Gustavo Fagundes*
* Professor substituto na Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora e douto-rando e mestre em Serviço Social pela UFRJ
238 ARTIGOS (DOSSIÊ)
O presente ano nos brinda com a comemoração dos 90 anos de nascimento de Ruy Mauro Marini, um brilhante intelectual que ofertou uma inovadora agenda de pesquisa para pensar, interpretar e agir no solo latino-americano. Uma perspectiva original alicerçada não só no rigor teórico-metodológico, mas também em um firme compromisso com a superação da dominação imperialista que historicamente assola os povos do sul global e implica a imposição de uma submissão econômica, cultural e política. Compreender os meandros das correntes que afligem as possibilidades de desenvolvimento da nossa América foi o centro da atividade desse mineiro de Barbacena, e é por esse caminho que pretendemos apontar algumas direções sobre a atualidade dos seus escritos para o entendimento da realidade contemporânea, assim como as articulações presentes entre as categorias centrais da sua elaboração com outras produções. Uma conexão que – a nosso ver – tende a gerar uma combinação superior para observar a dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil.
O que apresentaremos aqui é uma intenção de aproximar as agendas de pesquisa contidas no âmbito da teoria marxista da dependência e os estudos sobre as relações raciais no Brasil, sendo este mais um passo no aprofundamento da vinculação da crítica da economia política e teoria do valor para a compreensão do racismo no Brasil. As particularidades do capitalismo dependente compõem a totalidade da reprodução do modo de produção capitalista em escala mundial e são fortemente marcadas em um país que atravessou quase 400 anos de regime escravista e que desenvolveu ideologias sofisticadas de dominação e hierarquização racial, as quais se impõem de forma renovada na realidade da população negra até os dias de hoje.
Essa iniciativa está ancorada na necessidade teórico-metodológica e política de encarar a questão racial como tema central para a compreensão do Brasil. E, nesse ponto, apoiamo-nos em uma afirmação do nosso autor na introdução de Dialética da Dependência: “O rigor conceitual e metodológico: a isso se reduz em última instância a ortodoxia marxista. Qualquer limitação para o processo de investigação que dali se derive já não tem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o dogmatismo” (MARINI, 2005, p. 139).
É justamente com esse anseio que avançamos na busca por relacionar superexploração com o racismo estrutural, categorias fundamentais que não se restringem a uma interpretação isolada em uma teoria sobre racismo ou a respeito da dimensão do trabalho nos países dependentes. Envolver essas perspectivas teóricas é analisar a própria sociedade brasileira, sua totalidade e seu conjunto de determinações.
Adiantamos que a presente reflexão não tem o objetivo somente de rememorar os escritos de Marini, e sim de contribuir na permanente atualização – um movimento crescente em nosso país – das suas ricas contribuições. Isso quer dizer que não ficaremos restritos a listar as categorias centrais dos seus ensaios e artigos ou a debater aspectos próprios dos seus textos. A ótica a ser apresentada nas páginas seguintes é de ampliar as possibilidades da teoria marxista da dependência, principalmente com a utilização daquele que é reconhecido como o seu traço mais marcante: a categoria superexploração do trabalho.
Para além disso, é oportuno afirmar que, a nosso juízo, o escopo categorial utilizado por Marini não se encerra na superexploração. Entretanto, os apontamentos aqui desenvolvidos buscarão conectar essa categoria em específico com outras importantes agendas de pesquisa presentes na tradição marxista, centralmente naquelas vinculadas ao pensamento latino-americano. Essa obsessão investigativa não se reduz a um debate acadêmico ou restrito aos círculos intelectuais, é parte de um amplo movimento presente na teoria social crítica fundada por Marx e Engels de não só interpretar e pensar nossa realidade, mas de agir sobre ela. Logo, nossa homenagem não será somente em forma de memória das fundamentais contribuições do nosso autor, e, sim, na utilização – quase que em formato de cooperação – daquilo que ele nos legou de aportes e auxílios para a transformação social em direção à superação das contradições próprias da ordem capitalista.
O tema a ser tratado aqui se refere a buscar um entrelaçamento entre superexploração e racismo no capitalismo dependente, um escopo que possibilita a discussão de formas históricas e contemporâneas das categorias, além da articulação com as relações de gênero e a dinâmica de precarização do trabalho.
Esse esforço parte da inquietação de decifrar os “porquês” da vida e a necessidade de traduzir nossas ideias a partir da escrita. Aqui faremos referência diretamente às elaborações presentes no ensaio Dialética da Dependência, publicado em 1973 (utilizaremos a edição publicada em 2005), mas cabe ressaltar que nos apoiamos no conjunto daquilo que é reconhecido (MARTINS, 2013) como economia política da dependência1.
Portanto, a seguir iremos nos dedicar a tentar decifrar a localização do trabalhador negro como uma das primeiras forças da superpopulação relativa, a qual opera para naturalizar e racializar a superexploração ao mesmo tempo em que age como ideologia supremacista funcional ao imperialismo. Racismo e superexploração são,
1 Apesar de o presente escrito dar ênfase à obra de Ruy Mauro Marini, seria injusto e incorreto do ponto de vista da importância para o pensamento marxista da dependência tentar legar um lugar de menor evidência para Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra.
por essa perspectiva aqui exposta, umbilicalmente conectados na reprodução do capitalismo em geral e do capitalismo dependente, em específico.
A tarefa aqui empreendida tem como característica central a inserção de categorias próprias da crítica da economia política ao foco do debate da questão racial. Esse traço se dá a partir da imprescindível contribuição de Clóvis Moura ao pensamento social brasileiro. O conjunto de aporte será utilizado como interlocução prioritária com os escritos de Ruy Mauro Marini, este que é um contato que acompanha a recente recuperação que é feita das obras dos dois autores.
A compreensão do racismo aqui compartilhada se apoia na ideia condensada na obra de Silvio Almeida (2019, p. 86), de que, “[...] na perspectiva estrutural – que é o nosso foco, se considerarmos o racismo um processo histórico e político, a implicação é que precisamos analisá-lo sob o prisma da institucionalidade e poder”. Isso significa entender que tal concepção só é possível se se desdobrar enquanto fenômeno real “[...] por meio da regulação jurídica e extrajurídica. Tendo o Estado como o centro das relações políticas contemporâneas” (ALMEIDA, 2019, p. 54). O autor agrega ainda que não devemos restringir “[...] o racismo apenas como derivação automática dos sistemas econômico e político” (p. 55), o que significa trazer o entendimento também enquanto processo histórico, o que é fundamental para evitar anacronismos e formulações baseadas em formações sociais distintas da que está sendo investigada. Daí a opção metodológica por buscar em Marini as orientações necessárias para contribuir na sustentação da dimensão estrutural da opressão racial.
Clóvis Moura (2014) apresenta, em Dialética Radical do Brasil (publicado originalmente em 1994), uma importante periodização histórica sobre a escravidão no Brasil, sendo aqui utilizado o recorte temporal apontado como Escravismo Tardio (1850-1888). Salientamos que tal elaboração pode abrir necessário diálogo com o campo da historiografia da chamada Segunda Escravidão, em que se traz a constituição mútua de capitalismo e escravidão no longo século XIX, formando um todo diferenciado e integrado. Robin Blackburn (2016), Dale Tomich (2011) e Rafael Marquese (2020) trazem reflexões no sentido de situar as umbilicais relações no âmbito do mercado mundial da aceleração do capitalismo industrial e a manutenção do trabalho baseado na escravidão em determinadas partes do mundo (principalmente Brasil, Cuba e sul dos Estados Unidos), uma combinação que proporcionou maior produtividade e geração de riqueza com base na violência e profunda espoliação dor corpos e mentes da população negra.
Diante das complicações e dilemas em se vincular o regime de trabalho escravi-zado a um modo de produção caracterizado pelo assalariamento, recorremos diretamente aos escritos de Dale Tomich (2011, p. 29): “Cada uma dessas duas relações passa a ser concebida como o ‘conteúdo’ de um sistema socioeconômico distinto”, o que acaba por definir escravidão e capitalismo como “distantes um do outro e da totalidade histórica” (TOMICH, 2011, p. 29). Entretanto, o autor afirma em seguida que “[...] a relação entre a escravidão e a transformação da economia mundial é su-bestimada”, visto que “[...] esses dois termos se conjugam para construir a complexidade e a heterogeneidade dos processos históricos em consideração” (TOMICH, 2011, p. 31), e traz ao centro desse nível de análise o mercado mundial, um elemento também basilar na teoria marxista da dependência.
Ruy Mauro Marini destaca que a participação dos países latino-americanos contribuiu fundamentalmente para que a passagem do eixo de acumulação se trans-ferisse da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa. Em suas palavras, “[...] o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite a região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em maior exploração do trabalhador” (MARINI, 2005, p. 144). Clóvis Moura (2014) traz ao debate que os homens e mulheres majoritários no mundo do trabalho no Brasil do século XIX eram pessoas negras (escravizados e/ou libertos e/ou livres). A aproximação que orientamos aqui vai no sentido de compreender as bases da dependência – na elaboração de Marini – conectadas aos acontecimentos presentes no que Moura apontou como Escravismo Tardio, e Tomich, Blackburn e Marquese afirmam ser a chamada Segunda Escravidão.
Dessa forma, “[...] é a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho” (MARINI, 2005, p. 141), um elemento que nosso autor viria a apontar como integração subordinada ao mercado mundial, traço elementar para a consolidação das relações de dependência.
A expressão posterior foi o chamado intercâmbio desigual de mercadorias, onde nas trocas entre economias dependentes e centrais, “[...] o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a Lei do Valor” (MARINI, 2022, p. 182). Ou seja, tal intercâmbio garante a simultânea aplicação da Lei do Valor e a violação do intercâmbio de equivalentes. O desdobramento desse processo resulta no fenômeno de transferência de valor, o que se traduz em deterioração da acumulação de capital das diversas frações da classe dominante brasileira.
Era somente com homens e mulheres subjugadas pela escravidão que o grande
empreendimento da oferta de matérias-primas e gêneros alimentícios conseguiria ser efetivado da forma como foi. Ainda que a escravidão não fosse uma inovação oi-tocentista, os contornos tomados por ela implicam uma relação distinta do praticado anteriormente. A existência de um amplo mercado com capacidade de absorver a demanda de matérias-primas proporcionou a expansão da produção agrícola, o que gerou maior intensidade laboral dos trabalhadores negros escravizados. Inicia-se aí o que viria a ser a compensação da perda de valor oriundo do intercâmbio desigual de mercadorias. Entretanto, ressaltamos que esse processo se difere do que Ruy Mauro Marini aponta como sendo mecanismo de compensação, que reside na contrapartida para que os países dependentes reponham a massa de valor perdida na transferência de valor. Trata também da incompatibilidade da superexploração do trabalho com o regime de trabalho baseado na escravidão, ainda que traga a possibilidade de a relação entre uma economia escravista e o mercado mundial proporcionar maior grau de exploração.
Ao se subordinar uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, o aprofundamento da exploração do escravo é acentuado, já que interessa portanto a se proprietário reduzir os tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador. (MARINI, 2005, p. 158).
A dedicação à observação do período histórico supracitado se ancora na reafir-mação que fazemos dos homens negros e mulheres negras – em sua maioria escravizados – enquanto sujeito coletivo responsável por edificar o desenvolvimento econômico do país. Dessa forma, apontamos que essa constatação se articula nas teses de Marini sobre a subordinada integração da economia brasileira ao mercado mundial e o intercâmbio desigual de mercadorias como elementos centrais na dependência.
Partimos do entendimento de que as bases históricas da superexploração se estabelecem na transição do regime de trabalho no Brasil, o que implica na localização da transição da escravidão para o pleno assalariamento como centrais na análise. O exposto até aqui a partir das obras de Clóvis Moura (2014) e Dale Tomich (2011) nos auxilia nessa interpretação. Ainda que não desenvolvam sobre a superexploração, seus escritos abrem caminhos para que possamos entender que os homens e mulheres responsáveis pela primeira força nos postos de trabalho no pré-abolição são os mesmos que, nas décadas iniciais do século XX, são inseridos de forma compulsória em uma situação de desemprego, subemprego e ociosidade permanente. Ou seja,
do centro da produção para a superpopulação relativa. O que apresentamos aqui é a compreensão do racismo como elemento legitimador desse processo.
Foi em Dialética da Dependência que Ruy Mauro Marini primeiro desenvolveu a relação entre exército industrial de reserva e superexploração. Entretanto, essa conexão se espraiou em outros escritos, como quando afirmou que, dentre as características impostas ao Brasil, se destaca “[...] o aumento do exército industrial de reserva – sob a forma de desemprego aberto ou oculto” (MARINI, 2017, p. 32). E qual seria a conexão entre esses elementos e a trajetória da opressão racial no Brasil? Em diálogo com Silvio Almeida, partimos do entendimento de que não se pode negar o racismo enquanto mecanismo de dominação, mas que é fundamental destrinchar suas diversas expressões. Logo, “[...] o racismo é uma ideologia, desde que se considere que toda ideologia só pode subsistir se estiver ancorada em práticas sociais concretas” (ALMEIDA, 2019, p. 67).
Ressaltamos, a partir das obras de João José Reis (2019) e Marcelo Badaró Mattos (2008), os mecanismos de violência e repressão contra a população negra e também a existência de organização das categorias de trabalhadoras as quais estavam inseridos, os quais foram atualizados e adaptados ao universo dos centros urbanos no século XX e seguem vigentes até o tempo presente.
A exposição da população negra nos quadros do exército industrial de reserva realizou-se no período de hegemonia das relações de trabalho assalariadas, mas sua gestação se originou nos acontecimentos jurídico-políticos – assim apontado por Clóvis Moura (2014) – do século XIX. A transição do regime de trabalho produziu um conjunto de políticas que auxiliaram na construção e pleno estabelecimento da estrutura racista da sociedade brasileira. É também nesse período que temos o alvorecer das teorias racialistas e as ramificações das suas diversas perspectivas (GOÉS, 2018). Parte fundamental dessas elaborações definia hierarquias raciais e qualificava a pessoa negra como sujeito inferior, em sentido biológico e intelectual. Ou seja, era uma tentativa de dotá-los como incapazes de exercer determinadas funções no mercado de trabalho justamente no momento de desagregação do regime escravista e vigência da operação estatal para a imigração de trabalhadores europeus. Logo, a emergência dessas elaborações teóricas foi de extrema funcionalidade na transferência de ofícios anteriormente ocupados pela população negra (escravizados ou libertos ou livres) para a parcela branca dos trabalhadores.
Em Sociologia do Negro Brasileiro, Clóvis Moura (1988) traz elementos para analisar a relação da opressão racial com a organização do mundo do trabalho. O autor apresenta um acúmulo que contribuiu para a calcificação dos trabalhadores
negros no exército industrial de reserva da nascente sociedade brasileira hegemo-nizada pelo trabalho assalariado.
Se no período escravista as mais diversas ocupações profissionais tinham no braço negro o seu pilar de sustentação, das de exigência de técnicas e habilidades simplistas até as mais complexas, o mesmo não se verificava nas primeiras décadas do século XX. Inclusive, passam a ser recorrentes os estereótipos criados sobre o indivíduo não-branco:
Indolentes, cachaceiros, não-persistentes para o trabalho e, em contrapartida, por extensão, apresenta-se o trabalhador branco como o modelo perseverante, honesto, de hábitos morige-rados e tendências a poupança e à estabilidade no emprego. Elege-se o modelo branco como sendo o do trabalhador ideal. (MOURA, 1988, p. 69)
Um traço que se combina ao que foi também desenvolvido por Florestan Fernandes (2008, p. 31-32):
Onde a produção se encontrava em níveis baixos, os quadros da ordem tradicionalista se mantinham intocáveis: como os antigos libertos, os ex-escravos tinham de optar, na quase totalidade, entre a reabsorção no sistema de produção, em condições substancialmente análogas as anteriores, e a degradação de sua condição econômica, incorporando-se à massa de desocupados e de semi-ocupados da economia de subsistência do lugar ou outra região. Onde a produção atingia níveis altos, refletindo-se no padrão de crescimento econômicos e de organização do trabalho, existiam reais possibilidades de criar um autêntico mercado de trabalho: aí, os ex-escravos tinham de concorrer com os chamados “trabalhadores nacionais”. [...] Em consequência, ao contrário do que se poderia supor, em vez de favorecer, as alternativas da nova situação econômica brasileira solapavam, comprometiam ou arruinaram, inexoravel-mente, a posição do negro nas relaçoes de produção e como agente de trabalho.
O que trazemos é a consolidação da sociedade brasileira no pós-abolição e a impossibilidade do trabalhador negro de alcançar os melhores postos de trabalho. Dessa forma, podemos avaliar que essa situação posta à parcela majoritária do proletariado brasileiro era de imposição de desemprego e subemprego. Eram sujeitos que, apesar da disponibilidade – física e intelectual –, não conseguiam estabelecer vínculos consolidados e de qualidade no mercado de trabalho, comprometidos diretamente pela opressão racial. Avançamos na reflexão ao constatar que persiste similaridade com a elaboração marxiana sobre superpopulação e exército industrial de reserva, já que “[...] produzir uma população excedente relativa, isto é, excedente em relação à necessidade média de valorização do capital, é uma condição vital da indústria mo-derna” (MARX, 2017, p. 709). Portanto, é possível perceber que esse contingente de trabalhadores negros – que no Brasil representa a maior parte daqueles que vivem do
trabalho – ausentes dos postos de trabalho age no sentido de regular negativamente o valor da força de trabalho. E isso implica conectar a vigência do racismo, responsável por construir ideologias que buscam inferiorizar essa população, com a própria dinâmica da acumulação capitalista e seus processos de valorização.
Grosso modo, os movimentos gerais do salário são regulados exclusivamente ela expansão e contração do exército industrial de reserva, que se regem, por sua vez, pela alteração periódica do ciclo industrial. Não se determinam, portanto, pelo movimento do número absoluto da população trabalhadora, mas pela proporção variável em que a classe trabalhadora se divide em exército ativo e exército de reserva, pelo aumento ou redução do tamanho relativo da superpopulação, pelo grau em que ela é ora absorvida, ora liberada. (MARX, 2017, p. 712-713).
Reforçamos que o exército industrial de reserva é categoria de relevância superior, anteriormente indispensável, para a plena realização da superexploração (CARCANHOLO; AMARAL, 2008). Dado o entendimento de que essa população excedente é composta, em sua maioria, por trabalhadores negros, é justamente essa população a alavanca fundamental para a acumulação e reprodução desse modo de produção. Nos termos da Lei Geral da Acumulação Capitalista: “[...] ela proporciona o material humano a serviço das necessidades variáveis de expansão do capital e sempre pronto para ser explorado, independentemente dos limites do verdadeiro incremento da po-pulação” (MARX, 2017, p. 858).
O que temos é a vigência do racismo – nas suas mais diversas expressões – em ação no sentido de tornar socialmente aceito que a maior parte dos trabalhadores brasileiros possa, em determinados momentos e termos quantitativos, estar subjuga-da a condições degradantes de vida e trabalho. Essa dimensão se aplica, obviamente que em outros termos, ao conjunto dos trabalhadores (brancos e negros), visto que a dominação racista acaba por rebaixar as condições de vida e trabalho do conjunto do proletariado. Resulta, então, numa forma sui generis da relação capital-trabalho. A dinâmica da dependência, agudizada pelas características nacionais, acaba por submeter toda classe trabalhadora brasileira a um regime de superexploração do trabalho. As características da nossa formação social dependente impuseram na força de trabalho do trabalhador branco um agente quase monopolizador das funções laborais. Enquanto ao trabalhador negro se abriam restritas possibilidades: lenta adesão aos setores subalternos do operariado urbano, alta rotatividade laboral, ócio compulsório e criminalização pelas forças repressoras do Estado nacional.
Logo, a dependência articulada à divisão racial do trabalho traz à luz um aperfeiçoamento em favor do capital, o que encontra lastro na própria integração do Brasil ao mercado mundial. “O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação para o mercado
mundial, é uma das vias pelas quais a América Latina chega ao capitalismo” (MARINI, 2005, p. 160).
Dessa forma, seguimos com nosso autor homenageado no entendimento da inexistência da superexploração em formações sociais anteriores ao capitalismo. Por isso também a necessidade de abordar os aspectos dessa integração ao mercado mundial capitalista.
Ruy Mauro Marini entende que a superexploração se expressa das seguintes maneiras: a) pagamento da força de trabalho abaixo do seu valor; b) prolongamento da jornada de trabalho além dos limites normais; c) aumento da intensidade do trabalho além dos limites normais; d) hiato entre o pagamento da força de trabalho e o elemento histórico-moral do valor da força de trabalho. Mathias Luce (2018, p. 178) aponta que, em todas elas, “[...] o capital se apropria do fundo de consumo do trabalhador, deslocando-o para o fundo de acumulação”. Persiste ainda um avanço sobre os anos de vida do trabalhador, em que o capital viola o fundo de vida da classe trabalhadora em favor do abastecimento da sua acumulação.
Isso coloca em voga a discussão acerca da determinação de um valor normal para a força de trabalho. Sabemos que esse valor é constituído de características históricas e conjunturais. Aqui, apontamos a persistência significativa do racismo em torno do valor da força de trabalho. A forma como se estrutura a localização da população negra no tecido social brasileiro, assim como a existência de um volumoso exército industrial de reserva, impactam negativamente na determinação do valor, visto que acaba por ser socialmente permitido remunerar abaixo do valor normal esse quantitativo de pessoas, da mesma forma que o que é considerado normal não apresenta características que permitam plena reposição do desgaste da força de trabalho e, com isso, a superação do seu desgaste diário. Portanto, percebemos como o racismo estru-
tural se relaciona com o regime da superexploração da força de trabalho.
No capitalismo dependente operam contratendências de outra natureza, em que a superexploração cumpre a vez de mecanismo de compensação específico. Assim entendida, a superexploração contém um mecanismo de compensação para as transferências de valor como intercâmbio desigual. E uma vez em marcha, as relações de superexploração colocam em movimento tendências negativamente determinadas que atentam contra a configuração de um valor normal para a força de trabalho – ou seu pagamento e desgaste próximo de seu valor. Com o exposto até aqui, podemos afirmar que o valor normal reflete um patamar histórico, com limites acomodados pela dinâmica reprodutiva do capitalismo e conquistados pela classe trabalhadora e o movimento operário dentro da luta de classes. O valor normal pode ser conhecido, de maneira aproximada, analisando a conjunção entre: o tempo de trabalho socialmente necessário nas condições vigentes; o elemento histórico e moral do valor da força de trabalho na sociabilidade correspondente, incluindo as condições culturais; a expectativa
de vida nas condições médicas e sanitárias vigentes; os limites legais conquistados e reconhecidos para a duração da jornada de trabalho; o tempo de vida laboral (jornada de trabalho total), incluindo sua relação com as condições de aposentadoria. (LUCE, 2018, p. 169).
Frente a isso, acrescentamos que a superexploração também se alinha ao que Marini (2005) aponta como a cisão no ciclo do capital – este que é mais um dos traços característicos da dependência –, e que também podemos compreender na relação aqui analisada. “A produção baseada na superexploração do trabalho voltou a en-gendrar assim o modo de circulação que lhe corresponde, ao mesmo tempo em que divorciava o aparato produtivo das necessidades de consumo das massas” (MARINI, 2005, p. 178).
A expressão concreta da separação das massas com o aparato produtivo reside em um rebaixamento do valor normal para remuneração da força de trabalho. Jaime Osório (2009) expõe que o valor histórico-moral em condições normais diz respeito à articulação dos seguintes aspectos: a) tempo de trabalho socialmente necessário nas condições vigentes; b) elementos histórico-moral; c) expectativa de vida; d) legislação trabalhista. Logo, é possível localizar um padrão de normalidade no histórico de pagamento da força de trabalho. Junto a isso, Luce (2018) traz três pontos para o rebaixamento dos salários nas economias dependentes: 1) exacerbado exército industrial de reserva; 2) menor participação dos trabalhadores na realização do capital (circulação); 3) o fato de a burguesia dependente impor um deslocamento do fundo de consumo do trabalhador para o fundo de acumulação do capital. Ou seja, além de a força de trabalho se submeter às normas gerais da lei do valor, sob a superexploração “[...] está também submetida às determinações específicas desta, sob as quais é agudizada sua tendência negativamente determinada” (LUCE, 2018, p. 155). O aprofundamento dessa orientação alimenta um desgaste da força de trabalho, inibe a reposição para superação do desgaste e produz um rebaixamento do seu valor, sendo essa a essência da superexploração (LUCE, 2018).
O que queremos expor com o conjunto dessa explanação é a superexploração da força de trabalho como elemento constitutivo da estrutura societal brasileira, tal qual o racismo. Da mesma forma que esse regime particular de exploração da força de trabalho é relacionado ao avanço do capitalismo sobre as nações dependentes, “[...] o racismo não é um mero reflexo de estruturas arcaicas que poderiam ser superadas com a modernização, pois a modernização é racista” (ALMEIDA, 2019, p. 193).
A persistência dos traços da superexploração não foi elaborada por Marini como alinhada diretamente às relações raciais no Brasil. O que apresentamos aqui é a busca por apontar que a agudização dessas expressões encontra terreno fértil na nossa formação social, justamente pela dominação racista vigorar em nível estrutural. A
superexploração não prescinde do racismo, porém a existência de tal mecanismo garante uma tempestade perfeita para esse regime.
Acreditamos que este texto traz uma homenagem à memória de Ruy Mauro Marini ao buscar expandir as fronteiras da perspectiva teórica por ele fundada e desenvolvida (em parceria com importantes parceiros e parceiras). Sabemos que a teoria marxista da dependência foi por muito tempo atacada de forma caluniosa e negligenciada de maneira caricatural, mas que nos últimos 15 anos ganha cada vez mais espaço nos ciclos de debates. A existência desse processo de apagamento não impediu a ocupação de um importante espaço no âmbito da tradição marxista, principalmente no que tange às análises referentes ao caráter do capitalismo latino-americano, à formação socioeconômica da região e seus desdobramentos até os dias atuais. É justamente por persistir na marcha intelectual e militante em busca da superação dos encadeamentos desvelados, ancorada em firme rigor teórico-metodológico, que acreditamos ser no contato permanente entre essa contribuição e o estudo das relações raciais que podemos avançar no percurso investigativo.
O fôlego primário dos pensadores fundadores foi fundamental na descoberta e aprofundamento de categorias. Formulações que propiciam apreensões originais. A adoção dessas elaborações deve estar a serviço da análise e ação sobre os dilemas que permeiam a história do capitalismo dependente, o que, na nossa avaliação, também insere o racismo estrutural na sociedade brasileira.
Entendemos que a contribuição de Marini ao dar os tons iniciais da categoria superexploração é central, principalmente por ser esse o traço mais lembrado da teoria marxista da dependência (LUCE, 2018) e que consiste em uma “[...] determinação negativa do valor contido na Lei do Valor, em que a corporeidade viva da força de trabalho é submetida a um desgaste prematuro” (LUCE, 2018, p. 16). E dada as condições socioeconômicas historicamente determinadas, não realiza uma reposição do seu desgaste, em que a “substância viva do valor não é restaurada” (LUCE, 2018, p. 16) e acaba por ser – a força de trabalho – fixada abaixo do seu valor.
Consideramos as relações raciais como prioritárias no âmbito das apreensões históricas mencionadas. Apresentamos nessa reflexão a percepção de que a população negra se constituiu, em primeiro lugar, em população excedente no mercado de trabalho brasileiro, o que se desdobrou em condição fundamental para a plena operação dos mecanismos que determinam a superexploração.
A aproximação que buscamos construir é uma tentativa de esmiuçar nós interpre-
tativos do que é o Brasil, sendo as angústias do mundo do trabalho parte prioritária. A nosso ver isso se traduz em entender os padrões de dominação do racismo estrutural em aliança à superexploração como de extrema funcionalidade para agudizar as condições de vida e trabalho, o que significa, em primeiro plano, rebaixar o valor da força de trabalho.
Nesse sentido, constatamos ser improdutiva a permanência do debate que coloca uma posição antagônica entre a questão racial e a luta de classes no país. Por isso também a busca por englobar a categoria superexploração no bojo da discussão sobre a situação do negro no Brasil. Como observamos, a situação de dependência impõe uma série de restrições e limitações para a melhora nas condições de vida do povo brasileiro. Ainda que esses mecanismos possam vigorar para além da vigência do racismo, é pela permanência desse elemento como uma tecnologia de dominação que a persistência da superexploração encontra melhores possibilidades para sua disseminação. Inclusive por ter mais da metade da população submetida ao racismo. Almeida (2019, p. 184) caminha no mesmo sentido, principalmente ao tratar do racismo como um aparelho de controle social, “[...] porque ‘naturaliza’ o pagamento de salários mais baixos para trabalhadores e trabalhadoras pertencentes a grupos minoritários”.
Logo, o esforço analítico do diálogo entre superexploração e racismo tem a ver com a dimensão estrutural dos dois fenômenos. Ainda que possam estar em níveis de abstração distintos, examinar a forma como se retroalimentam deve constituir parte do objetivo de quem almeja dissolver as amarras da opressão racial e também da exploração. Partimos de uma responsabilidade não só teórico-metodológica como também no âmbito do compromisso político frente à superação – não só interpre-tativa – dos dilemas da dependência, incluída aí toda forma de dominação e hierarquização racial.
Os 90 anos de Ruy Mauro Marini devem servir para que possamos não só restaurar ao devido lugar sua trajetória como também para garantir que o arcabouço teórico se amplie para a compreensão da sociedade brasileira.
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
BLACKBURN, Robin. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo (Orgs.). Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. p. 13-54.
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FERNANDES, Florestan. Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, 2008.
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250 ARTIGOS (DOSSIÊ)
Kehl. 1 ed. São Paulo. LiberArs, 2018.
LUCE, Mathias Seibel. Teoria marxista da dependência: problemas e categorias – uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
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