Reoriente • vol.2, n.1 jan/jun 2022 • DOI: 10.54833/issn2764-104X.v2i1p187-191
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GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano.
Organização: Flávia Rios e Márcia Lima. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 376 p.
Joana A. Coutinho
1
*
O livro Por um Feminismo Afro-Latino-Americano, de Lélia González (1935-1994), é
fruto da organização cuidadosa de Flávia Rios e Márcia Lima (2020) de artigos, livros
e entrevistas de Lélia Gonzalez ao longo da sua vida. Lélia nasceu em Belo Horizonte,
Minas Gerais, no ano de 1935 e, como a maioria das famílias da classe trabalhadora, a
sua também era bem numerosa: Lélia teve 17 irmãos, entre eles, o jogador de futebol
Jaime de Almeida. Como também não é de se estranhar, as classes populares são o
lugar onde a miscigenação se dá de forma intensa: seu pai, negro, ferroviário, e a mãe,
indígena e empregada doméstica. Lélia, até esse momento Almeida, muda-se para o
Rio de Janeiro em 1942, com sete anos de idade, com toda a família para acompanhar
o irmão jogador. Em 1954 conclui os estudos básicos no tradicional Colégio Pedro
II e mais tarde estuda história e losoa pela Universidade do Estado de Guanabara
(UERJ). Fez mestrado e doutorado em estudos antropológicos e políticos e começa a
estudar questões de gênero e etnia.
Em 1964, Lélia adota o nome do marido, Luiz Carlos Gonzalez, com quem se casa,
sendo esse também o ano que vai durar duas décadas da nossa história em razão do
golpe militar. Um ano depois, seu marido comete suicídio. Tiveram que conviver
com o racismo de sua família branca, que não conseguiu aceitar o casamento formal
entre eles. Lélia passa a ser conhecida como Lélia Gonzalez. O interesse pela questão
da mulher negra torna-se um dos pontos centrais das suas análises. É nesse momento
que podemos dizer que surge o feminismo negro.
Ela foi uma ativista, intelectual-militante da causa negra. Fundou com outros
companheiros o Movimento Negro Unicado (MNU) na década de 1970, militou
primeiramente no Partido dos Trabalhadores (1982) e, mais tarde, no PDT (1986) de
Brizola e Darcy Ribeiro. É nessa busca incessante pela identidade, sem perder a capa-
cidade de pensar e agir (teoria e práxis), que vai formular importantes conceitos que
estão presentes nesse livro. O livro está dividido em três partes: ensaios, intervenções
e diálogos. Vamos destacar alguns textos dessa antologia que acreditamos ser precio-
sos para entender o pensamento e a importância da contribuição de Lélia Gonzalez.
* Doutora em Ciência Sociais: Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora
na Universidade Federal do Maranhão; coordenadora do Grupo de Estudos de Hegemonia e Lutas na
América Latina (GEHLAL). E-mail: joaninahcoutinho@hotmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-
0002-8846-6491
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RESENHAS
Primeiramente destacamos: a) “Por um Feminismo Afro-Latino-Americano, ca-
tulo que dá título ao livro. No texto escrito em 1988, ano que celebrava os cem
anos da abolição da escravatura no país, e também ano em que é promulgada a Nova
Constituição, depois de 21 anos de regime militar, Lélia chama a atenção para as
condições de vida de homens e mulheres negros no Brasil e na América Latina, “[...]
mostrando as contradições internas do feminismo latino-americano. Trata de mos-
trar como, no movimento feminista, as mulheres indígenas e negras são excluídas. O
foco da crítica está centrado, sobretudo, no feminismo que, embora tenha quebrado
com tantos tabus – como o da sexualidade, tanto de mulheres como de homens – e
feito uma crítica contundente à sociedade patriarcal, ao mesmo tempo se “esqueceu
da questão racial. Lélia Gonzalez faz um percurso parecido com o de Frantz Fanon,
ou é inuenciada por ele, ao recorrer a elementos da psicanálise para compreender
a relação colonizado-colonizador introjetada nos primeiros. Essa relação estabelece
uma visão de mundo eurocêntrica e gera, portanto, efeitos “neocolonialistas” que se
manifestam na alienação “[...] de uma teoria e de uma prática que se percebem como
liberadoras” (GONZALEZ, 2020, p. 141). O destaque está em perceber as sociedades
latino-americanas como multirraciais e pluriculturais. Lélia recorre à psicanálise e
mais especicamente a Lacan para compreender o processo de infantilização a que
são submetidas as mulheres negras ou, nas suas palavras, “não brancas” e a forma
como são convocadas, denidas e classicadas por um sistema ideológico de domi-
nação. A ideologia do embranquecimento exerce um efeito interno absoluto que leva
a própria negação da raça e de sua cultura.
Lélia Gonzalez, nesse texto, retoma uma discussão cara para a esquerda e para os
movimentos chamados identitários e sua relação com a classe social de pertencimen-
to: desconstruir o mito da democracia racial tão propagada no Brasil e que oculta um
racismo que alguns autores identicam como estrutural ou institucional. A crítica
de Gonzalez aponta que a esquerda também assume a ideia de uma “democracia
racial” que imperaria entre nós ao focar somente nas “contradições de classe. É essa
visão eurocêntrica que torna a esquerda – eu diria parte da esquerda neste momen-
to – cúmplice da dominação que “pretendiam combater. A questão parece bastante
profícua quando pensamos na sociedade brasileira e nos deparamos com os seguin-
tes números estatisticamente signicativos: que 56% da população se declara como
pardos (47%) e pretos (9%). Em uma sociedade com brutal desigualdade social, não é
de se estranhar que a maioria dos negros (pardos e pretos) estejam na base da pirâmi-
de social: são trabalhadores, proletários. Então a questão da classe permeia a questão
da raça no Brasil. Jacques Roumain (1907-1944) e Aimée Césarie (1913-2008), entre
tantos outros que discutem a questão da colonização e da negritude numa perspecti-
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va de classe, nos induzem a pensar as particularidades das nossas formações sociais,
produzindo conhecimento, e abominam o eurocentrismo das análises que permeiam
os partidos de esquerda neste momento.
No texto A categoria político-cultural de amefricanalidade, Lélia Gonzalez retoma
a questão da colonização e traz um elemento a mais: racismo, colonialismo, imperia-
lismo e seus efeitos. Aqui se faz importante reforçar os tipos de racismo que se dão
de forma diferenciada na América Latina – os países de colonização saxônica e os de
colonização ibérica: racismo aberto e racismo disfarçado. No primeiro, desenvolvido
em países anglo-saxões, é negro quem possui antepassados negros; a miscigenação
torna-se algo praticamente impossível. O que ocorre é uma segregação total dos gru-
pos negros, como foi o caso da África do Sul, com a sua doutrina “igual, mas sepa-
rado. O contrário acontece nos países latino-americanos. Aqui imperou o racismo
disfarçado, ou, segundo nominou Lélia Gonzalez, “racismo por denegação. Em suas
palavras, “[...] a chamada América Latina que, na verdade, é muito mais Ameríndia
e amefricana do que outra coisa, apresenta-se como o melhor exemplo de racismo
por denegação” (GONZALEZ, 2020, p. 130). Amérindia é o termo usado pelo psi-
canalista Magno Machado Dias (MD Magno) em um congresso sobre psicanálise e
linguagem nos anos 1980. Magno fala de uma América-Africana, faz alusão ao ro-
mance de Mário de Andrade Macunaíma e, a partir do nascimento deste, à questão
da raça. Não no sentido
[...] físico-antropológico ou biológico do termo, mas no sentido de coalescência discursiva
(aliás, é como Lacan dene: raça como repetição discursiva) desse que, no texto, é chamado o
herói da nossa gente – ou seja, aquele que poderia arcar com a posição paterna – certamente,
tivesse ganho, às avessas, a batalha discursiva? (MD, 2008, p. 7).
Mas o que diz sobre o racismo latino-americano é que ele é “[...] sucientemente
sosticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados no
interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais ecaz: a ideo-
logia do branqueamento” (MD, 2008, p. 131).
A categoria amefricanidade aponta para um rompimento por meio da linguagem.
Para romper com o que nos torna “cativos de uma linguagem racista, a autora propõe
amefricanidade” ou americanos “para designar a todos nós” (GONZALEZ, 2020, p.
134). Para Lélia Gonzalez, as
[...] implicações políticas e culturais da amefricanidade são de fato, democráticas: exatamente
porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico
e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte
do mundo onde ela se manifesta: a América como um todo (Sul, Central, Norte e Insular).
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RESENHAS
(...) a categoria da amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica
cultural (...) que é afrocentrada, isto é referenciada em modelos como a Jamaica e o akan,
seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos iourbá, banto e ewe-fon. Em consequência,
ela nos encaminha no sentido da construção de uma identidade étnica. Desnecessário dizer
que a categoria de amercanidade está intimamente relacionada àquelas de pan-africanismo,
negritude, afrocentricity. (GONZALEZ, 2020, p. 134-135).
Lélia acompanha o intenso debate que formulam Frantz Fannon, Jacques Rou-
main, Aimée Césaire, e a construção de uma identidade que é forjada na Europa. O
movimento negritude tem uma dimensão anticolonialista, anti-imperialista e anti-
capitalista. Ou seja, a identidade é forjada num contexto em que a questão do ne-
gro e da inferioridade da raça e da cultura são questionados. A religião, considerada
primitiva” aos olhos dos colonizadores, brancos e cristãos, também entra na roda.
Não se trata de superstição, mas, assim como a religião cristã, de uma série de mi-
tos e lendas que tentam explicar a realidade. A religião é um percurso de encontro
com essa identidade negra, de certa forma idealizada. Jacques Roumain, a respeito
do preconceito racial, arma que é de “excepcional importância o problema, pois os
políticos negros e mulatos buscam esconder a luta de classes. Mas o preconceito ra-
cial é a expressão sentimental da oposição de classe, da luta de classes. Entender essa
amefricanidade é também se debruçar sobre a luta de classes nesses territórios, numa
África idealizada, e nos territórios latino-americanos. Nesse sentido, Lélia Gonzalez
é pioneira ao relacionar o racismo ao imperialismo. O racismo, em suas palavras, es-
tabelece uma hierarquia racial e cultural que opõe “superioridade” branca ocidental
à “inferioridade” negro-africana e também à indígena.
O livro traz ainda textos que debatem a questão da mulher negra, a “mulata bra-
sileira, a questão da juventude negra – temas que a autora está debatendo entre a
década de 1980 e 1990 e que são ainda tão atuais. A luta contra o racismo toma di-
mensões que levam para um anticapitalismo e anti-imperialismo e, nessa quadra da
história que nos toca viver, a um antifascismo. O texto da Lélia é de uma atualidade
assustadora, o que signica dizer que a luta é permanente e que conquistas num
determinado momento podem se transformar em derrotas em outro. O número de
assassinato de jovens negros nas periferias só aumentou nos últimos anos; a tarefa
é tanto do ponto de vista teórico como da prática real do nosso cotidiano e requer
negros e brancos, mulheres e homens participando ativamente para que o racismo
desapareça da face da terra. Mas para isso é preciso que consigamos fazer desaparecer
o capitalismo igualmente. Leitura necessária!
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Referências
CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Estudos
Feministas, v. 22, n. 3, p. 965-986, set./dez. 2014.
GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
MACHADO DIAS, Magno. Améfrica Ladina: introdução a uma abertura. In: MACHADO DIAS,
Magno. Acesso à Lida de Fi-Menina: seminário 1980. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. p. 145-165.
RIOS, Flávia; LIMA, Márcia. Introdução. In: GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Lati-
no-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.