Iuri Michelan Barcat*, Willian Lepinski** e Geraldo Augusto Pinto***
* Mestre e Doutorando do Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR); Bolsista CAPES. Graduado em Engenharia de Computação pela mesma instituição..Pesquisador do grupo Trabalho, Tecnologia e Capitalismo Digital (UTFPR).
**Mestre e Doutorando no Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. (UTFPR); Bolsista CAPES. Bacharel em Comércio Exterior (FESP). Pesquisador do grupo Ciências Humanas, Tecnologia e Sociedade (CHTS/UTFPR).
*** Professor Associado do Departamento Acadêmico de Filosofia e Ciências Humanas (DAFCH) e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador dos grupos: Ciências Humanas, Tecnologia e Sociedade (CHTS/UTFPR); Trabalho, Tecnologia e Capitalismo Digital (UTFPR); Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (Unicamp).
exploitation of labour. Thus, we aim to recover from the Marxist theory of dependency the particularities that condition this perennial characteristic of dependent capitalism at different periods and therefore by discuss the substantial determinations of the super-exploitation. We argue that these determinations explain their internal logic and with greater clarity precisely when we pay attention to their historical attributes. We end this paper with the author’s considerations regarding the possibility of generalizing super-exploitation in the globalization phase of capitalism. In addition to seeking to add to the theoretical debate and to the revitalization of Marini’s work, our main objective is to indicate its current relevance in the understanding of contemporary capitalism and Latin America.
A categoria de superexploração do trabalho, ou, seguindo a denominação proposta por Carcanholo (2013), com a qual concordamos, superexploração da força de trabalho, é central na obra de Marini e em sua teorização do capitalismo dependente na América Latina. Porém, não se trata de um conceito fixo para fundamentar a precariedade do trabalho em geral no continente, mas de uma categoria marcada, por um lado, pela historicidade relativa ao desenvolvimento das forças produtivas, e, por outro, pela correspondente organização das relações capitalistas de produção em âmbito mundial. Consequentemente, essa categoria aparecerá determinada de formas diferentes conforme ocorram modificações na base sociotécnica da produção global e local. Essencialmente fundamentada pelas relações entre a acumulação de capital e a geração e extração de mais-valor relativo, as determinações históricas que engendram a superexploração no capitalismo dependente – e, eventualmente, no mundo como um todo, conforme discutiremos – serão bastante diferenciadas conforme o momento do desenvolvimento capitalista que se tome em consideração. Identificamos três momentos históricos na obra de Ruy Mauro Marini em que essas transformações produtivas introduzem diferenças qualitativas nas determinações sociais da superexploração da força de trabalho. Delimitamos esses períodos partir da noção de padrão de reprodução do capital elaborada por outro autor importante da teoria marxista da dependência (doravante TMD), Jaime Osório (2012).
Assim, o objetivo do presente texto é recuperar essas determinações históricas da categoria de superexploração da força de trabalho e mostrar que, entendida como violação sistemática do valor da força de trabalho, tal categoria está essencialmente vinculada ao desenvolvimento histórico das forças produtivas e à incapacidade do capital em engendrar ciclos de acumulação fundados principalmente (ou seja, predominantemente) na geração de mais-valor relativo. Para tanto, estaremos também sustentados em outras obras inseridas no interior da tradição da TMD e do pensamento crítico latino-americano. Iniciaremos o artigo com uma breve revisão metodológica a respeito da questão da superexploração e sua relação com a dependência. Aqui, além dessa revisão, introduziremos a categoria de padrão de reprodução do capital (OSÓRIO, 2012). Esse será o nosso suporte prático para efetuar a periodização das diferentes facetas da superexploração no capitalismo dependente. Nesse sentido, a cronologia do padrão de reprodução do capital na América Latina é articulada em três momentos distintos: o padrão agromineiro exportador; o padrão industrial; e o padrão exportador de especialização produtiva.
No primeiro padrão de reprodução, argumentamos que Marini pensa a superexploração destacando, dentre outras características históricas, o intercâmbio desigual, fundado na forma específica da divisão internacional do trabalho então estabelecida e os desníveis tecnológicos nela encapsulados que atuavam na esfera concorrencial. Essa divisão internacional do trabalho aparece, nesse primeiro momento, como a contraposição entre economias imperialistas industrializadas e economias dependentes de produção agrária de baixa produtividade do trabalho. No segundo padrão de reprodução do capital na América Latina, aquele referente ao processo de industrialização, a superexploração exibe outras determinações históricas. Veremos, a partir de Marini, que o avanço tecnológico no interior da industrialização da periferia ficou mais restrito às esferas orientadas pela produção de bens suntuosos, de tal maneira que esse desenvolvimento, se contribuía para a queda da taxa de lucro mediante o aumento da composição orgânica do capital, não o fazia com a geração de mais-valor relativo. A superexploração é aqui determinada historicamente, e principalmente, não pelas perdas no âmbito das trocas no mercado internacional, mas pelas características específicas exibidas pelas economias latino-americanas em processo de industrialização, como o menor grau de aplicação tecnológica nas assim chamadas indústrias tradicionais e a dependência tecnológica em relação às economias imperialistas. Os exemplos concretos desse fenômeno são os diversos arrochos salariais que eram então efetuados nas montadoras da indústria automotiva ou nas maquiladoras, praticamente uma regra durante as ditaduras empresariais-militares no continente.
Já o terceiro e presente padrão de reprodução do capital na região refere-se ao momento em que Marini (2008a) argumenta como sendo o da ocorrência de uma generalização global da superexploração. Sugerimos, a partir de dados empíricos coletados recentemente (principalmente por Michael Roberts e John Smith) que, nesse terceiro período, a acumulação de capital em escala global se baseou majoritariamente não na geração de mais-valor relativo, mas na utilização de força de trabalho barata massivamente encontrada nas periferias, em especial na asiática (mas não apenas, inclui-se aqui também, é claro, a América Latina e o Leste Europeu), o que, por sua vez, atuou negativamente sobre a capacidade de organização e de barganha da classe trabalhadora nos economias imperialistas. Isso não significa que não haja em absoluto, nos momentos analisados, geração de mais-valor relativo (além das outras formas de elevação da lucratividade, como o barateamento do capital constante), mas que, sob circunstâncias históricas distintas, o capital se mostra incapaz de sustentar ciclos de acumulação de capital com concomitante crescimento da taxa geral de lucro por essas vias, desencadeando uma busca pelos lucros via violação sistemática do
valor da força de trabalho. Por fim, este texto traz uma discussão a respeito da essência da categoria de superexploração, sua determinação a partir de seu desenvolvimento histórico, e seus condicionamentos contemporâneos. Defende-se que Marini, e a TMD como um todo, possibilitam compreender não somente a especificidade do capitalismo na América Latina em dado período histórico, mas um aspecto universal no tocante ao desenvolvimento desse modo de produção.
Marx pouco escreveu de maneira explícita a respeito da questão do método. Não obstante, esse é um tema em relação ao qual a tradição marxista sempre esteve atenta. Não por acaso, Marini (2017, p. 325) inicia Dialética da Dependência com a seguinte advertência: “[...] em sua análise da dependência latino-americana, os pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura”. No primeiro caso, como diz o autor latino-americano, rompe-se a relação entre o concreto e o abstrato, e tomam lugar “[...] descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem fundir-se com ele” (MARINI, 2017, p. 325), enquanto no segundo caso o rigor teórico-metodológico é preterido em prol da manipulação conceitual. Contudo, esses conceitos, ou, de outro modo, as categorias, apenas “[...] expressam formas de ser, determinações de existência”, como aponta Marx (2011, p. 85) nos Grundrisse. Portanto, o objeto real e seu movimento histórico concreto são prioritários na produção das categorias. Por outro lado, uma vez que as categorias refletem (ainda que de forma genérica) o movimento histórico do real concreto, percebemos que é precisamente o desvelar das particularizações desse real que revelam com clareza aquilo que há de universal em todo o processo. Marini (2013, p. 47), em Subdesenvolvimento e Revolução, texto de 1967, colocara a questão da seguinte forma:
A história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial. Seu estudo é indispensável para quem deseje compreender a situação que este sistema enfrenta atualmente e as perspectivas que a ele se abrem. Inversamente, apenas a compreensão segura da evolução da economia capitalista mundial e dos mecanismos que a caracterizam proporciona o marco adequado para situar e analisar a problemática da América Latina.
Em 1973, em Dialética da Dependência, afirmaria: “[...] é o conhecimento da forma
particular que acabou por adotar o capitalismo dependente latino-americano que ilumina o estudo de sua gestação e permite conhecer analiticamente as tendências que desembocaram nesse resultado” (MARINI, 2017, p. 326). Percebe-se que o esforço do autor, no aspecto metodológico, situa-se justamente em compreender a realidade latino-americana orientando-se pela totalidade da teoria marxista, e, ao mesmo tempo, depreender dessa realidade, entendida – decisivamente – como uma parte do modo de produção capitalista mundial, aquilo que ela possui de peculiar e próprio. Consequentemente, trata-se de um esforço historicamente situado, e que deve ser “reproduzido” (e não apenas replicado) na medida em que o seu próprio objeto de estudo está em constante transformação. Logo, independentemente da mais rigorosa teorização da realidade, essa complexificação histórica do desenvolvimento capitalista modificará as categorias de análise em suas novas inter-relações.
Nesse quesito, não apenas a categoria da superexploração, mas a própria TMD foram objeto de intenso debate e ainda o são. Contudo, apesar da obnubilação editorial que a TMD sofreu no Brasil, não é o nosso intuito neste trabalho recuperar todo esse debate1. No entanto, é importante que ao menos nos situemos e nos posicionemos em algum local dessa discussão, para que assim seja possível introduzir a temática. Em detrimento das divergências no tratamento daquilo que autores/as concebem como sendo a dependência ou a superexploração da força de trabalho, existe um relativo consenso acerca da existência de um dado conjunto de elementos concretos que são particulares ao capitalismo dependente. E os economistas e cientistas sociais que se dedicaram à produção teórica acerca da dependência na vertente marxista se concentram nessas particularidades, em especial no contexto da América Latina, onde se destacam:
A ruptura do ciclo do capital, isto é, o desfasamento entre a esfera da produção e a esfera da realização, seja em mercados exteriores e/ou na esfera alta de consumo local; o predomínio dos trabalhadores como produtores e sua irrelevância como consumidores; o peso do mais-valor extraordinário e a dificuldade de transladar a acumulação para o campo do mais-valor relativo; a transferência de valor às economias imperialistas pelo intercambio desigual; a forma aguda que assumem os processos de concentração e centralização de capitais; finalmente, mas não menos relevante, uma organização produtiva sustentada na superexploração. (OSÓRIO, 2013a, p. 61, tradução livre nossa).
No que tange essa recuperação, sugerimos a leitura de Luce (2018), em especial os capítulos primeiro e terceiro. Nesses, o autor busca realizar justamente essa tarefa de esmiuçar os desdobramentos no que se refere às questões da dependência e da superexploração respectivamente. Também indicamos o texto de Martins (2018), que faz uma recuperação das críticas à TMD e os principais debates metodológicos.
Essas características particulares se articulam como momentos da dependência (ou do capitalismo dependente) em geral. Porém, no tratamento da relação entre dependência e superexploração, faz-se necessário recuperar como se manifesta a articulação da superexploração, em termos de determinidade, em face da condição de dependência, também de forma geral. Em Dialética da Dependência, Marini (2017, p. 327) demarca que a condição de dependência não pode ser confundida com a condição colonial. Para ele, a fórmula de Gunder Frank (1973, p. 26) de “desenvolvimento do subdesenvolvimento” seria “impecável”, exceto pelo fato de que, no trabalho de Frank, se encontra uma ausência de distinção clara entre a situação colonial e aquela de dependência. Assim, Marini (2017, p. 327, grifos nossos) determinará a dependência da seguinte forma:
É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida.
Queremos chamar a atenção para dois aspectos dessa formalização teórica de Marini. Em primeiro lugar, é importante enfatizar que o surgimento da relação de dependência está atrelado à passagem de um capitalismo essencialmente mercantil para uma fase de expansão engendrada a partir do comércio e da colonização (especialmente das Américas)2 e, logo após, o aparecimento da grande indústria. Daí decorre que a dependência é essencialmente determinada – no que se refere ao que condiciona o seu surgimento e considerando-se o aspecto concreto da produção capitalista enquanto produção de mais-valor – pela posição então ocupada pelos países latino-americanos na divisão internacional do trabalho, fato esse que “[...] determinará o desenvolvimento posterior da região” (MARINI, 2017, p. 327). A situação de dependência se distingue, ademais, da forma colonial, pela independência (ainda que meramente) jurídico-formal dos países latino-americanos em relação às suas antigas metrópoles (o que também reflete uma disputa entre estas e a cada vez
Dussel (2000), por exemplo, argumenta ser a colonização das Américas um fato essencial do nascimento da modernidade (capitalista) e de um sistema-mundo propriamente dito.
mais poderosa, à época, Inglaterra3).
Desde já, portanto, determina-se rigorosamente a dependência a partir de seus fundamentos econômicos. Por outro lado, a precisão que Marini acresce à formulação de Frank é direcionada, justamente, no sentido de compreender a existência de dinâmicas próprias, endógenas das regiões dependentes, ao invés de tomá-las como mero reflexo da exploração externa. Theotônio dos Santos (1994, p. 15, grifos nossos), em Evolução Histórica do Brasil, diria: “[...] a dependência [...] não é a relação de uma economia nacional nativa com uma economia que a submete, mas sim é uma relação básica que constitui e condiciona as próprias estruturas internas das regiões dominadas ou dependentes”. Por isso o mesmo autor se refere à dependência como uma “situação condicionante”, na qual, por um lado, a influência externa joga papel decisivo e, pelo outro, o desenvolvimento da região é, em última instância, determinado “pelas forças internas” que compõem esse mesmo local4.
No entanto, a situação de dependência não se reduz ao papel que essas economias cumprem, concretamente, na divisão internacional do trabalho. É decisivo compreender que essa é uma divisão capitalista do trabalho social, ou seja, nas palavras de Marini (2017, p. 328):
[...] o que importa considerar aqui é que as funções que cumpre a América Latina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aos requisitos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Mais além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa.
Portanto, há também (e isso é essencial) que se considerar as relações de valor aí envolvidas, apreender a unidade (e a contraditoriedade) entre valor de uso e valor de troca no âmbito histórico-concreto da produção e do intercâmbio em escala mundial. Ao ofertar no mercado mundial matérias primas e alimentos baratos, função primordialmente exercida pela América Latina na segunda metade do século XIX e começo do século XX, a região “[...] contribuiu para desenvolver o modo de produção especificamente capitalista, que se baseia na mais-valia relativa” (MARINI, 2017, p. 328), precisamente na medida em que essa oferta barateava tanto a força de trabalho (diretamente impactando na geração do mais-valor relativo) quanto elementos do
Ver Bagu (1949) para um desenvolvimento dessas relações.
O trabalho de Bambirra (2013), O Capitalismo Dependente Latino-Americano, ilustra bem esse conjunto de questões, já que apreende a heterogeneidade presente no desenvolvimento capitalista da região e seus determinantes.
capital constante das economias industriais (contribuindo seja na elevação, seja no estancamento da queda da taxa de lucro, e, indiretamente, no barateamento de mercadorias que entravam no consumo da classe trabalhadora).
Neste contexto emergem “[...] mecanismos de transferência de valor, baseados seja na produtividade, seja no monopólio de produção” (MARINI, 2017, p. 332) que operaram de maneira a distribuir um valor (e, decisivamente, um mais-valor) produzido nas economias dependentes em direção aos capitais nas economias industriais, e, “[...] sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferência de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso da taxa de lucro” (MARINI, 2017, p. 333). Em tais condições, Marini (2017, p. 332) afirma emergir “mecanismos de compensação”; nas suas palavras: “[...] em termos capitalistas, esses mecanismos (que ademais podem se apresentar, e normalmente se apresentam, de forma combinada) significam que o trabalho é remunerado abaixo do seu valor e correspondem, portanto, a uma superexploração do trabalho” (MARINI, 2017, p. 334).
Entendemos, assim, com Osório (2012, 2013a, 2013b), que a superexploração é essencialmente determinada pela violação do valor da força de trabalho5, e que Marini mostra o papel central e sistemático desse expediente de exploração capitalista no interior do capitalismo dependente. Porém, pensamos ser necessário enfatizar mais um aspecto dessa questão, também marcado por Osório. Diz Marini (2017, p. 350), querendo dissipar dúvidas: “[...] a superexploração é melhor definida pela maior exploração física do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a força de trabalho se remunera abaixo do seu valor real”. Por isso, Osório (2013a, p. 69, tradução livre nossa), comentando essas passagens, assinala:
[...] o desenvolvimento do mais-valor relativo como forma avançada de desenvolvimento do capitalismo não implica a eliminação – nem teórica nem histórica – de formas distintas de exploração, mas, pelo contrário, que a sua persistência e expansão são correlativas à expansão das formas avançadas.
Com efeito, nesse primeiro momento, correspondia ao desenvolvimento
Carcanholo (2013), de forma precisa, indica a diferença entre a superexploração em si, enquanto categoria, e as formas pelas quais ela pode ser realizada – algumas delas indicadas textualmente por Marini (2017), como o aumento da intensidade e/ou da jornada de trabalho sem equivalente, e a expropriação do fundo de consumo da classe trabalhadora. Entretanto, cabe indicar que a posição de Carcanholo (2013) a respeito da essência da categoria de superexploração difere daquela, por exemplo, de Osório (2013b), com a qual estamos mais alinhados.
da indústria em determinadas nações o incremento dado pelas economias agroexportadoras, que, ao mesmo tempo em que dispunham de uma baixa produtividade no trabalho, lançavam mão da superexploração, sendo assim condicionadas em seu desenvolvimento social e econômico na medida em que atuavam tanto no sentido de reforçar aquele processo quanto no de intensificar as contradições internas dele decorrentes. É precisamente essa articulação necessária entre a superexploração como violação do valor da força de trabalho, e a geração do mais-valor relativo, que deve reter nossa atenção, pois que está determinada essencialmente pelas necessidades de acumulação de capital que se fazem sentir no locus analisado. Porém, como o próprio caráter da dependência não é estanque e se constitui concreta e historicamente, também as determinações da superexploração aparecem de formas distintas, com pesos e inter-relações diferentes em cada momento histórico.
A acumulação de capital é o processo concreto, total e unitário ao qual as categorias como a superexploração fazem referência. A periodização de momentos do processo histórico de desenvolvimento capitalista, portanto, deve ser realizada tendo em vista as transformações atravessadas por esse processo de acumulação. Osório (2012) elabora o conceito de padrão de reprodução do capital tendo em vista, precisamente, a captação dessas transformações. Nas palavras do autor:
[...] para dar conta das formas como o capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais determinados, tanto no centro como na semiperiferia e na periferia, ou em regiões no interior de cada um deles, considerando as características de sua metamorfose na passagem pelas esferas da produção e da circulação (como dinheiro, meios de produção, força de trabalho, novas mercadorias, dinheiro incrementado), integrando o processo de valorização (incremento do valor e do dinheiro investido) e sua encarnação em valores de uso específicos (calças, rádios, celulares, tanques de guerra), assim como as contradições que esses processos geram (OSÓRIO, 2012, p. 40-41, grifos nossos).
Com efeito, “[...] a reprodução do capital assume formas diversas em diferentes momentos históricos, devendo se readequar às mudanças produzidas no sistema mundial e na divisão internacional do trabalho, reorganizando a produção sobre novos eixos de acumulação e/ou novos valores de uso” (OSÓRIO, 2012, p. 25). O autor indica, historicamente, três padrões de reprodução do capital para a América Latina (lembrando que há heterogeneidade entre os diferentes países e economias),
separados por etapas transitórias, sendo eles: a) padrão agromineiro exportador (até a segunda década do século XX); b) padrão industrial, subdividido em “etapa internalizada e autônoma” (até os anos 1940) e “etapa de integração ao capital estrangeiro” (desde os anos 1950); e, por fim, c) padrão exportador de especialização produtiva (de meados dos anos 1980 até hoje) (OSÓRIO, 2012, p. 44). Cada um desses padrões está inserido, por sua vez, no movimento geral da reprodução capitalista em escala global. Essa periodização ajuda a situar nossa leitura da historicidade da superexploração no próprio Marini e, por conseguinte, na análise da situação contemporânea, conforme se verá a seguir.
Nesta seção, buscaremos recuperar, segundo nossa interpretação, como aparecem em Marini as determinações históricas da superexploração. Teremos como texto base, no que concerne à análise dos dois primeiros períodos principais que indicamos acima a partir de Osório, o texto Dialética da Dependência de Marini, mas também faremos referência a outros de seus textos em que os temas são aprofundados. Para a discussão do período que diz respeito ao padrão exportador de especialização produtiva, teremos como referência principal o texto Proceso y Tendencias de la Globalización Capitalista, de Marini.
Marini, em Subdesenvolvimento e Revolução, já apresenta a tese de que somente se apreende a história (e seu aspecto lógico) do desenvolvimento capitalista latino-americano quando se toma como ponto de referência sua inserção no mercado mundial. Após afirmar que “[...] a história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial”, Marini (2013, p. 47) acrescenta: “[...] a América Latina surge como tal ao se incorporar no sistema capitalista em formação, isto é, no momento da expansão mercantilista europeia do século XVI”6. Em Dialética da Dependência, ele é mais preciso: “[...] a inserção da América Latina na economia capitalista responde às exigências da passagem para a produção de mais-valia relativa nos países industriais”, pois sua função na divisão internacional do trabalho “[...] foi a de prover os países industriais dos alimentos exigidos pelo crescimento da classe operária, em particular, e da população urbana,
Essa é a tese essencialmente defendida por Bagu (1949).
em geral, que ali se dava”, de forma a “[...] reduzir o valor real da força de trabalho nos países industriais, permitindo assim que o incremento da produtividade se traduza ali em taxas de mais-valia cada vez mais elevadas” (MARINI, 2017, p. 328-329).
Pois bem, o período colonial cria as condições no interior das quais, no século XIX, esse processo se aprofundará e tomará contornos cada vez mais claramente regidos pela lei do valor e pelas necessidades específicas da reprodução capitalista. Uma vez superado esse primeiro período, seria necessário explicar por que a divisão internacional do trabalho colocaria economias nacionais industrializadas, de um lado, e economias nacionais agroexportadoras de baixa produtividade, do outro, e por que essa relação viria a ser prejudicial às segundas. Assim, diz Marini (2017, p. 331): “[...] não é porque foram cometidos abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, mas porque eram débeis que se abusou delas”. Haveria que se explicar, enfim, o problema da troca desigual7. Marini (2017, p. 331) indicará haver no plano das trocas internacionais fluxos de transferência de valor, pelos quais um montante de valor produzido na periferia viria a ser apropriado, de modo crônico, pelos capitais das economias industriais, mediante mecanismos que “[...] se expressam na forma como se fixam os preços de mercado e os preços de produção das mercadorias8”.
O autor brasileiro diferencia dois casos distintos de transferência de valor no intercâmbio entre capitais, tomados aqui na forma de capitais nacionais de países distintos: no primeiro, trata-se da concorrência entre capitais que produzem o mesmo tipo de mercadoria, enquanto no segundo caso, se trata de capitais que produzem mercadorias de tipos distintos. A diferença consiste, essencialmente, em que, no primeiro caso, a transferência de valor está baseada em um lucro extraordinário obtido pelo capital mais produtivo na concorrência com outros capitais no interior da mesma esfera de produção, enquanto, no segundo caso, tratam-se de mecanismos que atuam na inter-relação entre esferas distintas. Enquanto no primeiro caso, segundo Marini (2017, p. 331-332), é “[...] natural que o fenômeno se apresente sobretudo em nível da concorrência entre nações industriais, e menos entre as que produzem bens primários” (o que não significa que isso seja exclusivamente assim), no segundo caso – ou seja, nas
[...] transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas
Indicamos Leite (2017, p. 77) para uma discussão sobre o histórico do problema.
Indicamos Osório (2012), Dussel (1988), Luce (2018) e Leite (2017) como trabalhos situados, a nosso juízo, na mesma linha geral de raciocínio – ao menos no que se refere esse aspecto – que buscam reconstituir esse processo a partir da teoria de Marx e da formação dos preços de produção. Neste trabalho não poderemos refazer esse caminho, apenas tomá-lo como pressuposto.
e matérias primas – o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual. (MARINI, 2017, p. 332).
Nomeadamente, Marini (2017, p. 332) diz: “[...] preocupamo-nos aqui apenas com o segundo caso”, o que não é fortuito, pois é justamente essa a relação que engendra, nesse período histórico e sob esse padrão de reprodução do capital nas formações sociais latino-americanas, a transferência de valor, que, por sua vez, incita a superexploração da força de trabalho. Trata-se de uma transferência determinada pelo intercâmbio de mercadorias realizado no interior de uma divisão internacional do trabalho particular que engendrava, em favor das nações industriais, um “monopólio de produção” (MARINI, 2017, p. 332) de determinadas mercadorias, estas mais intensivas em tecnologia – além dos lucros extraordinários nos casos em que se tratasse de mercadorias iguais, porém produzidas com distintos graus de produtividade. Seja como for, “[...] sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferência de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso da taxa de lucro” (MARINI, 2017, p. 332). Assim, para as economias industriais, a queda (tendencial) da taxa de lucro ocasionada pelo desenvolvimento tecnológico é contrabalançada pela apropriação de um valor produzido nas economias dependentes sob capitais intensivos em trabalho, no plano da formação dos preços de mercado. Porém, essa queda da taxa de lucro não desaparece, sendo sentida por esses mesmos capitais, que lançam mão da superexploração como forma de compensá-la.
Nesse primeiro período, portanto, a transferência de valor é essencialmente determinada no âmbito da troca de mercadorias, como também pela via creditícia, mediante fluxos de capitais e endividamento das economias dependentes (MARINI, 2017). E, no interior desse padrão de reprodução do capital dependente, a acumulação fundava-se principalmente na agroexportação herdada do período anterior, de tal forma que a queda da taxa de lucro sentida por esses setores (substancialmente relacionada com o desenvolvimento da produtividade nas economias industriais9), a partir do fenômeno da taxa desigual, impunha alguma forma de mecanismo compensatório, que veio a ser a superexploração da força de trabalho. Nessa fase, portanto, há uma relação direta entre transferência de valor via intercâmbio de mercadorias no comércio internacional e violação sistemática do valor da força
Lembramos também a análise empírica de Prebisch (2000) sobre a deterioração dos termos de troca observada no período.
de trabalho nas economias dependentes. Aqui, a incapacidade de gerar ciclos de acumulação de capital por meio do desenvolvimento técnico-produtivo e do mais-valor relativo no interior dessas economias, pressionava pelo recurso à superexploração. É necessário colocar desde já, contudo, um matiz nessa questão, a saber, de que não se trata de equivaler a forma com o conteúdo: a superexploração está essencialmente relacionada à acumulação de capital e seus condicionantes, e não exclusivamente a uma das formas históricas desses condicionantes – aspecto esse enfatizado pelo próprio Marini em Las Razones del Neodesarrollismo10. Por isso, em Dialética da Dependência, Marini (2017, p. 333) já havia colocado a questão da seguinte maneira:
[...] não é a rigor necessário que exista a troca desigual para que comecem a operar os mecanismos de extração de mais-valia mencionados; o simples fato da vinculação ao mercado mundial, e a conversão conseguinte da produção de valores de uso em produção de valores de troca que isso acarreta, tem como resultado imediato desatar um afã por lucro que se torna muito mais desenfreado quanto mais atrasado é o modo de produção existente.
A economia colonial viria a ser superada a partir do alto, ou seja, mantendo-se o poder forçadamente na mão das oligarquias e a estrutura econômica agrária com grande centralização de propriedade, e produzindo-se, também, uma classe trabalhadora explorada a partir dos fundamentos escravocratas e das imigrações, elas mesmas produto do desenvolvimento capitalista como um todo. Isso criou as condições para a formação de uma superpopulação relativa, a qual viria a sustentar a possibilidade da superexploração. Além disso, como mostra Marini (2017, p. 337), à acumulação de capital baseada na agroexportação corresponderia uma maior separação entre as fases da produção e da circulação no ciclo do capital dependente, dado que as mercadorias ali produzidas se realizam, fundamentalmente, em mercados externos, de tal forma que
[...] o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível substituí-lo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O dramático para a população trabalhadora da América
“Isso não implica nem muito menos que sua produtividade tenha estancado ou decrescido, mas que sempre estava atrasada. Tampouco há que derivar do dito o não dito: a superexploração do trabalho é incitada pelo intercâmbio desigual, mas não se deriva dele, mas da febre por lucro que cria o mercado mundial, e que se baseia fundamentalmente na formação de uma superpopulação relativa” (MARINI, 2008b, p. 174).
Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século 20. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho. (MARINI, 2017, p. 337).
Essas são, portanto, as condições observadas nesse primeiro período. Se é verdade que não se pode, desde já, fazer relação direta entre intercâmbio desigual e superexploração (como se a última derivasse exclusivamente da primeira), é também claro que, nesse momento, à luz do desenvolvimento capitalista latino-americano, as perdas no comércio internacional representavam, na medida em que pressionavam para baixo a taxa de lucro dos capitais agroexportadores, uma determinação decisiva no surgimento da superexploração. A situação se complexifica com a alteração qualitativa desse padrão de reprodução do capital com o advento da industrialização dependente.
Partimos das subdivisões formalizadas por Osório (2012) na periodização de nossa análise do desenvolvimento da superexploração em Marini porque pensamos que elas condizem com a periodização observada pelo próprio Marini. Se, segundo Osório, até a segunda década do século XX predominara o padrão agromineiro exportador, também indicou Marini (2017, p. 339) que:
Para os fins que a que nos propomos, é suficiente fazer notar que, por significativo que tivesse sido o desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora (e, por consequência, na extensão do mercado interno), em países como Argentina, México, Brasil e outros11, não chegou nunca a conformar uma verdadeira economia industrial, que, definindo o caráter e o sentido da acumulação de capital, acarretasse em uma mudança qualitativa no desenvolvimento econômico desses países. Ao contrário, a indústria continuou sendo ali uma atividade subordinada à produção e exportação de bens primários, que constituíam, estes sim, o centro vital do processo de acumulação. É apenas quando a crise da economia capitalista internacional, correspondente ao período compreendido entre a primeira e a segunda guerras mundiais, limita a acumulação baseada na produção para o mercado externo, que o eixo da acumulação se desloca para a indústria, dando origem à moderna economia industrial que
Novamente, ver Bambirra (2013) para uma análise do desenvolvimento do capitalismo latino-ame-ricano e sua heterogeneidade regional.
prevalece na região.
O processo de industrialização latino-americano nasce, portanto, do bojo da crise mundial pela qual o desenvolvimento capitalista passava. Com isso, afirma Marini (2017, p. 339), “[...] a esfera alta da circulação, que se articulava com a oferta externa de bens manufaturados de consumo, desloca seu centro de gravidade para a produção interna”. Esse movimento possui, de certo modo, um aspecto similar ao da industrialização das economias imperialistas, já que envolvia a interiorização tanto de processos produtivos quanto de demanda. Porém, “[...] as similaridades aparentes da economia industrial dependente com a economia industrial clássica encobriam profundas diferenças, que o desenvolvimento capitalista acentuaria em lugar de atenuar” (MARINI, 2017, p. 339). Ora, a industrialização latino-americana viria a se fundar na interiorização de processos produtivos orientados pelo consumo das altas esferas da circulação e não das massas, isto é, ela “[...] nasce para atender uma demanda pré-existente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes dos países avançados” (MARINI, 2017, p. 340). Portanto, “[...] a reorientação para o interior da demanda gerada pela mais-valia não acumulada implicava um mecanismo específico de criação de mercado interno radicalmente diferente do que operava na economia clássica” (MARINI, 2017, p. 339).
Como vimos, Osório (2012) identifica dois momentos nesse processo de industrialização, um primeiro mais internalizado e autônomo, e um segundo de primazia da entrada do capital estrangeiro. Marini, por sua vez, indica que, no mesmo período, há uma passagem da “industrialização substitutiva de bens de consumo não-duráveis” – da alta esfera de circulação – para a necessidade de se “[...] implementar uma indústria pesada, produtora de bens intermediários, de consumo durável e de capital” (MARINI, 2013, p. 57)12. O ponto de vista que aqui nos interessa primordialmente é acompanhar o que interliga o processo de acumulação (o padrão de reprodução do capital), suas transformações e a questão da superexploração.
Em um primeiro momento, sublinha Marini, a orientação à produção de mercadorias que satisfazem o consumo dos detentores de propriedade e capital faz com que a participação da classe trabalhadora na geração da demanda não atue significativamente, ao mesmo tempo em que “[...] a capacidade de demanda era,
É necessário enfatizar que essa diferenciação foi em larga medida determinada pelo próprio período de crise pelo qual passava o capital e o isolamento relativo provocado pelos períodos de guerra – sem que isso signifique ausência de agência interna. Posteriormente, a inserção mais intensa e extensa do capital estrangeiro na região, que acelera o processo de industrialização, mas sob a sua égide, tem relação com o excedente de capital (tanto na forma monetária quanto na forma material de máquinas, equipamentos etc.) nas economias imperialistas, em especial os Estados Unidos. Indicamos Marini (2013) e Dos Santos (1995, 2000, 2020) para análises mais detalhadas a respeito do desenvolvimento capitalista dependente, especialmente o brasileiro, no período, tanto no âmbito da economia como na política.
naquele momento, superior à oferta, pelo que não se apresentava ao capitalista o problema de criar mercado para suas mercadorias, mas uma situação inversa” (MARINI, 2017, p. 340-341). Essa situação, aliada às políticas industrializantes que conferiam vantagens monopólicas a esses setores, permitiu que os capitais jogassem, mesmo quando a oferta e a demanda (em tese) coincidissem, na margem entre preços de produção e preços de mercado, auferindo maiores taxas de lucro. Por outro lado, trata-se de uma situação na qual ainda vigia um baixo nível tecnológico, o que faz “[...] que o preço de produção seja determinado fundamentalmente pelos salários” (MARINI, 2017, p. 341), ao mesmo tempo em que a crise do setor exportador libera força de trabalho e pressiona os salários em sentido descendente, criando as condições para uma nova reprodução do mecanismo da superexploração.
O processo de alteração no padrão de reprodução do capital reproduz, portanto, em escala ampliada, o afã por lucro e algumas das condições que permitem (e solicitam) a superexploração da força de trabalho na economia dependente. Sem que o intercâmbio desigual deixe de atuar, há que se considerar esses outros fenômenos que concretamente e progressivamente adquirem maior peso na reprodução do capitalismo dependente, mantendo-se, quanto a isso, a centralidade da existência de volumoso exército industrial de reserva e a cisão entre a produção e as necessidades de consumo da classe trabalhadora.
A industrialização que emerge sobre a base do consumo pré-existente das oligarquias e da classe capitalista industrial em desenvolvimento reproduz – agora no interior da própria reprodução interna do capital – uma cisão grave e crônica entre produção e consumo no ciclo do capital. E mais: o faz ao mesmo tempo em que se mantém, por um lado, uma produtividade do trabalho relativamente baixa (ou seja, uma menor composição técnica do capital, fazendo com que os salários incidam muito decisivamente na taxa de lucro à medida que essa composição técnica seja acompanhada, tendencialmente, pela composição valor), e, pelo outro, um exército industrial de reserva relevante que pressiona os salários para baixo. Por fim, o esforço industrializante também produzia, segundo as necessidades desses capitais emergentes, condições privilegiadas para que sustentassem sua taxa de acumulação no aumento dos preços. Esse primeiro momento da industrialização atinge, após algumas décadas, um esgotamento, e, concomitantemente, alteram-se as condições da reprodução capitalista mundial com o encerramento da Segunda Grande Guerra e o advento da hegemonia estadunidense. Dos Santos (1994, p. 72) coloca a questão assim:
A conjuntura posterior à II Guerra Mundial era, entretanto, o oposto. Terminada a situação de pleno emprego provocada pela guerra, cai drasticamente o mercado dos Estados Unidos e se produz um enorme excedente de capitais, que se destina à reorganização da economia
européia e japonesa e aos países subdesenvolvidos. A partir desse momento, há um grande aumento das inversões norte-americanas nos países dependentes e no Brasil em particular.
É chegada a hora da integração com o capital estrangeiro indicada por Osório (2012). Marini (2017) analisa, de modo geral, as transformações operadas na economia dependente industrial com a introdução mais intensa do capital estrangeiro, em especial com a importação de tecnologia, que também leva a alterações no caráter da dependência e da superexploração. Para o autor, “[...] o avanço conseguido pela concentração de capital em escala mundial coloca então nas mãos das grandes corporações imperialistas uma abundância de recursos, que necessitam buscar aplicação no exterior”, e, nesse período, é significativo que esse fluxo de capital em direção à periferia se oriente “[...] de forma preferencial para o setor industrial” (MARINI, 2017, p. 342)13.
Se a industrialização dependente emerge em correspondência à deterioração das condições globais de reprodução do capital, as necessidades de desenvolvimento tecnológico que emergem do aprofundamento dessa industrialização encontram, por sua vez, no terreno mundial, uma abundância de capitais externos que buscam sua aplicação e valorização. Cabe, pois, avaliar as especificidades que essa transformação na forma da dependência engendra na superexploração. Novamente, conforme Marini (2017, p. 344):
É assim como, incidindo sobre uma estrutura produtiva baseada na maior exploração dos trabalhadores, o progresso técnico possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência para remunerá-lo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu decisivamente a vinculação das novas técnicas de produção com setores industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem a convertê-los em consumo popular nos países avançados, não podem fazê-lo sob nenhuma hipótese nas sociedades dependentes. O abismo existente entre o nível de vida dos trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da circulação torna inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc., sejam destinados necessariamente para esta última. Nessa medida, e toda vez que não representam bens que intervenham no consumo dos trabalhadores, o aumento de produtividade induzido pela técnica nesses setores de produção não poderia se traduzir em maiores lucros por elevação da taxa de mais-valia, mas apenas mediante o aumento da massa de valor realizado. A difusão do progresso técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo fundamentalmente mais do aumento da massa de valor – e portanto de mais-valia – que da taxa de mais-valia.
Ver Dos Santos (1994, p. 71) para uma sintética revisão desse período mais de perto.
Dois aspectos merecem destaque aqui: 1) o desenvolvimento capitalista na América Latina (tendo-se especialmente em vista o caso brasileiro) e a maior centralidade que ganha o setor industrial no interior desse processo – e isso é específico das economias dependentes – que corresponde a uma inserção agigantada do capital estrangeiro nessas economias14. 2) O caráter específico da acumulação dependente é reforçado nesse quesito, pois a inversão de capital – tanto monetário quanto na forma de capital fixo – é essencialmente direcionada para os setores que compõem a cadeia produtiva de valores de uso que não entram na cesta de consumo da classe trabalhadora. Dessa forma, indica Marini (2017, p. 344), “[...] ao se concentrar de maneira significativa nos setores produtores de bens supérfluos, o desenvolvimento tecnológico acabaria por colocar graves problemas de realização”.
As determinações da superexploração passam, portanto, por uma nova atualização histórica. De um lado, neste ponto do desenvolvimento capitalista dependente, a superexploração é aqui uma necessidade engendrada por uma acumulação de capital essencialmente fundada na produção industrial interna. De outro, e de forma correspondente, são as características específicas da produção industrial do capitalismo dependente que dão surgimento a essa necessidade, a saber, o salto tecnológico – oriundo principalmente da importação do capital fixo, e não do desenvolvimento interno e autônomo da ciência e da tecnologia – situado na cadeia produtiva dos setores produtores de bens supérfluos (o que não significa ausência absoluta de elevação da produtividade do trabalho nos setores produtores de mercadorias consumidas pelos trabalhadores). Processo este, portanto, que não viria a engendrar ciclos de acumulação de capital fundados principalmente na geração do mais-valor relativo, justamente porque não interferem, em si, no valor da força de trabalho15.
Ora, portanto esse desenvolvimento do capitalismo dependente tem o efeito de: 1) elevar a composição orgânica média do capital no interior dessas economias sem contrabalancear os efeitos de tal elevação por uma maior geração de mais-valor relativo, o que vem a pressionar a acumulação de capital pelo descenso na taxa de lucro16; 2) liberar força de trabalho – um exército industrial de reserva –
Ver Marini (2022), em El ciclo del capital em uma economia dependente, para uma ênfase na análise dessa relação da reprodução interna de capital nas economias dependentes e as distintas fases de seu ciclo com o capital externo. Ressaltamos: o papel do capital estrangeiro na inversão inicial, como capital monetário; o papel do capital estrangeiro na forma de capital fixo importado; e, por fim, a apropriação de mais-valor criado no interior da economia dependente pelo capital estrangeiro ao final do ciclo.
Marini (1979) se dedica, em Plusvalía Extraordinária y Acumulación de Capital, inteiramente à análise dessas questões a partir de Marx.
Há um artigo de Marquetti, Maldonado Filho e Lautert (2018, p. 270), no livro World in Crisis, edi-
por meio da introdução de tecnologia estrangeira no processo produtivo; 3) reforçar as tendências contraditórias da economia dependente no que se refere ao ciclo do capital, não apenas no âmbito do consumo, mas, decisivamente, da produção17; e, portanto, 4) complexificar as determinações da dependência, e, com ela, também da superexploração da força de trabalho. Vale ainda lembrar que a industrialização dependente produz uma massiva centralização de capital e oligopolização, fundadas no investimento externo e na inserção peculiar da tecnologia, devido aos setores da produção para onde era direcionada e à dominância do capital estrangeiro no interior desse processo. Também corresponde à industrialização dependente e suas contradições as formas assumidas pelo Estado, bastando lembrar que foi necessário implementar uma ditadura empresarial-militar para levar adiante esse padrão de acumulação de capital18.
Assumindo o capital estrangeiro a primazia nesse contexto, pode-se dizer que, em última instância, a superexploração permanece vinculada à transferência de valor, já que os lucros do processo interno de acumulação de capital são, em larga medida, apropriados pelo capital estrangeiro, seja porque ele foi a origem do investimento (direta ou indiretamente), seja porque participava do processo produtivo na forma de capital fixo emprestado. Porém, essa determinação por si só é demasiado abstrata e não daria conta nem das especificidades dos determinantes da superexploração nesse período, nem da questão quando analisada desde a perspectiva do capitalismo em escala global (e não desde, apenas, a perspectiva das economias dependentes). Sob esse aspecto, o mais decisivo é a relação entre o desenvolvimento tecnológico, as distintas esferas da produção e a acumulação de capital. Ademais, deve-se também situar as transferências de valor como momentos da formação (tendencial) de uma economia capitalista cada vez mais posta como totalidade efetiva no âmbito mundial,
tado por Guglielmo Carchedi e Michael Roberts, que busca realizar uma análise teórica e empírica do movimento da taxa de lucro no Brasil de 1953 até 2008. Nele é possível constatar um forte movimento médio e tendencial de descenso no período que vai de 1953 até 1965, sendo que os autores chegam à conclusão de que isso estaria determinado pelo aumento da composição do capital com a introdução da tecnologia.
“A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a engendrar assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas. A estratificação desse aparato no que se costuma chamar ‘indústrias dinâmicas’ (setores produtores de bens supérfluos e de bens de capital que se destinam principalmente para estes) e ‘indústrias tradicionais’ está refletindo a adequação da estrutura de produção à estrutura de circulação própria do capitalismo dependente” (MARINI, 2017, p. 345). Essas características da industrialização dependente também condicionarão o caráter exportador que ela mesma assumirá.
Novamente indicamos Dos Santos (1994, p. 107) para uma análise do período: “[...] a essência do ‘boom’ econômico que viveu o Brasil de 1967 a 1974 estava na capacidade de elevar a taxa de lucros através, sobretudo, da rebaixa do salário real”.
o que veremos, na seção seguinte, ser a expressão da formação tendencial de uma taxa média de lucro em âmbito global.
De qualquer modo, o desenvolvimento concreto dessas determinações é o que nos permite observar aquilo que se mantém na mudança, ou seja, a continuidade na descontinuidade, ou ainda, a essência da superexploração: enquanto violação do valor da força de trabalho, permanece intrínseca e intimamente vinculada à contradição inscrita no modo de produção capitalista entre as suas necessidades (valorização do capital) e o desenvolvimento das forças produtivas (e respectivas contradições) por elas engendrado. Em um primeiro momento, a industrialização nas economias imperialistas pressionava, no âmbito do comércio mundial, na direção de uma queda da taxa de lucro que viria a ser absorvida pelos capitais agroexportadores das regiões dependentes, os quais lançariam mão da superexploração da força de trabalho local como forma fundamental de compensar suas perdas. No segundo momento, é o próprio desenvolvimento industrial dessas economias dependentes, nos marcos restritivos em que se desdobra, que viria a pressionar a taxa de lucro dos capitais aí estabelecidos em sentido negativo, já que a composição média do capital também aumenta, mas em favor da acumulação dos setores produtores de bens suntuosos e por meio de lucros extraordinários, sem geração recíproca e compensatória de mais-valor relativo em escala suficiente para sustentar processos de acumulação com concomitante aumento na taxa média de lucro da economia. A preexistência e mesmo a expansão, nessas economias, de um exército industrial de reserva, concomitantemente ao divórcio entre produção e consumo das classes trabalhadoras, constituiriam condicionantes – por razões historicamente diferenciadas – perenes da superexploração.
A crise do final dos anos 1960 desencadeou profundas alterações tanto no âmbito tecnológico-produtivo quanto na divisão internacional do trabalho, dando origem a uma “rearticulação da economia mundial, chamada de mundialização” (OSÓRIO, 2012, p. 57). Assim, novamente, há de se situar as transformações no capitalismo dependente a partir das metamorfoses pelas quais vem a passar o modo de produção capitalista na sua totalidade e no interior do qual as economias dependentes se inserem. A crise que eclode no fim dos anos 1960, conforme indica Osório (2012), tem variados determinantes19, mas eles se sintetizam em uma acentuada queda da
Ver Mandel (1985) para uma empreitada de análise do conjunto da economia mundial – especialmente desde as economias imperialistas – do período. Para uma breve análise da crise dos anos 1970, ver Car-
taxa de lucro, conforme mostra Roberts (2020). Como resposta à crise, advém o processo conhecido como reestruturação produtiva, no interior do qual o capital deflagra “[...] várias transformações no próprio processo produtivo” (ANTUNES, 2009, p. 49), tanto no interior das empresas e cadeias produtivas, quanto no que se refere à divisão internacional do trabalho. Sintetiza Osório (2012, p. 44):
O sistema mundial capitalista estabelece em seu curso diversas divisões internacionais do trabalho, nas quais adquire sentido o papel fundamental que a América Latina desempenha como região produtora de metais preciosos, matérias-primas e alimentos desde a etapa colonial até a etapa do padrão primário-exportador. A crise desse padrão, a etapa de transição que se gera e a posterior conformação do padrão industrial na América Latina têm lógicas internas, porém estas se articulam com a crise do mercado mundial derivada da longa etapa que vai da Primeira Guerra Mundial à Crise de 1929 e à Segunda Guerra Mundial e que exigem do capital local a geração de um processo de industrialização como forma de reprodução. O atual padrão exportador de especialização produtiva adquire sentido no quadro de revoluções na microeletrônica, que multiplicam e aceleram as comunicações, a redução nos preços dos transportes de mercadorias e um novo estágio do capital financeiro. Tudo isso propiciou integrações mais intensas do mercado mundial, assim como novas possibilidades de segmentação dos processos produtivos, de relocalização de indústrias e serviços, bem como uma elevada mobilidade do capital, processos que foram caracterizados com a noção de mundialização.
Com efeito, Smith (2016) mostra que a tendência das últimas décadas tem sido a concentração cada vez maior da força de trabalho industrial em regiões historicamente periféricas na reprodução global do capital. Entretanto, não se pode homogeneizar esse processo: o papel e a inserção, para darmos o exemplo mais evidente, que a China possui nessa nova dinâmica internacional viriam a diferir qualitativamente dos que cumprem o Brasil (e, nesse sentido, também as demais economias latino-americanas) no período. Vale ainda dizer que é impossível negligenciar, para a compreensão adequada do período atual, a emergência da China como potência econômica, mas, dado o intuito deste texto, teremos de manter esses aspectos em segundo plano e enfocar a análise da situação latino-americana, em especial a brasileira.
Marini (2008a), em Proceso y Tendências de la Globalización Capitalista (texto de 1997), determinaria em seus termos o que então se passaria a chamar de globalização – e que Osório (2012) viria a conceituar como mundialização –, qual seja, um processo caracterizado “[...] pela superação progressiva das fronteiras nacionais no marco do mercado mundial, no que se refere às estruturas de produção, circulação e
canholo (2010). Para uma análise mais desdobrada – citada por este mesmo autor – ver Antunes (2009).
consumo de bens e serviços, assim como por alterar a geografia política e as relações internacionais” (MARINI, 2008a, p. 247-248, tradução livre nossa). As mudanças qualitativas no processo produtivo possibilitadas pelo desenvolvimento tecnológico – e provocadas pela crise capitalista que o engendra – foram acompanhadas pela crise nos padrões de reprodução do capital latino-americano20, fortemente baseados no capital estrangeiro. Como mostra o anuário estatístico do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE, 2019, p. 64-65), a título de exemplo, a participação da indústria de transformação no produto brasileiro caiu dramaticamente do final dos anos 1980 até o início dos anos 2000, enquanto se registrou, principalmente a partir da metade dos anos 1990, um aumento substancial, por exemplo, da indústria extrativa mineral. Com efeito, Osório (2012) mostra como aumentou sensivelmente o valor das exportações da América Latina nesse período (acima da média mundial, embora ainda abaixo da China), o investimento estrangeiro direto (principalmente no Brasil e no México), bastante influenciado também pelos processos de privatização, e, ao mesmo tempo, como também se intensificou uma especialização da pauta exportadora com predominância de mercadorias advindas da mineração e da agricultura nos países da região.
A “superação progressiva das fronteiras nacionais no marco do mercado mundial”, indicada por Marini (2008a, p. 247), deveria, portanto, para além da matização necessária na análise de cada caso concreto, ser entendida nos termos de uma mundialização das estruturas produtoras das mercadorias, da distribuição do mais-valor em escala global (portanto, da concorrência) e da decorrente mobilidade internacional de capital solicitada e produzida no interior desse processo. Assim, capitais menos produtivos em relação à média da economia mundial (oligopolizada por capitais das economias imperialistas que detêm o controle da produção científica e tecnológica) situados nas economias latino-americanas, vêm a quebrar, ao passo que as mercadorias e serviços por eles até então ofertados passam a ser importados. Por sua vez, os setores extrativo-exportadores, que dependem da extensão e da qualidade da terra, voltam a ganhar importância relativa na região21. Por isso, Marini (2008a, p. 260, tradução livre nossa) indica:
Dessa maneira a economia globalizada, que estamos vendo emergir nesse final de século e que corresponde a uma nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial, põe sobre a
Ver Dos Santos (1994, p. 161) para uma análise do caso brasileiro.
Assim, é evidente o crescimento, por exemplo, da participação da soja nas exportações brasileiras, bem como o crescimento da participação dos serviços (correlacionado com os novos desenvolvimentos tecnológicos desse período histórico) e da indústria química nas importações do país, conforme as informações do Atlas of Economic Complexity (2022).
mesa o tema de uma nova divisão internacional do trabalho que, mutatis mutandis, tende a reestabelecer, em um plano superior, formas de dependência que pensávamos desaparecidas com o século XIX.
Primeiramente, cabe ressaltar: o padrão exportador atual, ao contrário do século XIX, não está fundado em um incipiente desenvolvimento capitalista e uma baixa produtividade do trabalho em seus ramos diferenciados (i.e., industrial ou agrário), mas, ao contrário, é produto desse desenvolvimento e, no que se refere aos setores exportadores – situados no âmbito da concorrência global – trata-se de uma produção intensiva em capital fixo (aliás, majoritariamente importado). Em segundo lugar, a reprodução das relações econômicas características das economias dependentes – a saber, o elevado exército industrial de reserva, o divórcio entre as necessidades de consumo das classes trabalhadoras e a produção capitalista orientada pela exportação, e a menor composição técnica média do capital com concomitante dependência tecnológica – reforça o papel fundamental que a violação do valor da força de trabalho, a superexploração, joga nessas economias. Com efeito, o estudo do ILAESE (2019, p. 16) mostra que os setores mineral e agropecuário são aqueles com a menor porcentagem dos salários em relação ao “[...] montante de valor produzido em cada um dos respectivos setores”, ao passo que o setor extrativo possui as taxas de lucro mais elevadas do Brasil22.
Para finalizarmos essa discussão, cabem mais duas indagações: 1) há uma (ou mais) circunstâncias específicas do capitalismo contemporâneo em escala mundial que determinaria a superexploração? 2) Em que sentido isso se relaciona com a indicação de Marini (2008a, p. 267, tradução livre nossa) de que, no período atual, “[...] se generaliza a todo o sistema, incluindo os centros avançados, o que era um traço distintivo – ainda que não privativo – da economia dependente: a superexploração generalizada do trabalho”?
Para indicarmos um caminho de resposta (ou de pesquisa), vale também resgatar o próprio Marini (2008a, p. 268, tradução livre nossa), quando aponta que: “A globalização corresponde a uma nova fase do capitalismo, na qual, pelo desenvolvimento redobrado das forças produtivas e sua difusão gradual em escala planetária, o mercado mundial chega à sua madureza, expressada na vigência cada vez mais acentuada da lei do valor”.
A “vigência mais acentuada da lei do valor” estaria, pois, caracterizada, segundo
Neste contexto, a contenção ou viabilização da mobilidade da força de trabalho em escala global tem grande peso político (e mesmo existencial, no que se refere aos seres humanos que arriscam suas vidas ao buscar melhores condições de existência em outros países).
a nossa interpretação, pela mundialização das estruturas produtivas, e, frise-se, pela generalização da distribuição do mais-valor, para além das fronteiras dos Estados nacionais, o que expressaria, por sua vez, uma generalização mundial (tendencial) da taxa média de lucro – que, por ser uma média, é constituída em meio às diferenças23. Há evidência empírica disso? Se acompanharmos os cálculos de Roberts (2020), veremos que em 1950 a taxa de lucro auferida pelas assim chamadas “economias emergentes24” estava próxima dos 24%, enquanto a taxa de lucro das economias que compõem o assim chamado “G7” chegava perto dos 10%; porém, em 2016, enquanto a taxa de lucro das economias do “G7” se situava próxima aos 7%, a taxa de lucro das ditas “economias emergentes” era de aproximadamente 10%. Dessa forma, é sensível a aproximação das taxas de lucro entre as diferentes regiões.
Trata-se, com a mundialização da produção, da globalização do eixo de acumulação de capital. Mas afirmar que o eixo de acumulação do capital se torna mundial não significa apagar as diferenças entre, por exemplo, a economia estadunidense e a brasileira, mas indicar que, no que se refere à distribuição do mais-valor em escala global, há uma tendência a certa homogeneização das taxas de lucro, o que se expressa, por sua vez, na formação dos preços de produção das mercadorias vendidas no mercado mundial25. Ou seja, a maior exploração da força de trabalho nesta ou naquela região termina por ter efeitos na apropriação do mais-valor pelo capital em amplitude mundial, e não apenas efeitos localizados.
Na medida em que se trata de economias de menor composição média do capital e que concentram a maior parte da força de trabalho produtiva (que gera mais-valor) no mundo, o papel da violação do valor da força de trabalho nos países dependentes permanece essencial à acumulação de capital em escala global. E, na consideração que aqui se realiza, baseada no movimento da taxa média mundial de lucro do capitalismo contemporâneo, talvez ela se mostre ainda mais decisiva: Roberts (2020) evidencia, além da tendência secular ao declínio da taxa de lucro, a dificuldade estruturalmente
Leite (2017, p. 92), argumenta: “[...] em nossa leitura, se capitais de determinado lugar migram para outros lugares – mesmo com barreiras, dificuldades, etc. – ou se capitais já instalados aumentem a escala de produção em busca de taxas maiores de lucro, forma-se, tendencialmente, uma taxa geral de lucro entre os países, mesmo que, na realidade, as taxas de lucros nacionais sejam desiguais”, com o que estamos de acordo.
Ele considera: Argentina, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, África do Sul e Turquia.
Vale lembrar que nem toda mercadoria (pense-se em certos tipos de serviço, ou, decisivamente, na força de trabalho) é realmente comercializada sob a égide da competição internacional. Porém, esse é o caso das commodities, fundamentais para a economia capitalista dos países dependentes. É bom também mencionar o papel que cumpre atualmente a dívida pública brasileira na transferência de valores da população trabalhadora do país em direção aos bolsos dos investidores nacionais e estrangeiros, o que reforça a função subsidiária do Estado brasileiro, na correlação de forças atual, na rapina do país por parte da classe empresarial.
presente, de modo geral, desde a década de 1980, do capitalismo em gerar ciclos de acumulação de capital mais longos e robustos em termos de elevação da taxa média de lucro. Ao lado dessa verificação, alie-se também a observação de Roberts (2021) de que o crescimento da produtividade do trabalho nas maiores economias do mundo (com exceção da China) tem se mantido reduzido desde a reorganização mundial do capitalismo nas décadas de 1970 e 1980, como também, e correspondentemente, vem caindo a parcela do produto interno bruto (PIB) dessas economias que corresponde ao investimento em capital fixo nos últimos 50 anos (novamente, na China se verifica um movimento inverso).
Nesse contexto, poderíamos fazer a seguinte indicação: por um lado, o arranjo produtivo que exporta fases da produção mais intensivas em trabalho para economias subdesenvolvidas e a distribuição do mais-valor em escala mundial intensificam a importância da superexploração nas regiões dependentes para a acumulação global de capital. Por outro lado, a quebra – tanto econômica quanto política – da sustentação da capacidade organizativa e do poder de barganha da classe trabalhadora situada nos centros capitalistas, engendrada por esse mesmo processo – como aponta, por exemplo, Antunes (2009) – tem propiciado as condições para uma violação cada vez mais ampla e sistemática das condições de reprodução da força de trabalho também nessas regiões. Ademais, e decisivamente, se verifica em âmbito global uma incapacidade do capital em produzir ciclos de acumulação (portanto, com elevação da taxa de lucro) fundamentados essencialmente na geração do mais-valor relativo, verifica-se também a generalização da determinação essencial da própria superexploração, sem que com isso venham a desaparecer, também no essencial, as diferenças e particularidades entre as condições de reprodução das economias capitalistas imperialistas e dependentes. Na verdade, esse processo ocorre, aliás, mediante a intensificação dessas distinções e, por suposto, da própria dependência, uma vez que se trata do recrudescimento das especificidades da articulação dessas economias periféricas em meio a uma economia capitalista ainda mais globalizada e, portanto, altamente competitiva em termos de produção e apropriação de novas, custosas e ainda mais arriscadas (em termos de amortização de investimentos) tecnologias. A crise pela qual passa atualmente o capitalismo em escala mundial sinaliza, assim, para mudanças qualitativas à frente – somente compreensíveis se se incorporar à análise a questão da emergência da China. Porém, no que se refere à América Latina, no médio prazo, levando-se em consideração as necessidades objetivas das classes dominantes aí situadas, o mais provável é que haja um aprofundamento da dependência.
Neste artigo buscamos recuperar as determinações históricas da superexploração da força de trabalho no interior da TMD, principalmente a partir da teorização de Marini, relacionando-as com o processo de acumulação de capital e o desenvolvimento das forças produtivas. Discutir essas determinações permite uma compreensão melhor de cada momento do desenvolvimento histórico do capitalismo na América Latina, ao mesmo tempo em que propicia uma apreensão mais precisa (e concreta) da superexploração, não apenas em geral enquanto violação do valor da força de trabalho, mas historicamente determinada, ou seja, em suas conexões internas com as necessidades engendradas pelo processo de acumulação de capital em cada contexto e seus respectivos (e particulares) condicionamentos.
Como conclusão, a presente análise tornou ainda mais evidente que a superexploração se relaciona, sobretudo, com os aspectos contraditórios da economia capitalista e sua crônica dificuldade de sustentar (local ou globalmente) ciclos de acumulação fundados predominantemente na extração do mais-valor relativo. É certo que essas formas de elevação da taxa de lucro caminham juntas, até porque o desenvolvimento tecnológico é uma das causas de seu descenso, mas as razões históricas pelas quais cada uma delas ganha maior ou menor relevância depende do estado do desenvolvimento capitalista mundial do período, bem como das especificidades do local analisado. A generalização do fenômeno da superexploração da força de trabalho no período da globalização, por sua vez, deve ser fundamentada (dentre outras razões citadas por Marini) na estrutura produtiva particular adquirida pelo capitalismo em termos mundiais no período recente (isto é, desde os anos 1970) e, portanto, nas dificuldades, desde então engendradas, de geração de ciclos de acumulação de capital mais longos, com elevação sustentável da taxa de lucro a partir da geração do mais-valor relativo.
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