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A Universidade Necessária: o compromisso civilizatório de Darcy Ribeiro
Lia Faria
1
*, Carla Villanova
2
** e Silvio Souza
3
***
Resumo: Este artigo analisa o pensamento-ação de Darcy Ribeiro e como seus “fazimentos
inuenciaram a educação superior brasileira. Com uma intensa participação política, nos anos 1960,
criou a Universidade de Brasília (UnB) e, posteriormente, a Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF), já nos anos 1990. O presente estudo arma a importância do pensamento humanista e das
ações do intelectual Darcy Ribeiro para a universidade no Brasil e na America Latina, inspirado
na diversicação dos povos e no reconhecimento do que chamou de “processo civilizatório” para a
construção da Universidade Necessária.
Palavras-chave: Darcy Ribeiro. Universidade Necessária. Processo Civilizatório.
Abstract: is work analyzes the path made by Darcy Ribeiro and how his thoughts and acts inuenced
Brazilian education, mostly the university. He had an intense political participation in the 1960s, with the
creation of the Universidade de Brasília (UnB), and of the Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF) in the 1990s. is work talks about the importance of Darcy Ribeiros humanist thoughts and
actions to the university in Brazil and Latin America, as he understood the importance of the pluralities
of peoples and of what he called the “civilizing process” to the creation of the Necessary University.
Keywords: Darcy Ribeiro. Necessary University. Civilizing Process.
Resumen: Este estudio investiga el sentido de la universidad en el pensamiento de Darcy Ribeiro.
Como su pensamiento contribuió para el proceso de construcción y de autonomía de la Universidade
de Brasília (UnB) en los años 1960 y de la Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) en los
anõs 1990. El presente trabajo resalta la importancia del pensamiento humanista del intelectual Darcy
Ribeiro. Se abordan sus hechos acerca de la Universidad Brasileña y la diversicación de los pueblos
latinoamericanos a lo qué Darcy Ribeiro llamó “proceso civilizatorio” y la idea de una Universidad
Necesaria.
Palabras-clave: Darcy Ribeiro. Universidad Necesaria. Proceso Civilizatorio.
* Professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/
UERJ. professora colaboradora no Programa de Pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PROPEd). Coordena o Laboratório Educação e República (LER). Pós-doutora em Educação
pela Universidade de Lisboa (2012) e em Ciência Política pelo IUPERJ (2008), doutora em Educação
(UFRJ/1996).
** Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ) e Orientadora Educacional da
Secretaria Municipal de Educação de Duque de Caxias
*** Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ) Professor de Filosoa e Sociologia
da Secretaria Estadual de Educação (RJ) e Pesquisador no Grupo de Pesquisa Ideário Republicano e
Educação Fluminense (UERJ/Proped-CNPQ).
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A questão agora para o Brasil é que nós nos tornemos capazes de um projeto deixando de
sermos um povo para os outros, para sermos um povo para nós mesmos. Isto importa em
renovações muito profundas em toda a estrutura. Isto aplicado na universidade importa em
universidade de um novo tipo. Uma universidade com alto sentido de responsabilidade social.
(RIBEIRO, 2007, p. 45).
A epígrafe acima é bastante signicativa no que tange ao pensamento-ação
de Darcy Ribeiro sobre a realidade brasileira, destacadamente no que se refere à
edicação do país sobre os pilares da “dependência consentida” pelas elites dirigentes
– uma relação que ocasiona o atraso para muitos e a “modernização” para poucos.
Como alternativa a esse processo contínuo de subordinação que vem se
perpetuando ao longo de séculos, Darcy arma a necessidade de mudanças profundas
na estrutura social brasileira e indica como um dos caminhos possíveis para uma
transformação em bases autônomas, a renovação da universidade como um lócus
vital na produção de conhecimentos/saberes e, também, como um polo irradiador
de cultura nacional, enm uma Universidade Necessária1.
Para que possamos reetir/compreender o pensamento-ação de Darcy Ribeiro
para a universidade brasileira, orientamos nossa argumentação tomando como base
uma revisão da literatura, que consiste na análise das obras do próprio Darcy Ribeiro
e da contribuição teórica de outros pensadores. Para essa empreitada, entrecruzamos
os conhecimentos/saberes das áreas de Filosoa, Ciências Sociais e Educação, a m
de elucidar conceitos e estabelecer relações argumentativas visando o entendimento
sobre a autonomia e o papel social da Universidade.
Ainda no campo teórico-metodológico, entendemos que as opções adotadas
na abordagem e análise de uma determinada questão precisam ser compatíveis
e coerentes com a visão/entendimento de mundo do pesquisador. Nesse sentido,
pontuamos que o tema aqui proposto será desenvolvido de forma a contemplar as
relações processuais de mudança coerentemente com o acercamento teórico do
materialismo histórico, que nos auxilia na compreensão da dinâmica da realidade
social e revela as contradições que lhe são inerentes. Destacamos que, ao abordarmos
o pensamento-ação de Darcy Ribeiro, tal conceito não será analisado de forma linear,
mas dialetizando as mudanças possíveis rumo a um novo ordenamento social.
Darcy foi um intelectual marcado pelos contextos de época, e por meio de seu
1 A expressão Universidade Necessária refere-se ao livro que Darcy Ribeiro escreveu no exílio. Trata-se
de uma das mais importantes obras como análise crítica dos problemas com que se defronta a América
Latina no campo da educação superior. Apresenta uma reexão sobre a evolução histórica da idéia de
universidade, revelando sua função de um instrumento possível para a aceleração do desenvolvimento
nacional.
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pensamento-ação buscava expressar o melhor da cultura do povo, sem desconhecer
as enormes diculdades sociais, econômicas e políticas. Entretanto, nunca se
apresentou como vítima da história, mas como um ético participante dos grandes
embates de seu tempo, visando à transformação da realidade cruel e injusta que foi
imposta (ou que deixamos impor) aos nossos povos. É oportuna esta observação de
Eric Nepomuceno (apud RIBEIRO, 2009, p. 10): “Darcy Ribeiro foi um homem de seu
tempo e um intelectual de permanência. Havia nele, acima de tudo, o compromisso
ético de mudar a sociedade, para um outro mundo que sabia possível.
É nesse sentido que Darcy propõe a análise da universidade entendida em sua
radicalidade2 e que pressupõe aspectos associados às bases do desenvolvimento
democrático da nação. Cabe registrar que, tradicionalmente, uma das funções
principais dos sistemas educacionais modernos, destacadamente do ensino superior,
é a formação das elites condutoras do país e a conseqüente ocupação de cargos
político-administrativos, fundamentando a manutenção do status quo e perpetuando
a idéia equivocada de que o povo deve car apartado da universidade. Essa é a base
da sua critica à instituição e para a qual apontava caminhos de superação dessa
realidade.
Objetivando ultrapassar a visão de mundo limítrofe das elites (ou frações da
elite), Darcy propõe como idéia-força da educação a edicação do autoconhecimento
nacional, tarefa em que os sistemas educacionais públicos e suas instituições
assumiriam papel de destaque. Toda a sua análise demonstra uma preocupação
central com a reorganização do Estado brasileiro, buscando um comprometimento
nacionalista dos cidadãos e, principalmente, denunciando o sistema de dominação
existente em nosso país. Ao mesmo tempo, ele reconhecia a grande diculdade em
se aliar os “discursos políticos” à política efetiva de transformação das mentalidades
e estruturas.
Desta maneira, a distância entre o que deveria ser feito e o que efetivamente se
faz, sem dúvida, atormentava (e atormenta) aqueles mais comprometidos com a
causa nacional. Segundo Darcy Ribeiro, para que a universidade contribuísse com
o saber necessário à construção de uma nação soberana, era necessário construir
um arcabouço teórico-prático que possibilitasse gerar alternativas e opções para a
renovação de seus órgãos, atuando como referência para o diagnóstico e a crítica das
estruturas vigentes:
2 Estamos utilizando o termo em seu sentido mais profundo, isto é, “[...] radical (do lat. radicalis) é o que
diz respeito à raiz das coisas, à sua natureza mais profunda, sem admitir restrição ou limite” (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 1996, p. 229).
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Segundo o nosso modo de ver, a evolução sociocultural é gerada por uma série de revoluções
tecnológicas correspondentes a inovações prodigiosas no aparelho produtivo ou militar. Cada
etapa corresponde a uma formação econômico-social, vale dizer, a uma combinação especíca
de modos de produção com certas formas de ordenação da vida social e com conteúdos
ideológicos correspondentes. Em termos, marxistas, o processo pode ser descrito como uma
ruptura provocada por contradições tornadas antagônicas entre as inovações acumuladas nas
forças produtivas materiais da sociedade e nas relações de produção preexistentes, rupturas
estas que acionam o trânsito de uma formação econômico-social à outra. (RIBEIRO, 1971, p.
25).
Seu objetivo seria a transição entre a universidade real e a universidade necessária,
com a formulação de um projeto especíco de transição progressiva de uma à
outra, fazendo oposição aos projetos de colonização cultural e de perpetuação do
subdesenvolvimento e da dependência, propondo um projeto próprio que atendesse
ao âmbito universitário e apontando pressupostos para o desenvolvimento autônomo
da nação. Logo, pensava uma universidade com capacidade de criar e transformar as
estruturas sociais no caso brasileiro e, em um escopo mais ampliado, nas demais
nações latino-americanas.
Com relação à autonomia, nos cabe neste momento apresentar esse conceito
nos limites necessários para a presente alise. Autonomia refere-se à capacidade
do ser humano de tomar decisões que afetam e afetarão sua vida e, portanto, a sua
integridade físico-psíquica, bem como o seu entorno social. Etimologicamente,
a palavra autonomia se forma a partir de duas raízes gregas: autós e nómos. Autós
signica si mesmo, próprio, algo que se basta, que é peculiar, e nómos signica tanto
lei como regra ou ordem.
Esse agir autônomo permite ao humano (dentro de seus limites e possibilidades)
se livrar das coações externas. Sendo o seu pensamento livre, suas escolhas serão
feitas dentro de um movimento de “liberdade, de decisão e ação própria, mesmo que
inserido num grupo social. Em uma condição heterônoma, as decisões e opções são
externas ao pensamento racional; situações como ignorância, escassez de recursos
materiais, má índole moral entre outras, colocam também limitações que reduzem
ou anulam a capacidade de autonomia.
Cabe destacar que o humano inserido em uma sociedade, por maior que seja a sua
capacidade de autonomia, estará submetido aos limites e às devidas restrições acordadas
democraticamente com os outros integrantes do grupo social com que convive naquele
espaço-tempo. Sendo assim, a autonomia deve ser entendida como a capacidade do
sujeito de escolher, questionar, decidir e agir na vida privada, bem como atuar na esfera
pública, em consonância com os valores socioculturais e as normas coletivas.
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Portanto, a autonomia é limitada por condicionamentos e situações sócio-
históricas, não podendo ser absoluta. Darcy Ribeiro compreendeu as limitações da
autonomia tanto no campo do humano e de suas intersubjetividades quanto no campo
institucional da nação ou das nações periféricas sul-americanas (a tria Grande).
Seu grande esforço teórico-prático contemplava a autonomia nacional, reforçando o
comprometimento com o “nascimento de uma nova nação. Ele travava um embate
sem tréguas denunciando o atraso das elites nacionais que impediam (e impedem) a
formação de uma civilização brasileira autônoma e democrática.
A autonomia assume centralidade no pensamento de Darcy e tem como um dos
seus fundamentos a mestiçagem, elemento formador da América Latina e o caminho
de nossa própria reinvenção futura. Seu pensamento-ação mirava uma utopia política
que libertasse os povos latino-americanos da dominação externa e da mentalidade
reacionária das nossas elites políticas:
Surgimos, assim, como Povos Novos, nascidos da desindianização, da deseuropização
e da desafricanização de nossas matrizes. Tudo isso dentro de um processo pautado pelo
assimilacionismo, em lugar do apartheid. Aqui, jamais se viu a mestiçagem como pecado
ou crime. Ao contrário, nosso preconceito reside exatamente na expectativa generalizada de
que os negros, os índios e os brancos não se isolem, mas se fundam uns com os outros para
compor, numa sociedade morena, civilização mestiça. (RIBEIRO, 1986, p. 112).
Entretanto, o que prevalecia, sob a perspectiva dos grupos hegemônicos, era que:
Aqui, o máximo que se alcança é uma democracia restrita à igualdade dos pares.
E assim é porque as classes dominantes latino-americanas são, de fato, muito mais
parecidas com o patriciado escravista romano3 do que com qualquer burguesia
clássica” (RIBEIRO, 1986, p. 39).
Como estratégia de combate à “democracia restrita à igualdade dos pares, é vital
que a sua proposta de universidade pública se congure como um projeto coletivo,
que necessita ser politizado (em seu sentido profundo de deliberação coletiva) para
que possamos, concretamente, recuperar a res (coisa) pública.
Para abordarmos a práxis de Darcy Ribeiro no tocante ao ideário de universidade,
faremos referência a algumas de suas principais proposições apresentadas na obra A
Universidade Necessária, cuja composição dos textos é basicamente fruto de trabalhos
publicados originariamente em diferentes países na época de seu exílio.
3 Patriciado deriva de patrícios, que era o nome dado aos integrantes da aristocracia romana, assim
chamados por se considerarem descendentes dos patres, isto é, daqueles cujo conjunto formou o
Primeiro Senado Romano. Originalmente, os patrícios representavam o Estado, o que lhes possibilitou
o controle da cidade através de suas instituições.
102 ARTIGOS
Logo nas páginas iniciais dA Universidade Necessária, Darcy faz um balanço
sobre suas experiências que reete tanto as mudanças que observa ao longo do tempo
no espaço universitário, como também seu próprio processo pessoal e engajamento:
Em cada uma dessas experiências, redeni meu núcleo inicial de idéias sobre a universidade
necessária formulado em Brasília, revisando-o frente a diferentes realidades e ampliando-o
ante novas exigências. Não a ponto, contudo, de que os primeiros textos devessem ser
abandonados, mas na devida medida em que eles exigissem supressão e aditamentos.
(RIBEIRO, 1991, p. 02).
O que se observa é que Darcy Ribeiro foi um intelectual dos fazimentos4, um
formulador de teorias e métodos de intervenção na realidade social. Sua ação mais
direta sobre a concretude do real e que assumiu maior visibilidade foi o modelo da
Universidade de Brasília (UnB) dos anos 1960. Nesse sentido, se revela um descontente
diante da conivência da universidade com as forças responsáveis pela dependência e
atraso da América Latina, conforme ele mesmo expressa: “Descontentamento com a
mediocridade de seu desempenho cultural e cientíco. E descontentamento com sua
irresponsabilidade frente aos problemas dos povos que a mantém” (RIBEIRO, 1991,
p. 03).
Como um “descontente-otimista, seu pensamento é capaz de vislumbrar a ação
participativa do intelectual latino-americano efetivamente engajado na construção
de uma América Latina consciente do seu potencial e capaz de instituir a primeira
civilização solidária, terra-mater de um dos principais grupos étnicos do mundo.
Esse é um tema que Darcy procura desenvolver também em outras obras, como
no caso de A América Latina: a Pátria Grande, coletânea de ensaios que objetiva
um entendimento mais ampliado de nossa identidade e de como, historicamente, se
processou nossa dependência em relação ao eixo central do capitalismo e a conivência
e ferocidade das elites nacionais dominantes aos interesses hegemônicos do capital.
Com suas análises radicais, faz a denúncia da intencionalidade das ditaduras
latino-americanas na “parceria” direta com os interesses internacionais:
As novas ditaduras militares do Brasil, da Bolívia, do Chile e da Argentina são também criações
norte-americanas. São o correspondente político inevitável do domínio de nossa economia
4 A palavra fazimento foi criada e utilizada por Darcy Ribeiro para caracterizar a concretude do
pensamento, isto é, o movimento do pensamento (teoria) com a sua ação concreta (prática). Designa
a reação do homem às suas condições reais de existência na busca incessante da transformação social.
Esse termo nos remete à palavra grega práxis (ação-reexão-ação), que é um conceito utilizado para
armar a relação dialética entre o homem e a natureza, na qual o homem, ao transformar a natureza
com o seu trabalho, transforma a si mesmo.
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pelas corporações transnacionais, que, não podendo ser legitimado pelo voto popular, tem
que ser imposto pela mão de governos militares. Cada uma delas nos foi imposta através
de movimentos programados cuidadosamente em Washington – com a ativa participação
internacional (de desestabilização de governos democráticos e progressistas) seguida da
apropriação do poder através de golpes de militares ianquizados. Uma vez implantada a nova
ordem, seus mandantes atenderam solícitos a voz do amo. (RIBEIRO, 1986, p. 103).
Com o golpe civil-militar no Brasil e a queda do governo João Goulart, só restou
como alternativa de sobrevivência o exílio. No período do exílio, Darcy atuou
como especialista em reformas universitárias, colaborando com a Universidade da
República Oriental do Uruguai (1964), com a Universidade Central da Venezuela
(1969/1970), com a Universidade do Chile (1970/1971) e com o sistema universitário
do Peru (1973). Portanto, quando Darcy Ribeiro pensa e estrutura a Universidade
Necessária, sua reexão-ação tem como objetivo mais ampliado a América Latina, a
realização da tria-Grande. A base de suas propostas orienta-se por uma perspectiva
teleológica de inuir o futuro, pois, para Darcy:
Aos povos subdesenvolvidos não cabe qualquer outra orientação, exceto a de que somos
povos em estado de ser, cuja forma ainda não foi plasmada. Povos que, em seu fracasso de
incorporarem-se, autonomamente, à civilização presente, têm apenas um valor iniludível:
sua condição de “tabula rasa, de projeto do futuro, a realizar-se somente no marco da nova
civilização. Povos que, mais uma vez, correm o risco de fracassar, caso nos anos vindouros
se deixem induzir por suas elites dominantes, tal como ocorreu no passado, a percorrer os
caminhos da modernização reexa pela via da dependência. (RIBEIRO, 1991, p. 14).
Especicamente com relação à estrutura da Universidade Necessária, Darcy
Ribeiro propõe uma integração entre os sujeitos que compõem o espaço universitário
na luta contra os projetos de colonização cultural que contribuem para a perpetuação
do subdesenvolvimento e da dependência externa. Em suas reexões destacam-se as
tensões entre as próprias potências centrais e como estas vem debilitando, ao longo
do tempo, os mecanismos de preservação da ordem capitalista, abrindo, assim, outras
possibilidades de construção societária. Conforme suas palavras: “O certo é que as
manifestações de descontentamento contra a universidade e as sociedades, tal como
são agora, por seu caráter universal, parecem anunciar o advento de novas formas de
uma e outras” (RIBEIRO, 1991, p. 17).
Podemos armar que todo o seu esforço como idealizador/fazedor com vistas à
reestruturação da universidade, ancorou-se fundamentalmente na ressignicação
do papel desta em sua função social na luta contra o subdesenvolvimento. Assim,
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procurou questionar os bastidores da instituição e os valores/condutas da sociedade
da qual faz parte, percebendo-a como um importante agente de reprodução do
mundo em que vivemos, e com potencial necessário para a transformação. Em seu
entendimento, reforma universitária e mudanças sociais caminham lado a lado.
As utopias concretas de Darcy Ribeiro: UNB e UENF
O percurso da origem de Brasília até a criação de uma universidade na nova capital
foi extremamente tortuoso. A proposta da criação da Universidade de Brasília (UnB)
foi encaminhada por Juscelino Kubitschek ao Congresso no dia da inauguração da
cidade, em 21 de abril de 1960. Desde então, até ns de 1961, uma intensa atividade
foi desenvolvida para a concretização dessa empreitada, sendo Darcy responsável
pelo direcionamento da discussão. Todo esse processo merece destaque, tendo em
vista que a UnB, antes da sua concretude física, passou por um Congresso Nacional
em meio à turbulência causada com a renúncia de Jânio Quadros.
Após a aprovação do projeto na Câmara Federal, Darcy Ribeiro, por meio de
uma aliança com Filinto Müller, consegue, também, a aprovação da UnB no Senado
Federal. Com extrema percepção política, percebeu o momento-oportuno e aproveitou
a porta que se abriu para tentar fundar sua utópica Universidade da América Latina.
Desta forma, em 15 de dezembro de 1961, o presidente João Goulart sancionou a Lei
no 3.998, que autorizava o Poder Executivo a instituir a Fundação Universidade de
Brasília (FUB), mantenedora da futura universidade.
Após as negociações preliminares, logo na primeira reunião do Conselho
Universitário, Darcy Ribeiro seria eleito o Reitor da nova instituição5. Deste modo,
nascia naquele momento a mais moderna universidade brasileira, sendo a primeira
instituição de ensino superior no Brasil a ter proclamado com todas as letras: “Formar
cidadãos empenhados na busca de soluções democráticas para os problemas com que
se defronta o povo brasileiro na luta por seu desenvolvimento econômico e social”,
conforme o artigo 2º do Decreto nº 1.872, de 12 de dezembro de 1962.
Para que a Universidade fosse transformadora, precisaria estar integrada à
sociedade e cumprir seu caráter público, realizando sua função social. O oposto
seria a universidade burocratizada e prossionalizante, como mera reprodutora de
técnicas, cujo objetivo principal somente atenderia às necessidades do mercado,
contribuindo para a manutenção dos interesses das elites dominantes. Logo, para os
5 A lei que autorizou a criação da Fundação Universidade de Brasília é de 1961. Por esse motivo é que
em algumas fontes se diz que a UnB foi “criada” em 1961, apesar de a inauguração efetiva do campus ter
sido em 1962.
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idealizadores da UnB, esse tipo de universidade (prossionalizante e asséptica) não
seria capaz de criação e transformação da realidade nacional, muito pelo contrário,
serviria apenas como uma instituição mantenedora do status quo.
Darcy defende que a universidade possui a mais alta responsabilidade para o
exercício das funções relacionadas à conscientização crítica da sociedade, além de
sua extrema capacidade de desenvolver a criatividade cultural e cientíca. Trata-se de
uma instituição social, que deve ser politizada em prol do desenvolvimento de uma
nação autônoma, em que o saber cientíco não atua de forma neutra. Portanto, ao se
despolitizar ou colocar condições à universidade, se abriria um grande espaço para a
submissão aos “interesses menos nobres, aos interesses de poucos e, principalmente,
aos interesses privados.
Para aqueles que defendem uma suposta neutralidade das instituições, em especial
as educativas, é importante entender que o fechamento e a despolitização designam o
âmbito do privado, da “priva-cidade. Da privação da cidade6. Enquanto seu oposto, a
abertura, dene o âmbito do público. E se o propósito da educação é abrir o que está
fechado e fechar, quando necessário, o que está escancarado, vulnerável, é possível
armar que a educação despolitizada não é capaz de formar, ela “de-forma.
Em linhas gerais, podemos identicar as inovações da UnB na comparação
apresentada a seguir7:
Universidade brasileira tradicional
• Caráter de federação de escolas prossionais autárquicas e estanques,
desprovidas de qualquer integrativo que lhes permita comunicar, interagir e cooperar;
• Esbanjamento de recursos tanto pela subutilização das disponibilidades
materiais e humanas como pelas suntuosas edicações e equipamentos/instalações
vistosos, mas dispensáveis;
• Estrutura prossionalista e unitarista que, fazendo corresponder a cada
carreira uma escola, restringe a mobilidade do estudante, impedindo a troca de
carreiras;
• Universidade colonizada e propensa ao mimetismo cultural, mas inautêntica
por sua indelidade aos padrões cientícos internacionais, além de irresponsável na
6 A cidade (do grego pólis; Cidade-estado), em seu sentido socio-losóco é a unidade política e social
que serve de base para a agregação dos humanos. Logo, a cidade é responsável por esse agrupamento
humano no qual cada pessoa é responsável pela existência de sua lis, isto é, do conjunto social, ao
contrário da “priva-cidade, onde as questões políticas (deliberações coletivas) cam reservadas ao
âmbito privado.
7 Essa comparação é uma livre adaptação feita pelos autores que tem como fundamento as obras de
Darcy Ribeiro: A Universidade Necessária (1991); O Brasil como Problema (1995); Testemunho (2009);
UnB: Invenção e Descaminho (1978) e Universidade pra quê? (1985).
106 ARTIGOS
concessão de títulos e graus acadêmicos;
• Sujeição à hegemonia catedrática, na qual o professor vitalício tem a
predisposição de escolher seu sucessor, dicultando a formação de pessoal mais
qualicado. Carência de programas de pós-graduação para formar e expandir as
atividades de pesquisa e aprofundar o conhecimento da realidade brasileira;
• Incapacidade de dominar o saber cientíco e humanístico moderno, de
cultivá-los por meio de pesquisas e estudos, de difundi-los por meio de um ensino de
padrão razoável, visando às soluções dos graves problemas nacionais;
Universidade de Brasília (UnB)
• Integração mais completa entre os órgãos da instituição: institutos,
faculdades e unidades complementares e, também, com os setores produtivos do país
que deverão empregar os prossionais que ela formar;
• Evitar a multiplicação desnecessária e onerosa de instalações e equipamentos,
permitindo a concentração e o melhor aproveitamento de recursos materiais e
humanos;
• Proporcionar modalidades novas de formação cientíca e especialização
prossional e dar ao estudante após seu ingresso uma oportunidade de optar, quando
mais amadurecido e mais bem informado, por uma nova orientação prossional;
• Preocupação com a seleção dos futuros quadros cientícos e culturais do
país porque, ao invés de fazer-se a seleção dentre os poucos alunos que, concluindo o
nível médio, se decidem por determinada orientação prossional, far-se-á entre todos
os alunos que frequentam os institutos centrais e aí revelem aptidão para desenvolver
pesquisas;
• Estabelecer a distinção entre atividades de preparação cientíca e as de
formação prossional. Para isso, cria condições para que as faculdades cuidem
melhor do seu campo especíco de ensino e pesquisa aplicada, deixando aos institutos
centrais as pesquisas básicas.
• Desenvolver programas tanto cientícos quanto humanísticos a m de
proporcionar ao futuro cientista ou prossional a oportunidade de fazer-se, também,
herdeiro do patrimônio cultural e artístico da humanidade, além de ensejar uma
integração mais completa da universidade com o país pela atenção aos problemas
nacionais como tema de estudos e de assessoramento público.
Darcy Ribeiro sabia que a almejada autonomia não se alcança somente com
recursos, mas, sobretudo, com a liberdade de pensamento-ação. Nesse sentido, a UnB
ousou ser um palco de discussão em uma época tensionada, fazendo a opção de não
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cercear as liberdades individuais e coletivas, uma vez que o principal norte era o
desenvolvimento autônomo do país e da sociedade. O Brasil, nos dizeres de Darcy,
“[...] não precisa de mais uma Universidade conivente com o atraso e a dependência.
A Universidade necessita ter a utopia que ordene e concatene suas ações, proponha
soluções e que tenha um plano de si mesma” (RIBEIRO, 1991, p. 78).
Sempre na busca de novas utopias, Darcy Ribeiro nos anos de 1990 planeja e
constrói a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Essa criação teve
como fundamento a concepção de uma universidade projetada para o futuro (A
Universidade do Terceiro Milênio), capaz de atender às demandas crescentes de um
mundo em constante transformação. Ele nos alerta em tom profético:
Com efeito, poucos anos nos separam do ano 2000. A maioria dos brasileiros estará viva
no dia da passagem do segundo para o terceiro milênio, os alunos matriculados hoje nas
universidades, nele é que trabalharão. Mas é de se perguntar se o Brasil de hoje, o povo
brasileiro e, inclusive, a cultura acadêmica cultivada nas universidades, estão prontos e
maduros para esse trânsito. A Civilização Emergente, como já se disse, tem como marca
distintiva a de que se fundará nas ciências básicas e nas práticas tecnológicas que estão se
gestando em nossos dias. Seu domínio, cultivo e ensino são condições essenciais para que não
nos atrasemos, uma vez mais, na história. (RIBEIRO, 1995, p. 220).
Deste modo, visando atender a esse paradigma de universidade de ponta, a UENF
foi a primeira instituição de ensino superior no Brasil que iniciou com um quadro
docente em que todos os professores possuíam nível doutoral e, diferentemente da
maioria das universidades brasileiras – onde a divisão estrutural é realizada sob a
forma de departamentos/institutos –, a UENF se articulou por meio de centros, que
são compostos de laboratórios temáticos e multidisciplinares.
Darcy Ribeiro, ao projetar a UENF, tinha em mente uma universidade moderna,
capaz de dominar, transmitir conjunta e integralmente as novas ciências e tecnologias,
além de garantir à região Norte Fluminense os instrumentos técnicos, cientícos e
pessoal qualicado indispensáveis ao desenvolvimento das atividades produtivas,
notadamente no que se refere à exploração de petróleo e gás e à modernização do
setor agrário.
Para viabilizar o projeto, em setembro de 1991, Darcy Ribeiro licenciou-se de seu
mandato de Senador da República8 a m de assumir a Secretaria Estadual de Projetos
Especiais de Educação do governo do estado do Rio de Janeiro.
8 Sua cadeira no Senado foi então ocupada pelo suplente Abdias do Nascimento, ligado ao
movimento negro (Conf. DARCY RIBEIRO SENADOR, c2022).
108 ARTIGOS
Além da preocupação com a infraestrutura arquitetônica, também valorizou
a concepção acadêmica. Para avançar nesta questão, cercou-se de pesquisadores
renomados para elaborar e apresentar o projeto da “Universidade do Terceiro
Milênio”:
Para começar, nós recrutamos como professores os melhores cientistas no Brasil e até no
exterior. A receptividade foi enorme. Entre eles estão Carlos Dias, a maior autoridade em
Geofísica do Brasil (UFPA); o Doutor em Biofísica da UFRJ, Wanderley de Souza; Nilton
Rocha Leal, especialista em Genética (Embrapa). E contratamos também 15 sábios da Rússia.
Também vieram professores de Cuba, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Isso foi possível
porque pela primeira vez no mundo há uma grande oferta de pessoal cientíco de nível
quase Prêmio Nobel. A crise que houve com o mundo soviético fez com que muitos cientistas
não tivessem mais condições de continuar trabalhando no país. [...] eu chamo a UENF de
Universidade do Terceiro Milênio. Será um risco mortal para o Brasil não se integrar nessa
nova era da ciência e tecnologia. (RIBEIRO, 1994, p. 194).
Darcy Ribeiro estava convicto da necessidade da criação de uma nova universidade,
que contribuísse para a superação do atraso (regional/nacional) – essa era uma tarefa
prioritária. No seu entendimento, com a modernização reexa, o atraso não seria
superado jamais, o que poderia acontecer residualmente é que alguns brasileiros
(grupos pertencentes às elites dirigentes) teriam a oportunidade de experimentar
os bens da modernidade, mas o país manteria sua inserção subordinada a sistemas
tecnológicos externos.
Apenas pela aceleração evolutiva, mediante a mobilização de fatores endógenos
à própria sociedade, é que seria possível almejar o desenvolvimento autônomo,
com base no potencial de criação e produção/domínio do conhecimento. Para ele,
naquele momento, a Universidade Estadual do Norte Fluminense deveria ser uma
das protagonistas do binômio modernização/progresso econômico.
Desta forma, propunha constituir uma universidade de pesquisa voltada para a
aceleração das potencialidades econômicas do norte do estado do Rio de Janeiro, com
inuências socioculturais em todo o país. Conforme seu entendimento, nascia uma
instituição imbuída da missão histórica de atualizar o Brasil em relação aos principais
campos do saber, mediante seus laboratórios temáticos e centros integrados e de
experimentação, nos quais as tecnologias mais avançadas poderiam ser praticadas,
ensinadas e, principalmente, criadas de forma autônoma.
Vale lembrar que Darcy Ribeiro foi visionário ao enxergar o potencial do
petróleo/gás na região Norte Fluminense e a urgência dos investimentos de ciência
e tecnologia (C&T) nessa área, muito antes da descoberta do pré-sal. Ao assumir o
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compromisso de projetar a UENF, teve a capacidade de vislumbrar a necessidade da
simbiose conhecimento/aplicação com base nas tecnologias de última geração.
O plano original idealizado para a UENF sofreu algumas apropriações e não
se concretizou plenamente na prática. Mas entender a jovem instituição como um
comprometimento da aventura histórica de se criar uma Universidade-Semente em
parâmetros elevados, é certamente a grande herança intelectual deixada por todos
que estiveram engajados à frente deste movimento por uma universidade pública e
autônoma no Norte Fluminense. Vale a pena, mais uma vez, relembrar Darcy Ribeiro
quando nos alertou sobre a possibilidade de sermos somente consumidores dos
frutos” de uma modernização reexa:
Surge no horizonte uma outra revolução tecnológica mais radical que as anteriores. Se uma
vez mais nos deixarmos fazer consumidores de seus frutos, em lugar de dominadores de sua
tecnologia nova, as ameaças sobre a nossa sobrevivência e sobre a soberania nacional serão
ainda mais intensas. (RIBEIRO, 1996, p. 262).
Em 23 de outubro de 2001, data da promulgação da Lei Complementar nº 99,
Darcy Ribeiro (já falecido em 1997) tem seu nome incorporado ao da UENF. Assim,
apesar de todas as tensões que envolveram a criação da Universidade do Terceiro
Milênio, seu nome cou registrado para sempre na instituição, marcando a utopia do
homem que viveu o seu tempo e projetou o futuro.
Universidade Necessária e América Latina: influências e caminhos
Ao buscar entender a universidade latino-americana, Darcy Ribeiro identicou como
principal força renovadora a Reforma de Córdoba, de 19189. Assim, investigamos os
pressupostos que o levam a considerar O Manifesto de Córdoba como um marco,
identicando alguns aspectos desse ideário.
Esse ideário reformista diz respeito ao contexto social latino-americano em que
as elites intelectuais começam a tomar consciência do caráter autoperpetuador de
seu atraso em relação a outras nações e das responsabilidades sociais da universidade
para com o desenvolvimento nacional em bases modernas e democráticas:
9 A Reforma de Córdoba de 1918, na Argentina, é um marco histórico fundamental para se compreender
os demais processos de reforma universitária ocorridos em outros países latino-americanos, tais como:
Peru, Cuba, Uruguai, Chile e outros, o que a torna referência obrigatória em qualquer debate que tenha
por objeto de estudo a democratização da universidade (autonomia, eleição de dirigentes, concursos
públicos, docência livre, gratuidade do ensino, democratização do acesso, integração, entres outras
possibilidades).
110 ARTIGOS
As universidades foram até aqui o refúgio secular dos medíocres e o que é pior ainda – o
lugar em que todas as formas de tiranizar e de insensibilizar encontraram a cátedra que as
ditasse. As universidades chegaram a ser assim o reexo el destas sociedades decadentes
que se empenham em oferecer o triste espetáculo de uma imobilidade senil. È por isso que a
ciência frente a estas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca ao
serviço burócrático. Nosso regime universitário é anacrônico. Está fundado em uma espécie
de direito divino: o direito divino do professorado universitário. (TUNNERMANN,2008,
p.35)
Como podemos observar, as características diferenciais das universidades
hispano-americanas provêm do programa de Córdoba,10 destacadas algumas de
suas principais postulações, como, por exemplo, a autonomia política docente e
administrativa da universidade; a seleção de corpo docente por meio de concursos
públicos; liberdade docente; a eleição de todos os mandatários da universidade em
assembleias, com representação de professores, estudantes e egressos; a gratuidade
do ensino superior; assunção, pela universidade, de responsabilidades políticas com
a nação; a defesa da democracia, entre outras.
É digna de nota a atualidade de alguns de seus postulados, ainda que reconheçamos
a especicidade de cada país, e aponta-se que esse marco histórico é fundamental
para entendermos o processo da reconstrução intelectual universitária latino-
americana. Deste modo, é a partir desse movimento que o desejo pela reforma da
universidade tradicional e elitista passa a apresentar características semelhantes, em
que os privilégios e a tirania das cátedras são questionados.
Assim, um dos eixos norteadores da reforma contemplava a questão da autonomia
das instituições. Ao mesmo tempo em que foi uma reforma reivindicada por
estudantes e professores jovens, o marco liberal orientou as diretrizes referentes à
educação de um modo geral, de modo que o Estado deveria ser o principal agente
educativo, uma vez que a sociedade civil ainda não demonstrava um potencial de
organização coletiva.
As análises de José Carlos Mariátegui sobre os acontecimentos de Córdoba atestam
10 Sobre a Reforma Universitária de Córdoba: “O movimento estudantil, que se iniciou com as lutas
dos estudantes de Córdoba pela reforma da universidade, assinala o nascimento da nova geração latino-
americana. A ânsia da reforma apresenta-se com características idênticas, em todas as universidades
latino-americanas. Os estudantes de toda a América Latina, ainda que levados à luta por protestos
peculiares de sua própria vida parecem falar a mesma linguagem. Esse movimento intimamente
conectado com a vigorosa agitação do pós I Guerra Mundial (1914-1918). As esperanças messiânicas, os
sentimentos revolucionários, as paixões místicas próprias do pós-guerra, repercutiram particularmente
na juventude universitária da América Latina” (MARIÁTEGUI, 2008, p. 129-130).
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que o movimento reformista, no princípio, careceu de homogeneidade e autonomia,
aceitando como novas as ideias democrático-liberais; mas justamente por sua ação
próxima e crescente com o avanço das classes trabalhadoras e a diminuição dos
velhos privilégios econômicos é que o movimento pôde ser compreendido como um
processo de renovação do pensamento crítico-social latino-americano.
Importante pontuar que o movimento dessa reforma não deve ser analisado a partir
de uma agenda exclusivamente voltada para a educação superior, mas necessita ser
considerado levando-se em conta a relação entre universidade-política. A experiência
ocorrida em Córdoba é lembrada pelo caráter radical da reforma estudantil e pela
luta por uma universidade cientíca, moderna e democrática. Muito além do caráter
local, esse movimento se insere no contexto de uma sociedade que assiste ao m da I
Guerra Mundial, à Revolução Russa e à crescente urbanização e proletarização. Sobre
as mudanças no plano da vida social na América Latina destacamos as reexões de
Ruy Mauro Marini:
A divisão internacional do trabalho que teve lugar no período após a I Guerra Mundial abre
espaço para que nos países latino-americanos se comece um processo de industrialização, cuja
contrapartida é a criação do mercado interno, o qual impacta a diferenciação de classes. Os
movimentos de classe média e classe operária impõem novas alianças sociopolíticas radicalizando
as contradições entre a oligarquia agro-comercial e a burguesia industrial, levando a novos
tipos de Estado, baseados no nacionalismo e em pactos menos excludentes. Paralelamente, se
intensicam as relações comerciais e políticas entre os países da Região, suporte necessário para
o conceito autônomo de latino-americanismo. (MARINI, 2007, p. 228).
Sobre Córdoba, Darcy Ribeiro a dene como a principal força renovadora da
universidade e do pensamento latino-americano. Em sua análise sobre o tema, assim
se manifesta:
Dada sua amplidão e ambições, este programa continua sendo a bandeira de luta tanto dos
estudantes como de grande parte dos professores latino-americanos. Sua pedra de toque,
entretanto é o regime do co-governo, acusados por uns de degradar a universidade, de
politizá-la e impedi-la de exercer suas funções fundamentais e visto por outros como o grande
motivo de orgulho das universidades hispano-americanas. (RIBEIRO, 1991, p. 124).
Suas reexões prosseguem indicando que os dois juízos acima descritos polarizam
as posturas mais reacionárias e mais progressistas dentro da própria instituição
universitária. Uma apreciação crítica sobre o cogoverno indica que ele, como
qualquer outra ação que seja empreendida como estratégia de mudança, poderia
112 ARTIGOS
tanto conduzir a universidade a deformações quanto a avanços, mas, sem dúvida, tal
concepção de gestão assumiu um protagonismo no debate, para além dos muros da
universidade.
Torna-se importante frisar que os princípios nortedores da Reforma de Córdoba,
destacadamente aqueles relacionados à autonomia universitária (de ordem
administrativa, nanceira e pedagógica), representatividade e o comprometimento
com as questões sociais, permanecem como referência para (re)pensarmos a
instituição universitária até os dias de hoje. Nesse sentido, é oportuna a análise de
Roberto Leher sobre essa questão:
Não deixa de ser surpreendente que docentes estudiosos da educação superior em distintos
países latinoamericanos reivindiquem como atuais os grandes eixos das lutas de Córdoba.
A preocupação com o pluralismo, a liberdade de pensamento a autonomia universitária
vem sendo sustentada como um tema prioritário, tendo em vista a crescente dependência
das universidades aos imperativos nanceiros e instituições particularistas. Tais imperativos
direcionam as atividades universitárias de modo discriminatório, privilegiando as esferas
mercantis e penalizando as pesquisas básicas (gramscianamente) desinteressadas e,
principalmente, as investigações motivadas pela necessidade de enfrentar os grandes
problemas nacionais dos povos e, por isso mesmo, críticas ao padrão de acumulação em curso
e à sua superestrutura ideológica, o social-liberalismo. (LEHER, 2008, p. 58).
Ao revermos o ideário contido no referido movimento, é possível perceber sua
inuência no pensamento de Darcy Ribeiro em suas propostas para a Universidade
Necessária no plano nacional dos países latino-americanos, mas também como
importante instância articuladora da tria Grande. Reforçamos a atualidade de
seus ensinamentos, que em muito podem contribuir para a realização de um projeto
de renovação institucional que tenha como principal nalidade sua autonomia e
emancipação. Um projeto que seja: “[...] tão signicativo para a geração atual quanto
foi o manifesto de Córdoba para a geração dos últimos cinqüenta anos” (RIBEIRO,
1991, p. 126).
Para Darcy, a grande tensão que envolve a universidade está entre dois modelos:
o primeiro refere-se à “modernização reexa, que sustenta a suposição de que
a universidade, para se tornar igual às “universidades adiantadas, tem que passar
por “aperfeiçoamentos e inovações” conforme os parâmetros ditados pelos países
centrais, isto é, a cópia deformada dos modelos externos; o segundo modelo
seria o “desenvolvimento autônomo” (ou “política autônoma”), que defende uma
universidade que escape da função de “perpetuadora das instituições sociais” a partir
de uma independência intencional de suas formas de pensar-agir.
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No tocante à “modernização reexa, Darcy Ribeiro é bastante enfático, armando
que é um processo que nos torna “proletários externos de outros povos, pois fazemos
parte de um modo de produção integrado a um plano global, assim, pertencentes
de uma “mesma história, uns autonomamente e outros, dependentes. Desta forma,
privilegiando-se a “política de modernização, a nossa universidade latino-americana
permanece inconsciente de si mesma e da sociedade a que serve.
Por outro lado, o “desenvolvimento autônomo” requer o máximo de lucidez e de
intencionalidade, tanto em relação à sociedade nacional como no correspondente
à universidade, o que implica diagnosticar os problemas e estabelecer objetivos
estratégicos visando uma Universidade-instrumento:
Enquanto a política modernizadora aspira, só a reformar a universidade, de modo a torná-la
mais eciente no exercício de suas funções conservadoras dentro de sociedades dependentes e
submetidas à espoliação neocolonial, a política autônoma pretende transgurar a universidade
como um passo no sentido da transformação da própria sociedade, a m de permitir-lhe,
em prazos previsíveis, evoluir da situação de proletariado externo – limitado a satisfazer
condições de vida e de prosperidade de outras nações – à dignidade de povo para si, senhor
do comando de seu destino e disposto a integrar-se na civilização emergente como nação
autônoma. (RIBEIRO, 1991, p. 26).
Assim, em seus estudos como especialista e reformador de universidades, ele
apontava que, para o desenvolvimento nacional dos países subdesenvolvidos, todos
os tipos de ensino deveriam ser elevados; entretanto, caberia à universidade o papel
de destaque, pois ela seria um ponto de resistência, principalmente, para a América
Latina na luta contra a “modernização reexa, cujos benefícios são restritos a
segmentos sociais especícos, sem nenhuma pretensão de se estender à totalidade
da população.
Mas seria possível pensar uma universidade (nos países periféricos) como alavanca
da aceleração e superação da dependência? Tal questão remetia a outras muito mais
agudas, pois não podemos nos esquecer de que os encaminhamentos dados a esse
tipo de universidade autônoma afetariam os destinos da sociedade em seu conjunto.
Conforme Darcy Ribeiro:
Esta questão provoca várias outras mais concretas: podem nações subdesenvolvidas
ter universidades desenvolvidas? Poderemos nanciar, com os magros recursos do
subdesenvolvimento, a implantação de universidades melhores? Que tipo de organização deve
corresponder às universidades empenhadas na luta pelo desenvolvimento nacional autônomo?
114 ARTIGOS
Será possível, mediante a instituição do autogoverno, e explorando as contradições da própria
clientela universitária, reestruturá-la para que sirva mais à mudança do que à preservação da
estrutura social vigente? (RIBEIRO, 1991, p. 31).
Ao buscar responder essas inquietações, devemos lembrar que as opções das elites
dirigentes latino-americanas apartadas do povo, sempre representaram um entrave à
elaboração de projetos emancipatórios:
O povo foi excluído do projeto, porque compelido a exercer o papel de proletariado externo dos
núcleos cêntricos de um sistema econômico de base mundial, e destinado a manter, com seu
trabalho, os privilégios da classe dominante nativa e os lucros de seus associados estrangeiros.
Nossos próprios esforços no sentido do conhecimento da realidade física e social de nossos
países foram, provavelmente, menores do que poderiam ter sido, e para eles as universidades
nem sempre concorreram com a maior contribuição. [...] Ainda hoje, a produção cientíca da
América Latina, referente à sua realidade, é menos abundante e, quiçá menos valiosa do que
a estrangeira. Quem quiser entender-nos aqui ou alhures, terá geralmente de recorrer antes
à bibliograa estrangeira do que a nacional, nas diversas disciplinas cientícas. (RIBEIRO,
1991, p. 32).
Cabe ressaltar, que a questão central apontada por Darcy Ribeiro não é uma
fobia ao estrangeiro, mas a responsabilidade por nosso destino, isto é, temos que
ser responsáveis pela edicação de uma instituição que possa ser uma Universidade-
instrumento na construção de nações autônomas. Caso contrário, caremos reféns de
decisões externas ou de setores hegemônicos locais que vão reforçar os pressupostos
da “neocolonização, impossibilitando-nos de diagnosticar nossa realidade e
inviabilizando propostas originais que possam atender a maioria das populações
latino-americanas.
Logo, o alvo estratégico para a construção dessa Universidade Necessária aponta
para um enfrentamento às elites dirigentes que se beneciam e colaboram para
promover os interesses estrangeiros – grupos que defendem que o futuro de nossa
universidade consiste em manter-se dependentemente atada ao modelo externo,
como ressalta, mais uma vez, Darcy Ribeiro:
Quando se pensa na generosidade de fundações, banqueiros e governos estrangeiros, a
oferecer empréstimos dadivosos e a patrocinar pesquisas, a mandar especialistas solícitos
para prodigalizar conselhos e promover conferências interamericanas em que a integração
universitária é elevada ao nível de importância dos problemas do mercado comum, ou da defesa
continental, cumpre indagar: que há por trás de tudo isto? E, mesmo não sendo possível armar
que toda a ajuda e todas as intenções sejam intrinsecamente inconvenientes, é indispensável
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armar que elas têm conteúdos políticos não explícitos. (RIBEIRO, 1991, p. 38)
Devemos ter a devida atenção para a crescente intervenção das instituições
nanceiras internacionais, como o Banco Mundial e sua agenda educacional11 para
os chamados países em desenvolvimento. Desta forma, as análises de Darcy Ribeiro
no tocante à educação-dependência e economia-mercado revelam-se muito atuais
para compreendermos as diferentes realidades da América Latina e o panorama
internacional.
Atualizando essa discussão, assinalamos que, em função dos avanços desmedidos
do modo de produção capitalista12, as “metamorfoses do capital” estão afetando
diretamente, também, os países centrais, como podemos vericar nos estudos
recentes de Belmiro Gil Cabrito sobre a “dependência européia”:
Apesar das ‘boas intenções’ veiculadas na retórica de responsáveis da União Européia após
inúmeras reuniões e cúpulas, no sentido do reforço da coesão social e do desenvolvimento
dos indivíduos e das populações e inerentes à construção de uma sociedade do conhecimento,
coloca-se uma questão fundamental: será que o processo iniciado com a Declaração de
Bolonha contribuirá para aquele desenvolvimento pessoal e coesão ou é mais um instrumento
globalizado cujas propostas nas teorias do capital humano, servem aos objetivos da economia?
(CABRITO, 2009, p. 37).
Se no caso europeu a situação é grave, em particular na América Latina a
perspectiva para a construção de uma universidade autônoma e efetivamente
necessária permanece distante, conforme se pode identicar nas análises de Pablo
Gentili:
Hay um campo em que los gobiernos posneoliberales de América latina parecen enfrentar
enormes dicultades, mostrando no pocas limitaciones para implementar políticas
democráticas que consoliden su carácter público: las universidades. Por diversos motivos,
y a noventa años de la Reforma Universitária de Córdoba, la delantera em formulácion de
propuestas de cambio para lãs universidades latinoamericanas La siguen detentando los
sectores más conservadores y tenocráticos de nuestras sociedades. Em rigor, hoy la própria
enunciación de la necesidad de uma ‘reforma universitaria’ parece patrimônio de quienes
11 A conjuntura histórica internacional das décadas de 1960 e 1970 permitiu ao Banco Mundial (BIRD)
assumir o controle da divisão internacional do trabalho e do conhecimento, denindo, desta forma,
quais seriam os países produtores de ciência e tecnologia e, principalmente, restringindo as políticas
educacionais dos países da África e da América Latina (conforme sinalizado por Silva [2002]).
12 Estamos considerando o desdobramento do modo capitalista de produção, ou melhor, o sistema
metabólico do capital (Conf. MÉSZÁROS, 2011).
116 ARTIGOS
deenden la implementación de políticas de privatización y mercantilización de la enseñanza
superior y no de aquellos que deenden uma perspectiva transformadora y emancipadora
para nuestras sociedades y sus universidades. (GENTILI, 2008, p. 39).
Com base nas reexões mais contemporâneas, é vital lembramos que o debate
sobre a Universidade Necessária proposto por Darcy nos anos 1960/1990 continua
rondando o nosso presente, e permanecemos nos indagando sobre os grandes
dilemas que afetam o Brasil e demais paises da America Latina: por que não temos
assegurados os direitos humanos: alimentação, saúde, habitação, trabalho, educação,
segurança? Por que ainda há tanta exclusão e desigualdade social? Como as
instituições educacionais podem ser (re)formadas para contribuir com a autonomia
pessoal e nacional dos povos marginalizados e periféricos?
As respostas a essas questões já estão elucidadas, a busca se orienta pela superação
dessas indagações, o que nos remete à esfera política-participativa, para a construção
de conhecimentos que ofereçam a possibilidade de autonomia dos humanos e
suas coletividades (regionais/nacionais) em um novo tempo-espaço civilizatório,
conforme previu Darcy.
Reconhecemos que a Universidade permanece necessária, lócus privilegiado
para a promoção de pensamento e práticas autônomas, demandando cada vez mais
a participação ético-política dos atores envolvidos no espaço acadêmico superior.
Entretanto, não podemos ter a ingenuidade de acreditar que bastam o envolvimento
e engajamento dessa instituição e sua comunidade acadêmica para empreender
a transformação radical de que a nossa sociedade necessita, pois temos um
processo histórico de exploração, e a luta e as formas de expropriação assumem na
contemporaneidade contornos tanto cruelmente explícitos quanto muito mais sutis.
Considerações em permanente (re)construção
Após 60 anos do primeiro fazimento de Darcy Ribeiro para a universidade brasileira,
podemos identicar que as utopias presentes em seu pensamento (os projetos
originais) não foram plenamente concretizadas, daí o uso da palavra utopia. Segundo
esse olhar, teríamos mais um projeto, um sonho, enm, um “não-lugar ideal”13 que não
pôde ser realizado plenamente no seu tempo histórico, dadas as condições externas
13 Utopia, do grego: ou: negação; topos: lugar, literalmente signicando “não-lugar ou “lugar-nenhum.
Esse termo criado por Tomás Morus em sua obra Utopia (1516) tem como idealização um lugar (ilha)
perfeito onde existiria uma sociedade imaginária na qual todos os homens e mulheres seriam iguais,
livres e, principalmente, viveriam em “harmonia.
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e internas do país. Entretanto, se analisarmos com mais atenção, compreenderemos
que a utopia não é para ser concretizada, a utopia é o horizonte que estimula a
caminhada dos seres humanos. Neste sentido, certos marcos e personagens históricos
(Darcy Ribeiro, sem dúvida é um deles) nos inspiram e nos provocam a avançar na
construção de uma Humanidade para todos os humanos.
Nessa direção civilizatória, tanto a Universidade de Brasília (UnB) quanto a
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) não foram
diferentes de tantas outras utopias históricas pelas quais sempre valeu (e vale) a pena
lutar, conforme as palavras precisas e necessárias de Eduardo Galeano (2007, p. 310)
em sua obra Janela sobre a Utopia: “Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos,
ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais
que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
caminhar.
Darcy Ribeiro propôs uma reforma estrutural nas universidades latino-americanas,
alertando que a universidade deveria ser um espaço autônomo de pensamento, como
uma utopia a ser perseguida. Em seu modelo de universidade, faz a distinção entre
um fato, no mundo das coisas” e “uma utopia, no mundo das idéias. Como vimos,
sua proposta é baseada em oposição ao que existe, e teria de ser assim para superar o
atraso de nossa sociedade: uma universidade proporcionadora de desenvolvimento
autônomo em face de um cenário de dependência e colonização cultural.
Nessa tensão entre “o que existe” e o “que precisa existir”, ele aposta na segunda,
pois em seu entendimento, a Universidade-Necessária deve fomentar os desejos e as
demandas concretas da sociedade e, mais ainda, deve direcioná-las criticamente,
visando à superação das crises estruturais permanentes. Tal universidade deve
apontar como função social formar os quadros que irão ter atuação efetiva no
desenvolvimento autônomo do país. Desta forma, em sua análise, é imperativa a
responsabilidade dos intelectuais (que estão sendo formados na universidade), no
sentido de contribuir para desnaturalizar o nosso aparentemente eterno atraso.
Desta forma, entendemos que as reexões darcylianas sobre a universidade
nos fornecem pistas importantes para que possamos pensar-agir em uma direção
emancipatória, em que a economia-mercado seja apenas uma das peças que compõem
a vida moderna, e não o foco central. Assim, poderemos ousar um teorizar-fazer
em direção a outro caminho, que não esteja centrado em processos estritamente
mercantis.
Nesse caminho tortuoso (com avanços e recuos), é importante elaborarmos
estratégias (e as universidades podem contribuir muito nessa direção, com ensino,
pesquisa e extensão) que possam contribuir e viabilizar transformações sociais que
118 ARTIGOS
atendam às demandas da população, sobretudo dos grupos historicamente excluídos
e subalternizados, rompendo com este modelo estrutural de privilégios para as
frações de classe que estão no topo da pirâmide social.
Para Darcy Ribeiro, ao pensar a Universidade Necessária, prossionais e cientistas
formados nessa instituição devem fazer de sua indignação a força para desvelar a
nossa condição de periferia e atraso histórico, para que a partir da compreensão
dessas estruturas de dependência (intencionalmente construídas) possamos elaborar
uma consciência nacional autônoma. Dessa consciência, nascem os fundamentos
necessários para o ingresso do “país subdesenvolvido” em uma fase civilizatória que
assimila a cultura dominante, mas não ignora a originalidade e as potencialidades de
seu povo. Essa ruptura signica uma capacidade de traduzir a vontade de um povo,
num sentido efetivo de nação, de completude.
Ao longo deste artigo, nos acompanhou a seguinte indagação: esses
questionamentos e tantos outros ainda são válidos para a universidade dos nossos
dias? Acreditamos que sim, no sentido de construir estratégias que favoreçam a
universidade a repensar as bases sociais em que se fundamenta. Assim como no
passado, não será por via da dependência externa ou da dependência local, sob a
hegemonia de grupos dominantes com interesse múltiplos e distanciados do povo,
que conseguiremos atingir a Universidade Necessária. A política de desenvolvimento
autônomo exige o máximo de lucidez e de intencionalidade, tanto em relação à
sociedade nacional como no correspondente à universidade, e só pode ser executada
mediante cuidadoso diagnóstico de seus problemas.
Cabe ressaltar que passados os tempos de deslumbramento com a “modernização,
hoje seguramente identicamos que a sua defesa imediata não tem ressonância, pois
é fácil constatar as consequências perversas dessa “modernização, com a produção
dos bens apropriada por setores minoritários da sociedade, que utilizaram o poder
midiático para silenciar propostas alternativas e plausíveis de outras possibilidades
societárias. Essa nova (des)ordem global nos desaa a reetir e a recuperar o
arcabouço teórico e as ações concretas dos intelectuais que acreditaram na construção
de projetos de nações autônomas. Darcy, com todas as críticas possíveis (e não foram
poucas), foi um desses personagens que ousaram pensar e falar, de igual para igual,
com as nações que estavam no centro decisório do mundo, uma fala que tinha como
objetivo central a autonomia do seu próprio país, de sua nação tropical e mestiça.
Referências
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