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Forjando um Instrumento Diagonal para a Esquerda Global +
Javier Ezcurdia* e Christopher Chase-Dunn**
Resumo: Este artigo assume o desao de Samir Amin de repensar a questão da organização política
global, propondo a construção de uma organização política diagonal para a esquerda global que ligaria
redes locais, nacionais e globais, bem como comunidades pregurativas para coordenar a disputa pelo
poder no sistema-mundo durante as pximas décadas do século XXI. O processo do Fórum Social
Mundial (FSM) precisa ser reinventado para promover o surgimento de um instrumento capaz de con-
frontar e disputar com a estrutura de poder global do capitalismo mundial e ajudar as lutas locais e
nacionais. Propomos uma abordagem holística para organizar um navio para a esquerda global baseado
em lutas por justiça climática, direitos humanos, antirracismo, direitos queer, feminismo, redes de par-
tilha, alianças de paz, retomada das cidades, nacionalismo progressivo, confrontando e derrotando o
neofascismo e novas formas de populismo conservador.
Palavras-Chave: Navio. Nacionalismo Progressivo. Esquerda Global. Capitalismo Mundial. Holístico.
Abstract: is article takes up Samir Amins challenge to rethink the question of global political or-
ganization by proposing the construction of a diagonal political organization for the Global Le that
would link local, national, and global networks as well as pregurative communities to coordinate the
contest for power in the world-system during the next decades of the 21st century. e World Social
Forum (WSF) process needs to be reinvented to promote the emergence of an instrument capable of
confronting and contesting the global power structure of world capitalism and assisting local and na-
tional struggles. We propose a holistic approach to organize a vessel for the global le based on struggles
for climate justice, human rights, anti-racism, queer rights, feminism, sharing networks, peace alliances,
taking back the cities, progressive nationalism, confronting and defeating neo-fascism and new forms
of conservative populism.
Keywords: Vessel. Progressive Nationalism. Global Le. World Capitalism. Holistic.
Resumen: Este artículo recoge el reto de Samir Amin de repensar la cuestión de la organización política
global proponiendo la construcción de una organización política diagonal para la Izquierda Global que
vincule las redes locales, nacionales y globales así como las comunidades pregurativas para coordinar
la contienda por el poder en el sistema-mundo durante las pximas décadas del siglo XXI. Es necesario
reinventar el proceso del Foro Social Mundial (FSM) para promover la aparición de un instrumento
capaz de enfrentarse y disputar la estructura de poder global del capitalismo mundial y ayudar a las
luchas locales y nacionales. Proponemos un enfoque holístico para organizar un buque de la izquierda
global basado en las luchas por la justicia climática, los derechos humanos, el antirracismo, los derechos
de los homosexuales, el feminismo, las redes de intercambio, las alianzas por la paz, la recuperación de
las ciudades, el nacionalismo progresista, el enfrentamiento y la derrota del neofascismo y las nuevas
formas de populismo conservador
Palabras-llave: Buque. Nacionalismo Progresivo. Izquierda Global. Capitalismo Mundial. Holísitco.
* Mestre em Relações Internacionais, San Francisco State University.
** Christopher Chase-Dunn é professor distinguido de Sociologia e diretor do Institute for Research on
World-Systems na Universidade da Califórnia – Riverside. Ph.D em Sociologia pela Universidade de
Stanford em 1975. Fundador e ex-editor do Journal of World-Systems Research e editor de uma série
de livros publicada pela e Johns Hopkins University Press. Fellow da American Association for the
Advancement of Science (2001) e Presidente do Comitê de Pesquisa em Economia e Sociedade (RC02)
da International Sociological Association (2002).
38 ARTIGOS
Os movimentos sociais têm sido importantes impulsionadores da mudança social
desde a Idade da Pedra. Eles tanto reproduzem como alteram estruturas sociais e
instituições. Neste ensaio, nós usamos a perspectiva dos sistemas-mundo para exam-
inar as possibilidades de aumentar a coesão e a capacidade dos movimentos sociais
globais progressistas. A perspectiva evolutiva comparativa dos sistemas-mundo estu-
da as maneiras pelas quais as ondas de movimentos sociais impulsionaram a ascensão
de sociedades humanas mais complexas e mais hierárquicas ao longo dos últimos
milênios. Uma perspectiva global e de longa duração nos auxilia na compreensão
do momento atual e na elaboração de estratégias políticas que ajudem a mitigar os
problemas que devem ser enfrentados no século XXI para que a humanidade avance
em direção a um futuro global mais justo, pacíco e sustentável. O sistema-mundo
contemporâneo está entrando em uma outra era, similar em muitos aspectos à “era
dos extremos” que ocorreu na primeira metade do século XX (HOBSBAWM, 1994).
Divisar uma estratégia política útil para a esquerda global requer que entendamos as
semelhanças e diferenças entre o período atual e a primeira metade do século XX.
Também exige que entendamos as culturas dos movimentos e contramovimentos
que surgiram nas últimas décadas, bem como suas organizações estruturais, que são
críticas para o sucesso do movimento. O período atual é assustador e perigoso, mas
também é um período de grande oportunidade para mover a humanidade em di-
reção a uma sociedade mundial qualitativamente diferente e melhorada1.
O Movimento Global de Justiça Social e o Processo do Fórum Social Mundial
O movimento global de justiça social que emergiu a partir da década de 1990
com os sucessos regionais dos Zapatistas no sul do México formou-se em resposta
ao projeto neoliberal de globalização. A Maré Rosa que se seguiu foi o advento de
regimes políticos populistas de esquerda na maioria dos países latino-americanos,
tendo por base movimentos contra os programas de ajuste estrutural neoliberais
promovidos pelo Fundo Monetário Internacional (CHASE-DUNN et al., 2015). Em
2001, o Fórum Social Mundial (FSM) foi fundado como uma reação à exclusividade
do neoliberal Fórum Econômico Mundial. Seu objetivo era fornecer um ponto de
encontro global para os movimentos progressistas populares que se opunham ao
projeto de globalização neoliberal. As conferências fundacionais foram realizadas
1 Esta é uma atualização de um ensaio anterior que revisou a literatura sociológica sobre formação
de coalizão, a história das frentes unidas e populares no século XX, e considerou quais tendên-
cias centrais da nova esquerda global podem estar na disputa por fornecer liderança e integração
da rede de movimentos antissistêmicos que participam do processo do Fórum Social Mundial
(CHASE-DUNN et al., 2014).
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em Porto Alegre, Brasil, com o apoio do Partido dos Trabalhadores brasileiro, que
havia acabado de conquistar a presidência sob a liderança de Luiz Inácio Lula da
Silva, ex-trabalhador da indústria automobilística. O FSM adotou o slogan “Um
outro mundo é possível” para contrariar a alegação de Margaret atcher de que
não havia alternativa à globalização neoliberal. O FSM realizou a maioria de seus
encontros globais no Sul Global, mas também patrocinou importantes encontros
locais e nacionais em todas as regiões do mundo. Esse foi um importante local de
encontro para a emergente Nova esquerda global e o movimento de justiça global,
mas não incluiu todos os movimentos da Esquerda (veja abaixo). Era para ser um
local para ativistas de movimentos sociais de base colaborarem uns com os outros.
O processo do Fórum Social acabou se disseminando para a maioria das regiões
do mundo. Apenas alguns meses após o primeiro evento anual, em 2001, o Conselho
Internacional do Fórum Social Mundial aprovou uma carta de princípios de 14 itens.
Identicou o uso pretendido da nave do fórum por “[...] entidades e movimentos da
sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital
e por qualquer forma de imperialismo” (WORLD SOCIAL FORUM, 2001). A carta
não permitia a participação daqueles que queriam participar como representantes
de organizações que estavam envolvidas, ou que advogavam, na luta armada.
Nem governos, partidos políticos ou igrejas podiam enviar representantes para os
encontros. Havia uma grande ênfase no horizontal e plural, em oposição às formas
hierárquicas de organização. O uso da Internet para a comunicação e mobilização
tornou possível que amplas coalizões e redes vagamente unidas de ativistas dos
movimentos de base se engajassem em projetos de ação coletiva.
Os participantes do processo do fórum social envolveram-se em um frenesi de
redação de manifestos/estatutos, enquanto aqueles que buscavam uma abordagem
mais organizada para confrontar o capitalismo global e o neoliberalismo tentavam
formular objetivos consensuais e reunir coalizões viáveis (WALLERSTEIN, 2007).
Uma questão que foi debatida foi se o Fórum Social Mundial deveria formular
um programa político e tomar posições formais sobre as questões. Uma pesquisa
de opinião com 625 participantes no encontro do Fórum Social Mundial em Porto
Alegre, em 2005, perguntou se o FSM deveria permanecer um espaço aberto ou se
deveria assumir posições políticas. Quase metade dos entrevistados favorecia a ideia
de espaço aberto (CHASE-DUNN et al., 2008). Assim, tentar mudar a carta do FSM
para permitir um programa político formal teria sido muito divisor.
No entanto, isso não foi considerado necessário. A carta do FSM também
encorajou a formação de novas organizações políticas. Os participantes que queriam
formar novas coalizões e organizações eram livres para agir, desde que não o zessem
40 ARTIGOS
em nome do FSM como um todo. A Assembleia de Movimentos Sociais e outros
grupos emitiram apelos para ações globais e manifestos políticos em encontros do
rum Social, tanto em nível global quanto nacionais. Reunidos em Bamako, Mali,
em 2006, um grupo de participantes emitiu no início da reunião um manifesto
intitulado “O Apelo de Bamako.Esse foi um apelo para uma frente unida global
contra o neoliberalismo e o neoimperialismo dos Estados Unidos (ver SEN et al.,
2007). Samir Amin, o famoso economista marxista e cofundador da perspectiva do
sistema-mundo (juntamente com Immanuel Wallerstein, Andre Gunder Frank e
Giovanni Arrighi), escreveu um pequeno ensaio intitulado “Rumo a uma Quinta
Internacional?” no qual ele brevemente esboçou a história das quatro primeiras
internacionais (AMIN, 2008). Peter Waterman (2006) propôs uma “carta global do
trabalho, e uma coalizão de grupos de mulheres reunidas no Fórum Social Mundial
produziu um manifesto global feminista que tentou superar questões divisoras entre
Norte e Sul (MOGHADAM, 2005; MOGHADAM e KAFTAN, 2019)2.
Sempre houve uma tensão dentro da esquerda global sobre dois caminhos
opostos: a antiglobalização ou uma forma alternativa progressista de globalização.
Samir Amin (1990) e Waldon Bello (2002) são importantes defensores socialistas
da desglobalização e desconexão3 do Sul Global em relação ao Norte Global, a
m de protegê-lo contra o neoimperialismo e tornar possível o desenvolvimento
autossuciente e igualitário. A alterglobalização defende uma sociedade mundial
igualitária que seja integrada, mas sem exploração e dominação. O projeto de
alterglobalização tem sido estudado e articulado por Georey Pleyers (2011) como
uma “convergência inquieta” de grupos ativistas autônomos e independentes, em
grande parte horizontais, e atores mais institucionalistas, como intelectuais e ONGs.
Em nossa proposta de um caminho a seguir para a esquerda global, nós defendemos a
combinação de horizontalismo e de coordenação capacitada em um instrumento que
possa apoiar e defender projetos igualitários e comunidades para lutar efetivamente
contra o poder dos Estados reacionários, empresas e movimentos populistas.
A Cultura da Revolução Mundial de 20XX
Houve um impasse no movimento de justiça global entre aqueles que queriam
avançar em direção a uma frente unida global que pudesse mobilizar uma forte
coalizão contra os poderes que existem, e aqueles que preferiram ações horizontalis-
tas pregurativas locais e formas de redes horizontalistas que renunciam à hierarquia
2 Waterman (2010) também criticou o vanguardismo do “Apelo de Bamako” e outras propostas para um
novo internacionalismo e defendeu a estruturação de movimentos das forças de justiça global.
3 N.T.: Delinkage no original em inglês.
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organizacional e se recusam a participar de atividades políticasnormais, como
eleições e lobby. Preguracionismo é a ideia de que pequenos grupos podem inten-
cionalmente organizar relações sociais de maneiras que possam fornecer as sementes
da transformação para uma forma mais desejável de sociedade humana futura. O
horizontalismo abjura a hierarquia nas organizações. Foi inspirado pela observação
de Robert Michels (1968 [1915]) de que todas as organizações eventualmente se tor-
nam conservadoras porque a liderança acaba tentando principalmente defender seus
próprios interesses e a sobrevivência da organização. A história natural dos partidos
e das organizações do movimento social é adaptar-se às exigências existentes do siste-
ma-mundo, abandonando as aspirações revolucionárias.
Essas posições políticas horizontalistas foram herdadas dos movimentos anti-
autoritários e antiburocráticos da Nova Esquerda da revolução mundial de 1968. A
Nova Esquerda de 1968 abraçou a democracia direta, atacou as organizações buro-
cráticas e foi resistente a construir novas organizações formais que poderiam atuar
como instrumentos da revolução (ARRIGHI, HOPKINS e WALLERSTEIN, 2012
[1989]). Acredita também que as instituições que tinham sido instrumentos de mu-
dança revolucionária e desaadoras das estruturas de poder existentes tornaram-se
defensoras esclerosadas do status quo quando envelheceram.
Essa resistência à política institucionalizada e à disputa pelo poder estatal também tem
sido uma característica marcante da revolução mundial que ocorre hoje. Ela se baseia em
uma crítica às práticas das revoluções mundiais anteriores em que os sindicatos e os par-
tidos políticos caram atolados em lutas egoístas de curto prazo, que foram vistas como
tendo reforçado e reproduzido o capitalismo global e o sistema interestatal. Essa rejeição
da organização formal se reete na carta do Fórum Social Mundial, como discutido aci-
ma. E os mesmos elementos estavam fortemente presentes no movimento Occupy, bem
como na maioria das revoltas populares da Primavera Árabe (MASON, 2013).
A análise de Paul Mason4 (2013) arma que a base estrutural social para o hori-
zontalismo e a organização antiformal, para além da decepção com os resultados das
lutas realizadas pela Velha Esquerda, deveram-se à presença de um grande número
de estudantes de classe média como ativistas desses movimentos. A revolução mun-
dial de 19685 foi liderada principalmente por estudantes universitários que emergi-
4 Paul Mason é um jornalista britânico de 59 anos que é bem conhecido por estudiosos de movimentos
sociais transnacionais por sua cobertura etnográca perceptiva do movimento de justiça global (MA-
SON, 2013). Mason é um ex-trotskista que atua no Partido Trabalhista Britânico. Ele é um intrépido
protagonista do precariado com um sólido fundamento na história dos movimentos e ideais progressis-
tas e da economia política.
5 Revoluções mundiais são batizadas por um ano simbólico em que eventos importantes ocorreram e
que caracterizam a natureza da constelação de rebeliões designadas: 1789, 1917, 1968 e agora 20XX,
porque ainda é muito cedo para nomear a atual revolução mundial.
42 ARTIGOS
ram no cenário mundial com a expansão global do ensino superior desde a Segunda
Guerra Mundial. John W. Meyer (2009) explicou a revolta estudantil e a subsequente
redução da idade de votação como mais uma extensão da cidadania para grupos
novos e politicamente não incorporados demandando inclusão, análogas às revoltas
anteriores e incorporações de homens sem propriedade e mulheres.
Mason aponta as semelhanças (e diferenças) com a revolução mundial de 1848,
na qual muitos dos ativistas eram estudantes qualicados, mas desempregados.
Ele também argumenta que a participação na atual revolução mundial tem sido
fortemente composta por jovens altamente educados que estão enfrentando a forte
probabilidade de que eles não serão capazes de encontrar empregos compatíveis
com suas habilidades e níveis de formação. Muitos desses “graduados sem futuro
se endividaram para nanciar sua educação e estão alienados da política como de
costume e enfurecidos com o fracasso do capitalismo global para continuar a expansão
dos empregos da classe média. Esses graduados podem ser considerados parte do
precariado” de Guy Standing (2014), pois são cada vez mais forçados a participar da
economia gig6, com pouca esperança de um futuro emprego estável. Jovens altamente
educados compartilham um futuro econômico incerto com trabalhadores pobres em
todo o mundo, o que poderia produzir uma aliança transnacional de precariados
globalizados. Mason também faz notar que os pobres urbanos, especialmente no Sul
Global, e os trabalhadores do Norte Global cujos meios de subsistência foram atacados
pela globalização, foram elementos importantes nas revoltas ocorridas no Oriente
Médio, Espanha, Grécia e Turquia. Mason também ressalta a importância da Internet
e das mídias sociais para permitir que jovens descontentes organizem e coordenem
grandes protestos. Ele vê a “liberdade de tuitar” como um elemento importante em um
novo nível de liberdade individual que tem sido um relevante motor desses graduados
de classe média que gostam de confrontar os poderes constituídos em manifestações
em massa. Essa nova liberdade individual é citada como outra razão pela qual os
ativistas do movimento de justiça global têm sido reticentes em desenvolver suas
próprias organizações e participar de formas legítimas de atividade política, como a
política eleitoral.
Contudo, Mason e outros observadores participantes do movimento de justiça
global enfatizam um pouco em demasia a extensão em que o movimento tem sido
6 N.T.: Economia gig: “economia de graticação instantânea” costuma ser traduzida como “economia
freelancer”, “economia sob demanda, mas nada mais é que a conversão dos trabalhadores de tempo
integral e de trabalhadores precários, sem vínculos com as empresas, para tarefas pontuais para as quais
são contratados. Apesar de o termo ser antigo, criado por Jack Kerouac em 1952, ganhou força para
denominar a realidade emergente das plataformas digitais de demanda, como a Uber. É o mundo da
precariedade disfarçado de modernidade.
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incoerente em relação aos objetivos e perspectivas compartilhadas. Pesquisas de
participantes em Fóruns Sociais, tanto de nível mundial como nacional, encontraram
uma rede multicêntrica relativamente estável de temas de movimento em que um
conjunto de movimentos mais centrais serve como ligações para todos os outros
movimentos, com base na identicação relatada de ativistas com movimentos
(CHASE-DUNN e KANESHIRO, 2009). Todos os 27 temas de movimento utilizados
nas pesquisas de opinião foram conectados à rede maior por meio de coativismo,
de modo que havia uma única rede ligada, sem subgrupos (CHASE-DUNN e
KANESHIRO, 2009). Essa rede multicêntrica era bastante estável em todos os locais
de reunião7, o que sugere que tem havido uma estrutura semelhante de conexões
de rede entre movimentos que são globais em escopo, e que a rede de nível global
de movimentos também é muito semelhante à rede que existe entre ativistas do
rum Social de movimentos de base dentro dos EUA (CHASE-DUNN et al., 2019).
O conjunto central de temas de movimento aos quais todos os outros movimentos
estavam ligados incluía direitos humanos, antirracismo, ambientalismo, feminismo,
paz/antiguerra, política econômica alternativa e anticorporativa.
Enquanto a esquerda global continha tanto antiglobalistas que defendiam maior
autonomia local (AMIN, 1990; BELLO, 2002) quanto aqueles que favoreceram uma
forma alternativa e mais igualitária de globalização (PLEYERS, 2011), toda a questão
da antiglobalização deu uma guinada com a ascensão do populismo de direita e do
hipernacionalismo, apoiados, em grande medida, por alguns dos perdedores com o
projeto neoliberal global.
Globalismo da Justiça como Discurso
Uma estrutura organizacional que pode ganhar a delidade de um grande número de
ativistas, especialmente os jovens, precisará considerar a cultura da esquerda global
que surgiu desde a Revolução Mundial de 1968, revendo os resultados de dois estu-
dos cuidadosos.
Manfred Steger, James Goodman e Erin K. Wilson (2013) apresentaram os resul-
tados de um estudo sistemático das ideias políticas empregadas por 45 ONGs e or-
ganizações de movimentos sociais associados ao Conselho Internacional do Fórum
Social Mundial. Usando uma forma modicada da análise de discurso morfológico
desenvolvida por Michael Freeden (2003) para estudar ideologias políticas, Steger,
Goodman e Wilson (2013) analisaram textos (sites, comunicados de imprensa e
7 As pesquisas de opinião foram realizadas em encontros do Fórum Social em Porto Alegre, em 2005,
Nairóbi (Quênia) e Atlanta (Geórgia), em 2007, e Detroit (Michigan) em 2010.
44 ARTIGOS
declarações) e realizaram entrevistas para examinar os conceitos-chave, os conceitos
secundários e a coerência geral das ideias políticas expressas por essas organizações
como proponentes do “globalismo da justiça.
Os principais conceitos do globalismo da justiça extraídos por Steger, Goodman
e Wilson (2013, p. 28-29) são:
·democracia participativa,
·mudança transformativa ao invés de incremental,
·igualdade de acesso a recursos e oportunidades,
·justiça social,
·direitos humanos universais,
·solidariedade global entre trabalhadores, agricultores e povos marginalizados, e
·sustentabilidade ecológica.
Significados mais detalhados de cada um desses conceitos surgiram em uma
luta dialética em curso com o globalismo de mercado (neoliberalismo). Steger,
Goodman e Wilson (2013) discutem cada um deles e avaliam quanto consenso
existe nas 45 organizações de movimento que estudaram. Eles encontram um
grande grau de consenso, mas seus resultados também revelam muita contestação
em andamento entre os ativistas dessas organizações em relação às definições e
aplicações desses conceitos.
Por exemplo, embora a maioria das organizações pareça favorecer uma forma
ou outra de democracia participativa, há a consciência de alguns dos problemas
produzidos por uma ênfase excessiva nos processos horizontalistas de participação e
debates permanentes sobre formas de representação e delegação.
Algumas das organizações estudadas por Steger, Goodman e Wilson (2013) evitam
a participação em processos eleitorais estabelecidos, enquanto outras não. Os autores
destacam a importância da “multiplicidade” como uma abordagem que valoriza a
diversidade em vez de tentar encontrar soluções “de um tamanho que se encaixe em
todas. Eles observam que a carta do Fórum Social Mundial valoriza a inclusividade, o
acolhimento e o empoderamento de grupos marginalizados.Os Zapatistas, os ativistas
do Occupy e muitos no movimento ambientalista têm se engajado em esforços para
construir instituições e comunidades locais mais igualitárias e sustentáveis ao invés
de construir desaos organizados às estruturas globais e nacionais de poder. Embora
os direitos humanos sejam um tema de movimento muito central no movimento dos
movimentos, o movimento indígena global contesta a versão dos direitos humanos
consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas,
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de 1948. Os militantes dos movimentos indígenas ressaltam a importância dos
direitos comunitários sobre os direitos dos indivíduos e a ideia de que a “Mãe Terra
tem direitos8. Essas contendas foram compartilhadas pelos muitos ativistas que
simpatizam e se identicam com os povos indígenas (CHASE-DUNN et al., 2019).
A discussão da solidariedade global em Steger, Goodman e Wilson (2013) enfatizam
a centralidade do que Ruth Reitan (2007) chamou de “solidariedade altruísta” –
identicação com os povos pobres e marginalizados – sem muita consideração da
solidariedade com base em circunstâncias comuns ou identidades.Steger, Goodman
e Wilson (2013) fazem, no entanto, menção aos importantes esforços para vincular
grupos que estão operando em níveis locais e global de conito.
O estudo de Steger, Goodman e Wilson (2013) é um exemplo útil de como fazer
pesquisas sobre ideologia política e fornece evidências valiosas sobre posições
ideacionais e cultura da nova esquerda global. Tal estudo e os resultados da rede de
movimento resumidos acima implicam que a nova esquerda global tem um grau de
coerência que pode ser a base de uma maior articulação.
Think Tanks Transnacionais de Política Alternativa
O estudo minucioso de William Carroll (2016) sobre grupos de políticas alternativas
transnacionais de justiça global examinou o problema de como construir um bloco
transnacional contra-hegemônico de forças sociais progressistas (CARROLL, 2016). O
estudo de Carroll analisou 16 think tanks progressivos transnacionais do Norte Global
e do Sul Global9. Os resultados de Carroll concordam com os achados do estudo de
Steger, Goodman e Wilson (2013) sintetizados acima sobre o conteúdo discursivo do
movimento de justiça global. Carroll também observa que os think tanks progressivos
contra-hegemônicos que ele estudou têm tentado produzir conhecimento que seja
útil para a mudança social pregurativa e uma forma democrática e igualitária de
globalização em contraste com o projeto de globalização neoliberal. Carroll critica
abordagens locais e antiorganizacionais e propõe a globalização contra-hegemônica:
[...] um projeto globalmente organizado de transformação com o objetivo de substituir o
regime global dominante por um que maximize o controle político democrático e torne o
8 Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos da Mãe Terra, realizada em Co-
chabamba, Bolívia, em 2010 (WATERMAN, 2010).
9 Alguns exemplos bem conhecidos são a Fundação Rosa Luxemburgo (Rosa-Luxemburgo-Stiung), o
rum do Terceiro Mundo (Forum du Tiers-Monde), o Centro para a Sociedade Civil (Centre for Civil
Society), Alternativas de Desenvolvimento com Mulheres para uma Nova Era (Development Alternatives
with Women for a New Era) e Foco no Sul Global (Focus on the Global South).
46 ARTIGOS
desenvolvimento equitativo das capacidades humanas e a gestão ambiental suas prioridades.
(CARROLL, 2016, p. 30).
Ao mesmo tempo em que é importante criar um conhecimento que favoreça
uma globalização mais justa e equitativa, a produção de ideias tem que ir além
e criar fontes de conhecimento alternativas às do Norte Global. O trabalho de
Boaventura de Sousa Santos seguiu essa missão, sugerindo que a globalização neo-
liberal deve uma quantidade considerável de sua hegemonia à eciência pela qual
desacredita todas as fontes rivais de conhecimento (SANTOS, 2014). Além disso,
Santos (2014) argumenta que o conhecimento cientíco, embora considerado uni-
versalmente verdadeiro e imparcial, é produzido principalmente no Norte Global,
tendo por m as forças produtivas do neoliberalismo. Nesse processo, fontes al-
ternativas de conhecimento, fundamentadas em práticas ancestrais ou tácitas, são
consideradas como atrasadas, inecientes ou não comprovadas. Santos (2014, p.
92) chama esse processo de desdenho de “epistemicida, e sugere que não pode
haver justiça global sem o reconhecimento dessas formas alternativas de sabedoria,
ou melhor, das fontes alternativas do que constitui conhecimento. Em outras pala-
vras, a justiça global deve ir de mãos dadas com a justiça cognitiva. Um exemplo
primordial de esforço para expandir o conhecimento contra-hegemônico tem sido
a ascensão meteórica do conceito de buen vivir. Esse neologismo, que hoje faz parte
dos órgãos legais da Bolívia e do Equador, entende as comunidades humanas como
algo entrelaçado com o ambiente natural, o que, ao mesmo tempo, quebra a con-
cepção hegemônica das dimensões humana e natural como separadas e promove
uma losoa pela qual os objetivos econômicos estão sujeitos às necessidades do
mundo natural. O navio, que investigaremos com mais detalhe abaixo, pode for-
necer os elementos para incorporar todas essas diferentes epistemologias e suas
respectivas comunidades em uma frente única.
Primavera Árabe, Maré Rosa, Neofascismo e Desglobalização Estrutural
A situação política, econômica e demográca global tem evoluído de forma que de-
saa alguns dos pressupostos que foram feitos durante a ascensão do movimento de
justiça global e que requer ajustes nas análises, estratégias e táticas dos movimentos
sociais progressistas. A Primavera Árabe, a Maré Rosa latino-americana, os Indig-
nados na Espanha e a ascensão dos partidos da Nova Esquerda baseados na mídia
social na Espanha (Podemos), Itália e Grécia, e o pico de protestos de massa em 2011
e 2012 foram interpretados como o aquecimento de uma revolução mundial contra
a globalização neoliberal que começou no nal do século XX com a ascensão dos
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Zapatistas (CHASE-DUNN et al., 2014). No entanto, os resultados de alguns desses
movimentos colocaram em questão as táticas do movimento de justiça global. O par-
tido de esquerda Syriza, eleito na Grécia em 2015, foi um desastre que foi esmagado
pelos bancos europeus e pela UE. Eles dobraram a austeridade, ameaçando falir os
pensionistas da Grécia a menos que o regime de Syriza concordasse com novas políti-
cas de ajuste estrutural, o que aconteceu. Esse foi um caso em que um outro mundo
era possível, mas não aconteceu. Essa decepção foi sentida pelos outros novos par-
tidos de esquerda baseados na mídia social na Itália e na Espanha, bem como pelo
movimento de justiça global e pelo processo do Fórum Social.
O enorme aumento dos protestos globais em 2011-2012 foi seguido por uma
calmaria e, em seguida, uma intensicação renovada das revoltas dos cidadãos em
2015-2016 (YOUNGS, 2017). O movimento Black Lives Matter, o protesto contra o
Dakota Access Pipeline, o movimento #MeToo, as Marchas Globais das Mulheres e o
levantamento dos Antifa contra o neofascismo mostraram que a Revolução Mundial
de 20XX ainda estava acontecendo. No entanto, os resultados principalmente trági-
cos da Primavera Árabe e o declínio dos regimes populistas progressistas da Ma
Rosa na América Latina foram duros golpes para a esquerda global.
O processo do Fórum Social chegou tarde no Oriente Médio e no Norte da Áfri-
ca, mas acabou por chegar. Os movimentos da Primavera Árabe no Oriente Mé-
dio e Norte da África foram principalmente rebeliões de estudantes progressistas e
jovens que utilizaram as mídias sociais para mobilizar protestos em massa contra
regimes autoritários envelhecidos. O resultado na Tunísia, onde a sequência de pro-
testos começou, tem sido positivo até agora. Mas os resultados no Egito, Síria e Bah-
rein foram desastres (MOGHADAM, 2018)10. A Turquia e o Irã também devem ser
adicionados a essa lista. Os movimentos populares em massa que clamavam pela
democracia foram derrotados por movimentos islamistas mais bem organizados e
por golpes militares e/ou intervenção externa. Na Síria, partes do movimento foram
capazes de organizar uma luta armada, mas foram derrotados pelo antigo regime
com a ajuda russa. Fundamentalistas extremistas muçulmanos assumiram a luta
dos progressistas, e a guerra civil síria produziu uma enorme onda de refugiados
que se combinou com migrantes por razões econômicas da África para atravessar o
Mar Mediterrâneo em direção à Europa. Isso adicionou combustível aos já existentes
movimentos e partidos políticos nacionalistas populistas na Europa, impulsionando
vitórias eleitorais inspiradas nos sentimentos xenófobo e racista anti-imigrante. No
10 Val Moghadam (2018) mostra como as relações de gênero e mobilizações de mulheres antes da
explosão de protesto, juntamente com diferenças nas instituições políticas, sociedade civil e inuências
internacionais, explicam a maior parte da variação nos diferentes desfechos da Primavera Árabe.
48 ARTIGOS
Irã, o movimento verde foi reprimido. Na Turquia, Erdogan prevaleceu, reprimindo
o movimento popular, bem como os curdos. Todos esses acontecimentos, exceto na
Tunísia, foram grandes retrocessos para a esquerda global.
A substituição da maioria dos regimes progressistas da Maré Rosa e da América
Latina por neoliberais locais reinventados e/ou homens fortes semelhantes a Trump
tem sido em grande parte uma consequência da queda dos preços das exportações
agrícolas e minerais pela diminuição da demanda chinesa. Os esforços do governo
Bolsonaro para intensicar o desmatamento da Amazônia para ns agroindustriais,
mantêm muitas semelhanças com as medidas protecionistas tomadas pela adminis-
tração do presidente Trump para salvar muitas indústrias moribundas no Cinturão da
Ferrugem (Rust Belt). Ambos respondem a um esforço para recuperar uma vantagem
competitiva na economia mundial. Os programas sociais dos movimentos populis-
tas de esquerda dependiam de sua capacidade de tributar e redistribuir os retornos
dessas exportações. Mas isso também pode representar um novo normal melhora-
do para a América Latina, porque quase todas as transições anteriores envolveram
golpes militares e repressão violenta, enquanto a maioria dessas recentes transições
de regime para a direita têm sido relativamente pacícas e não envolveram tomadas
de poder pelos militares ou repressão violenta, com a notável exceção do golpe na
Bolívia em 2019, que, apesar da ruptura inicial, foi concluído com uma transição
democrática pacíca, devolvendo o poder ao partido de Evo Morales, Movimiento
al Socialismo. No Chile, protestos antineoliberais massivos em 2019 deram lugar a
um novo processo constitucional que ainda está por ser concluído. Até agora, o dese-
jo de compor um novo comitê constitucional para escrever a nova constituição foi
decidido em um referendo nacional. Embora o resultado do comitê e dos conteúdos
da nova constituição chilena sejam incertos, é certamente um sucesso notável para
os movimentos sociais no Chile e mostra que os processos democráticos na região
são muito mais estáveis do que no passado. No Brasil, a ameaça de regime militar
continua a desempenhar um papel na política, mas, pelo menos até agora, a mudança
para a direita tem sido menos violenta do que era nas transições de regime anteriores.
A democracia parlamentar estável parece nalmente ter chegado na maior parte da
América Latina. Isso não é utopia, mas é progresso. Esquerdistas podem disputar o
poder novamente na pxima rodada.
A ascensão contínua de movimentos populistas e neofascistas de direita e suas
vitórias eleitorais tanto no Norte Global quanto no Sul Global adicionaram uma nova
nota que lembra a ascensão do fascismo durante a Revolução Mundial de 1917. Cha-
se-Dunn, Grimes e Anderson (2019) compararam o direito global contemporâneo
com o direito global que existia nas primeiras décadas do século XX para identicar
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as semelhanças e diferenças nos movimentos, organizações, partidos e nos contextos
estruturais mais amplos que produziram essas ondas reacionárias. O fundamentalis-
mo religioso desempenhou um papel muito mais fraco na onda do início do século
XX. Estava presente, mas não tão dramaticamente. A ascensão do fundamentalismo
religioso após a Revolução Mundial de 1968 se deu em parte devido à percepção de
que a Velha Esquerda havia fracassado. Os fundamentalismos cristãos e islâmicos
têm sido fontes importantes de enquadramento para as forças de direita contra-he-
gemônicas que surgiram desde os anos 1970. O importante papel que a ameaçada
indústria de combustíveis fósseis está desempenhando atualmente no nanciamento
e apoio a causas de direita é outra diferença. No início do século XX, a indústria
de combustíveis fósseis foi uma força crescente no fornecimento de energia barata
para uma grande onda de industrialização. Mas os desaos da mudança climática
global antropogênica colocaram a indústria de combustíveis fósseis na defensiva
(CARROLL, 2014). Embora a indústria de combustíveis fósseis sempre tenha sido
conservadora, ela tem cada vez mais nanciado causas de direita durante a ascensão
contemporânea da direita global (MAYER, 2016; WENAR, 2016).
A outra grande diferença entre as primeiras e as últimas ondas da direita global é
o aventureirismo militar internacional, que foi um aspecto importante do fascismo
no início do século XX, mas, pelo menos até agora, não foi um aspecto importante do
populismo de direita ou neofascismo no nal do século XX e início do século XXI.
Essa é uma boa notícia, mas sua dependência da institucionalização de organizações
internacionais que deveriam manter a paz pode ser duramente testada na era
vindoura de multipolaridade e rivalidade interimperial que deve seguir o declínio
contínuo da hegemonia dos EUA (ver também MOGHADAM, 2018; MOGHADAM
e KAFTAN, 2019; BEREZIN, 2019).
Isso levanta a questão das relações entre movimentos e contramovimentos e
a possibilidade de que a instrumentalização e a articulação da esquerda global
possam ser impulsionadas pela necessidade de combater o fascismo do século XXI.
A gloricação de líderes fortes nos movimentos neofascistas e populistas de direita
também foi vista no século XX. Mas líderes carismáticos também foram importantes
em movimentos progressistas no passado. Os Socialistas Democráticos da América
(DSA), de certa forma, parecem estar reagindo contra a ideologia “sem liderança” dos
horizontalistas, capitalizando a extraordinária popularidade de seu membro mais fa-
moso, Bernie Sanders, atualmente o político mais popular dos Estados Unidos, com
63% de aprovação pública. A plataforma proposta por Sanders incorpora muitos dos
símbolos da Nova Esquerda e do movimento de justiça global.
Dani Rodrik (2018) armou que dois tipos de populismo surgiram para contestar
50 ARTIGOS
o projeto de globalização neoliberal. Na América Latina, nas décadas de 1980 e 1990,
as políticas de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional que exigiam aus-
teridade e privatização foram apoiadas por políticos nacionais neoliberais que ata-
caram os sindicatos e partidos dos trabalhadores do setor formal, mas isso produziu
uma reação populista em muitos países em que políticos progressistas foram capazes
de ganhar eleições fazendo campanha contra essas políticas e mobilizando os resi-
dentes do “planeta das favelas” (DAVIS, 2006) – a população do setor informal urba-
no. Esse fenômeno foi chamado de “Onda Rosa. Regimes baseados no populismo de
esquerda surgiram na maioria dos países latino-americanos, e Rodrik corretamente
vê isso como uma reação contra o projeto de globalização neoliberal. O populismo
de direita emergiu, e ainda está emergindo, em países do Norte Global nos quais a
globalização neoliberal produziu desindustrialização e em que muitos trabalhadores
perderam seus empregos. Isso ocorreu em contextos em que era mais fácil para os po-
líticos culpar os imigrantes e as minorias do que apontar o dedo aos grandes vence-
dores do capitalismo global – o capital nanceiro e as corporações transnacionais. E
alguns dos grandes vencedores apoiaram a política do hipernacionalismo, xenofobia,
racismo e sexismo, que são os músculos do populismo de direita e do neofascismo.
Políticos populistas de direita exploraram clivagens ao longo de linhas culturais,
reunindo indivíduos contra estrangeiros e minorias. Os movimentos populistas de
esquerda, por outro lado, tenderam a angariar apoio com base nas clivagens econô-
micas. Eles apontaram o 1% dos ricos e as grandes corporações como responsáveis
pelas crises econômicas e políticas de austeridade do século XXI. Assim, o projeto de
globalização neoliberal e as crises do capitalismo global tardio produziram uma po-
larização política crescente, como o contexto no qual a nova esquerda global precisa
reconsiderar sua cultura e atitudes em relação às questões organizacionais.
Além de tudo isso, a pandemia global da Covid-19 tem o potencial de acelerar um
novo processo de desglobalização. É mais provável que exacerbe um período de reali-
nhamento geopolítico, já que as nações desenvolvidas do Ocidente foram duramente
atingidas pela pandemia (tanto pelo grande número de casos quanto economicamen-
te falando). Um sinal relevante dessa transição geopolítica é a mudança na localização
do Fórum Econômico Mundial 2020 de Davos para Cingapura. A pandemia global
causou um grande prejuízo nas cadeias de abastecimento globais, causando grandes
apelos para “reindustrializar” e reduzir a dependência da manufatura chinesa. Por
sua vez, isso poderia alimentar as posições da direita populista global e reforçar sua
presença nas câmaras legislativas na Europa e em outros lugares. Outro efeito rele-
vante da pandemia em áreas periféricas, como América Latina, África Subsaariana
ou Sudeste Asiático, é o tipo de estratégia de desenvolvimento que será seguida a
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partir de agora. A pandemia destacou como os países com altos níveis de liberdade
econômica e regimes políticos fortes, ou mesmo semiautoritários (por exemplo, Cin-
gapura ou China) administraram os surtos de maneira bastante ecaz. Os países do
Sul Global poderiam buscar alternativas políticas ao desenvolvimento da democracia
liberal e, portanto, causar um grande golpe nas coalizões progressistas internacionais.
O resultado infeliz da Primavera Árabe, o m da Onda Rosa, a ascensão de mo-
vimentos e partidos populistas de direita e neofascistas e a possível chegada de ou-
tro período de desglobalização com a pandemia são desenvolvimentos que sugerem
que a esquerda global precisa conceber estratégias que possam ser mais ecazes no
enfrentamento das crises do capitalismo global e na construção de uma sociedade
mundial mais igualitária, democrática e sustentável. Mas esse projeto também preci-
sa estar ciente da cultura contemporânea da esquerda global.
O navio11: forjando um instrumento diagonal para a esquerda global
Um novo discurso emergiu nos últimos anos a respeito das possibilidades de maior
articulação entre os movimentos de esquerda global em torno das ideias de frentes
unidas, frentes populares e novas formas de organização. A tendência dos movimen-
tos sociais progressistas de se formarem em torno de questões únicas e políticas de
identidade é cada vez mais vista como um problema que impede uma mobilização
mais ecaz para permitir que as pessoas construam projetos e comunidades mais
igualitários e sustenveis, além de se tornarem um ator signicativo e consequente
na política mundial. Isso foi reconhecido e abordado de maneiras diferentes por ati-
vistas e teóricos políticos nos últimos 20 anos. A defesa de John Sanbonmatsu (2004)
de um projeto global contra-hegemônico de esquerda localiza as raízes do horizonta-
lismo e da celebração da diversidade na ascensão dos novos movimentos sociais e da
losoa pós-moderna nos anos que se seguiram à Revolução Mundial de 1968. Ele
arma que a ênfase pós-moderna nas diferenças e diversidades mina a capacidade
das forças progressistas de se unirem para lutar pela mudança social. A sociologia
crítica pós-moderna foi uma reação um tanto compreensível contra o stalinismo e o
foco principal na tomada do poder estatal pelos partidos operários, que era o modus
operandi da Velha Esquerda. Neoleninistas como Jodi Dean (2012, 2016) apontaram
as limitações dos protestos de massa sem liderança como um método para produzir
mudanças políticas. O estudo de Zeynep Tufekci (2017) sobre movimentos que fo-
11 O instrumento deve ser nomeado por aqueles que fazem o trabalho para criá-lo. Nossa sugestão
de “embarcação” pretende ser inclusiva e diagonal. Outros sugeriram a Quinta Internacional (AMIN,
2008), uma Internacional de Trabalhadores e Povos (AMIN, 2018); o Príncipe pós-moderno (GILL,
2000; SONBONMATSU, 2004) e o Partido Mundial (WAGAR, 1999).
52 ARTIGOS
ram ativados por redes sociais observa sua fragilidade e suscetibilidade à interrupção.
Greg Sharzer (2012, 2017) relata o destino das comunidades utópicas nos últimos
dois séculos, que geralmente morrem ou são reincorporadas aos negócios capitalis-
tas, como de costume.
Sahan Savas Karatasli também teorizou como os movimentos progressistas glo-
bais poderiam se aliar ao longo de diferentes linhas locais, nacionais e globais (KA-
RATASLI, 2019). Para ele, a maioria dos movimentos sociais do início do século
XXI surgiu como entidades espontâneas e sem liderança. A maioria desses movi-
mentos (por exemplo, Tahir Square, Indignados [15-M] ou o Occupy) falhou no
curto prazo em fazer reformas signicativas. Em contraste, as revoluções sociais do
início do século XX, nas quais organizações mais centralizadas se revoltaram em
nome da classe trabalhadora (a mais proeminente delas, a Revolução Bolchevique),
estabeleceram estados socialistas bem-sucedidos, mas devolvidos a regimes autori-
tários burocráticos (KARATASLI, 2019).
Ambas as tendências, por si só, podem ser fatais para os movimentos sociais. Os
movimentos voluntários e hierárquicos do início do século XX não levaram as mas-
sas operárias ao poder. Em vez disso, eles se transformaram em estruturas militaris-
tas/burocráticas que armavam ser agentes do proletariado, mas eram na verdade os
instrumentos de uma nova classe de burocratas do partido. Por outro lado, a esponta-
neidade e a horizontalidade dos movimentos sociais do século XXI (que pretendiam
superar as deciências da Velha Esquerda) são muito evanescentes para ter um im-
pacto duradouro na política mundial e nas instituições globais (KARATASLI, 2019).
Para superar esses contratempos estruturais, Karatasli (2019) apoia a formação de
duas organizações políticas progressistas globais que trabalharão simultaneamente
e de forma colaborativa para lutar pelo poder na arena global. Dessa forma, organi-
zações espontâneas, sem liderança e horizontais podem aproximar-se do poder por
meio de uma grande estrutura política global que disputa o poder em diferentes are-
nas nacionais e internacionais.
Samir Amin (2008, 2018) propôs uma nova internacional progressista para servir
como um instrumento para o movimento de justiça global na política mundial. Sua
proposta de Quinta Internacional invoca a memória das internacionais socialistas e
comunistas anteriores, levantando temores de vanguardismo entre os horizontalistas.
Mas os focos organizacionais e de problema da proposta de Amin têm elementos in-
ternacionais que são diferentes dos anteriores. A Quinta Internacional é uma aliança
de entidades nacionais, mas permitiria a participação de mais de um grupo legítimo
por país. Amin difere de muitos outros ativistas da justiça global ao ver os projetos
progressistas nacionais como a arena de luta mais importante, levantando a questão
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do conteúdo do nacionalismo progressista.
O Fórum Social Mundial realizado em Salvador, Brasil, em 2018, enfocou como o
seu processo poderia ser reinventado para enfrentar a ascensão das forças de direita
(MESTRUM, 2017, 2018) de forma mais ecaz. O m dos Fóruns Sociais dos EUA e
da Europa pode signicar que o processo do Fórum Social está se encerrando. Se for
esse o caso, a pergunta é: O que pode substituir e melhorar o Fórum Social? Dados
os inúmeros grupos de interesses concorrentes, todos com reivindicações legítimas,
o quebra-cabeça é como uni-los em um movimento global de justiça social que seja
inclusivo, mas que também enfoque os principais problemas que a humanidade en-
frenta no século XXI. A interseccionalidade como um paradigma teórico que iden-
tica camadas entrelaçadas na matriz da opressão (HOOKS, 2014), pode ser usada
para construir um esquema para encaixar as múltiplas identidades e questões que
estão envolvidas no movimento global de justiça social.
Um movimento político integrado precisaria “nomear o inimigo” (STARR, 2000).
A direita global tem sido ecaz em grande parte porque construiu seus pprios ini-
migos como os “globalistas, o “sistema” e “imigrantes. Um amplo movimento de
justiça social global precisará nomear como inimigos os predadores da classe corpo-
rativa transnacional e da direita global neofascista e populista, e tornar evidentes as
conexões entre esses inimigos e a opressão e exploração da maior parte da população
humana tanto do Sul Global quanto do Norte Global.
As versões de Amin e Dean do neoleninismo diferem em alguns aspectos quanto
às suas noções de agência. Amin era um terceiro-mundista que via os trabalhado-
res e camponeses do Sul Global como os principais agentes da mudança social pro-
gressiva. Dean é mais uma trabalhadora que pensa que trabalhadores organizados
liderados por comunistas dedicados do Norte Global e do Sul Global podem se unir
para transformar o capitalismo global. Enquanto Dean se entusiasma com o espírito
afetivo demonstrado pelas multidões em 2011, ela arma que um partido organizado
será necessário para mobilizar uma transformação progressiva do capitalismo global:
“[...] essa perspectiva que dá corpo ao sujeito político é o partido” (DEAN, 2016, p.
19). Nem Dean nem Amin abordam diretamente a questão do vanguardismo, que foi
uma das contribuições mais importantes de Lenin para a metodologia e estratégia
do movimento comunista. Amin é sensível à acusação de vanguardismo, mas arma
que existem estruturas estatutárias que podem ser usadas para garantir o controle
democrático de um partido político global. Amin (2018, p. xx) diz que:
O objetivo deve ser estabelecer uma Organização (a nova Internacional) e não apenas um
movimento. Isso envolve ir além do conceito de fórum de discussão. Implica também ana-
54 ARTIGOS
lisar as inadequações da noção, ainda prevalecente, de que os ‘movimentos’ armam ser ho-
rizontais e hostis às chamadas organizações verticais a pretexto de que estas últimas são por
sua própria natureza antidemocráticas: de que a organização é, na verdade, o resultado de
uma ação que por si mesma gera ‘líderes. Este último pode aspirar a dominar, até mesmo
manipular os movimentos. Mas também é possível evitar esse perigo por meio de estatutos
apropriados. Isso deve ser discutido.
Concordamos com Amin e Dean que as ideologias antiorganizacionais que têm
sido uma parte saliente da cultura dos movimentos progressistas desde 1968 têm
sido também um grande obstáculo, restringindo a capacidade desses movimentos
de realizar efetivamente seus próprios objetivos. Mas essas ideias e sentimentos são
profundos e, portanto, qualquer esforço para construir formas organizacionais que
possam facilitar a ação coletiva progressiva deve estar ciente dessa cultura embutida.
A Internet e as mídias sociais, permitindo comunicações de massa baratas e ecazes,
têm sido responsabilizadas por produzir movimentos especializados em um único
assunto. Sugerimos que as comunicações virtuais e as tecnologias de tomada de de-
cisão democrática podem ser aproveitadas para produzir organizações mais susten-
tadas e integradas e ferramentas ecazes que podem ser usadas para lutar pelo poder
nas ruas e corredores institucionais do sistema mundial.
Também achamos que o velho debate reformista/revolucionário sobre se deve-
mos nos engajar na política eleitoral é um obstáculo à capacidade da esquerda global
de lutar efetivamente. Concordamos que mudar as políticas dos Estados ou assumir o
poder neles não devem ser os únicos objetivos dos movimentos sociais progressistas.
Os Estados não são, e nunca foram, sistemas inteiros. São organizações que existem
em uma economia mundial maior e em um sistema interestatal. E, embora não de-
vam ser o único alvo de movimentos progressistas, seus recursos organizacionais po-
dem ser usados para facilitar a construção de uma sociedade global pós-capitalista.
Os autonomistas percebem corretamente que a dependência dos recursos e apoio
do Estado, bem como do nanciamento das principais fundações, muitas vezes com-
promete a integridade e a exibilidade das organizações de movimentos sociais em sua
capacidade de desaar as estruturas de poder existentes. Mas os movimentos sociais
transnacionais progressistas devem estar preparados para trabalhar com os governos
progressistas a m de tentar mudar as regras da ordem econômica global (EVANS,
2009, 2010). Se as organizações de movimentos sociais se tornarem parte do problema
em vez de parte da solução, novas organizações de movimentos sociais menos depen-
dentes e comprometidos podem assumir a luta. É necessário um movimento multinível
de movimentos que promovam as regiões dentro do país (os níveis nacional, regional
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mundial), o Norte Global, o Sul Global e níveis globais de organização.
Que papéis as ONGs globais existentes e as alianças civis internacionais podem
desempenhar nesse projeto? A Via Campesina forneceu por décadas um projeto
muito resistente que busca unir agricultores pobres e organizações camponesas de
todo o mundo para organizar redes de produção agrícola e alternativas de distri-
buição às cadeias globais de commodities neoliberais. Essa organização atuou não
apenas como uma organização civil, mas como uma verdadeira rede econômica e
social para os pequenos agricultores. O sucesso da Via Campesina é bem conhe-
cido entre os ativistas globais progressistas por causa de sua história de trabalho
como uma verdadeira organização global, sem comprometer as lutas nacionais pela
soberania alimentar e os direitos dos agricultores às sementes. Hoje, a Via Campe-
sina representa cerca de 200 milhões de agricultores por meio de 181 organizações
em 81 países. Desde 2000, tem havido uma ascensão meteórica de organizações de
base globais progressistas que visam combater o capitalismo neoliberal em diferen-
tes frentes – ambientalismo, racismo, direitos dos trabalhadores etc. O Greenpeace
é um dos grupos mais proeminentes no movimento pela justiça ambiental. Com
cerca de 3,2 milhões de contribuintes e escritórios em 55 países, a organização, que
foi fundada em Vancouver em 1971, combinou efetivamente objetivos globais e lo-
cais/regionais e contestou o poder global dos Estados e corporações para proteger
o meio ambiente. O espaço proposto funcionará como um guarda-chuva organi-
zacional para ajudar ONGs progressistas existentes e emergentes a coordenar suas
atividades em uma ampla gama de questões.
Os movimentos sociais transnacionais progressistas também devem estar dispos-
tos a trabalhar em nível local com os governos municipais para implementar metas
progressistas, como uma renda básica universal, já que essas cidades podem servir
como exemplos progressivos (WRIGHT, 2010; LOWREY, 2018; VAN PARIJS e VAN-
DERBORGHT, 2017). Isso inclui compreender as experiências com as cidades do Sul
Global e aplicar as lições aprendidas no Norte Global. Por exemplo, uma renda básica
universal foi testada no século XXI no Quênia e no Brasil e agora está sendo introdu-
zida em Stockton (Califórnia) e em Chicago. Concordamos com Paul Mason (2015)
que o antiutopismo da Velha Esquerda e de alguns da Nova Esquerda estava um tanto
deslocado. A pré-conguração é uma boa ideia. Redes de compartilhamento, coope-
rativas, bancos comunitários, residências com emissões zero, fazendas e indústrias
são esforços que valem a pena para os ativistas da esquerda global (WALLERSTEIN,
1998). Mas esses projetos locais precisam ser vinculados e coordenados para que pos-
sam competir efetivamente na política nacional e mundial. Explicar como estruturar
tal internacional progressista efetivamente requer uma compreensão do horizonta-
56 ARTIGOS
lismo, verticalismo e nossa síntese proposta, encontrada no diagonalismo. Só então
pode ser construída uma rede partidária (partnet) forte e exível o suciente para
resistir aos desaos da organização global.
Estrutura Organizacional Diagonal
A ideia de movimentos e organizações sem liderança é uma bandeira anarquista que
foi criticada tanto por marxistas (EPSTEIN, 2001) quanto por feministas (FREE-
MAN, 1972-1973). As organizações políticas precisam ter procedimentos institucio-
nalizados para a tomada de decisões e maneiras de responsabilizar a liderança para
que os erros possam ser reticados. Esses requisitos não são tão importantes quando
o sistema mundial está funcionando normalmente, mas quando as crises sistêmicas
estouram e poderosos movimentos e regimes sociais populares de direita emergem,
a ausência de liderança se torna um luxo inaceitável. Uma alternativa à “marcha em
linha” leninista deve ser encontrada. Enquanto a cultura da esquerda global contem-
porânea geralmente equipara a ideia de um partido político a partidos de vanguarda
ou máquinas eleitorais, há uma literatura recente que argumenta que novas formas
de organização partidária são possíveis na era da comunicação pela Internet (DEAN,
2012, 2016; CARROLL, 2015).
As fazendas wiki12 facilitam a formação de organizações virtuais que combinam
os méritos de redes abertas com estruturas de liderança (administradores de dados),
permitindo aos grupos criar documentos coletivamente e tomar decisões em
grupo. O horizontalismo valoriza a falta de liderança e a informalidade, geralmente
acompanhadas de uma tomada de decisão consensual. As organizações horizontalistas,
também chamadas de “auto-organização” (PREHOFER e BETTSTETTER, 2005), têm
várias vantagens: resiliência (você pode extinguir algumas delas, mas há redundância),
exibilidade e adaptabilidade, entidades individuais interagem diretamente umas com
as outras, e não há hierarquia maior que pode ser interrompida. Essas características
desejáveis são aquelas enfatizadas pelos defensores das redes horizontalistas. Mas
os críticos da horizontalidade apontam que a ausência de estrutura não impede o
surgimento de estruturas informais entre grupos de amigos, e os participantes que
não estão ligados a essas redes de amizade não têm mecanismos para regular o poder
das redes informais (FREEMAN, 1972-1973).
O diagonalismo combina o horizontalismo com uma estrutura organizacional
formal semicentralizada, ela própria democrática e exível. Uma organização diago-
12 Uma fazenda wiki é uma coleção de wikis em execução no mesmo servidor da web e compartilhando
um motor wiki principal.
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nal é um complexo de indivíduos conectados horizontalmente, pequenos grupos e
organizações regionais maiores com uma estrutura de tomada de decisão pela qual
os grupos podem discutir e adotar políticas e implementá-las. As hierarquias são tão
planas quanto possível, de acordo com a capacidade organizacional, e os grupos com-
postos podem se reportar a mais de um grupo de liderança. A liderança é rotativa e
maximiza as oportunidades para a democracia participativa. A burocracia organiza-
cional é reduzida ao mínimo, mas representantes legítimos ou delegados de grupos
horizontais tomam decisões coletivas e ajudam a formular políticas e planejar ações
para toda a organização. Os graus de hierarquia podem ser exíveis, dependendo da
natureza da tarefa. Tarefas de alto risco geralmente requerem mais hierarquia. Os
grupos locais podem ajustar suas estruturas organizacionais ao contexto e à natureza
da tarefa. O pprio espaço deve manter estruturas democráticas e exíveis de toma-
da de decisão e implementação.
O navio é uma rede diagonal formada por grupos de afinidade do projeto
e comunidades locais que compartilham os resultados de seus experimentos e
construções e se coordenam para ações políticas, incluindo manifestações de
massa, campanhas eleitorais e mobilizações de apoio e contenção. O diagona-
lismo vincula redes horizontais de indivíduos e grupos com uma estrutura de
liderança legítima, composta de delegados designados com poderes para execu-
tar as decisões da organização que os nomeia. Os delegados tomam decisões em
grupo por meio de consenso e votação. Várias organizações podem representar
comunidades e nações. O conselho do navio será um compromisso entre as es-
truturas horizontais sem líder e as estruturas de comando hierárquico, nas quais
a liderança é mantida por indivíduos ou grupos delegados. O navio se concen-
trará na articulação de questões centrais e formulará visões, estratégias e táticas
para a esquerda global. Irá promover a comunicação e colaboração entre projetos
transnacionais, nacionais e locais. O navio não deveria ser um partido político no
sentido antigo, mas deveria ser permitido, ao contrário do que ocorre no Fórum
Social Mundial, adotar resoluções e apoiar candidatos e campanhas. Deve ter
uma estrutura designada composta de um conselho de delegados facilitadores
escolhido para coordenar a tomada de decisão coletiva e lidar com problemas
de segurança e comunicações. As organizações globais progressistas existentes
devem ser encorajadas a aderir. As funções do navio e das organizações-membro
variam dependendo das circunstâncias, mas o nível do navio deve se especializar
na política de organizações internacionais e questões globais, enquanto as orga-
nizações regionais locais, nacionais e mundiais podem se concentrar nas ques-
tões que são salientes em seus contextos.
58 ARTIGOS
Questões
As principais questões que achamos que devem constituir o foco do navio são:
Justiça climática;
Direitos humanos;
Antirracismo, descolonização e direitos indígenas;
Feminismo e direitos queer;
Redes de compartilhamento;
Alianças de paz/antiguerra;
Ativismo popular progressivo local e urbano;
Transnacionalismo anticorporativo (justiça tributária etc.); e
Governança global democrática.
O navio também deve coordenar esforços para combater o fascismo do século
XXI e o populismo de direita, assim como deve encorajar a participação (na forma
de frentes unidas ou frentes populares) de ONGs e partidos políticos que desejam
colaborar com esses esforços.
Os direitos humanos e o antirracismo têm sido centrais na rede de movimentos
participantes do processo do fórum social. O Indigenismo Global (HALL e FENE-
LON, 2009; CHASE-DUNN et al., 2019) tem sido uma questão cada vez mais impor-
tante para a esquerda global. Os direitos dos povos colonizados, minorias raciais e
étnicas, povos indígenas e pessoas queer são centrais para as preocupações inclusivas
da esquerda global. O movimento de justiça climática já é um projeto colaborativo
que combina ambientalistas com aqueles que se concentram nas comunidades mais
vulneráveis (BOND, 2012; FORAN, 2018; FORAN, GRAY e GROSSE, 2017). O fe-
minismo tem sido um dos movimentos centrais na rede de movimentos dos fóruns
sociais (MOGHADAM, 2018). Redes de compartilhamento são uma ferramenta de
potencial para organizar instituições pós-capitalistas que podem transformar a lógica
do capitalismo global (MASON, 2013; DANAHER e GRAVITZ, 2017). Os movimen-
tos de paz/antiguerra precisam de mobilização local e nacional contra o militarismo
(BENJAMIN, 2013), bem como engajamento com organizações governamentais in-
ternacionais a m de prevenir o surgimento de guerras entre Estados centrais no
mundo multipolar vindouro. As organizações políticas internacionais existentes es-
tão sob o ataque de forças de direita. O navio precisa defender o fortalecimento e a
democratização das instituições de governança global que podem ajudar a manter a
paz enquanto a humanidade passa pela próxima fase multipolar de rivalidade inte-
rimperial e se mover na direção de uma eventual forma democrática e coletivamente
racional de governança global. O nacionalismo progressista é uma tática defensi-
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va importante contra a apropriação do nacionalismo pelos populistas de direita e
neofascistas. Por exemplo, como a economia nacional dos Estados Unidos poderia
ser reorganizada para produzir coisas necessárias no exterior sem destruir o meio
ambiente e de uma forma que use as habilidades daqueles que foram deixados de
fora da globalização neoliberal? O mundo desglobalizante está reinventando o na-
cionalismo como uma resposta às crises produzidas pelo processo de globalização
neoliberal. Em muitos casos, esse nacionalismo se transformou em neofascismo.
A esquerda global tem sido decididamente cosmopolita e internacionalista, mas
como poderia envolver a crescente onda de nacionalismo para propor relações
mais cooperativas com os povos no exterior e com o Sul Global? O navio também
precisa apoiar a formulação de análises e estratégias para movimentos em nível lo-
cal e nacional que lutam contra o aumento do autoritarismo de direita e a repressão
aos movimentos populares progressistas.
Conclusão
Em vez de ceder ao cinismo, resignação e depressão, a esquerda global precisa en-
frentar os reveses que ocorreram e conceber uma nova estratégia para mover a hu-
manidade em uma direção melhor. Uma solução possível está na abordagem dos
organizadores do DiEM25, o Movimento Democracia na Europa 2025, que vem agi-
tando por uma internacional progressista desde a sua fundação, em 2016. O DiEM25
teve apenas uma pequena presença nas últimas eleições para o Parlamento Europeu,
mas suas propostas delineiam uma abordagem cuidadosa para a formação de uma
organização progressista de movimento social supranacional. Embora agora esteja
limitado às nações europeias e à América do Norte (incluindo o México), sua abor-
dagem diagonalista é adequada para uma organização exível que pode enfrentar os
movimentos globais de direita e a classe capitalista transnacional. O projeto do navio
irá expandir o escopo e a missão de organizações como a DiEM25. Com boa lideran-
ça e participação entusiástica, o navio pode expandir o trabalho de redes partidárias
globais como o DiEM25, a Via Campesina e o Greenpeace para envolver mais ativis-
tas do Sul Global e abraçar o movimento de justiça global com grande atenção aos
problemas da desigualdade global.
O Fórum Social Mundial (FSM) tem funcionado efetivamente por duas décadas
como um campo de treinamento para o navio, onde ativistas progressistas, intelec-
tuais orgânicos, movimentos de base, ONGs e organizações internacionais se reuni-
ram para propor alternativas viáveis à globalização neoliberal. O navio funcionaria
de maneira semelhante ao FSM, combinando e incluindo muitos corpos diferentes e
diversos de mudança social. As pximas décadas serão caóticas, mas os movimentos
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e instituições que construímos podem tornar as coisas melhores. Quer as grandes ca-
lamidades venham ou não de uma vez ou sequencialmente, precisamos buscar uma
estratégia de “pós-capitalismo de desastre” que plante as sementes do futuro durante
o caos. Não é o m, apenas outra era das trevas e uma oportunidade de transição para
um sistema mundial muito melhor. O navio pode nos levar até lá.
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