÉZ, 2018; RUBBO, 2018; MONTOYA HUAMANÍ, 2018).
Paralelamente, Quijano acompanhou a ascensão dos movimentos camponeses,
a posteriori guerrilheiros, que emergiam nos países latino-americanos animados
pela revolução cubana e que reconguravam de modo radical a correlação de forças
políticas1. Depois de seu retorno ao Peru, em 1971, inicia uma nova fase de sua trajetória
política e intelectual. Nessa década, portanto, o sociólogo peruano amplia sua agenda
de pesquisa e passa a investigar a dominação imperialista no Peru e suas implicações
para as classes sociais à luz do regime militar de Velasco Alvarado (1968-1975).
Ao expor, analisar e criticar as contradições dos projetos econômicos e políticos
do “Gobierno Revolucionario de las Fuerzas Armadas” – como se autointitulava
–, Quijano cria inimizades com caudatários da esquerda política peruana que
apoiavam obstinadamente o regime. Esse também era um período de militância
política orgânica, com participação no Movimiento Revolucionario Socialista
(MRS), nascido em 1972 a partir da Comunidad Urbana Autogestionaria de Villa El
Salvador (Cuaves), movimento que lutava por moradia na cidade de Lima. Quijano
desempenha papel signicativo na formação desse movimento e cria a revista
Sociedad y Política. Nesse caldeirão de reexões, polêmicas e experiências coletivas,
marcado pelas lutas dos povos indígenas andinos e pelos movimentos de moradia
urbanos, Quijano desenvolve a questão da “socialização do poder político” como
princípio balizador de um socialismo horizontal de sensibilidade libertária.
Na sequência, as apostas de Quijano tiveram sucessivas perdas, em especial
o processo de desintegração da Alianza Revolucionaria de Izquierda (ARI) e,
consequentemente, a derrota da esquerda nas eleições presidenciais de 1980. Pouco
depois, sua saída do MRS e o fechamento de Sociedad y Política encerrariam esse
doloroso processo. Tanto a paulatina fragmentação da esquerda peruana, que ainda
1 Para uma interessante biograa intelectual sobre o jovem Quijano, dividida entre “pensamento não
escrito” (1948-1962), “sociologia da suspeita” (1962-1965) e “sociologia culturalista” (1964-1968), ver
Montoya Huamaní (2021).
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observaria atônita a ascensão do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso e suas ações
autoritárias, quanto a crise intelectual e política do marxismo em escala internacional
tiveram um forte impacto na trajetória de Aníbal Quijano. Esse é um momento de
reavaliação silenciosa de seus próprios projetos intelectuais e políticos. Não por
acaso, é possível aventar a hipótese de que sua produção na década de 1980 gravita
entre a tensão de elaboração do luto e a preparação de um recomeço. Nesse sentido,
certa “melancolia de esquerda” suscitou em Quijano a necessidade de se reinventar
teórica e politicamente, sem fugir do fardo passado e, mais ainda, sem resignar-se à
ordem vigente (cf. RUBBO, 2019).
Suas viagens internacionais então se intensicam. Como professor e pesquisador
visitante, Quijano trabalha em universidades dos Estados Unidos, Porto Rico,
Alemanha, Brasil, dentre outros países. Um dos destaques dessa frequente mobilidade
são suas passagens pela Universidade de Binghamton, em Nova York, através do
Centro Fernand Braudel, fundado por Immanuel Wallerstein (1930-2019). O contato
com uma volumosa produção internacional das ciências sociais que interrogava
concepções lineares da história e universalismos abstratos permite a Quijano tecer
uma avaliação contundente sobre o modo de conhecer realidades sociais diversas. Isso
não signica dizer que Quijano tenha abraçado acriticamente as diversas tendências
que se tornariam modas acadêmicas a posteriori, por assim dizer, inofensivas no
combate político anticapitalista. Evidentemente, as críticas ao eurocentrismo que
ganhavam espaço nos debates internacionais da sociologia não causariam surpresa
para alguém que fora escolarizado em escola bilíngue, espanhol e quéchua, era
leitor de Mariátegui e Arguedas, e que sempre esteve em contato com camponeses-
indígenas sujeitos à condição de exclusão material e simbólica.
É nos idos de 1980, beirando os 60 anos, que elabora uma profunda reavaliação
de três categorias históricas em crise: América, modernidade e capitalismo. Aí se
encontra uma das raízes de sua análise dos processos de “colonialidade do poder”,
que se aprofunda nas décadas seguintes e que, atualmente, é debatida em âmbito
internacional. Em poucas palavras, trata-se de uma ambiciosa teoria global a partir
da “periferia” que busca compreender, de 1492 ao tempo presente, os paradoxos
da modernidade em dimensão objetiva e intersubjetiva. Nas décadas de 1990 e
2000, o sociólogo peruano publica um conjunto de textos sobre a colonialidade e
descolonialidade do poder, o que representa uma construção teórica inseparável dos
processos e experiências que ocorriam no Peru, na América Latina e no mundo, da
globalização” do “neoliberalismo” às resistências globais e locais. Quijano não rompe
com seus antigos temas; busca, antes, entender as características atuais do sistema-
mundo moderno concebido como “totalidade heterogênea.
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Nestes tempos sombrios, as posições de Aníbal Quijano são mais do que atuais,
posto que suas principais preocupações teóricas estão sempre ligadas às mutações
do capitalismo mundial e a seus caminhos reversos: da resistência e das rebeliões
dos vencidos da história. Por isso, em 60 anos de produção intelectual e intervenção
política, seria implausível reduzi-lo à corrente dependentista ou à perspectiva
descolonial”, ignorando o conjunto diversicado de sua obra. Quijano cria um
estilo próprio, nem sempre fácil, mas que se transforma, muitas vezes, como reação
a estigmas do tempo. Acompanhar seu itinerário político e intelectual é um convite
à reexão sobre o lugar da América Latina e do Caribe no mundo, feito por alguém
que tinha a vocação de fazer frente ao duro semblante dos dias.
Referências
BURAWOY, Michael. For public Sociology. American Sociological Review, v. 70, n. 1, p. 04-28, 2005.
DOI: 10.1177/000312240507000102
MONTOYA HUAMANÍ, Segundo. Aníbal Quijano. Reconstrucción de su vida y obra 1948-1968. Lima:
Heraldos Editores, 2021. Tomo 1.
MONTOYA HUAMANÍ, Segundo. Aníbal Quijano: improntas de Mariátegui en la colonialidad del
poder. In: MONTOYA HUAMANÍ, Segundo. Conictos de interpretación en torno al marxismo de
Mariátegui. Lima: Heraldos Editores, 2018. P. 265-273.
OLIVEIRA, Francisco de. O caráter da periferia especial. Folha de São Paulo, 25 mar. 2001. Disponível
em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2503200116.htm>. Acesso em: 03 jan. 2022.
PACHECO CHÁVEZ, Victor Hugo. Aníbal Quijano: episódios de lectura de José María Arguedas. In:
PACHECO CHÁVEZ, Victor Hugo (Org.). Rompiendo la jaula de la dominación: ensayos en torno a la
obra de Aníbal Quijano. Santiago: Doble Ciencia Editorial, 2018. p. 15-34.
RUBBO, Deni A. Aníbal Quijano em seu labirinto: metamorfoses teóricas e utopias políticas. Sociologias,
v. 21, n. 52, p. 240-269, 2019. DOI: 10.1590/15174522-89913
RUBBO, Deni A. Aníbal Quijano e a racionalidade alternativa na América Latina: diálogos com Mariátegui.
Estudos Avançados, v. 32, n. 94, p. 391-409, dez. 2018. DOI: 10.1590/s0103-40142018.3294.0025