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O Atual Dilema Latino-Americano
Vitor Hugo Tonin
1
*, Diógenes Moura Breda
2
**, Evaldo Gomes Junior
3
***, Pietro
Caldeirini Aruto
4
****
Resumo: Em seus estudos da antropologia da civilização, Darcy Ribeiro apresentou um arcabouço teó-
rico analítico, após analisar 10 mil anos de história, para explicar a situação brasileira e latino-americana
na segunda metade do século XX. A magnanimidade dessa obra se revela na ambição intelectual e na
capacidade explicativa da sua época e, principalmente, na potência com que esse arcabouço teórico-a-
nalítico nos permite entender a realidade atual: a disputa geopolítica entre EUA e China e o lugar da
América Latina nessa situação. Assim, neste artigo buscamos resgatar o pensamento de Darcy Ribeiro
não como uma tarefa erudita de um importante autor da história do pensamento social latino-america-
no, mas como ferramenta analítica para entender e transformar a nossa realidade atual.
Palavras-chave: Darcy Ribeiro. Pensamento Crítico. América Latina. Geopolítica. Ciência e Tecnologia.
Resumen: En sus estudios de antropología de la civilización, Darcy Ribeiro presentó un marco teórico
analítico, después de analizar 10 mil años de historia, para explicar la situación brasileña y latinoamericana
en la segunda mitad del siglo XX. La magnanimidad de esta obra se revela en la ambición intelectual y
capacidad explicativa de su época y, principalmente, en la potencia que este marco teórico-analítico nos
permite comprender la realidad actual: la disputa geopolítica entre EE.UU. y China y el lugar de Latino-
américa en esta situación. Así, en este artículo buscamos rescatar el pensamiento de Darcy Ribeiro no
como una tarea erudita de un autor importante en la historia del pensamiento social latinoamericano, sino
como una herramienta analítica para comprender y transformar nuestra realidad actual.
Palabras clave: Darcy Ribeiro. Pensamiento Crítico. América Latina. Geopolítica. Ciencia y Tecnología.
Abstract: In his studies of the anthropology of civilization, Darcy Ribeiro presented an analytical theo-
retical framework aer analyzing 10 thousand years of history to explain the Brazilian and Latin Amer-
ican situation in the second half of the 20th century. e magnanimity of this work is revealed in the
intellectual ambition and explanatory capacity of its time and, mainly, in the power with which this
theoretical-analytical framework allows us to understand the current reality: the geopolitical dispute
between the USA and China and the place of Latin America in this situation. us, in this article we
seek to rescue Darcy Ribeiro’s thought not as an erudite task for an important author in the history of
Latin American social thought, but as an analytical tool to understand and transform our current reality.
Keywords: Darcy Ribeiro. Critical thinking. Latin America. Geopolitics. Science and Tecnology.
* Economista. Mestre em Arquitetura, Urbanismo e História da Cidade pela UFSC e doutor em Desen-
volvimento Econômico pela UNICAMP.
** Economista. Mestre em Estudos Latino-Americanos pela UNAM e doutor em Desenvolvimento Eco-
nômico pela UNICAMP.
*** Economista. Mestre e doutor em desenvolvimento econômico pelo Instituto de Economia da Uni-
versidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp). Professor do Instituto de Estudos em Desenvolvimento
Agrário e Regional da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Iedar/Unifesspa).
**** Economista da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico Sustentável de SC (SDE/SC),
mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico (IE/Unicamp).
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Introdução
Na segunda quinzena do outubro de 2021, o mundo inteiro estava com os olhos vol-
tados para os Estados Unidos da América (EUA); anal, no dia 3 de novembro se-
riam realizadas as eleições presidenciais em que o então presidente Donald Trump
enfrentaria sua batalha decisiva contra Joe Biden, que aparecia à frente em todas as
pesquisas. Estava em jogo o principal pilar de sustentação e divulgação da ofensi-
va de ultradireita a nível mundial: o governo de Donald Trump. Entretanto, quinze
dias antes da eleição uma comitiva do governo Trump, formada pelo presidente do
Conselho de Segurança Nacional e pelo presidente do Eximbank, deixa os EUA para
realizar uma visita ao Brasil (BRASIL, 2020). Somente algo que estivesse acima das
disputas eleitorais, algo que fosse de interesse de ambos os partidos em disputa nos
EUA, ou seja, em que se jogasse a sorte da própria civilização estadunidense, poderia
justicar tal movimentação nessa data. Na pauta da visita estava a implantação da
tecnologia 5G no Brasil. Os EUA queriam que a adoção do 5G no Brasil fosse rea-
lizada sem a participação chinesa, cuja infraestrutura física de rede já estava sendo
amplamente adotada pelas operadoras de telefonia no Brasil (EM VISITA..., 2020).
Esse foi apenas um capítulo pitoresco da atual disputa realizada pelos EUA
para inviabilizar que a nova civilização chinesa insurgente amplie sua área de in-
fluência sobre áreas até então dominadas pelos EUA. É um capítulo do que ficou
mais popularmente conhecido como “guerra comercial”, inaugurada de forma
mais acintosa por Donald Trump, mas em cuja essência se encontra, na verdade,
uma “corrida tecnológica”. Não por casualidade, uma das ações mais contunden-
tes tomadas durante essa disputa foi a prisão da executiva da empresa de tecno-
logia chinesa durante três anos sob a acusação de supostas violações da lei de
sanções dos Estados Unidos (GÓIS, 2021).
Qual é o caráter dessa corrida tecnológica e das disputas comerciais que ela en-
volve? Por que, após anos de colaboração entre empresas e o próprio governo dos
EUA com a China, aquele se volta agora de forma tão contundente contra esta? Prin-
cipalmente: como reage o governo brasileiro, o Congresso, os partidos políticos e a
imprensa diante desse evidente aliciamento do governo dos EUA em relação a algo
que deveria ser fruto de uma decisão autônoma, decorrente de um projeto soberano
de desenvolvimento? E como vêm se colocando não só o Brasil, mas os demais países
latino-americanos diante dessa disputa? Estão se utilizando dela para acelerar seus
processos autônomos de desenvolvimento? Ou têm se subordinado de forma errática
entre um ou outro país, de acordo com as circunstâncias do momento? Ou, ainda,
têm se mantido éis ao seu histórico dominador do Norte, independentemente da
sua agrante desvantagem tecnológica nessa disputa?
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No nal dos anos 1960, Darcy Ribeiro queria entender por que o projeto de de-
senvolvimento autônomo que vinha sendo proposto – e, ainda que de forma errática,
vinha sendo trilhado – pelo Brasil e outros países latino-americanos desde os anos
1930 foi derrotado por ditaduras reacionárias que colocaram esses países novamente
na trilha da modernização reexa. Por que os povos latino-americanos, incorpora-
dos à história de forma subordinada e reexa pelos últimos 500 anos, continuam se
negando a seguir a trilha da autonomia e da soberania?
Para responder essa pergunta com a radicalidade de quem havia sido um dos
principais dirigentes políticos do processo derrotado, Ribeiro resolveu estudar como
os povos evoluíram social e culturalmente nos últimos 10 mil anos. Com esse estudo,
acreditava poder criar uma teoria da evolução sociocultural dos povos e das nações.
Esse projeto de pesquisa foi batizado de “Antropologia das Civilizações”, cujo primei-
ro volume, chamado O Processo Civilizatório, data de 1968.
O objetivo desse primeiro volume é de “[...] proceder a uma revisão crítica das
teorias da evolução sociocultural e propor um novo esquema do desenvolvimento
humano” (RIBEIRO, 1975, p. 1) que seja capaz de explicar “[...] as causas do seu de-
senvolvimento desigual e as perspectivas de autossuperação que se abrem aos mais
atrasados” (RIBEIRO, 1975, p. 7). Ou seja, propõe-se a nada menos do que inventar
uma nova teoria da história. Por isso, nosso primeiro passo neste artigo será expor
essa teoria criada por Darcy Ribeiro. Em seguida, vamos demonstrar a capacidade
analítica dessa teoria ao analisar o atual momento geopolítico e as disputas em torno
do novo padrão tecnológico. Em terceiro lugar, antes de apresentar nossas conclu-
sões, buscamos vericar as ações que os países latino-americanos, a partir de suas
condições internas, têm realizado para enfrentar essa situação de forma autônoma
e soberana. Por m, nas conclusões, retomamos os dois objetivos deste artigo: a ca-
pacidade analítica e transformadora do marco teórico criado por Darcy Ribeiro e as
possibilidades que se abrem aos países latino-americanos na situação atual.
A antropologia das civilizações: revolução tecnológica, processo civilizatório e
formações socioculturais. Como as sociedades se sucedem?1
A tarefa mais ambiciosa e mais ousada que enfrentei na vida foi compor meus estudos de
antropologia da civilização. (RIBEIRO, 1981, p. 501).
Em O Processo Civilizatório, Darcy Ribeiro investiga o impacto das revoluções tec-
nológicas (RTs) sobre as organizações sociais, conformando formações socioculturais
1 Esta seção tem como base Aruto (2009).
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(FSC) particulares. A depender de como essas formações socioculturais se relacionam
com as novas técnicas produtivas e fontes de energia, elas podem entrar em período
histórico de aceleração evolutiva (AE), quando povos que existem para si mesmos
renovam autonomamente seu sistema produtivo, ou podem sofrer uma atualização
ou incorporação histórica (IH), quando povos são engajados compulsoriamente em
sistemas tecnológicos superiores, mas apenas como modernização reexa (MR), pois
implica a perda de sua autonomia (RIBEIRO, 1975). Por entender que esse é o dilema
histórico-fundamental a que os povos americanos estão submetidos e a chave expli-
cativa para a atual conjuntura geopolítica mundial, sobretudo com a iminência de
uma nova revolução tecnológica, esta seção procura apresentar o esquema conceitual
de Darcy Ribeiro quanto à revolução tecnológica e o processo civilizatório.
O esquema global formulado por Ribeiro (1975) resulta da análise da evolução
dos povos humanos nos últimos 10 mil anos, situando-os dentro do continuum do
desenvolvimento sociocultural. Para tanto, esse esquema geral teve como base contri-
buições da arqueologia, etnologia, história, e dos estudos clássicos de evolucionistas
que trataram do tema, como Lewis Morgan, Friederich Engels, Karl Marx, Gordon
Childe, entre outros. Revendo esses trabalhos clássicos e as contribuições dos vários
campos das ciências sociais, Ribeiro chega à conclusão de que, para cumprir o objeti-
vo a que se havia proposto, era necessário formular um novo arcabouço conceitual, o
que revestiria de um novo signicado o conceito de formação econômico-social, tão
caro à teoria marxista.
Dentro da sua revisão crítica, Ribeiro (1975) arma que os trabalhos de Engels e
Marx foram os pioneiros em formular um esquema geral de evolução das sociedades.
Contudo, entre os dois há uma concepção distinta de evolução social. Engels, em Ori-
gem da Família, Propriedade e do Estado, segundo Ribeiro, “[...] concebia a evolução
como uma sequencia linear de estágios que iriam do comunismo primitivo ao escra-
vismo, ao feudalismo, ao capitalismo e, nalmente, ao socialismo” (RIBEIRO, 1981,
p. 28). Segundo o autor, essas categorias se mostram insucientes, pois relacionaram
as estruturas de ordenação social com a conscrição da força de trabalho. Com isso,
caíram em dois erros: 1) ataram todos os povos a uma linha histórica evolutiva única
(escravismo – servidão – assalariamento); 2) deformaram teoricamente as estruturas
peculiares dos povos pré-capitalistas2.
Darcy Ribeiro (1975) monta, então, o seu arcabouço conceitual dentro de certos
pressupostos teóricos, a partir dos quais a história das sociedades humanas pode ser
2 Em Marx, sobretudo com os rascunhos de Formações Econômicas Pré-Capitalistas, esse esquema li-
near não está presente, mostrando que o rompimento evolutivo pode se dar sob várias feições, estabele-
cendo as pluralidades das formações econômico-sociais e dos modos de transição.
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explicada através de uma sucessão de revoluções tecnológicas (RTs) e de processos
civilizatórios (PCs). As revoluções tecnológicas consistem no desenvolvimento acu-
mulativo da tecnologia produtiva e militar e exercem um efeito decisivo no desenvol-
vimento das sociedades e suas culturas, a partir da forma com que estas entram em
contato com essas tecnologias.
Empregamos o conceito de revolução tecnológica para indicar que a certas transformações
prodigiosas no equipamento de ação humana sobre a natureza, ou de ação bélica, correspon-
dem alterações qualitativas em todo o modo de ser das sociedades que nos obrigam a tratá-las
como categorias novas dentro do continuum da evolução sociocultural. Dentro dessa concep-
ção, supomos que ao desencadeamento de cada revolução tecnológica ou à propagação de
seus efeitos sobre contextos socioculturais distintos, através dos processos civilizatórios, ten-
de a corresponder a emergência de novas formações socioculturais. (RIBEIRO, 1975, p. 34).
Portanto, a formação sociocultural é denida, em última instância, pelo conjunto
de técnicas produtivas e militares de uma determinada nação, o que Ribeiro chamou
de sistema adaptativo. Entretanto, esse sistema adaptativo, muitas vezes comum a
mais de uma nação, não necessariamente se difunde igualmente em todos os po-
vos. Isso porque essa difusão irá depender i) dos sistemas associativo e ideológico
de cada nação e ii) da forma ele é difundido entre os povos, isto é, do tipo de relação
socioeconômica existente entre as nações. Assim, o conceito de processo civilizatório
permite abordar conjuntamente a diversicação e a homogeneização da evolução das
sociedades, como resultado das invenções tecnológicas originais e da adoção do de-
senvolvimento alcançados por outros povos. Em síntese, Ribeiro utiliza, em conjunto
com as noções de revolução tecnológica, o conceito de formação sociocultural como
um modelo teórico de resposta cultural a essas revoluções.
Concebemos a evolução sociocultural como o movimento histórico de mu-
dança dos modos de ser e de viver dos grupos humanos, que se dão devido às re-
voluções tecnológicas sobre sociedades concretas, tendentes a conduzi-las à tran-
sição de uma etapa evolutiva a outra, ou de uma a outra formação sociocultural.
Empregamos esta última expressão para designar as etapas evolutivas enquanto
padrões gerais de enquadramento sociocultural dentro dos quais se desenvolve a
vida dos povos. Ou seja, em outras palavras, como modelos conceituais de vida
social, fundados na combinação de uma tecnologia produtiva de certo grau de
desenvolvimento, com um modo genérico de ordenação das relações humanas e
com um horizonte ideológico, dentro do qual se processa o esforço de interpre-
tação das próprias experiências com um nível maior ou menor de lucidez e de
racionalidade (RIBEIRO, 1975).
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As revoluções tecnológicas e os seus consequentes processos civilizatórios cor-
respondem, assim, à emergência de novas formações socioculturais. Neste sentido,
Ribeiro (1975) elenca oito revoluções tecnológicas ao longo da evolução social. No
entanto, a sucessão dessas revoluções tecnológicas deve ser interpretada juntamente
com o conceito de processo civilizatório, para se atingir uma totalidade do processo
evolutivo. Isso porque não é a “invenção genial” de poucas tecnologias ao longo da
história humana que produz as suas consequências socioculturais: “O fato de atri-
buir-se um poder determinante às inovações tecnológico-produtivas e militares não
exclui a possibilidade de atuação de outras forças dinâmicas” (RIBEIRO, 1975, p.
24-25). Para Ribeiro, em determinadas escalas de tempo, é necessário um nível de
abstração que identique “[...] o poder condicionante das formas de ordenação da
vida social [...] [e] de certos conteúdos do sistema ideológico [...] sobre a tecnologia,
e através dela, sobre a estrutura social” (RIBEIRO, 1975, p. 24-25). E é nesse nível de
abstração que se encontra o conceito de formação sociocultural que articula os três
sistemas elaborados por Ribeiro: o adaptativo (técnicas de produção), associativo (re-
lações sociais) e ideológico.
Segundo nosso modo de ver, a evolução sócio-cultural é gerada por uma série de revoluções
tecnológicas correspondentes a inovações prodigiosas no aparelho produtivo ou militar. Estas
inovações, ao ativar as sociedades onde amadurecem pela primeira vez, provocam sua expan-
são na forma de um processo civilizatório no curso do qual tanto aquelas sociedades como
todas as que caem sob sua inuência transitam de uma a outra etapa evolutiva. Cada etapa
corresponde a uma formação econômico-social, vale dizer a uma combinação especíca de
modos de produção com certas formas de ordenação da vida social com conteúdos ideológi-
cos correspondentes. Em termos marxistas, o processo pode ser descrito como uma ruptura
provocada por contradições tornadas antagônicas entre as inovações acumuladas nas forças
produtivas materiais da sociedade e nas relações de produção preexistentes, rupturas essas
que acionam o trânsito de uma formação econômico-social a outra. (RIBEIRO, 1978, p. 23).
Dessa forma, o autor elenca treze processos civilizatórios correspondentes às re-
voluções tecnológicas, nas quais se cristalizam distintas formações socioculturais.
Reproduz-se na Figura 1 o quadro em que está resumida a análise evolutiva do autor.
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Figura 1: Sequências básicas da evolução sociocultural em termos de revoluções tecnológicas, de
processos civilizatórios e de formações socioculturais
Fonte: Ribeiro (1975)
Cada processo civilizatório gera duas vias de desenvolvimento, denidas a partir
da maneira como ocorre o contato dos povos com a tecnologia. Na aceleração evo-
lutiva, a progressão das etapas socioculturais se realiza de maneira autônoma, com
renovação do sistema produtivo e reformas sociais conduzidas pela inovação tecno-
lógica, ou seja, são os povos que existem para si mesmos. Foi o caso dos países ibéri-
cos, que se conformaram como impérios mercantis salvacionistas durante o primeiro
processo civilizatório desatado pela revolução tecnológica mercantil; do capitalismo
mercantil de Holanda e Inglaterra já no segundo processo civilizatório gerado por
essa mesma revolução tecnológica mercantil; ou ainda pelo imperialismo industrial
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representado pelos EUA e pela Inglaterra no primeiro processo civilizatório desata-
do, após a Revolução Tecnológica Industrial.
Na incorporação ou atualização histórica, povos atrasados – com um sistema pro-
dutivo e tecnológico atrasado em relação aos outros povos com que entram em contato
– são tolhidos à produção de excedentes para o centro, ou seja, o contato com a nova
tecnologia se realiza pela modernização reexa, garantindo a manutenção dos povos
atrasados como apêndices dos povos adiantados. É o caso das formações coloniais es-
cravistas, coloniais mercantis e coloniais de povoamento estabelecidas durante os dois
processos civilizatórios resultantes da revolução mercantil; e também das formações
neocoloniais, forjadas, em alguns casos, por processos de industrialização recoloniza-
dora, durante o processo civilizatório desatado pela Revolução Tecnológica Industrial.
A integração desses dois polos ocorre na expansão dos núcleos detentores das novas
tecnologias sobre os povos estranhos a elas. A interação desses povos atrasados com a
nova tecnologia, por meio dessa incorporação histórica, se dá despoticamente. Forma-
-se um sistema econômico integrado, com polos formando uma contraparte, porém o
que nutre essa relação é o estabelecimento de relações econômicas assimétricas.
Em resumo, a evolução sociocultural elaborada por Ribeiro (1975) se apresenta
como etapas evolutivas expressas em formações socioculturais, cuja origem está no
desenvolvimento de sucessivas revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios.
Essa evolução é entendida dentro de um movimento de progressões e regressões cul-
turais, por meio de “modernizações reexas” e “acelerações evolutivas”. O princípio
fundador desse processo está nas revoluções tecnológicas e no fato de elas se apresen-
tarem de maneira única, seja em relação às sociedades que as desenvolveram de ma-
neira autônoma, nas atualizadas historicamente, ou mesmo naquelas que reviveram
essas tecnologias séculos após o seu surgimento em outro “tempo-espaço”.
Darcy Ribeiro elaborou uma rigorosa tipologia da evolução sociocultural dos po-
vos. Contudo, em nenhum momento essa tipologia pode ser confundida como uma
abordagem funcionalista ou determinista. Pelo contrário, a classicação que ele pro-
pôs estava integrada a uma teoria social-histórica ampla, mas que necessitava investi-
gações particulares posteriores e que se assentava, acima de tudo, nas relações sociais.
Por isso mesmo, a via de aceleração histórica não é uma via única, assim como não o
é a via da modernização reexa. Quer dizer, as nações podem transitar de uma via a
outra a depender de como se enfrentam com as constrições externas, que por sua vez
dependem das estraticações sociais internas e suas respectivas relações de poder.
Assim como os impérios mercantis salvacionistas ibéricos trilharam a via da acelera-
ção evolutiva durante o primeiro processo civilizatório desencadeado pela revolução
mercantil, mas trilharam a via da modernização reexa no processo civilizatório se-
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guinte, países como a Rússia e a China, que haviam se modernizado de forma reexa
durante o primeiro processo civilizatório da Revolução Industrial, conseguiram sua
aceleração evolutiva no segundo processo civilizatório desencadeado nessa mesma
RT (ver Figura 1).
Percebe-se, portanto, como essa antropologia das civilizações ilumina o tema do
desenvolvimento nacional. Ela retirou o tema de visões funcionalistas e, sem cair
em relativismos, estabelece uma análise totalizante que se funda na forma como as
sociedades se relacionam com a natureza para se reproduzirem materialmente con-
dicionada às relações sociais e à dominação política e ideológica. Para os povos ame-
ricanos que foram desde 1500 incorporados historicamente nos processos civilizató-
rios pela via da modernização reexa, é particularmente importante perceber como
é possível transitar desta para a via da aceleração evolutiva. Para isso é necessário
entender primeiro o que está acontecendo atualmente no sistema produtivo e tecno-
lógico mundial.
O atual processo civilizatório e a revolução tecnológica iminente
A revolução Termonuclear só se fará sentir, efetivamente, como a nova força conformadora
da história, quando zer suceder à tralha industrial moderna toda a prodigiosa parafernália
que hoje se encontra no nível de projetos ou de potencialidades ou de objetos, instrumentos,
máquinas e motores de uso limitado. (RIBEIRO, 1975, p. 192).
Em sua antropologia das civilizações, Ribeiro se arriscou em um certo futurismo ao
armar que estava em curso uma nova revolução tecnológica. A discussão sobre ela,
batizada como revolução termonuclear, e sobre os distintos processos civilizatórios
que ela desata são o elemento mais importante para a análise da condição atual mun-
dial e da região latino-americana. O autor vislumbrava, ao cunhar aquele conceito
no nal da década de 1960, a emergência do paradigma tecnológico que daria uma
nova cara ao processo de acumulação capitalista mundial, recongurando os cen-
tros imperialistas, as periferias dependentes e as formações socialistas. Em grande
medida, o estado atual da economia mundial capitalista decorre, estruturalmente,
dos processos desatados pela transformação das forças produtivas daquele momento.
Também é a partir da compreensão desse processo que poderemos nos perguntar se
há, atualmente, uma nova revolução tecnológica em curso.
Diversos intelectuais buscaram teorizar sobre as transformações tecnológicas
ocorridas na segunda metade do século XX. O fenômeno foi apreendido a partir de
distintas teorias e sintetizado em diversos conceitos, entre os quais guram, além do
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conceito cunhado por Ribeiro, os de revolução cientíco-técnica (RICHTA, 1972;
DOS SANTOS, 1983), terceira revolução industrial (MANDEL, 1982) e, mais tarde,
os conceitos de paradigma eletroinformático (CECEÑA; BARREDA, 1995), socieda-
de em rede (CASTELLS, 1999), sociedade do conhecimento e capitalismo informático
(DABAT, 2009), entre outras denominações. Há, no entanto, que se reconhecer o ine-
ditismo da discussão presente no Processo Civilizatório, publicado em 1968, a respeito
do tema, pelo menos no Brasil, e muito provavelmente na América Latina. No mesmo
ano, na Tchecoslováquia, o grupo de cientistas dirigido por Radovan Richta publicava
o clássico Economia Socialista e Revolução Tecnológica, com teses bastante parecidas
com as do livro de Ribeiro3. Só alguns anos depois, com as traduções ao português e
ao espanhol desse livro, é que o caráter revolucionário das transformações ocorridas
nas forças produtivas passa a ser trabalhado sistematicamente por intelectuais da
região latino-americana.
A revolução termonuclear emerge, para Ribeiro, após a Segunda Guerra Mun-
dial, como resultado de um acúmulo de inovações relacionadas à energia nuclear
e à eletrônica, acúmulo esse que vinha ocorrendo desde o nal do século XIX, mas
que adquirira impulso durante o período das duas grandes guerras, produzindo uma
série de transformações irruptivas que justicaria qualicar esse processo como uma
revolução tecnológica (RIBEIRO, 2006). Ribeiro é, porém, cauteloso e arma que a
revolução termonuclear apenas dava seus primeiros passos naquele momento e po-
deria ter os mais variados desdobramentos.
O núcleo tecnológico dessa revolução estava, para Ribeiro, sobretudo nos “dispo-
sitivos eletrônicos ultra-rápidos” e, além disso, nas fontes de energia e armas termo-
nucleares, nos aviões a retropulsão e nas baterias solares (RIBEIRO, 2006, p. 232).
A identicação correta do elemento estratégico dessa revolução tecnológica – a ele-
trônica – ca, no entanto, oculta sob o adjetivo termonuclear, utilizado por Ribeiro
para denominá-la. Sugerimos, portanto, a denominação de revolução eletronuclear,
que integra os avanços da eletrônica – e sobretudo da microeletrônica – e o papel
estratégico da energia nuclear, sobretudo em seu aspecto militar.
No fundamental, porém, Ribeiro está correto em sua caracterização. De fato, a
eletrônica – mais precisamente seu progresso subsequente, a microeletrônica – e seu
3 As teses de ambas as obras são bastante convergentes, sobretudo i) a ideia de que a nova revolução
em curso tornaria a ciência uma força produtiva social de primeira ordem; ii) e a convicção de que
as formações socialistas seriam as mais preparadas para desenvolver as potencialidades contidas no
corpo de teorias e tecnologias emergentes. Ambos os autores parecem estar, nesse momento, bastante
inuenciados pelo trabalho do marxista inglês John Bernal, em particular pela ideia da transformação
da ciência em força produtiva a partir do nal da Segunda Guerra Mundial (BERNAL, 1976), e de Sa-
muel Lilley (1966).
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complemento – a informática – foram os elementos fundamentais da revolução tec-
nológica em gestação naquele período, elementos esses que condicionaram a trans-
formação de todos os demais setores produtivos da economia mundial. Da mesma
maneira, assim como Richta (1972), Ribeiro destacou o novo papel que a ciência
passava a cumprir no plano da evolução sociocultural a partir daquele momento.
Ao fundir-se com a tecnologia, arma o autor, a ciência deslocava-se do plano ideo-
lógico, onde operara fundamentalmente até então, para o plano adaptativo, ou seja,
passava a assumir a condição de agente mais ecaz de transformação da natureza e
das sociedades (RIBEIRO, 2006).
O que Ribeiro e Richta observam, e em grande medida antecipam, é o surgimento
de um novo ciclo de automação do processo de trabalho, que substituiria não mais
somente a capacidade manual de trabalho, mas também diversas capacidades intelec-
tuais de controle e regulação do processo produtivo. Com “[...] a retirada da força de
trabalho humano dos processos diretos de produção” (RICHTA, 1972, p. 17), restaria
ao ser humano a intervenção nas fases pré-produtivas, de preparação tecnológica e
pesquisa cientíca, que assumiriam, então, um papel decisivo no desenvolvimento
das forças produtivas. Como a ciência é, necessariamente, um processo cumulativo e
coletivo, o que estaria assumindo um papel decisivo não seria nada menos do que o
“conhecimento da natureza por parte do homem”, ou “os conhecimentos coletivos da
sociedade” (RICHTA, 1972, p. 19), embora amplamente monopolizados pelas potên-
cias imperialistas e suas multinacionais.
Contudo, talvez seja nas perspectivas de reorganização da divisão internacional
do trabalho onde Ribeiro deniu com mais acurácia as consequências da revolução
eletronuclear. Se em O Processo Civilizatório nota-se um grande otimismo com os
avanços tecnológicos em curso e com a incapacidade do capitalismo de contornar a
contradição explosiva entre as novas forças produtivas e as relações sociais de pro-
dução vigentes4, em O Dilema da América Latina, publicado pela primeira vez três
anos depois, ca bastante evidente que os riscos que Ribeiro havia levantado no livro
anterior passam a ser interpretados como fatos consumados, resultados de fatores
muito poderosos que guiavam a revolução eletronuclear por caminhos muito pareci-
dos aos das anteriores: a aceleração evolutiva de um punhado de países, alçando-os à
condição de centros expansivos, ao redor dos quais orbitam nações periféricas, frutos
de uma renovação da condição de dependência (RIBEIRO, 1978).
4 O otimismo de Darcy com a Revolução Eletronuclear ca nítido neste trecho: “[...] à medida que essas
promessas entrem a cumprir-se, terá início um novo movimento do processo evolutivo pela morte da
economia da escassez e o advento da economia da abundância, no bojo da qual deverão transmudar-se
todas as formas atuais de estraticação social” (RIBEIRO, 1975, p. 191).
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Entre todos os fatores de desvio5, o mais importante, o instrumento dinamiza-
dor de um novo processo de incorporação histórica, era a emergência das empresas
multinacionais, as quais, embora representassem, como expressão do nível de mo-
nopolização do capital naquele momento, o mais alto nível de aplicação da ciência à
produção, também eram os instrumentos através dos quais se administrava as ten-
sões que o novo impulso de desenvolvimento das forças produtivas projetava sobre as
relações de produção mundiais (RIBEIRO, 1978). Em especial, Ribeiro considerava
as multinacionais – monopolizadoras de tecnologia e de preços – os principais agen-
tes do processo de “industrialização recolonizadora”, que provocaria mais um ciclo
de modernização reexa nas sociedades periféricas. O autor se referia aos processos
de industrialização pesada de alguns países de maior desenvolvimento capitalista
relativo da periferia, tais como o Brasil e México na América Latina, que, se bem
modernizaram sua estrutura produtiva, resultaram num aumento da dependência e
da distância que os separava dos países imperialistas. Percebe-se, aqui, a conexão de
Ribeiro com os debates da época sobre a dependência e o subdesenvolvimento.
Os processos civilizatórios que Ribeiro vislumbra em O Dilema da América La-
tina estão relacionados i) à renovação do imperialismo estadunidense e à moderni-
zação reexa das sociedades periféricas; ii) às tensões internas ao campo socialista,
em particular ao conito sino-soviético, que opunha um socialismo maduro e pouco
dinâmico – o soviético – a um socialismo juvenil e imbuído de ímpeto revolucioná-
rio – o chinês (RIBEIRO, 1978). Por um lado, o autor deniu o processo civilizatório
em curso como uma etapa de unicação e homogeneização das forças produtivas
tendente a incorporar todos os povos em uma estrutura superimperialista coorde-
nada pelos EUA (RIBEIRO, 2006). Essa unicação das forças produtivas operava em
favor do centro imperialista, como já discutimos, mas, mesmo dentro das socieda-
des desenvolvidas, haveria tensões importantes. A operacionalização da revolução
eletronuclear dentro dos limites do capitalismo dava a ela um caráter privatista e
antievolutivo, destinado a preservar o sistema capitalista. A situação defensiva a que
estavam obrigados a principal potência imperialista e os demais países desenvolvi-
dos, em razão da pressão sobre as relações de produção que as novas tecnologias
exerciam, fazia das possibilidades virtuosas da revolução tecnológica o seu oposto,
forças degradantes e deformadoras da própria estrutura capitalista (RIBEIRO, 1978).
5 O conjunto orgânico da dominação englobava os seguintes aspectos: a aplicação eminentemente mili-
tar da revolução eletronuclear; os interesses privatistas nos países industrializados centrais; a dominação
econômico-empresarial dos EUA exercida sobre os demais centros industriais capitalistas, compelindo-
-os a atuar da mesma maneira, não ensejando qualquer revisão dos mecanismos de intercâmbio inter-
nacional; e a expansão das grandes empresas multinacionais, convertidas em instrumento da industria-
lização recolonizadora (RIBEIRO, 1978).
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Para Ribeiro, esse é o caminho pelo qual enveredava a América do Norte, degradan-
do a sua própria sociedade para evitar qualquer renovação estrutural mundial.
Por outro lado, Ribeiro identicou os antagonistas desse processo, aqueles que
estariam em condições de utilizar virtuosamente as potencialidades da revolução
eletronuclear. Tais contendores seriam os movimentos revolucionários na América
Latina e em outras regiões subdesenvolvidas, e também os países socialistas, em es-
pecial a China, já que a política soviética de apaziguamento havia levado “[...] à acei-
tação tácita da limitação da área de inuência do campo socialista e à redução de sua
capacidade de apoio aos movimentos de emancipação dos povos subdesenvolvidos”
(RIBEIRO, 1978, p. 34). Países como Cuba e China, por sua vez, mantinham seu
caráter insurrecional e renovador. No caso da China, Ribeiro reconhecia suas “[...]
irredutíveis aspirações de auto-expressão como superpotência” (RIBEIRO, 1978, p.
34) e, vislumbrava que “[...] depois da década de 70, quando começarem a realizar-se
as potencialidades chinesas, surgirá uma nova conguração internacional de grandes
potências em disputa” (RIBEIRO, 1978, p. 39).
Em que medida as antecipações de Darcy Ribeiro se conrmaram? Os anos
em que Ribeiro publica O Processo Civilizatório e O Dilema da América Latina são
também os anos da crise mundial capitalista que encerrou o ciclo de acumulação
do segundo pós-guerra. O m desse ciclo também marcou o ocaso do modelo de
produção conhecido como fordista, depositário das tecnologias criadas pelo impulso
acelerativo ao interior da Revolução Industrial no nal do século XIX (cadeia de
produção, taylorismo, separação entre as fases de concepção e execução) e que
tinha sua materialização na grande empresa multinacional, com suas matrizes e
subsidiárias6. Desse declínio emergiram as novas formas de produção assentadas nas
tecnologias provenientes da aplicação da microeletrônica, que progressivamente se
generalizaram a todas as esferas da reprodução capitalista.
A saída tecnológica que o capital encontrou para fazer frente à crise dos anos
de 1970 é totalmente tributária dos desenvolvimentos tecnológicos do pós-guerra
identicados por Ribeiro. Parece-nos, inclusive, mais coerente indicar o início da
6 “La producción masiva que tantos benecios reportó al capital -tanto en la desvalorización de la fuerza
de trabajo como en la lucha intercapitalista, apoyando la concentración del capital-, comenzó a en-
frentar una paulatina saturación de mercados y una disminución en el ritmo de desvalorización. La
estabilidad productiva lograda a través de los convenios colectivos y las altas tasas de productividad,
apareció excesivamente rígida al modicarse los términos del concierto entre las clases. La rigidez de la
cadena dicultó la disminución de obreros involucrados. La cadena tenía poca versatilidad y a pesar de
sus enormes virtudes maniestas en el periodo de auge, se mostró poco adaptable para enfrentar los mo-
mentos de recesión. Este cuello de botella dio lugar a intensas investigaciones y, nalmente, al desarrollo
de las fuerzas productivas particularmente expresado por la microelectrónica y, con ello, a la exibilidad
tecnológica reclamada por los procesos productivos” (CECEÑA, 1990, p. 36).
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revolução tecnológica denida como Eletronuclear nesse momento, em que ela deixa
de ser potencialmente transformadora e passa a ser efetivamente fonte de recon-
guração da produção capitalista no âmbito mundial. De fato, se pensarmos em seu
núcleo estratégico, a eletrônica, como pensa Ribeiro, o momento de virada é quando
o computador – a unidade entre a microeletrônica e a informática – passa a se ge-
neralizar dentro da produção capitalista e permite a digitalização e automação de
amplos setores da economia e, a partir dessa transformação, abre o caminho para a
superação da crise capitalista mundial da década de 1970, visto que amplia em exten-
são e profundidade a subsunção do trabalho ao capital e possibilita, em consequên-
cia, uma recuperação do processo de valorização no âmbito mundial. Isso ocorre a
partir da metade da década de 1970, e não logo após a Segunda Grande Guerra7. Essa
antecipação no tempo dos efeitos da revolução tecnológica que se vislumbrava não
foi realizada apenas por Ribeiro. Richta e Mandel zeram o mesmo ao tratarem como
generalizados processos que só se difundiram décadas depois8. A pesquisadora me-
xicana Ana Esther Ceceña também identica a emergência de um novo paradigma
tecnológico, o paradigma eletroinformático (CECEÑA; BARREDA, 1995), fundado
na microeletrônica e na informática a partir da metade da década de 1970, desa-
tando um processo de automação dos circuitos de produção e circulação do capital
(CECEÑA, 1990).
A transformação generalizada da economia mundial que ocorre nesse momen-
7 Apesar de os primeiros circuitos integrados de materiais semicondutores terem sido criados no nal
da década de 1950, é somente com a produção em escala comercial do microprocessador e das memó-
rias que a automação e a exibilização do processo produtivo assumem relevância em escala global.
Até a metade da década de 1970, as tecnologias de automação industrial dominantes, tanto na área
capitalista quanto na área socialista do sistema mundial, eram as máquinas-ferramenta de controle nu-
mérico (CN), cujas instruções eram fornecidas através de cartões ou tas perfuradas, o que lhes conferia
pouca exibilidade. Por sua vez, a automação dos serviços era rara nesse período. Com a produção do
microcomputador em escala comercial, o que ocorre em meados da década de 1970, e sua integração ao
controle numérico e às demais ferramentas de trabalho – dando origem aos robôs –, além de sua entrada
em vastos setores não industriais, a automação assume um papel protagônico na produção.
8 Em uma crítica acertada ao conceito de terceira revolução tecnológica elaborado por Mandel apenas al-
guns anos depois das publicações de Ribeiro e Richta – e que tem paralelos com o conceito de revolução
eletronuclear –, Singer critica essa tendência dos autores da época: “Na realidade, a onda longa de tonali-
dade expansionista, que se inicia com a Segunda Guerra Mundial nos EUA e após o término da mesma
nos demais países industrializados, se deve muito mais aos efeitos da segunda revolução tecnológica do
que aos da terceira, cuja essência (segundo Mandel) consiste no desenvolvimento da energia nuclear
e da automação. O que dominou a dinâmica do período 1945/67 não foi nem uma nem outra dessas
inovações tecnológicas, mas a grande expansão das indústrias produtoras de bens duráveis de consumo
(sobretudo do automóvel), de produtos petroquímicos, insumos industriais para a agricultura, de meios
de transporte (navios e aviões) e de armamentos, além do crescimento da aviação comercial, da meca-
nização da construção civil etc. etc. Inegavelmente, esse período foi dominado por notável dinamismo
tecnológico, sobretudo pela criação de novos produtos, mas nem a energia nuclear nem a automação
podem ser consideradas seus traços dominantes” (SINGER apud MANDEL, 1982, p. XIX-XX).
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to, tendo seu núcleo tecnológico na microeletrônica e na informática, também re-
congura as modalidades de exploração da força de trabalho e a forma da divisão
internacional do trabalho. Há uma ampliação do alcance (subsunção) em extensão
e profundidade do modo de produção capitalista. A queda da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) (e o m dos regimes socialistas do Leste Europeu) é
um dos fatos centrais desse processo, tanto por eliminar da disputa hegemônica o
maior rival dos EUA durante o século XX, como por colocar à disposição do capital
uma força de trabalho bem treinada, um conjunto estratégico de matérias-primas e
um mercado consumidor amplo. Mas também outro elemento importante é a crise
dos projetos de industrialização na periferia capitalista, que abre amplos espaços de
acumulação para os capitais do centro do sistema. Tudo isso ocorre sob o pano de
fundo da extensão da automação a vastos campos da produção que, juntamente com
uma ofensiva política, quebra a resistência da classe trabalhadora, eleva as taxas de
exploração, exibiliza o processo produtivo e permite ao capital recuperar suas taxas
de lucro e iniciar um novo ciclo de expansão.
Como consequência, há uma redenição da divisão internacional do trabalho.
Passa-se da instalação de liais de multinacionais ao redor do mundo como principal
estratégia de internacionalização do capital para uma segmentação produtiva que
se aproveita – em função da exibilidade proporcionada pelas novas tecnologias de
produção e comunicação9 – da heterogeneidade da força de trabalho e da localização
dos recursos estratégicos ao redor do globo.
Assim, identicamos dois processos civilizatórios desatados pela revolução ele-
tronuclear, em consonância com as antecipações de Ribeiro, porém agregando a elas
elementos mais especícos. O primeiro se trata da aceleração evolutiva dos centros
imperialistas, com prevalência dos Estados Unidos, que, utilizando o seu poder bé-
lico e monetário, conseguiram dominar o núcleo estratégico da revolução microele-
trônica mesmo quando estas não foram inventadas por suas empresas, e organiza-
ram, assim, as cadeias globais de valor em seu benefício. Em contraposição a ele esse
processo, ocorre a atualização das periferias como regiões neocoloniais que sofreram
uma regressão no seu processo de industrialização e se conectaram aos centros impe-
rialistas como maquiladoras ou exportadoras de matérias-primas.
9 “De manera muy precisa, el avance de las fuerzas productivas vinculadas a la esfera de las comu-
nicaciones ha sido una de las bases objetivas de mayor importancia del proceso de reestructuración
capitalista contemporáneo, apoyado en las estrategias de redespliegue internacional. La producción se
controla, se calcula y se diseña a través de sistemas computarizados que permiten su esparcimiento
geográco sin detrimento del control centralizado. EI desarrollo de las fuerzas productivas ha con-
seguido mantener la integridad del proceso de producción por encima de su diseminación espacial”
(CECEÑA, 1990, p. 38-39).
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O segundo processo diz respeito à reconguração do campo socialista, no qual
ocorreram dois movimentos: i) a queda da União Soviética, que resultou em uma
modernização reexa dos países que dela faziam parte, subordinando a maioria deles
como novas periferias do sistema capitalista; e ii) a aceleração evolutiva da China,
por um caminho distinto dos trilhados até então pelas formações socialistas, aliando
o planejamento e o controle estatal de tipo socialista com relações de produção de
mercado, em um modelo denominado por seus dirigentes como socialismo de mer-
cado, que tem se mostrado, sobretudo nas últimas duas décadas, altamente dinâmico
do ponto de vista do desenvolvimento de forças produtivas próprias10.
Consideramos, portanto, que os avanços tecnológicos subsequentes da revolução
termoeletrônica têm ocorrido, até o momento, dentro do mesmo paradigma tecnoló-
gico, através de processos que Darcy Ribeiro denominou de impulsos acelerativos (RI-
BEIRO, 1975). De fato, apesar do visível desenvolvimento das forças produtivas nos
últimos 50 anos, o aumento da capacidade de processamento, transmissão e armaze-
namento de dados ocorre ainda no âmbito das mesmas tecnologias fundamentais: na
microeletrônica, a dos circuitos eletrônicos miniaturizados impressos sobre placas de
materiais semicondutores (silício e germânio), e na informática, os sistemas baseados
na computação binária. Parece, contudo, que se está chegando a um limiar, tanto
pelos limites evolutivos a que têm chegado o atual paradigma tecnológico – princi-
palmente os limites à miniaturização dos componentes microeletrônicos11 – quanto
pela existência de novas descobertas que indicam a possibilidade de uma superação
qualitativa da fronteira tecnológica atual, como o são os materiais supercondutores e,
10 Não é o objetivo deste trabalho resenhar a ampla discussão sobre o caráter da formação sociocultural
chinesa contemporânea, tarefa que implicaria discutir todas as transformações pela qual o país passou
desde a Revolução de 1948. Se bem é certo que a abertura de 1978 auxiliou o reposicionamento e a
recuperação das taxas de lucro das grandes empresas dos países imperialistas, sobretudo das estaduni-
dense, com a exploração da força de trabalho chinesa, também é verdade que o país soube aproveitar
essa abertura para, progressivamente, desenvolver autonomamente suas forças produtivas e construir o
poder de coordenar essas forças produtivas através da centralização do poder político e de um núcleo
de empresas estatais posicionadas nos setores estratégicos do paradigma tecnológico atual. Para inter-
pretações contemporâneas sobre a China, ver Jabbour e Gabriele (2021) e Paraná e Majerowicz (2022).
11 A computação tal como a conhecemos se enfrenta atualmente com limites materiais ao processo de
miniaturização e aumento da velocidade de processamento. Até recentemente, o desenvolvimento dos
semicondutores de uso geral seguiu o percurso descrito pela chamada Lei de Moore, ou seja, duplican-
do a velocidade de processamento a cada ano. Isso foi possível pelos avanços na arquitetura dos chips,
permitindo a incorporação de um número cada vez maior de transistores em uma placa semicondutora,
assim como pela otimização dos sowares. Porém, o custo cada vez mais elevado da miniaturização –
em outras palavras, fabricar transistores cada vez menores é cada vez mais difícil – tem diminuído as
taxas de progresso técnico nessa área. Por outro lado, esse aumento do custo do progresso no campo de
semicondutores dá aos atuais fabricantes, em sua maioria estadunidenses, uma enorme vantagem nos
próximos avanços do setor, que se concentra em microchips projetados para resolver problemas especí-
cos, militares e civis (ROTMAN, 2020).
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relacionada a eles, a computação quântica. Essas novas tecnologias são a base de uma
nova revolução tecnológica caracterizada pela ampliação exponencial da capacidade
de produção e tratamento da informação em um amplo espectro da vida social e na-
tural. Sensores, meios de transporte, meios de comunicação, humanos e seres vivos
conectados em tempo real entre si e a computadores capazes de organizar, processar
e produzir respostas desejadas aos inputs recebidos.
Ainda que não haja uma perspectiva de curto prazo para uma aplicação generaliza-
da dessas tecnologias12, é certo que elas serão o fundamento da próxima revolução tec-
nológica e, por isso mesmo, são o núcleo da disputa entre as duas formações sociocul-
turais mais relevantes da economia mundial, Estados Unidos e China, da qual também
participam outros poucos países em setores especícos, como Alemanha, Japão, Coréia
do Sul e Índia. Mas o núcleo da disputa parece concentrar-se naquelas duas potências.
De fato, esses países são os líderes mundiais no investimento em ciência e tecnologia,
no patenteamento de novas tecnologias, além de possuírem os maiores contingentes
de pesquisadores. Os últimos relatórios da Unesco (LEWIS et al., 2021) e da Fundação
Nacional de Ciências dos Estados Unidos (BOURUCH e BUCI, 2022) mostram um ce-
nário ainda sem um vencedor explícito. Ainda que o dinamismo cientíco chinês seja,
em taxas de crescimento, superior ao dos Estados Unidos, este último ainda possui as
empresas líderes nos setores de semicondutores – Intel, Broadcom, Qualcomm, Texas
Inst., que competem com empresas coreanas e taiwanesas – e de Inteligência Articial
– Alphabet, Amazon, IBM Cloud, entre outras –, setores em que se estão gestando as
transformações da próxima revolução tecnológica.
Quando ocorrerá essa nova revolução tecnológica? Ela não depende somente dos
avanços da ciência, mas também da dinâmica da acumulação – que pode retardar
ou acelerar a implementação de inovações – e da luta de classes no âmbito global, o
12 Os materiais supercondutores permitem a passagem da corrente elétrica sem desperdício de energia.
Tal característica abre a possibilidade de um aumento exponencial de eciência na geração, transmissão
e armazenamento de energia, e também promete elevar radicalmente a velocidade de processamento de
informação dos circuitos integrados. A ativação do estado supercondutor, no entanto, ainda depende
de ambientes com temperaturas baixíssimas – próximas ao zero absoluto – ou com uma pressão muito
elevada, inviabilizando, até o momento e provavelmente pela próxima década, sua aplicação comercial
(CASTELVECCHI, 2020). A computação quântica, por sua vez, busca superar a computação binária ao
possibilitar que o bit – o qbit – apresente simultaneamente seus dois estados possíveis, 0 e 1, fenômeno
conhecido como superposição. Tal propriedade possibilitará à computação quântica superar os limites
de tempo e espaço da computação clássica atual. Porém, o momento em que isso comece a ocorrer de
maneira generalizada ainda parece distante, pois a computação quântica se enfrenta com problemas
fundamentais, entre eles a já mencionada viabilidade dos materiais supercondutores, matéria-prima
para vários tipos de qbits, e o problema da estabilidade, uma vez que os qbits são muito instáveis e qual-
quer ruído pode provocar erros que se propaguem pelos sistemas (POSTLER et al., 2022).
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que inclui a dinâmica das nações. O fato que é viveremos, nas próximas décadas, um
período de acirramento da luta pela hegemonia produtiva, tecnológica e ideológica
entre esses dois atores. É nesse contexto que a América Latina irá denir seu futuro.
O dilema latino-americano atual
Para Ribeiro (1981, p. 49), “O grande dilema brasileiro de nossos dias está na nova
opção que deve exercer entre a via da atualização histórica ou da aceleração evo-
lutiva, no âmbito de uma nova revolução tecnológica em curso”. A aceleração evo-
lutiva e atualização histórica como partes da dialética dos processos civilizatórios
desencadeados pelas revoluções tecnológicas levaram, a partir das várias etapas da
mundialização do capital, a recongurações das relações entre distintas formações
socioeconômicas. A especicidade das expansões europeias mercantis salvacionis-
tas, nos termos colocados por Ribeiro, serão pioneiras em integrar o mundo a partir
do desenvolvimento das forças produtivas. A questão que permanece ao longo da
obra de Darcy Ribeiro são os motivos da permanência, em torno do desenvolvimen-
to dos processos civilizatórios, da condição de dependência econômica de algumas
sociedades, derivada da inserção via atualização histórica, em especial a América
Latina. A resposta do autor sempre vai requerer, em acordo com seu marco teórico, a
compreensão das formas internas de organização dessas sociedades ou as formações
econômico-sociais derivadas de suas estraticações sociais.
A condição de dependência, ou de formações capitalistas neocoloniais, na fase
monopolística, requer um esforço de compreensão de processos internos de orga-
nização social e cultural que, no caso da América Latina, nos remete à denição de
proletariado externo e às relações das elites dirigentes desses países com os centros
externos difusores de investimentos e tecnologias. Mas será pelas condições internas
que esse tipo de inserção nas revoluções tecnológicas e, por extensão, no capitalis-
mo mundial vai ser denida. Dois fatos predominam em grande parte da forma-
ção da América Latina: i) metrópoles externas a seus territórios; e ii) formação de
um povo que, em proporções diversas, é utilizado como força de trabalho servil e se
desenvolve enquanto novo tipo de gente, ora condicionados mais a ancestralidades
pré-colombianas, africanas ou europeias, ora designados a desenvolver uma síntese
intercultural inédita.
Não que o passado se mantenha no presente, como o próprio termo que remete
à re(neo)colonização pode nos levar a concluir. Mas as condições originais de estra-
ticação social de um processo de colonização caminham, caso não haja ruptura,
para a renovação de suas estruturas sempre que uma nova revolução tecnológica se